O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira – VENANCIO; POTENGY (HU)

VENANCIO, A.T.A.; POTENGY, G.F. (org.). O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 336 p. Resenha de: PETRINI, Abigail Duarte. Colônia Juliano Moreira: seus sujeitos e lugares na história da psiquiatria e da loucura. História Unisinos 22(2):317-319, Maio/Agosto 2018.

O livro O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira, composto por nove capítulos, é apresentado e introduzido pelo texto de suas organizadoras Ana Teresa Acatauassú Venancio – pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz – e Gisélia Franco Potengy – pesquisadora sênior do Programa CNPq/Fiocruz. As organizadoras desse livro reuniram um florilégio de pesquisas que versaram sobre a Colônia Juliano Moreira e sua imersão na vida urbana e no imaginário social da cidade do Rio de Janeiro. Essa composição de textos está, em grande medida, comprometida com o rompimento de noções estagnantes ou simplificadoras da compreensão das relações sociais decorrentes do cotidiano e das experiências entre os diversos atores, individuais e coletivos, dessa instituição de assistência psiquiátrica. Contudo, as reflexões propostas ultrapassam os propósitos de suas organizadoras, colaborando para aprofundar questões sobre a operacionalização estatal das instituições psiquiátricas, sob a inserção de prismas nos quais os sujeitos da equação ganham espaço, independentemente de sua localização na teia traçada.

São trazidas para o centro das discussões as complexidades dos cuidados formais para com pessoas em sofrimento mental por vieses como a estruturação psiquiátrica e seu vínculo ao Estado, expressados pelas ações de diversos atores sociais; a situação daqueles sujeitos que lá foram reunidos pela premissa do cuidado, mas também do rompimento de suas vidas pregressas; a de todos aqueles que assistiram cotidianamente à presença desse singular espaço de sociabilidades em que claramente as relações de poder eram hierárquicas e desiguais; o albergamento de moradores naquele espaço, mantendo suas trajetórias individuais vinculadas ao passado vivido naquela instituição, e os conflitos gerados posteriormente à sua desativação e à ressignificação daquele lugar.

Com olhares que partiram de áreas diversas, incluindo Planejamento Urbano e Regional, Sociologia Rural, Antropologia Social, Ciências Sociais, Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural, História e História das Ciências, os/as pesquisadores/as devotaram suas investigações à Colônia Juliano Moreira na busca da formação social dessa instituição e de sua participação na história da cidade do Rio de Janeiro.  No artigo que inicia a coletânea, intitulado “Memória e história da ocupação e dos conflitos de terra do Sertão Carioca”, Renato de Souza Dória objetivou fazer um levantamento das imagens constituídas sobre o lugar onde foi instalada a Colônia Juliano Moreira – a região de Jacarepaguá, então pertencente à zona rural do Distrito Federal, nas primeiras décadas do século XX.

Buscou também situá-las em seus contextos histórico e social, para através delas perceber transformações daquela região quanto à sua estrutura fundiária, com atenção aos atores e grupos sociais que se inseriram nesse processo de resistência. Segundo o autor, a historiografia sobre a zona oeste do Rio de Janeiro procedeu a “[…] um silenciamento que obscureceu as experiências de organização e luta de trabalhadores que contestaram e desafiaram as relações de dominação e exploração […]” (p. 57), no conflito gerado pelas ofensivas de despejo engendradas por banqueiros, advogados, juízes, policiais, agentes da administração estatal e empresários, de um lado, e a oposição das famílias de pequenos lavradores e pescadores que habitavam a região, de outro.

O artigo subsequente, de Renato Gama-Rosa e Ana Paula Casassola Gonçalves, intitula-se “Evolução urbana da Colônia Juliano Moreira”. Os autores partem da identificação de momentos-chave da ocupação do espaço para refletir sobre o exame da arquitetura hospitalar no âmbito das políticas de saúde engendradas na Colônia Juliano Moreira, mesmo antes desta ser conhecida como tal. São foco da discussão os anos de 1750, 1912, 1941 e 1980, num trabalho analítico que parte dos mapas da área da Colônia nos séculos XVIII e XIX, e nos anos de 1922, 1936, 1941, 1945, 1953, 1964, 1975, 1984 e 2000. Estes mapas embasam a percepção de questões de maior complexidade sobre a ocupação daquele espaço, como a implantação do modelo pavilhonar europeu e do monobloco nas edificações da instituição, bem como a concretização do caráter urbano na área da instituição frente ao modelo heterofamiliar inicialmente adotado na ocupação do sítio da Colônia.

O terceiro artigo do livro, “‘E eu sei doutor?’: experiências de doença e falas sobre o Estado Novo em internos da Colônia Juliano Moreira (1941-1942)”, de Janis Alessandra Pereira Cassília, investiga as narrativas dos próprios internos sobre suas experiências de doença através de documentos clínicos, citando 19 casos e 52 Fichas de Observação de internos. Atentando para o filtro da transcrição médica que essas narrativas muitas vezes sofreram no processo de sua documentação, a autora explora a circularidade de ideias produzidas pelos internos enquanto excluídos e marginalizados tanto da história oficial quanto da própria sociedade. Quanto a seus sofrimentos e perturbações mentais, os internos expressaram seu cotidiano enquanto doentes por noções mais generalizantes e leigas do que as noções médicas sobre doença mental. Junto com esses relatos, eles também se manifestaram sobre temas como o Estado populista, as políticas trabalhistas e a cultura em que estavam inseridos, tornando Getúlio Vargas, a quinta-coluna, o comunismo e o integralismo participantes de suas narrativas de vida: “São histórias de vida e interpretações sobre o mundo que os cercava que apontam tanto para as tensões políticas do Estado Novo, quanto para as novidades culturais da época” (p. 123), esclarece a autora.

“Memórias coletivas e identidades sociais na história do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios (Colônia Juliano Moreira, RJ)” é o capítulo de autoria de Ana Teresa Acatauassú Venancio, Laurinda Rosa Maciel, Anna Beatriz de Sá Almeida, Bruno Dallacort Zilli e Silvia Monnerat. Destinado inicialmente a tratar a loucura e a tuberculose de suas internas, o Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios é abordado desde sua criação em 1940 até seu declínio e desativação enquanto unidade hospitalar, transformando-se em lugar de moradia para outras pessoas que não as internas, na década de 1970, e enfim seu desligamento final enquanto lugar de moradia em 2006, momento em que a área da Colônia Juliano Moreira já fazia parte da Fundação Osvaldo Cruz. “Mesmo antes de morar no Pavilhão, muitas daquelas famílias já viviam na Colônia e lá se enraizaram, fazendo daquele local um espaço físico e simbólico que dava sentido à sua existência” (p. 158). As relações tanto de internos e trabalhadores quanto de posteriores moradores do Pavilhão foram atravessadas por problemas como a falta de profissionais na fase em que foi devotado aos internamentos e a carência de infraestrutura básica durante todo o período em que foi ocupado, questões essas presentes nas discussões abordadas pelos pesquisadores.

No quinto capítulo, “Doença mental e tuberculose nas mulheres internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios da Colônia Juliano Moreira, 1940-1973”, escrito por Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes e Pedro Henrique Rodrigues Torres, os autores seguem o rastro de internas da Colônia Juliano Moreira que foram possivelmente internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios, para construir entendimentos sobre os motivos de suas internações e a forma que suas vidas tomaram enquanto estiveram internadas na Colônia.

Ao explorar essas vidas e as relações históricas em que o gênero feminino se vinculava às perturbações mentais, as pesquisadoras e o pesquisador investigaram os parâmetros que foram preenchidos nas fichas de internamento (cor, idade, estado civil, profissão, diagnóstico) e as trajetórias de algumas internas. Perscrutaram, assim, “[…] não apenas as concepções médico-científicas a respeito, mas o imaginário social mais amplo que se fazia presente nas falas transcritas dos diferentes atores sociais envolvidos” (p. 192).

De autoria de Sigrid Hoppe, o capítulo “Práticas católicas na Colônia Juliano Moreira: a igreja da instituição e a festa de São Cristóvão” parte de fontes como entrevistas e conversas com moradores da Colônia Juliano Moreira, do Livro de Ocorrências da Capela Nossa Senhora dos Remédios e da observação de rituais para analisar as relações entre catolicismo, vida social e cuidados psiquiátricos. Conduzida pela narrativa deixada pelo Padre Joaquim del Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1990, e pela presença e registro dos rituais entre 2011 e 2012, a autora analisa a atuação da igreja católica sobre os funcionários residentes na Colônia e em relação aos internos, bem como as disputas em torno de diferentes formas de professar a fé.

Na sequência, “‘O filho do povo’ de Jacarepaguá: o médico da Colônia e as lutas sociais no Sertão Carioca (1945-1962)”, capítulo de Renato de Souza Dória e Leonardo Soares dos Santos, acompanha a trajetória de vida do médico Jacinto Luciano Moreira, que, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, militou pelo reconhecimento dos trabalhadores da saúde pública em sua atuação nas lutas sociais vivenciadas por lavradores, pescadores e demais categorias de trabalhadores no sertão carioca na primeira metade do século XX. Acompanhar a vida de Jacinto colabora para perceber as dinâmicas em jogo em diversos planos sociais, considerando tratar-se de um homem negro que de auxiliar de lavoura e guarda de sanatório passou a atendente da instituição e, posteriormente, a médico da Colônia Juliano Moreira. Da mesma forma interveio enquanto militante em diferentes esferas de atuação, tanto no comitê do bairro quanto como candidato a vereador ou no movimento de médicos do Distrito Federal.

O oitavo capítulo, “A assistência psiquiátrica da Colônia Juliano Moreira no governo JK”, de André Luiz de Carvalho Braga, explora o período entre 1956 e 1960 e a atuação do Serviço Nacional de Doenças Mentais no Distrito Federal, focando especialmente a Colônia Juliano Moreira, mas atentando também para as demais instituições psiquiátricas federais localizadas na cidade do Rio de Janeiro, como o Centro Psiquiátrico Nacional e o Ambulatório de Higiene Mental de Jacarepaguá. As políticas assistenciais do governo Kubitschek são exploradas em relação à potencialização dos investimentos, tais como o aparato de ambulatórios, o incentivo à terapia ocupacional e os procedimentos terapêuticos (como o eletrochoque e as injeções), mas também em relação às dificuldades encontradas pela direção da Colônia Juliano Moreira.

Encerrando o livro, o capítulo de Gisélia Franco Potengy e Sigrid Hoppe, “Identidade e apropriações do espaço no bairro Colônia”, seguiu o rastro das lembranças na recuperação de vivências dos moradores da Colônia Juliano Moreira, escutando outras versões das histórias sobre o bairro e a Colônia, sem prender-se às narrativas oficiais, na valorização de conhecimentos e práticas esquecidos.

“A convivência entre as famílias de funcionários e os pacientes era compulsória, no cotidiano da vida, devido à própria concepção terapêutica do hospital […]” (p. 284).

Além destes, também ocorreram ocupações do lugar por parte de outras pessoas, o que pode ser percebido no conflito entre os antigos moradores e os novos, enunciados como os “de dentro” e os “de fora”. Essas manifestações revelam conflitos surgidos em decorrência das mudanças das pautas do Estado para com os doentes mentais e as instituições psiquiátricas – a reforma antimanicomial e antipsiquiátrica – e também para com o funcionalismo público, integrando o lugar da então Colônia Juliano Moreira à cidade, visando à democratização de direitos.

O conjunto dos textos que compõem o livro “O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira” expôs as ramificações sociais em diversos contextos e períodos daqueles que passaram pela instituição, seja como internos, funcionários ou mesmo moradores daquele lugar, acompanhando os significados da Colônia Juliano Moreira em suas vidas, tal como um sujeito maior de suas histórias.

