Voz na luz: psicanálise e cinema – GUIMARÃES (CTP)

GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p. Resenha de: NASCIMENTO, Cristhianne Lopes. Voz na Luz: Psicanálise e Cinema de Dinara Machado Guimarães.  Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 04 – 04 de julho de 2011.

A psicanalista Dinara Guimarães propõe uma ideia inovadora ao investigar o cinema a partir da voz. Por o cinema ser uma arte sempre associada ao olhar, este livro amplia a concepção dos recursos sonoros e vocais das produções cinematográficas quando relacionados com a psicanálise. E esta particularidade já se apresenta no Prefácio quando o cineasta Cacá Diegues define que “a voz deste livro é a voz que o cineasta escuta”.2 Em sua obra, O vazio iluminado, a autora trabalha o olhar no cinema sustentado pela ideia de um vazio que também dá passagem para a criação da concepção voz na luz. Assim, como existia uma separação entre olhar e vê em sua primeira obra, esta traz como foco uma separação entre a voz e aquilo que se diz.

Desse modo, Dinara Guimarães nos apresenta “o cinema como uma arte que materializa uma voz moral na consciência humana”.3 E, com isso, permite uma análise do processo de criação tendo como base a teoria da psicanálise e a teoria do cinema. Para tanto, a autora divide sua obra em duas partes compostas por várias sequências: a primeira é o início da passagem do olhar para a voz (a) sonora; a voz de supereu de Sigmund Freud; a voz como objeto de pulsação invocante de Jacques Lacan; a voz na triangulação entre as categorias do Real, do Simbólico e do Imaginário; e a segunda parte consolida o encontro entre o cinema e a psicanálise assumindo o cinema como voz (a) sonora, uma voz silenciosa passando deste o surrealismo francês, os movimentos de vanguarda americana experimental, nouvelle vague francesa, neorrealismo italiano, até o cinema brasileiro e cinema contemporâneo. Por fim, as considerações finais que ressaltam o caminho percorrido e a voz transpassável pela tela desviada que ainda é seu grande enigma.

No primeiro plano já encontramos uma nomenclatura alternativa utilizada pela autora: a classificação cinema mudo e falado da abordagem tradicional é denominada por cinema silencioso e sonoro, e, ambos são detentores de voz. Isso quer dizer que o cinema mudo possui uma voz silenciosa. E, por isso, “o cinema combina a voz e a presença invisível do enunciador”.4 A partir desta assertiva, Dinara Guimarães define os princípios psicanalíticos que lhe é fundamental – o objeto a e o objeto da pulsão de ouvir, invocante – para chegar à construção do objeto e do método. Tendo como referencial Lacan e Freud, respectivamente. Logo, o cinema é construído pela voz (a) sonora por ser uma arte basicamente de representação de imagem. A voz, caracteristicamente errante, ao converter-se na fala cerca o lugar vazio, o vácuo de onde surge a voz ou o inverso disto, a voz silenciosa. Ou seja, o cinema tem uma voz silenciosa que ressoa por se tratar de outra dimensão da voz, a dimensão do instante de escutar. Por isso, segundo a autora, o cinema é chamado de “voz na luz”.

Nesse momento, a autora nos expõe os vários mecanismos de invenção criativa dos artistas sem nenhuma intenção de interpretá-los. Para tanto, percorre o campo teórico da psicanálise através da decupagem de três registros: o Real incorporado à ordem do “impossível” lógico; o Simbólico como uma lei ordenadora da estrutura que é a linguagem; e o Imaginário como registro das representações mediado por esta lei ordenadora. Onde cada um deles ganha três dimensões que articulam sobre um vazio que Lacan deposita os objetos a e, um dos objetos de desejo nomeado por ele, é a voz.

Dinara Guimarães destaca o pouco momento em que Freud compara a voz com a instância moral do supereu (ou superego) que seria uma voz da consciência ou a, também, chamada consciência moral. Já as abordagens de Lacan são bem exploradas por ela. Sua abordagem da voz se dá no desejo do sujeito e no desejo do Outro, portanto, um lugar dos significantes, marcado pelo registro Real. Então, Lacan é o primeiro a conceituar a voz como um objeto e “constrói o objeto a para marcar o ponto de escape da simbolização na estrutura de linguagem”.5 Pois, para ele o Real pode ser trabalhado excluído do Imaginário e do Simbólico e, consequentemente, enfatiza a ação criadora da palavra. E passa a evidenciar o Real como pura ausência, porém, o objeto a é o ponto de convergência entre o Real, o Simbólico e o Imaginário, determinando o lugar vazio estruturante da voz. Ao definir esta linha argumentativa, a autora desfila exemplos para demonstrar a escuta do cinema que ultrapassa a sonoridade acústica da tela para atingir a liberdade de uma voz que ecoa além da imagem.