O livro aponta para novas perspectivas de compreensão das dinâmicas sociais engendradas pelos asilos manicomiais, seja em suas relações com as políticas públicas de saúde mental, seja quanto às práticas culturais que perpassam as vidas daqueles que são recebidos sob seus auspícios, seja do ponto de vista dos conflitos decorrentes da instalação, manutenção e desenvolvimento de suas estruturas. A obra ultrapassa, assim, concepções superficiais como a de que o asilo é meramente um depósito de loucos, separados do mundo por seus muros, expandindo com riqueza o entendimento sobre as instituições psiquiátricas.

Abigail Duarte Petrini – Doutoranda no Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Rua Pernambuco, 1777, 85960-000, Marechal Cândido Rondon, PR, Brasil. E-mail: [email protected].

O Movimento Estudantil na resistência à Ditadura Militar (1969-1979) – MÜLLER (RBH)

MÜLLER, Angélica. O Movimento Estudantil na resistência à Ditadura Militar (1969-1979). Rio de Janeiro: Garamond; Faperj, 2016. 224p. Resenha de: VALLE, Maria Ribeiro do. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.76, set./dez. 2017.

O livro O Movimento Estudantil na resistência à Ditadura Militar (1969-1979), de autoria de Angélica Müller, dialoga com os estudiosos que afirmam não ter havido continuidade da organização do movimento estudantil depois de decretar-se o Ato Institucional no 5 (AI-5), em dezembro de 1968. Sua tese principal é a de que, apesar da mudança de tática na luta dos estudantes, ela foi fruto de uma autocrítica das lutas do período anterior e responsável por gestar uma nova cultura política que passou a privilegiar as liberdades democráticas.

O percurso da reconstituição da União Nacional dos Estudantes (UNE), foco da análise, instigou a autora a costurar a colcha de retalhos das ações estudantis após o Congresso de Ibiúna, em outubro de 1968, quando a organização passa a agir na clandestinidade absoluta, até a sua extinção. Com a Lei n. 477, considerada o AI-5 da educação, o Conselho da UNE, já em 1970, optava pela organização de frentes de vanguarda por turmas e faculdades. Suas principais ações foram o Plebiscito do ensino pago em 1972, as lutas pela revogação dos Decretos-Leis números 477 e 464, e a crítica ao Projeto Rondon e à criação da disciplina de Moral e Cívica. Elas são consideradas por Müller como microrresistências pacíficas que contribuíram para gerar uma nova cultura no seio das oposições.

Mereceu destaque a luta estudantil contra a Política Educacional do governo que propunha a criação da disciplina Estudos sociais. Esta passaria a aglutinar as disciplinas de História, Geografia e Ciências Sociais, passando a desempenhar um papel de sustentação ideológica da política da ditadura.

Aqui eu gostaria de abrir um breve parêntese, chamando atenção para a proposta educacional do atual governo do presidente ilegítimo Michel Temer: típica de regimes autoritários, defende também a supressão das disciplinas críticas como a História e as Ciências Sociais.

O livro enfatiza também o vínculo entre o Movimento Estudantil (doravante ME) e os outros movimentos sociais de resistência à ditadura, tendo como fio condutor a Educação. Citam-se como emblemáticas a criação de grupos de teatro, a arte engajada, a publicação de jornais e a música de protesto, pelo fato de evidenciavam o conteúdo autoritário do regime. Aqui explicita-se o trabalho artesanal na confecção de uma colcha de retalhos, tecida pela historiadora com base no garimpo de formas de lutas diferentes e dispersas nos vários estados e cidades, travadas pela Igreja, pelos deputados e artistas. Os jornais estudantis tiveram importância ímpar tanto no engajamento político do ME, quanto na divulgação de suas ações e táticas. Apesar dos períodos mais duros do regime, os relatos da imprensa alternativa e clandestina ancoraram a crítica de Müller à historiografia que aponta os anos 1970 como marcados pela inexistência do movimento.

Também são elencadas as medidas tomadas pela ditadura na década anterior e que continuavam em vigor nos anos 1970, incidindo diretamente no ME: vigilância, repressão e censura por meio do Serviço Nacional de Informações (SNI), criado logo após o golpe de 64, e da Divisão de Segurança e Informações (DSI), criada em julho de 1967. A vigilância e a punição no Ensino Superior eram efetuadas pela instalação de inquéritos e regulamentadas pela criação das ASIs (nomeação de uma pessoa pelo MEC para fazer o elo entre a universidade e o governo) e da DSI (responsável pelas ações de normatização, vigilância e punição do ensino superior), garantindo os processos de expulsão de professores e estudantes que foram catalogados como um conjunto de subversivos, considerados um perigo para a nação.

No embate entre repressão e resistência, Müller enfatiza que o ME foi pioneiro na retomada do espaço público com a luta pelas liberdades democráticas. Sua pesquisa revela que, já nos primeiros anos do governo Geisel, a luta do ME vem à tona com as greves das universidades que ocorreram entre 1974 e 1975, respaldando a reorganização das correntes e das entidades representativas estudantis nas diferentes cidades e estados, quais sejam os DCEs, as UEEs e, finalmente, a reconstrução da UNE.

As greves, formas tradicionais de lutas estudantis, permitiram maior visibilidade às suas reivindicações e contribuíram para que o ME assumisse papel articulador nos diferentes movimentos sociais de resistência à ditadura. A greve da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que se estendeu por mais de um semestre letivo, desencadeou a discussão dos problemas da realidade e preparou o terreno para a criação do DCE-Livre da USP em 1976. Esses episódios coincidiram com o assassinato de Vladimir Herzog pelo DOI-Codi e foram um marco importante para a defesa das liberdades democráticas pelo ME e pelos demais movimentos de contestação do regime militar.

A análise aprofundada da reorganização das novas e diferentes tendências do ME – bem como de suas diversas concepções de democracia – feita por Müller respalda, de forma consistente, sua tese de que a retomada do movimento estudantil na segunda metade da década não foi o despertar de uma inércia, nem o preenchimento de um vazio, apontado por boa parte dos historiadores. Ao contrário, depois de 10 anos de resistência restrita ao ambiente universitário, as greves e a volta às ruas sacramentaram a rearticulação da UNE e reforçaram o pioneirismo dos estudantes. Estas palavras de ordem começaram a ser abraçadas também por outros movimentos de oposição: pelas Liberdades DemocráticasAbaixo a carestia; pelo fim das torturas, prisões e perseguições políticas; pela anistia ampla e irrestrita. Foi emblemática da conjunção de diversas lutas a frase “Soltem os Nossos Presos operários e estudantes” presente nas passeatas.

É importante ressaltar que a pesquisa de Müller não se restringiu ao eixo Rio-São Paulo, o que lhe permitiu mostrar como efetiva a criação nacional de uma entidade estudantil. Além da Uerj, da Unesp e da PUC-RIO e da PUC-SP, a UFMG, a UFPE, UFBA e a UFRGS também iniciaram suas greves contra os cortes de verbas da universidade, pelo ensino público e gratuito e pelo boicote ao pagamento das anuidades.

Peço licença novamente para abrir outro parêntese: acredito que estamos vivenciando um retrocesso político, pois esses direitos são mais uma vez retaliados, numa amplitude inusitada, pelo governo do ilegítimo presidente Michel Temer.

Para Angélica Müller,

o ressurgimento das movimentações de massa ocorreu em novos moldes e em situação bem diversa da que caracterizou aquelas de 1968: não havia grandes líderes, não houve enfrentamentos nem uso de armas, e a plataforma de luta era bem ampla, ou seja, não restrita às reivindicações do ME. O que se exigia era o fim da ditadura militar. (p.134)

Há, a meu ver, uma fragilidade na análise de Müller, que dá muita ênfase às diferenças entre as bandeiras e formas de luta na década de 1970 e as do período anterior, e lança pouca luz sobre as semelhanças existentes. Se retomarmos as formas de luta do ME em 1968, notaremos uma grande cisão entre duas vertentes centrais: a que defendia as lutas específicas dos estudantes e a que defendia a luta política contra a ditadura, o capitalismo e o socialismo real. Apesar de, ao longo do ano, a segunda posição ter ganhado o maior espaço, em razão da conjuntura política, não podemos reduzir às suas as bandeiras estudantis. A luta pelo ensino público e gratuito, por exemplo, esteve presente o ano todo.

Ao contrário de Müller, acredito que a defesa dos princípios democráticos não é uma especificidade da década de 1970. Nesse sentido seria importante trazer à tona as ações, táticas e propostas estudantis desde o início da ditadura, em 1964, quando o ME já era um dos principais alvos do regime. A opção pelo caráter pacífico foi vitoriosa nas passeatas de 1966, enquanto a utilização da violência foi levada às ruas em 1968. Mas isso não significava existir uma hegemonia entre as diferentes entidades do ME. Acredito que o contraponto proposto pela historiadora entre a década de 1970 e 1968 ficaria, assim, mais bem delimitado.

O livro de Angélica Müller adquire importância histórica e social ao trazer à cena o movimento do ME na década de 1970, uma vez que nos devolve várias páginas da luta estudantil arrancadas pela ditadura militar. Vale muito a pena conhecê-las e, em grande medida, elas estão na ordem de nosso dia.

Maria Ribeiro do Valle Departamento de Sociologia, Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Araraquara, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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A medicina financeira. A ética estilhaçada – VIANNA SOBRINHO (TES)

VIANNA SOBRINHO, Luiz. A medicina financeira. A ética estilhaçada. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. 336p. Resenha de: CASTIEL, Luis David. A dimensão financeira da medicina em questão. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.1 , jan./abr. 2017.

A revista Piauí de setembro de 2015 apresenta como matéria de capa a reportagem “O lobby dos remédios”, intitulada “Intoxicado de ofertas”. Um médico pesquisador participa de um congresso de psiquiatria com o firme propósito de se oferecer como ‘prescritor’ aos desígnios do bric-a-brac do marketing da indústria farmacêutica de psicofármacos. E faz fila para receber lanches, ganha brindes de qualidade, serventia e gosto duvidosos, joga videogames – num deles sua missão é salvar uma jovem da depressão munido de um antidepressivo virtual. Ao final da jornada, sai com seis sacolas com quase nove quilos de bugigangas e ainda conclui que, de certa forma, esta promiscuidade pode ser tratada alegoricamente com uma dose de benevolência, como um polvo, do qual os braços ‘somos todos nós’, assim como o alimento. Mas de quem é a cabeça do polvo?

Apesar de inegáveis benefícios farmacológicos dos medicamentos, é difícil sustentar uma postura de atenuar e relativizar a atuação poderosa e notadamente abusiva da indústria farmacêutica – no contexto do neoliberalismo sustentável em suas estratégias mercadológicas. Estas são identificadas por estudiosos do campo por visarem a proliferação contínua do consumo de medicamentos por meio de recursos eticamente discutíveis (Elliott, 2010), algo como o lado escuro da força da Big Pharma. Por exemplo: a minimização/omissão de efeitos farmacológicos adversos; a aquisição do uso de nomes de pesquisadores (com anuência destes) como autores de artigos favoráveis ao uso seguro da droga escritos por ghostwriters da própria indústria; a realização de dispendiosos ensaios clínicos com resultados que legitimam a inclusão de resultados favoráveis enviesando metanálises ao evitar a publicação de resultados desfavoráveis; o reforço à utilização abusiva de órteses e próteses, práticas de oferecer viagens, refeições, financiamento para eventos, brindes vários, entre outros agrados e lembranças que seduzem médicos, farmacêuticos e inclusive bioeticistas.

Inclusive, está documentado que pesquisadores da indústria farmacêutica elaboram uma nova droga e, conforme seu espectro de efeitos farmacológicos, profissionais do marketing da empresa devem vinculá-la ao tratamento de determinadas afecções e promover seu uso junto aos médicos como o tratamento ‘mais indicado’. Isto pode até implicar em encontrar uma doença incomum cujas respectivas fronteiras possam ser expandidas para incluir mais pacientes ou redefinir aspectos desagradáveis da vida cotidiana como patologia médica (por exemplo: a distimia, que tem o mau humor como sintoma). Este fenômeno costuma fazer parte destacada do que pode também ser designado por ‘medicalização’. Elliott (2010) enfatiza que a medicina já foi encarada como uma profissão, não como um negócio. Hoje os empreendimentos médicos são enormes e é duro admitir que o código de confiança implícito entre médicos, pacientes, pesquisadores e sujeitos de pesquisa não está mais assegurado.

Em uma matéria publicada no Le Monde DiplomatiqueQuentin Ravelli (2015) descreve as estratégias de ‘marketing’ da Big Pharma, representada pela gigante Sanofi-Aventis. Os médicos que mais interessam são aqueles com alto ‘potencial de prescrição’. Para localizá-los, há um bom tempo existem programas computacionais que os mapeiam por intermédio de dados coletados junto a distribuidores e com base nas vendas diretas em farmácias que exigem a apresentação e retenção de receitas. Além disto, são agregadas outras informações veiculadas por enquetes ad hoc de médicos.

Em busca de maior efetividade em suas ações, os setores de marketing elaboram uma tipologia de perfis de médicos: aqueles vinculados a movimentos sindicais, os afáveis e potencialmente receptivos, os acadêmicos, os ansiosos, os resistentes às investidas. Em síntese, o que interessa é sobrepujar qualquer enfrentamento retórico com argumentos e práticas que obtenham a fidelização dos prescritores aos medicamentos produzidos pela empresa. Isto se dá mediante treinamentos/workshops com vistas à formação de representantes hábeis em chegar aos resultados comercialmente desejáveis: o consumo dos produtos pelos pacientes. Para tanto, deve-se obter a aquiescência aos argumentos convenientes enunciados pela indústria farmacêutica.

Para resenhar e comentar este livro que aborda a dimensão financeira das práticas atuais da medicina, é preciso falar do seu autor. Talvez assim seja possível esclarecer não apenas seu conteúdo, mas algo que se sobressai da leitura, a inevitável ironia crítica que atravessa seus argumentos.

O autor é um médico cardiologista que também teve uma experiência na gestão técnica de um sistema de seguro de saúde de uma instituição pública de pesquisa, ensino, serviços e produção de insumos em saúde. A origem desta importante obra se localiza numa dissertação de mestrado em bioética que não foi defendida, mas que foi retomada, ampliada, atualizada e desenvolvida por iniciativa persistente do autor durante quase uma década.

Desde logo, percebe-se a estrutura acadêmica do livro. Impressiona a extensão do texto, a grande quantidade de referências e notas de rodapé. Mas esse formato é amenizado pela apresentação de exemplos provenientes da literatura e do cinema, e também de narrativas de eventos pessoais, muitas vezes, exibindo uma coragem admirável.

Vale repetir que o estilo empregado incide numa mordacidade que se harmoniza com a perspectiva de crítica necessariamente indignada diante das contradições precarizantes dos modos como se configuram atualmente as muitas engrenagens das cadeias de produção e consumo de sistemas e práticas de saúde. O livro também tem a ousadia de descrever aspectos que transitam pela hipocrisia por parte dos agentes que participam de situações que transitam por uma banalização do mal.

Assim, somos postos diante de médicos cujas práticas são configuradas por uma perspectiva de um neoliberalismo sustentável, abandonando o papel de cuidador e assumindo o lugar de gestor de condições de saúde, em função de critérios que ajustam meios e fins gerencialmente definidos. Tais médicos implodem a relação médico-paciente e diante do cliente (não mais um paciente, alguém que padece de algo), e tendem a se tornar profissionais impessoais que prestam serviços padronizados de qualidade variável, cuja efetividade em termos de resolução dos problemas dos pacientes é discutível.

Há uma atuação abusiva das empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos que chega praticamente a uma forma mal disfarçada de suborno de médicos. São oferecidos presentes que participam, como indica o subtítulo, do estilhaçamento da ética, pois, por mais que os médicos achem que isto não influi no ato médico em si, há estudos que mostram como existem efeitos destas práticas na prescrição de medicamentos, próteses e órteses a pacientes.

São descritas as práticas de hospitais e planos de seguros de saúde que não conseguem camuflar os interesses mercantis na determinação dos níveis de capacidade de consumo de saúde dos clientes. Desta forma, assistimos à metamorfose precarizante daqueles que eram designados como ‘pacientes’ em ‘consumidores’.

Por sua vez, as ciências biomédicas e epidemiológicas sustentam uma perspectiva exacerbada na produção de evidências, metanálises e revisões sistemáticas sem levar em conta pressupostos metafísicos não explicitados quanto à noção de ‘realidade’ em questão, nem aspectos que são incluídos, não-incluídos e apagados nos procedimentos de pesquisa em saúde, segundo autores dos estudos sociais da ciência.

Além disto, importa mencionar que há evidências suficientes acerca dos enviesamentos que as corporações farmacêuticas geram nos resultados de ensaios clínicos que escamoteiam a real efetividade e os efeitos adversos dos novos fármacos postos no mercado. Da mesma maneira, não se apresentam sob a forma de publicação os resultados de estudos que apontam para achados desfavoráveis em relação aos medicamentos experimentados.

Este quadro inevitavelmente contamina a cadeia de produção de ‘guidelines’ que sustentam o gerencialismo baseado na lógica de adequação de custos em termos de insumos e produtos/serviços. Isto cinicamente termina por prover na extremidade do paciente a provisão de ‘cuidados’ de saúde já definidos, na sua origem, por um selo imaginário de qualidade precária. Por mais duro que possa parecer, é impossível se conter e não enfatizar a dimensão de cinismo que se manifesta nas práticas cotidianas de (des)atenção à saúde.

Os leitores do livro irão perceber configurações que muitos irão vincular a penosos eventos como pacientes ou como pessoas de sua família. A origem da palavra ‘paciente’ indica sua posição como alguém que está afetado por algo que o ameaça ou o faz sofrer ou o deixa enfraquecido diante das demandas da sua vida (enfermo é aquele que está num estado de debilidade; doente é originalmente aquele que sente dor). Não se trata do sentido de quem é obrigado a ter paciência, que aguenta com resignação não só a manifestação de sinais e sintomas, mas, também, ao alto risco de ser maltratado durante seus encontros com as incômodas facetas do atual Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Referências

AMARAL, Olavo. Intoxicado de ofertas. Revista Piauí, Rio de Janeiro, n. 108, p. 20-28, set. 2015. [ Links ]

ELLIOTT, Carl. White coat, black hat. Adventures on the dark side of medicine. Boston: Beacon Press, 2010. [ Links ]

RAVELLI, Quentin. Nos subterrâneos da indústria farmacêutica. Le Monde Diplomatique. Disponível em: <http://outraspalavras.net/destaques/nos-subterraneos-da-industria-farmaceutica>. Acesso em: 25 dez. 2015. [ Links ]

Luis David CastielEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil <[email protected]>

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A história da poliomielite – NASCIMENTO (HCS-M)

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. A história da poliomielite. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. 416p. Resenha de: FARIA, Lina. Poliomielite: várias histórias da doença e de seus efeitos tardios. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.3 Rio de Janeiro July/Sept. 2015.

Proteger uma criança da pólio é tão fácil quanto protegê-la da chuva: trata-se de colocá-la sob o equivalente médico de um guarda-chuva. Kofi Annan (Salgado, 2003).

Ao discutir a luta contra a poliomielite no Brasil, a obra A história da poliomielite, organizada pela pesquisadora da Fiocruz Dilene Raimundo do Nascimento, traz alguns capítulos sobre o enfrentamento da doença no Peru (Marcos Cueto et al.), Portugal (Inês Santos), Espanha (Juan Rodríguez Sánchez) e Paquistão (José Verani). No Brasil (Dilene Nascimento, André Campos, Ângela Pôrto) e nos outros países, o livro aborda, entre vários temas, as questões correlatas de “controle e erradicação” da pólio, a evolução das campanhas e dos resultados obtidos, os distintos contextos sanitários e a eficácia ou o fracasso das políticas sanitárias postas em prática em cada país.

Dividido em quatro partes, o livro constrói uma narrativa histórica e analítica do ambiente da saúde nacional e internacional do pós-Segunda Guerra Mundial. Chama a atenção para a formulação e execução de políticas de saúde que foram postas em ação e que tinham como meta a erradicação da doença – as estratégias nacionais de combate; o desenvolvimento de técnicas laboratoriais para diagnóstico; as campanhas de vacinação, que buscavam mudar o quadro da poliomielite no Brasil e no mundo.

Os debates tiveram início nas primeiras décadas do século XX, quando a enfermidade passou a se manifestar sob forma epidêmica em várias partes do mundo. A epidemia assolou tanto países ricos, como os EUA, a Inglaterra e a Suécia, quanto países periféricos, como a Índia, a Somália, a República Democrática do Congo, o Paquistão e o Sudão. Cada vez mais incontrolável e destrutiva, fazia vítimas fatais e deixava milhares de crianças e adultos paralisados.

Médicos e autoridades sanitárias desconheciam por que caminhos a pólio se disseminava: os caminhos eram difíceis de ser previstos; a doença, difícil de ser evitada e de ser tratada de forma eficiente. A partir de 1950 surgem novas tecnologias de controle e erradicação da doença, além da descoberta das vacinas Salk (em 1955) e Sabin (em 1961). A obra sugere que o trabalho desses cientistas e de seus companheiros, bem como dos que os antecederam nas primeiras pesquisas com o vírus, conduzidas a partir do início do século XX, foram fundamentais na luta pela erradicação, em várias partes do mundo.

Desde os primeiros estudos a seu respeito, a poliomielite constituiu um ponto de interrogação para as autoridades sanitárias em todo o mundo. Interessante é o depoimento do médico João Risi, segundo o qual, quando as condições sociais são precárias, a criança mais cedo exposta ao vírus dificilmente assume a forma paralítica da doença. O contato precoce garante maior possibilidade de desenvolvê-la em sua forma benigna, ficando menos suscetível às manifestações neurológicas da doença.

Diante das incertezas que a pólio impunha sobre o conhecimento médico, da diversidade de modelos e de terapias pouco eficazes, era frequente a atitude de “negação”, pelas autoridades médicas e sanitárias de alguns países, o Brasil entre eles, da existência de epidemias de poliomielite. Os capítulos assinados por Sánchez e Campos trazem, a propósito, noticiários e manchetes em jornais e revistas que indicam a desinformação, as “responsabilidades não assumidas”, a insistência sobre a “não existência” de epidemia de pólio.

A poliomielite no Brasil

Temas como os mencionados nos parágrafos anteriores são a primeira pista, para o leitor, da relevância da obra. A apresentação cuidadosa, pela organizadora, traça o plano geral do livro. A história da poliomielite, em sua primeira parte, é dividida em cinco capítulos sobre a trajetória da doença no Brasil, que focalizam o desenvolvimento e a legitimação das políticas públicas de controle. Os autores discutem os modelos científicos explicativos da pólio, o debate e as controvérsias no país, os surtos epidêmicos em vários estados, as vantagens e desvantagens das vacinas, as campanhas de vacinação e os dilemas dos cientistas brasileiros em relação à descrição clínica da doença.