Finalizando a primeira parte, Dinara Guimarães nos apresenta o conceito de voz acusmática presente em Michel Chion. A voz humana, segundo ele, é parcial e direcional, mas ouvimos de todos os lados despertando os sentidos a partir da orelha. Por isso, uma voz acusmática seria o som que se escuta sem saber de onde vêm. Produzida em um espaço extra-campo, mas não significa fora do filme. A voz ressoa pela “presença suposta”, quer dizer que é de alguém presente „fora-de-cena‟.

Na segunda parte, a autora define voz (a) sonora e voz sonora e depois a representação moral da voz (a) sonora em algumas projeções cinematográficas. A interface cinema e psicanálise se dá, para a autora, no encontro entre a psicanálise in-tensão e a psicanálise ex-tensão e, assim, constrói-se a voz iluminada. Para desvelar esta voz, é necessário escandir a voz (a) sonora, pois, ao destacar, separar a voz ela surge como objeto-causa do desejo. Dessa maneira, o sujeito se encontra como objeto e se faz voz, pois esta voz localizada dentro e fora do campo auditivo constituindo-se em Outro. Dinara Guimarães, então, apenas relaciona com o cinema a abordagem da voz do desejo do Outro que Lacan trabalha em relação à literatura.

Outro ponto, escandido pela autora, é a relação entre a voz e o olhar. “A voz e o olhar se opõem. A voz ressoa à distância da imagem, e o olhar fixa a imagem”.6 E a lógica de operação da fantasia tem relação com o enquadramento do olhar e da voz na tela por que o sujeito encena para ver e ouvir a realidade da sua subjetividade.

Com isso, a autora se distancia cada vez mais dos pensamentos tradicionais que compreendem a voz no sentido de um conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador. Restringindo a voz ao âmbito da percepção auditiva proposta pela fonoaudiologia e pela psicologia da Gestalt. E, também, o cinema sonoro limita-se a ter um único recurso técnico, a voz.

E esses conceitos estão presentes nas novas propostas artísticas do cinema vanguardista para, com isso, tentar atingir um novo sentido. Pois, a autora coloca a voz na luz do cinema como a reflexão da consciência moral, a instância crítica e vigilante. É uma voz que traz consigo um ideal estético preenchido por várias vozes escutadas por todos os lados e sentidos. David Wark Griffith, Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Luis Buñuel, Maya Deren, Alain Resnais, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Jean-Luc Godard, Carlos Reichenbach, Cacá Diegues, Krzystof Kieslowski, Luc Besson e outros são as vozes da moralidade destacada pela autora corroborando com os ideais apresentados ao longo de sua obra.

O cinema só se constrói enquanto voz pelo prazer de escutar pelas vozes do desejo. A escuta do cinema traz à luz a voz do comando de presença invisível, pois, cinema é voz: a voz distante da fonte sonoro-vocal, a voz da memória, a voz do espectro sonoro, a voz fantasmática, a voz inspiradora e a voz paranóica. Finalizando, a autora afirma que o que se escuta no cinema é a voz do silêncio. Assim, como um escrito, a voz entoa ao espectador uma linguagem, portanto, vinda do interior, silenciosa, dita em pensamentos ou vinda do exterior, invisível, ela antecipará o olhar. Pois, estará em algum lugar e em lugar nenhum, possível de ser vista e escutada, mas sempre fadada a errar.

Com esta conclusão, Dinara Guimarães, nos proporciona uma sobrecarga de conceitos da teoria da psicanálise, mas por vários momentos nos fica devendo maiores esclarecimento a cerca da teoria do cinema. Porque ao desfilar suas várias vozes (a) sonoras nas projeções cinematográficas encontramos termos do cinema extremamente técnicos que impossibilitam a interface desejada entre cinema e psicanálise com maior clareza. Embora, consiga falar com enorme poder dessas duas “ciências”.

Referência

GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p.

Notas

2 p. 07

3 p. 15

4 p. 17.

5 p. 33.

6 p. 67.

Cristhianne Lopes do Nascimento – Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO

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