O trabalho de André Campos, que abre o volume, investiga as primeiras epidemias que ocorreram no Rio de Janeiro, em 1911, e em São Paulo, em 1917; apresentam-se os diferentes modelos científicos explicativos da doença, em especial, as discordâncias entre Fernandes Figueira e Francisco de Salles Gomes Júnior no tocante à descrição clínica e ao tratamento mais adequado. Nas décadas de 1930 e 1940 foram registrados surtos na capital federal e nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina; no Nordeste e Norte, foram atingidos a Bahia, Sergipe, Maranhão, Piauí e Amazonas. Neste período, a doença não havia recebido no Brasil a atenção que despertava em outros países, como nos EUA, Inglaterra e Suécia, com centenas de vítimas de pólio e de paralisia.

Chamava atenção a incapacidade da medicina de dar uma resposta eficaz ao problema e à forte influência do modelo de contágio direto para a pólio, dominante durante os anos de 1930 e 1940. De acordo com esse modelo, diz o autor, a pólio era transmitida por via respiratória – secreções nasais e bucais. Seu modo de transmissão era típico, portanto, das doenças respiratórias – o vírus penetrava pelas vias aéreas superiores e viajava diretamente para o sistema nervoso central, provocando uma paralisia flácida aguda em membros inferiores, com perda parcial ou total da capacidade de contração do músculo. Contudo, os avanços da virologia e o surgimento do microscópio eletrônico possibilitaram uma compreensão mais ampla da doença. No final dos anos de 1940 a pólio passou a ser vista não mais como doença neurológica e sim entérica, isto é, o vírus se multiplicava no trato gastrointestinal, e a infecção podia ser transmitida pela via fecal-oral.

O capítulo 2, que traz uma interessante discussão histórica sobre o desenvolvimento de vacinas, por Eduardo Ponce Maranhão, não focaliza o cenário brasileiro, apesar de constar da Parte 1 sobre o Brasil. Neste capítulo, o autor indica que a eficácia dos tratamentos dependia dos avanços científicos, que levariam à descoberta das vacinas Salk e Sabin, e dos ensaios e estudos de campo conduzidos em vários países em busca de medidas apropriadas para o isolamento dos vírus. Maranhão discute um capítulo fundamental da história da pólio no mundo: as pesquisas com cultura de tecido. Em 1949, cientistas dos EUA descobrem uma nova técnica para cultivar o vírus em tecidos mais simples (embriões de galinha) e não apenas em macacos. Em 1953 Jonas Salk anuncia as primeiras experiências de sua vacina em humanos com resultados positivos, e no ano seguinte a vacina é testada em grande escala. Em 1957 realiza-se o primeiro ensaio de campo com a vacina Sabin oral, em Cingapura. A vacina oral contra a pólio foi obtida a partir de um vírus vivo, diferentemente da vacina Salk, baseada em uma cepa morta do vírus. No Brasil, a vacinação pela vacina Salk é introduzida em 1955, em São Paulo e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro. Em 1953, a epidemia atinge fortemente a capital federal.

É importante ressaltar que as ações de combate, iniciadas nos finais dos anos de 1950 no Brasil, se intensificaram nos anos de 1970 com o surgimento do Plano Nacional de Controle da Poliomielite estabelecido pelo Ministério da Saúde. Contudo, foi na década de 1980 que houve uma mudança de estratégia, de “controle”, para uma política de “erradicação” da poliomielite. Os anos 1980 marcam o processo de abertura política e da luta pela implantação de mudanças sociais. Na área da saúde, discute-se um novo modelo de atenção, mais abrangente, com a participação da comunidade em todos os níveis de governo, melhorando o acesso das populações menos favorecidas à saúde. A saúde passa a ser vista como uma questão social, o controle da poliomielite a inserir-se no movimento pela reforma sanitária. Alguns desses marcos históricos foram discutidos por Dilene Nascimento. A autora analisa o processo político na área da saúde, com base em seis marcos fundamentais: a introdução da vacina Sabin em 1961; o diagnóstico laboratorial do poliovírus, em 1961; o Plano Nacional de Controle da Poliomielite, em 1971; a implantação do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, em 1975; os Dias Nacionais de Vacinação, em 1980, e a estratégia de erradicação da doença a partir de 1985.

A pólio produz repercussões na construção da identidade individual dos atingidos que precisam enfrentar as sequelas, sobretudo o estigma, ao longo de suas vidas. O trabalho de Ângela Pôrto reúne três depoimentos de mulheres com sequelas motoras graves, que contraíram a doença nos anos de 1950. O recurso às fontes orais permite recuperar vivências e memórias da doença, dando voz aos enfermos. Crescem o interesse pelos aspectos do cotidiano do indivíduo ou de grupos específicos e o conhecimento das experiências individuais, das estratégias de enfrentamento da doença e de suas sequelas. Busca-se pensar a doença, ou o doente, dentro do seu contexto sociocultural; qual a percepção dos indivíduos sobre sua saúde, considerada nos valores dentro dos quais vive? Quais são os limites impostos pela doença e os efeitos na sua vida diária? Os depoimentos recuperam a memória e reconstroem as identidades dessas pessoas, diz a autora; a doença não pode mais ser discutida como um evento médico, mas sim como um acontecimento social.

O último capítulo da primeira parte do livro, também organizado por Ângela Pôrto, reúne algumas imagens das campanhas do Ministério da Saúde, especialmente os Dias Nacionais de Vacinação, instituídos em 1980. Esse material, coletado pela autora, mostra mudanças, ao longo dos anos, no tipo de mensagem que se queria fixar em relação à doença e ao portador de deficiência.

A poliomielite fora do Brasil

A segunda parte do livro, dividida em quatro capítulos, reúne artigos sobre o controle e erradicação da poliomielite em outros países. Intitulada “A poliomielite na América Latina, Europa e Ásia”, talvez venha a sugerir ao leitor um cenário mais amplo do que aquele focalizado pelos capítulos, restritos na verdade a poucos países. Isso não impede que se note a relevância dos estudos de caso expostos. Na apresentação do livro, há menção à “novidade incomum” de a obra vir a “possibilitar análises histórico-comparadas de outras experiências nacionais”. Aqui há controvérsia. Os casos nacionais, trabalhados sem preocupação metodológica com a análise comparativa, dificilmente permitem ao leitor estabelecer contrastes ou semelhanças. Talvez a ausência de tal esforço comparativo na própria apresentação feita por Nascimento revele a dificuldade de se encontrar no texto a “novidade incomum”. O único esforço comparativo digno de nota está no texto de Nascimento e colaboradores sobre o processo de erradicação da pólio no Brasil e no Peru, nos anos de 1980, com ênfase nos contextos políticos, sociais e sanitários. Os autores indicam que, diferentemente do Brasil, onde o movimento social pela reforma sanitária, inaugurado nos anos de 1970, vinha reivindicando a participação da comunidade (ainda que com imensas dificuldades e limitações de toda sorte, acrescentamos), no Peru não se assistia a iniciativas de estímulo à participação ou envolvimento da população.

Inês Guerra, em estudo sobre a experiência portuguesa, mostra como a doença foi negligenciada durante várias décadas pelas autoridades sanitárias e políticas. Segundo a autora, o elevado número de mortes e de crianças e jovens incapacitados pela doença não foi suficiente para que a poliomielite fosse considerada oficialmente um problema de saúde pública. Contudo, o trabalho discute uma iniciativa importante, representada pelo Refúgio da Paralisia Infantil, fundado em 1926, pelo médico neurologista Henrique Gomes D’Araújo, destinado à assistência e ao tratamento gratuito de crianças pobres da cidade do Porto, na época, uma das cidades mais insalubres de Portugal. Embora dependente de contribuições externas para manter tratamentos gratuitos, o Refúgio contava com uma estrutura na qual funcionava, além do Serviço de Fisioterapia, a Hidroterapia, a Recuperação Funcional e a Cirurgia Ortopédica.

Juan Sánchez discute as “responsabilidades não assumidas” pelo Estado espanhol em relação à erradicação da poliomielite no país, nos anos de 1950 e 1960. Lembra que no pós-guerra tanto Portugal quanto a Espanha eram países com governos ditatoriais e de tradição confessional católica, “dois elementos determinantes da sua resistência a conceber saúde e assistência em termos de direito” (p.195). Essas características se concretizaram em campanhas de vacinação tardias, pouco difundidas e sem a eficácia esperada. Além disso, lembra o autor, a vacina não era oferecida gratuitamente à população, logo não podia tornar-se obrigatória. Minimizava-se a importância do problema, criavam-se dúvidas sobre a eficácia da vacina e negava-se a gravidade e existência de surtos epidemiológicos – para o Estado a vacina “não era necessária”. “Repressão e autocensura se aliaram para minimizar o problema sanitário” (p.206). Mas, diferentemente de outras doenças como a cólera ou a gripe espanhola, a poliomielite tinha como consequência sequelas paralíticas visíveis para a população, que desafiavam qualquer ocultação ou negação de seus efeitos.

O Paquistão é também um caso de ações tardias de combate à poliomielite. Lá, todas as atividades de erradicação tiveram o apoio financeiro de organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e o Fundo das Nações Unidas para a Infância e não governamentais, como o Rotary Internacional. Nos anos de 1980 tiveram início as primeiras campanhas, a partir da criação do Programa Ampliado de Imunização – BCG, pólio oral, DTP e antissarampo. Os postos e centros de saúde desempenharam papel de destaque na oferta de vacina de forma rotineira. Em 1994 foi organizada a primeira Campanha Nacional de Vacinação Antipólio. Segundo Verani, entre os anos de 1994 e 2000, durante o governo talibã, as campanhas não conseguiram atingir a cobertura esperada pelas autoridades sanitárias, em função do caráter localizado dos programas. Além disso, os fluxos de refugiados, as fronteiras tensas entre Afeganistão, Irã, Índia e China e a própria cultura islâmica fundamentalista, dificultando a acesso às mães pelas equipes de saúde pública, constituíram barreiras para a erradicação da doença.

Os efeitos tardios da poliomielite: “uma nova doença velha”

A terceira parte do livro, dividida em dois capítulos, discute a síndrome pós-poliomielite (SPP), um dos efeitos tardios da poliomielite, que compreende um conjunto específico de novos problemas de saúde originados pelo vírus da pólio e que vem atingindo pessoas acometidas pela doença décadas atrás. No final dos anos de 1970, os sobreviventes começaram a sofrer novos problemas, tais como fadiga, dor e fraqueza, resultando na diminuição da capacidade funcional e/ou no surgimento de novas incapacidades. Em função do aumento de números de casos da SPP no Brasil e do escasso conhecimento, pela comunidade médica, acerca dos efeitos tardios da pólio, a Associação Brasileira de Síndrome Pós-poliomielite (Abraspp) luta para que se estabeleçam políticas públicas que beneficiem aqueles com sequelas da pós-pólio.

O capítulo dez, sobre a conceituação e aspectos clínicos da SPP, contou com a participação de profissionais do Setor de Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)/Escola Paulista de Medicina (EPM). É importante destacar que a primeira linha de pesquisas sobre as características clínicas da SPP, teve início em 2003, sob a coordenação do fisioterapeuta Abrahão Augusto Juviniano Quadros, no ambulatório de SPP do Setor de Doenças Neuromusculares da Unifesp. O capítulo discute de modo cuidadoso a SPP, uma neuropatia motora degenerativa, de etiologia multifatorial e de progressão lenta, que se manifesta em indivíduos portadores da poliomielite anterior aguda. Ocorre em indivíduos que tiveram pólio há pelo menos 15 anos, com ou sem sequela paralítica, e se caracteriza por nova fraqueza muscular progressiva, fadiga, dores musculares e/ou nas articulações, resultando numa diminuição da capacidade funcional e/ou surgimento de novas incapacidades. Um critério importante que fundamenta o diagnóstico é a confirmação da poliomielite anterior aguda com evidência de perda neuronal, por meio de exame neurológico e da eletroneuromiografia.

No capítulo seguinte, Solane Carvalho de Lima, diretora da Abraspp, fala dos desafios dessa “nova doença velha” para os profissionais de saúde e para os sobreviventes da pólio, além da importância de criação de uma instituição que represente os portadores da síndrome. De acordo com essa autora, a primeira descrição clínica da doença no Brasil foi publicada na Revista de Neurociências, em 2002. No ano seguinte, teve início o atendimento de sobreviventes da pólio, com sintomas da SPP, no Setor de Investigação em Doenças Neuromusculares da Unifesp/EPM. Além da contribuição para as primeiras pesquisas sobre a SPP e seus efeitos no Brasil, o grupo da EPM participou também da criação, em 2004, da Abraspp – espaço de debates e difusão de informações sobre a SPP – que busca facilitar o acesso de pessoas com SPP ao tratamento.

Os depoimentos

A última parte do livro apresenta os depoimentos dos especialistas João Baptista Risi Júnior e Ciro de Quadros, material que compõe o acervo do projeto “A história da poliomielite e de sua erradicação no Brasil” – acervo de depoimentos orais da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz). Esses dois médicos estiveram na direção dos processos de controle e erradicação da poliomielite no Brasil e na coordenação da erradicação nas Américas. João Risi narra passagens importantes no cenário brasileiro, enquanto Ciro de Quadros discorre sobre o tema em âmbito internacional. As entrevistas tiveram como temática principal a história da poliomielite, mas foram abordados outros assuntos importantes para o entendimento da trajetória da enfermidade no Brasil e nas Américas.

Os leitores da obra A história da poliomielite muito se beneficiarão da consulta a uma obra já clássica na literatura mundial, O fim da pólio: a campanha mundial para a erradicação da doença, organizada pelo fotógrafo Sebastião Salgado (2003), com textos traduzidos dos originais em inglês de vários especialistas e estudiosos internacionais, entre os quais os médicos epidemiologistas Katja Schemionek e Chris Zimmerman e a escritora Carole Naggar, a quem o doutor Ciro de Quadros também concedeu uma entrevista, em dezembro de 2002, reproduzida na íntegra. Imagens belíssimas e impactantes, fixadas por Sebastião Salgado, acompanham o registro das campanhas de vacinação em países estrangeiros não abordados na obra organizada por Nascimento (alem do Paquistão, incluem-se relatos sobre as campanhas na Índia, na Somália, no Sudão e na República Democrática do Congo). Os autores da obra brasileira poderiam, talvez, ter buscado um diálogo com os textos do livro organizado e ilustrado por Salgado. Isso por certo não impede que a presente obra publicada pela Garamond, com apoio da Faperj, seja uma contribuição extremamente relevante à literatura. Por certo haverá novas edições da importante obra; quando isto se der, será oportuna a montagem de um cuidadoso índice onomástico e de assuntos, imprescindível em um texto de consulta obrigatória como A história da poliomielite.

Referências

SALGADO, Sebastião. O fim da pólio: a campanha mundial para a erradicação da doença. Fotos de Sebastião Salgado; prefácio de Kofi A. Annan. São Paulo: Companhia das Letras. 2003. [ Links ]

Lina Faria – Coordenadora do Curso de Fisioterapia/Universidade Federal de Juiz de Fora. [email protected]

Desenvolvimento, inovação e sustentabilidade: contribuições de Ignacy Sachs | Carlos Lopes

Desenvolvimento, inovação e sustentabilidade: contribuições de Ignacy Sachs atualiza sobre o pensamento do economista e situa o leitor quanto às políticas públicas de promoção do desenvolvimento sustentável elaboradas por bancos de desenvolvimento como o BNDES-Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Por meio da exposição das obras e experiência de Ignacy Sachs, os autores argumentam a respeito da ação do Estado na distribuição equitativa de recursos e na geração de emprego e renda frente a um cenário de reflexão acerca da indústria no Brasil. Questões indispensáveis para os historiadores e historiadoras que problematizam as relações entre homem, sociedade e natureza neste início de século.

Ignacy Sachs é exemplo de uma geração de intelectuais que formaram a comunidade técnico-científica do mundo pós-segunda guerra. Polonês, formado em economia no Brasil, doutorado na Índia, integrante do Ministério das Relações Exteriores na Polônia socialista, acolhido pela EHESS- École des Hautes Études en Sciences Sociales após exílio -instituição na qual criou o Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, interlocutor das questões ambientais perante as Nações Unidas. Seu cosmopolitismo contribuiu para a formulação do conceito de ecodesenvolvimento em um período que gestou o debate acerca da manutenção dos recursos naturais e a decorrente inflexão da teoria do desenvolvimento. Leia Mais

O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea – ORTEGA (TES)

ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, 256 p. Resenha de: ZORZANELLI, Rafaela Teixeira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.2, jul./out. 2011.

Participamos de um processo de redescrição dos limites de nossos corpos impulsionado pelas tecnologias biomédicas: ultrassonografias, tomografias, ressonâncias magnéticas, técnicas video-laparoscópicas… Quem de nós já não fez uso de algum método disponível no manancial biotecnológico na atualidade? Além disso, somos bombardeados por imagens de células, transplantes, cirurgias e cérebros nas revistas semanais e em programas televisivos que nos atualizam sobre o nível de conhecimento adquirido acerca do mundo abaixo da pele. As novidades biotecnológicas não param de surgir, oferecendo novos limites para os corpos: as células-tronco prometem curas para doenças devastadoras, o transplante de face recupera funções perdidas, o congelamento de óvulos oferece novos limites à gestação. Parte do vocabulário médico passa a ser partilhada também pelo homem comum, interessado em obter aquilo que a ciência médica parece oferecer. Se a medicina ocidental transformou-se em um dos mais importantes ‘guias de leitura’ do corpo na contemporaneidade é porque tem oferecido respostas convincentes aos anseios colocados pelo tempo em que vivemos, tais como o esforço para diminuir o impacto de doenças, melhorar a qualidade de vida e adiar a morte. É sobre esse rico contexto que se debruça o livro de Francisco Ortega.

Os dois primeiros capítulos da obra podem ser considerados uma filosofia do presente; neles se debate o lugar do corpo na biopolítica e sua relação com a formação de práticas bio-identitárias, tomando como foco o tema das modificações corporais na cultura contemporânea. Uma ideia recorrente é a de que o corpo está sendo colonizado por diferentes formas de inscrição: por um lado, por tatuagens, piercings, plásticas, práticas de restrição alimentar, bodybuilding; por outro, pelas técnicas de visualização que pretendem revelar os segredos de nossa visceralidade.

No que tange às modificações corporais, a ideia para a qual o autor nos remete é que, a princípio entendidas como singularização e estilização da existência, essas práticas podem revelar um menosprezo pelo corpo, na medida em que revelam uma vontade de recusar sua materialidade orgânica e o que nele há de abjeto: seus resíduos, imperfeições, sobras e excessos. Já no caso das tecnologias de visualização do interior corporal, o autor ressalta o fato de que, muito além do sentido de exploração da visceralidade, em prol de melhores diagnósticos e terapias, há nessa ‘vontade de ver’ uma tentativa de transformar o estranho e incerto de nossa corporeidade aquilo que nos escapa ao olhar e ao controle em algo familiar e previsível.

O terceiro capítulo dedica-se a um trabalho histórico que compreende, ao modo de uma história cultural, um panorama da visualização médica do corpo dos desenhos vesalianos até as ressonâncias magnéticas, passando por diferentes manifestações no cinema e nas artes plásticas. Ortega realiza uma genealogia de diferentes tecnologias médicas de visualização do corpo humano, dedicando-se ao episódio histórico da dissecação de cadáveres e à consequente construção do ideal de um conhecimento objetivo, baseado no modelo do corpo-máquina. Como bem cabe ao tema da visualização médica do corpo, o leitor é presenteado com belas ilustrações da história médica, como extratos do De humani corporis fabrica, de Vesalius, e obras de artes plásticas realizadas com base em imagens cerebrais.

O último capítulo é tomado por um tom filosófico, e a discussão se centra no lugar do corpo nas proposições construtivistas e fenomenológicas. Na verdade, já nos dois capítulos iniciais há um prenúncio das polêmicas que reaparecerão no capítulo final. Uma delas é a análise crítica das posições construtivistas nos debates atuais sobre o corpo, análise que poderíamos resumir, grosso modo, na ideia de que “tudo é discurso” (p. 197), ou seja, que o corpo é efeito de ações e dizeres sobre ele, não restando materialidade biológica como parti pris da experiência corporal. Michel Foucault e Judith Butler são os autores com os quais Ortega debate, situando-os como inspiradores dessa posição construtivista, bastante comum nos estudos culturais e de gênero. Outra polêmica levantada pelo autor diz respeito à sua posição corajosa de não dispensar um legado mínimo de invariantes existenciais-biológicas que moldariam a dimensão material da corporeidade. Para isso, ele se apoia, entre outros, em Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Samuel Todes e Drew Leder. Destacar o status da materialidade corporal em um ambiente intelectual de adesão aos pressupostos construtivistas é uma atitude no mínimo ousada, uma vez que posições teóricas que não aderem integralmente a esses enunciados são frequentemente taxadas de conservadoras e essencialistas no contexto acadêmico brasileiro.

O terceiro ponto polêmico debatido pelo autor é a sua dura crítica à atmosfera de culto à fragmentação do corpo, cujo exemplo emblemático é o elogio ao corpo-sem-órgãos, que Deleuze e Guattari retomam de Artaud, na medida em que o corpo fragmentado tem sido entendido como um antídoto contra o antropomorfismo, a identidade engessada e as ilusões do humanismo, oferecendo, assim, uma alternativa à visão universalizante do corpo como totalidade orgânica. A ideia defendida pelo autor, no entanto, vai em direção contrária: “as posições teóricas que afirmam a construção discursiva do corpo e negam a sua materialidade fornecem o substrato teórico para as novas tecnologias médicas (…), com sua afirmação da construção, virtualização e obsolescência do corpo vivido” (p. 75). O aspecto para o qual Ortega aponta é o fato de que o corpo fragmentado das filosofias pós-modernas não se distanciaria do corpo dilacerado e dessubjetivado das imagens médicas, que constroem doenças sem sujeitos. Todas essas asserções conduzem o autor a defender a ideia de que o discurso construtivista não pode servir como crítica ao discurso das biotecnologias: “não acreditamos que exista alguma forma de resistência no corpo despedaçado” (p. 178). Para o autor, um paradigma da corporeidade que leve em conta a materialidade do corpo é mais adequado do que um paradigma construtivista porque permite o confronto crítico dos discursos dominantes da biomedicina e das biotecnologias.

Esse breve panorama já indica o potencial de debate da obra. Caberia aos leitores, por exemplo, refletir: sendo Foucault um declarado opositor da fenomenologia, por ele considerada um exemplo de teoria fundacionalista sobre o sujeito, sobre como conciliar uma concepção fenomenológica do corpo vivido, sem negá-lo como efeito de práticas e discursos.

Como o livro indica desde seu título, as ‘incertezas’ do corpo são muito bem percorridas nesse trabalho de Francisco Ortega. O corpo é mesmo incerto, porque os sentidos que ele pode adquirir imerso no mundo não estão dados a princípio. São também incertos os processos fisiológicos que o habitam e que, em silêncio, nos fazem viver ou morrer. Algumas das respostas criadas para lidar com tantas incertezas seja no plano do corpo individual, seja no plano social das técnicas médicas são analisadas com criatividade e apuro acadêmico em O corpo incerto de Francisco Ortega.

Rafaela Teixeira Zorzanelli – Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Voz na luz: psicanálise e cinema – GUIMARÃES (CTP)

GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p. Resenha de: NASCIMENTO, Cristhianne Lopes. Voz na Luz: Psicanálise e Cinema de Dinara Machado Guimarães.  Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 04 – 04 de julho de 2011.

A psicanalista Dinara Guimarães propõe uma ideia inovadora ao investigar o cinema a partir da voz. Por o cinema ser uma arte sempre associada ao olhar, este livro amplia a concepção dos recursos sonoros e vocais das produções cinematográficas quando relacionados com a psicanálise. E esta particularidade já se apresenta no Prefácio quando o cineasta Cacá Diegues define que “a voz deste livro é a voz que o cineasta escuta”.2 Em sua obra, O vazio iluminado, a autora trabalha o olhar no cinema sustentado pela ideia de um vazio que também dá passagem para a criação da concepção voz na luz. Assim, como existia uma separação entre olhar e vê em sua primeira obra, esta traz como foco uma separação entre a voz e aquilo que se diz.

Desse modo, Dinara Guimarães nos apresenta “o cinema como uma arte que materializa uma voz moral na consciência humana”.3 E, com isso, permite uma análise do processo de criação tendo como base a teoria da psicanálise e a teoria do cinema. Para tanto, a autora divide sua obra em duas partes compostas por várias sequências: a primeira é o início da passagem do olhar para a voz (a) sonora; a voz de supereu de Sigmund Freud; a voz como objeto de pulsação invocante de Jacques Lacan; a voz na triangulação entre as categorias do Real, do Simbólico e do Imaginário; e a segunda parte consolida o encontro entre o cinema e a psicanálise assumindo o cinema como voz (a) sonora, uma voz silenciosa passando deste o surrealismo francês, os movimentos de vanguarda americana experimental, nouvelle vague francesa, neorrealismo italiano, até o cinema brasileiro e cinema contemporâneo. Por fim, as considerações finais que ressaltam o caminho percorrido e a voz transpassável pela tela desviada que ainda é seu grande enigma.

No primeiro plano já encontramos uma nomenclatura alternativa utilizada pela autora: a classificação cinema mudo e falado da abordagem tradicional é denominada por cinema silencioso e sonoro, e, ambos são detentores de voz. Isso quer dizer que o cinema mudo possui uma voz silenciosa. E, por isso, “o cinema combina a voz e a presença invisível do enunciador”.4 A partir desta assertiva, Dinara Guimarães define os princípios psicanalíticos que lhe é fundamental – o objeto a e o objeto da pulsão de ouvir, invocante – para chegar à construção do objeto e do método. Tendo como referencial Lacan e Freud, respectivamente. Logo, o cinema é construído pela voz (a) sonora por ser uma arte basicamente de representação de imagem. A voz, caracteristicamente errante, ao converter-se na fala cerca o lugar vazio, o vácuo de onde surge a voz ou o inverso disto, a voz silenciosa. Ou seja, o cinema tem uma voz silenciosa que ressoa por se tratar de outra dimensão da voz, a dimensão do instante de escutar. Por isso, segundo a autora, o cinema é chamado de “voz na luz”.

Nesse momento, a autora nos expõe os vários mecanismos de invenção criativa dos artistas sem nenhuma intenção de interpretá-los. Para tanto, percorre o campo teórico da psicanálise através da decupagem de três registros: o Real incorporado à ordem do “impossível” lógico; o Simbólico como uma lei ordenadora da estrutura que é a linguagem; e o Imaginário como registro das representações mediado por esta lei ordenadora. Onde cada um deles ganha três dimensões que articulam sobre um vazio que Lacan deposita os objetos a e, um dos objetos de desejo nomeado por ele, é a voz.

Dinara Guimarães destaca o pouco momento em que Freud compara a voz com a instância moral do supereu (ou superego) que seria uma voz da consciência ou a, também, chamada consciência moral. Já as abordagens de Lacan são bem exploradas por ela. Sua abordagem da voz se dá no desejo do sujeito e no desejo do Outro, portanto, um lugar dos significantes, marcado pelo registro Real. Então, Lacan é o primeiro a conceituar a voz como um objeto e “constrói o objeto a para marcar o ponto de escape da simbolização na estrutura de linguagem”.5 Pois, para ele o Real pode ser trabalhado excluído do Imaginário e do Simbólico e, consequentemente, enfatiza a ação criadora da palavra. E passa a evidenciar o Real como pura ausência, porém, o objeto a é o ponto de convergência entre o Real, o Simbólico e o Imaginário, determinando o lugar vazio estruturante da voz. Ao definir esta linha argumentativa, a autora desfila exemplos para demonstrar a escuta do cinema que ultrapassa a sonoridade acústica da tela para atingir a liberdade de uma voz que ecoa além da imagem.

Finalizando a primeira parte, Dinara Guimarães nos apresenta o conceito de voz acusmática presente em Michel Chion. A voz humana, segundo ele, é parcial e direcional, mas ouvimos de todos os lados despertando os sentidos a partir da orelha. Por isso, uma voz acusmática seria o som que se escuta sem saber de onde vêm. Produzida em um espaço extra-campo, mas não significa fora do filme. A voz ressoa pela “presença suposta”, quer dizer que é de alguém presente „fora-de-cena‟.

Na segunda parte, a autora define voz (a) sonora e voz sonora e depois a representação moral da voz (a) sonora em algumas projeções cinematográficas. A interface cinema e psicanálise se dá, para a autora, no encontro entre a psicanálise in-tensão e a psicanálise ex-tensão e, assim, constrói-se a voz iluminada. Para desvelar esta voz, é necessário escandir a voz (a) sonora, pois, ao destacar, separar a voz ela surge como objeto-causa do desejo. Dessa maneira, o sujeito se encontra como objeto e se faz voz, pois esta voz localizada dentro e fora do campo auditivo constituindo-se em Outro. Dinara Guimarães, então, apenas relaciona com o cinema a abordagem da voz do desejo do Outro que Lacan trabalha em relação à literatura.

Outro ponto, escandido pela autora, é a relação entre a voz e o olhar. “A voz e o olhar se opõem. A voz ressoa à distância da imagem, e o olhar fixa a imagem”.6 E a lógica de operação da fantasia tem relação com o enquadramento do olhar e da voz na tela por que o sujeito encena para ver e ouvir a realidade da sua subjetividade.

Com isso, a autora se distancia cada vez mais dos pensamentos tradicionais que compreendem a voz no sentido de um conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador. Restringindo a voz ao âmbito da percepção auditiva proposta pela fonoaudiologia e pela psicologia da Gestalt. E, também, o cinema sonoro limita-se a ter um único recurso técnico, a voz.

E esses conceitos estão presentes nas novas propostas artísticas do cinema vanguardista para, com isso, tentar atingir um novo sentido. Pois, a autora coloca a voz na luz do cinema como a reflexão da consciência moral, a instância crítica e vigilante. É uma voz que traz consigo um ideal estético preenchido por várias vozes escutadas por todos os lados e sentidos. David Wark Griffith, Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Luis Buñuel, Maya Deren, Alain Resnais, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Jean-Luc Godard, Carlos Reichenbach, Cacá Diegues, Krzystof Kieslowski, Luc Besson e outros são as vozes da moralidade destacada pela autora corroborando com os ideais apresentados ao longo de sua obra.

O cinema só se constrói enquanto voz pelo prazer de escutar pelas vozes do desejo. A escuta do cinema traz à luz a voz do comando de presença invisível, pois, cinema é voz: a voz distante da fonte sonoro-vocal, a voz da memória, a voz do espectro sonoro, a voz fantasmática, a voz inspiradora e a voz paranóica. Finalizando, a autora afirma que o que se escuta no cinema é a voz do silêncio. Assim, como um escrito, a voz entoa ao espectador uma linguagem, portanto, vinda do interior, silenciosa, dita em pensamentos ou vinda do exterior, invisível, ela antecipará o olhar. Pois, estará em algum lugar e em lugar nenhum, possível de ser vista e escutada, mas sempre fadada a errar.

Com esta conclusão, Dinara Guimarães, nos proporciona uma sobrecarga de conceitos da teoria da psicanálise, mas por vários momentos nos fica devendo maiores esclarecimento a cerca da teoria do cinema. Porque ao desfilar suas várias vozes (a) sonoras nas projeções cinematográficas encontramos termos do cinema extremamente técnicos que impossibilitam a interface desejada entre cinema e psicanálise com maior clareza. Embora, consiga falar com enorme poder dessas duas “ciências”.

Referência

GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p.

Notas

2 p. 07

3 p. 15

4 p. 17.

5 p. 33.

6 p. 67.

Cristhianne Lopes do Nascimento – Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO

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Sujeitos e objetos do sucesso: antropologia do Brasil emergente – LIMA (CP)

LIMA, Diana N. O. Sujeitos e objetos do sucesso: antropologia do Brasil emergente. Rio de Janeiro, Garamond, 2008, 242p. Resenha de: POLAZ, Karen. Sujeitos e objetos do sucesso: antropologia do Brasil emergente. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, Dez. 2010.

O emergente é hoje um símbolo do sucesso. Não
importa de onde você veio – de Cascadura ou de
Bonsucesso, importa onde você está. Não adianta vir
da Suíça e ir sabe Deus aonde – melhor nem citar o
nome do lugar. O importante é estar bem com seu
sucesso. Os conceitos sobre emergência mudaram
muito. O importante agora é ser qualificado como
‘produtivo’, seja você tradicional ou emergente. Se
você é tradicional e não produz, não será nada. Da
mesma forma, se você é emergente, não pode parar
de emergir!

A citação acima, proferida por Vera Loyola (p.25) ou a “primeira-dama da Sociedade Emergente da Barra da Tijuca”, contém os elementos que sintetizam e lançam luz sobre as questões que despertaram o interesse de Diana Lima em estudar esses novos segmentos da “elite” do Rio de Janeiro, os “emergentes” da Barra que, através do enriquecimento advindo de investimentos na esfera mercantil, vêm consolidando uma identidade própria e fincando novos critérios classificatórios na sociedade brasileira. Com esse estudo de caso, a autora busca evidenciar representações mais gerais sobre a estrutura social do país.

Em Sujeitos e Objetos do Sucesso, livro integrante da Coleção Cultura e Economia da Editora Garamond, Lima foca sua atenção no consumo de bens e serviços por esses ditos “emergentes” da Barra e, principalmente, no que se diz sobre esse consumo, observando os discursos perpetrados com frequência e insistência cotidiana no jornalismo social entre 1994 e 2000. Essas falas, “fofocas”, comentários, produzidos a partir da mídia e difundidos para além da sociedade carioca, conformaram um fato social particular e, portanto, um objeto de grande importância interpretativa para a autora.

Lima observou que os “emergentes”, em plena ascensão social e econômica, triunfavam nos espaços menos “sérios” da mídia como indivíduos de sucesso, enquanto a “classe média” aparecia como um segmento prejudicado pela comentada “crise econômica” da década de 80, perante o boom de consumo iniciado em 1980 e estendido pelos anos 90. As trajetórias de “sucesso” dos “emergentes” eram vistas, por esse tipo de mídia, como decorrência do trabalho árduo e braçal em seus negócios originalmente de pequeno porte. Esses indivíduos gozavam, portanto, de uma posição tida como “vitoriosa” na sociedade brasileira e correspondiam às expectativas de um país que, finalmente, rumava para um lugar de glória no capitalismo mundial.

A “abertura dos mercados” na década de 1990, característica de um momento recente de transição na história político-econômica do Brasil, quando a economia se voltava para a competitividade, permitiu o pujante enriquecimento de alguns estratos sociais. Nesse quadro, segundo Lima, o jornalismo social pôde criar e articular todo um sistema discursivo, a partir de notícias e imagens, que associa indivíduos com trajetórias de “sucesso” ao consumo de bens de alto custo, valorizando o binômio trabalho árduo/êxito material e sustentando, simbolicamente, tal recurso classificatório.

Ao abordar o consumo pela via antropológica, Lima inscreve seu trabalho na perspectiva iniciada por Douglas e Isherwood (1979) de construir uma ponte entre Antropologia e Economia. Foi mais precisamente a partir desse clássico que a antropologia do consumo pôde reunir contribuições importantes e expandir o debate de maneira a tentar suprimir os preconceitos e intolerâncias históricas quanto ao consumo nas análises científicas. Para Lima, até o final da década de 1970, os estudos sobre consumo realizados pelas ciências sociais produziam discursos enraizados em pressupostos e verdades bastante conformes às falas de algumas colunas sociais e do senso comum de forma geral.

No primeiro capítulo, ao discutir o sub-tema “Os objetos na vida social”, Lima traz para a análise Os argonautas do Pacífico ocidental (1922), de Malinowski, e o Ensaio sobre a dádiva (1924), de Marcel Mauss, obra de grande influência para O mundo dos bens. Num momento inspirador do livro, a autora segue relacionando, a partir da noção de “sistemas de troca”, o “kula”, o “potlatch” e o consumo moderno, para assim poder analisar a notícia de uma festa de 1994, em que o colunismo social “diagnostica” certa “disputa” pelo posto de “elite” no interior da sociedade carioca. Lima demonstra que o texto dessa notícia descreve um “potlatch”, “um verdadeiro ritual de dispêndio por parte desses sujeitos sociais que desejariam o posto de ‘nova elite'” (p.74).

Nessa notícia, os objetos estão presentes como “marcadores públicos de categorias sociais”, no sentido cunhado por Douglas e Isherwood. Para os autores, e Lima inscreve sua análise nessa perspectiva, os bens em si são completamente arbitrários, ou seja, não é inteligível separar os objetos uns dos outros para observação. É preciso, antes, percebê-los como partes de um sistema de significação, cujo sentido social apenas se dá na relação entre eles. Do mesmo modo, não se pode explicar o consumo sem entender os padrões de cultura e de usos dos bens, usos estes que estão informando o conjunto de valores vigentes na sociedade. Se os bens não podem ser tomados isoladamente, torna-se incoerente, para a análise antropológica, a distinção entre necessidade e “luxo”, visto que a função essencial do consumo consiste na capacidade para dar sentido à vida coletiva. Os autores promovem, assim, uma espécie de “desmitificação” do “luxo” com intuito de abolir tal distinção.

Convencida de que o consumo é uma área de investigação antropológica legítima, para além das acusações de que sua categoria empírica é alvo, devido a seus usos materiais, a autora procurou compreender esse novo estrato social, os “emergentes”, percebendo-os como

uma fala saturada de valor e operada no interior dessa sociedade que, além de ter lido com voracidade sobre seu estilo de vida, incorporou as categorias do jornalismo social que o ocasionou para pensar sobre si, para viver transformações e, dependendo das circunstâncias e círculos, então, marcar alteridades e firmar identidades (p.52).

Sem perder de vista que os grupos sociais falam de si e entre si de acordo com o que consomem, Lima aponta a necessidade de capturar as preferências de consumo, contextualizá-las e interpretar os significados aí contidos. Explicita, outrossim, o intuito de registrar seu estudo no contexto das pesquisas etnográficas que atentam para a dialética entre sujeitos e objetos modernos.

Com limites, é possível comparar o Rio de Janeiro a Winston Parva, nome fictício de uma pequena comunidade da Inglaterra, estudada no final dos anos 1950 por Norbert Elias e John L. Scotson em Os Estabelecidos e os Outsiders, outra referência marcante no trabalho de Lima. Os autores procuraram compreender como um grupo de moradores se julgava imensamente superior a um outro grupo, já que não havia, entre eles, diferenças de nacionalidade, etnia, tipo de ocupação, nível educacional, classe social – em suma, não se diferenciavam em nada, apenas pelo tempo de residência no lugar. O grupo de moradores mais antigos via as novas famílias de maneira depreciativa, chegando a estigmatizá-las, a considerá-las de “menor valor humano”, fazendo, até certo ponto, com que os recentes moradores se sentissem, realmente, inferiores. O tempo mais longo de residência foi fundamental para a coesão grupal entre os estabelecidos e para a produção de uma identidade em comum, conhecida e compartilhada entre esses indivíduos, que se valiam da “fofoca” como um eficaz mecanismo de controle social.

Ao modo de Elias e Scotson, Lima também problematizou processos de classificação, hierarquização e discriminação social no Rio de Janeiro, a princípio, identificando, por meio do estudo do jornalismo social, “disputas” pela posição de “elite” entre “emergentes” e outros membros da classe alta carioca, os “tradicionais”. O termo criado pela mídia em 1994, a “Nova Sociedade Emergente” da Barra da Tijuca (“gente desconhecida, porém endinheirada“) vinha se contrapor à “Tradicional Sociedade Carioca” da Zona Sul, em franca decadência financeira, mas ainda percebida como a “bem-nascida”, detentora da “cultura legítima”, do “gosto”, da “elegância” e da “distinção” em termos bourdieusianos.

No decorrer do livro, Lima vai demonstrando, todavia, que essa oposição não se sustenta. A autora, carioca advinda da Zona Sul, pensava os “emergentes”, inicialmente, como um “outro” distante a ser descoberto, mas se surpreendeu ao perceber que sua própria rede de relações sociais e a de seus pesquisados partilhavam mais semelhanças do que diferenças. Sem sofrer nenhum “choque” ao longo do convívio no campo, o trabalho empírico sugeriu-lhe ir observando e comparando as “elites” da Zona Sul e da Zona Oeste, o “aqui” e o “ali”. A posição de pesquisadora em estado etnográfico num terreno e rede de relações sociais a ela familiares acabou por sujeitá-la a uma constante vigilância epistemológica.

Chama atenção a clareza com que Lima explicitou sua pesquisa de campo e sua preocupação invariável em praticar uma antropologia do consumo séria, desconstruindo, por meio da experiência in loco, quaisquer expectativas – até mesmo preconceitos – anteriores. Não por acaso, reconhece terem sido corriqueiras as falas, entre sujeitos das camadas médias e altas da Zona Sul, que incorporaram os discursos da mídia e olhavam os “emergentes” com desconfiança, mas cujas escolhas simbólicas não diferiam tanto daquelas realizadas por esses novos segmentos de “elite”. Em geral, muitos indivíduos têm consumido bens, inclusive “bens de luxo”, e frequentado, cada vez mais, clínicas de estética e academias de ginástica.

Se os “emergentes” eram vistos ora como “bem-sucedidos” ora com zombaria e deboche por seus (maus) usos materiais, Lima não sentiu, por parte deles, vergonha da própria origem ou desejo de se assemelhar à suposta “elite tradicional”. Da mesma maneira, não pareciam preocupados em se “distinguir” dos “tradicionais”, firmando critérios de “gosto” próprio. Sem negar as peculiaridades no interior de cada grupo, e não os homogeneizando, Lima observou certo exagero nas diferenças proclamadas pela mídia e difundidas pela sociedade carioca, pois não encontrou uma fronteira identitária nítida entre os emergentes e os estabelecidos. Aqui se torna evidente a importância da etnografia para a antropologia; ir a campo, conviver com os “nativos” e, no caso de Lima, ouvir diretamente os “emergentes”, e não apenas ouvir sobre os “emergentes”, de forma a abranger todos os discursos.

Principal expoente do glamour system brasileiro, a revista Caras, como bem observado por Lima, estampa tipos sociais que, independente de sua origem sociogeográfica e socioeconômica heterogênea, conquistaram, recentemente ou não, por meio de perseverança e trabalho duro e exaustivo, uma posição privilegiada na sociedade brasileira. São ilustrados, sempre sorridentes, em momentos de festas e comemorações, de lazer, em mansões cinematográficas, vestindo roupas caras, exibindo carros importados, ou seja, apresentando-se como sujeitos que obtiveram prestígio e status social. Ao serem assim retratados, em momentos de “glória” e em meio à coleção de conquistas materiais, seu “sucesso” é publicamente evidenciado e reconhecido. Desse modo, teria sido interessante que Lima, além de descrever as imagens das revistas, também as tivesse reproduzido em seu livro, visto que o sistema discursivo articulado por essa revista enfatiza a imagem do “sucesso” em detrimento do texto, além de se tratar de sujeitos nacionalmente conhecidos.

Talvez concentrados dentre os “emergentes”, os sinais de consumo conspícuo, tantas vezes alardeados pela mídia, resultavam antes de seu poder aquisitivo do que de sua ascensão social, “gosto” ou qualquer regime de valores que os especificariam. Isso fica claro a partir do início dos anos 2000, quando o jornalismo social começa a empregar outros termos que não a oposição “tradicionais”/”emergentes”, nomenclatura em vigência por 10 anos na mídia1, articulando em torno da noção de glamour a reunião de sujeitos “produtivos”, que reverenciam o dinheiro merecidamente conquistado. Na revista Caras, essas fronteiras identitárias entre os segmentos da “elite” se tornam, portanto, ainda mais obscuras, criando a impressão, no leitor, de que ela é uma só. Atenção particular deve ser dada ao quarto e último capítulo – “A emergência de um fenômeno brasileiro” –, no qual Lima procura desenvolver uma inteligibilidade mais ampla sobre a sociedade brasileira, pensando juntamente, e não poderia ser de outro modo, os dois momentos constitutivos da economia de mercado: produção e consumo.

Tão forte é o discurso que valoriza a “produtividade” que nem todos os pesquisados atribuíam a si mesmos o adjetivo de “emergentes”, por entenderem que são, antes, sujeitos com “trajetórias de sucesso”, e “sucesso” enquanto sinônimo de crescimento financeiro. A fala constante sobre seu empreendedorismo autônomo, seus “negócios”, seu “suor” e sua condição de “batalhadores” não está situada apenas na Barra e perpassa classes sociais. Mesmo em famílias pertencentes à “elite” por várias gerações, o dinheiro vem sendo o critério primordial para a escolha profissional e sua valorização constitui um fenômeno visto no Brasil inteiro.

Outro aspecto interessante e bem observado pela autora é que, em vez do cultivo de si (Bildung) como meio histórico de acesso à distinção, os “emergentes” consideram “sucesso” o retorno financeiro alcançado através de seu esforço e trabalho árduo, e que esse estilo de vida, no qual há valorização do acúmulo material, perpetua-se através das gerações. Assim, o capital cultural, dentre a “elite” brasileira, não tem sido a marca de distinção social por excelência, mas, sim, o êxito financeiro, conformando um fato socialmente produzido pela recente história do país. A sensibilidade estética, portanto, não pode ser um parâmetro nítido para diferenciar os segmentos dessa “elite” no Brasil, como aconteceu na França dos anos 1960 e 1970 estudada por Bourdieu.

Essa explicação e compreensão mais ampla do consumo em seu formato moderno na sociedade brasileira permitiu que Lima chegasse a seu argumento central: nesse processo de identificação social, em grande parte articulado e positivado pela própria mídia, existe um ethos que valoriza, simultaneamente, o trabalho árduo e o consumo conspícuo. A autora sugere que esse desejo por bens de alto custo, bens estes fabricados material e simbolicamente pelo capitalismo e tão característico dos “emergentes”, ultrapassa as fronteiras da Barra da Tijuca e pode ser verificado em diferentes meios sociais e são valorizados em toda parte. Ao positivar a equação trabalho + dinheiro = sucesso, a mídia privilegia os “vencedores” do mercado, sendo o ethos emergente um valor social consagrado pelo nosso tempo.

Uma crítica que considero pertinente ao trabalho de Lima diz respeito ao tratamento dado à questão de gênero, talvez insuficientemente abordada em sua explicação, ainda mais num estudo que busca, através de um caso particular, compreender aspectos mais amplos sobre a estrutura social do país. Embora não fosse o foco da pesquisa, a questão de gênero deveria ter sido constitutiva do próprio recorte feito pela autora, que chega a afirmar que o estereótipo do “emergente” é a mulher dita “perua”, que faz uso constante de recursos da medicina estética e consome bens de alto custo. No senso comum, as “peruas” estão associadas ao excesso, ao mau gosto e, mais importante para análise, à futilidade2, tendo em Vera Loyola um conhecido expoente.

Tomando a noção de gênero, não em uma dimensão empírica, mas como um recurso classificatório, acredito que repousa nas mulheres um eixo explicativo importante para o fenômeno discutido no livro, que contribuiria para refletir sobre o sentido e a implicação desse processo de classificação social que relaciona mais mulheres do que homens ao glamour system. A elas que se “incumbe a divulgação da imagem de bem sucedido, mais que a seus maridos” (p. 220), atuando, em grande parte, como “empresárias morais”, pois na maior parte do tempo seus maridos “estão ou muito envolvidos no suor do trabalho, ou muito envolvidos num certo segredo da própria atividade” (p. 220). Além disso, Lima informa que, em 2003, a revista Caras atraía 3.875.000 leitores, dos quais 69% mulheres.

Considero que isso não seja uma justificativa ou explicação, mas um fator a ser investigado, a ser continuamente problematizado pela análise antropológica. Lamento que Lima tenha dedicado não mais que duas páginas ao assunto, pois, na dinâmica da produção das identidades nas sociedades modernas, não há como desconsiderar a relação de dominação masculina e esse caso teria sido bastante apropriado para discutir parte de um imaginário do senso comum que, no caso dos “emergentes”, associa a maioria das mulheres a uma imagem negativa do “consumismo”, a espaços midiáticos menos “sérios” e à futilidade, em oposição a homens “batalhadores”, que “não têm tempo para isso”.

Uma lição a ser extraída do livro, e de outros clássicos das ciências sociais aqui citados, é que não se pode avaliar qualquer fenômeno como um conjunto independente, separado, isolado de práticas, símbolos e sentidos, desconsiderando sua relação com o todo. Ao ter levantado uma bibliografia que não relega nenhuma fonte importante para a discussão que pretendeu fazer e com uma experiência etnográfica consistente, Lima pôde contribuir para um melhor entendimento do consumo moderno e dos processos de estratificação social e composição das “elites” no Brasil da última década do século XX e início do XXI. Além disso, como lembra Luiz Fernando Dias Duarte, o foco “emergente”, num país de mudanças rápidas, possibilita abranger múltiplos sinais contemporâneos que não são apenas apanágios das “elites”. Não por acaso, a autora dedica-se, atualmente, à pesquisa dos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, com o escopo principal “de compreender sua adesão à promessa de prosperidade e salvação no mundo”.3

Referências

Douglas, Mary & Isherwood, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do Consumo. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009.         [ Links ]

Elias, Norbert & Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.         [ Links ]

Lima, Diana N. O. Ethos “emergente”: as pessoas, as palavras e as coisas. Horizontes antropológicos, vol. 13, nº 28, Porto Alegre, jul./dez., 2007, pp.175-202.         [ Links ]

Notas

1 Lima afirma que, entre a sociedade carioca, essa oposição e todo o discurso condenatório de que os “emergentes” são “exibidos” e “querem aparecer” ainda havia continuado e, por isso, demandaria investigação.
2 Lima observa que havia menções constantes ao trabalho árduo, visto como um valor para os “emergentes” e mesmo para esse segmento da mídia, mas não mobilizava tanto o senso comum quanto a “ostentação” e a “futilidade”, que constituíam um afronte à moralidade tão arraigada no mundo cristão.
3 Trecho retirado do perfil da autora no site do IUPERJ: http://www.iuperj.br/. Acesso em junho de 2010.

Karen Polaz – Mestranda do grupo FOCUS na Faculdade de Educação da UNICAMP. E-mail: [email protected].

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[MLPDB]

 

Prazeres dissidentes. – DÍAZ-BENÍTEZ; FIGARI (REF)

DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (Orgs.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 600 p. Resenha de: NICHINIG, Claudia Regina. Entre a perversão e a dissidência: práticas sexuais, corpos e prazeres. Revista Estudos Feministas, vol. 18, no. 3, p. 943-945, setembro-dezembro – 2010.

Ao publicizar novas pesquisas sobre formas de sexualidade no Brasil, a partir de novos e velhos enfoques revisitados, Prazeres dissidentes demonstra a importância e a efervescência do campo. A coletânea lançada em setembro em Buenos Aires, em outubro em São Paulo e em novembro de 2009 no Rio de Janeiro é fruto do encontro de pesquisadores no Grupo de Trabalho “Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais ‘dissidentes’: paradigmas teóricos e etnográficos”, que aconteceu em Porto Alegre no ano de 2007, durante a VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM).

Permeado por autores como Michel Foucault e Georges Bataille, considerados autores clássicos no estudo do erotismo e da sexualidade, e somadas as discussões teóricas levantadas por Judith Butler, principalmente no artigo de abertura da coletânea de Vitor Grunvald,1 que traz com propriedade a discussão acerca dos conceitos de abjeção, política da performatividade e lesbianidade, o livro se divide em quatro partes – “Corpos e interações de fronteira”, “Encontros ao avesso”, “Sociabilidades fluidas” e “Jogos proibidos” -, que revelam formas de sexualidade e busca de prazeres considerados marginais. Leia Mais

Prazeres dissidentes – DÍAZ-BENÍTEZ; FIGARI (REF)

DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (Orgs.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 600 p. Resenha de: NICHNIG, Claudia Regina. Entre a perversão e a dissidência: práticas sexuais, corpos e prazeres. Revista Estudos Feministas v.18 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2010.

Ao publicizar novas pesquisas sobre formas de sexualidade no Brasil, a partir de novos e velhos enfoques revisitados, Prazeres dissidentes demonstra a importância e a efervescência do campo. A coletânea lançada em setembro em Buenos Aires, em outubro em São Paulo e em novembro de 2009 no Rio de Janeiro é fruto do encontro de pesquisadores no Grupo de Trabalho “Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais ‘dissidentes’: paradigmas teóricos e etnográficos”, que aconteceu em Porto Alegre no ano de 2007, durante a VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM).

Permeado por autores como Michel Foucault e Georges Bataille, considerados autores clássicos no estudo do erotismo e da sexualidade, e somadas as discussões teóricas levantadas por Judith Butler, principalmente no artigo de abertura da coletânea de Vitor Grunvald,1 que traz com propriedade a discussão acerca dos conceitos de abjeção, política da performatividade e lesbianidade, o livro se divide em quatro partes – “Corpos e interações de fronteira”, “Encontros ao avesso”, “Sociabilidades fluidas” e “Jogos proibidos” -, que revelam formas de sexualidade e busca de prazeres considerados marginais. Leia Mais

Homossexualidade e adoção – UZIEL (REF)

UZIEL, Anna Paula. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. 224 p. Resenha de: HERRERA, Florencia. Develando prejuicios: ¿Por qué los hombres homosexuales son padres de segunda categoría? Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Tener hijos, en nuestra cultura, es considerado como algo esencial para la realización personal y para la sobrevivencia de la sociedad. Se espera que las parejas, tarde o temprano, se conviertan en padres. Sin embargo, al desear hijos, las personas y parejas homosexuales no se acercan, sino que se alejan de las expectativas sociales. Homosexualidad y parentalidad son vistos como antagónicos e incompatibles por la sociedad. A pesar de ello, no es un hecho nuevo el que gays y lesbianas sean madres y padres, ya sea a raíz de relaciones heterosexuales y, más recientemente, mediante la adopción y las nuevas tecnologías reproductivas.

En su libro Homosexualidad y adopción Anna Paula Uziel, doctora en antropología social y psicóloga social del Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da cuenta de las ideas preconcebidas, los mitos y los miedos que surgen cuando se habla de adopción por parte de homosexuales en el Brasil de hoy. Su análisis le permite interpelar los discursos clásicos sobre la familia para volver a preguntar ¿Qué significa ser padre? ¿Sobre qué base se puede decidir quién será un buen padre? ¿Qué y quiénes constituyen una familia?

Uziel combina dos temas que por sí solos plantean importantes desafíos a las formas tradicionales de hacer familia. Por un lado la adopción, que permite una filiación sin vínculo biológico, es decir, desafía el núcleo de nuestras ideas de lo que es el parentesco.1 Aquí el parentesco se construye mediante el lazo legal y se mantiene a través de los cuidados cotidianos. Históricamente la adopción ha pretendido mantener la ficción de la familia nuclear tradicional creando una representación de una pareja coherente con el modelo biológico básico.2 Por otro lado, la homosexualidad, que hace imposible mantener esta ficción, ya que cuestiona la centralidad del sexo procreativo y la diferencia de sexo como base de la familia.

El libro se divide en dos partes. En la primera, la autora presenta una discusión de los desafíos que plantean los nuevos arreglos familiares. Para esto revisa los elementos que pueden ser un aporte al análisis de los temas centrales del libro – Homosexualidad y adopción – presentes en las familias monoparentales, las familias pluriparentales y las familias recompuestas. Aquí Uziel concluye que sexualidad y parentalidad son esferas distintas de la vida y que las funciones parentales no implican el ejercicio de la sexualidad.

En la segunda parte del libro, Uziel se centra en los elementos que entran en juego en la adopción por parte de personas homosexuales. Para ello se basa en entrevistas realizadas a técnicos y operadores que trabajan en los procesos de adopción y en los documentos de 8 procesos de adopción donde el solicitante es homosexual. Notablemente 6 de estos procesos fueron favorables en su resultado final para los solicitantes. Esto da cuenta de un avance hacia el reconocimiento del derecho de las personas homosexuales a tener hijos.

Uziel realiza un análisis rico y profundo de los discursos y posiciones de psicólogos, asistentes sociales, promotores, defensores públicos y jueces. Creo que es un acierto dar cuenta de las narrativas de estos actores ya que en su actuar cotidiano y en las interpretaciones que hacen de la legislación, ellos están tomando decisiones respecto a quiénes pueden y quiénes no pueden convertirse en padres y por lo tanto, están definiendo qué significa ser un buen padre hoy en Brasil.

La autora analiza no sólo lo explícito en las palabras de sus entrevistados, sino que lee entrelíneas e interpreta también los silencios. De esta forma logra ir más allá del discurso políticamente correcto que le presentan los técnicos y operadores. En un primer nivel éstos son abiertos y tolerantes, pero al observar con más cuidado Uziel devela cómo en las narrativas de estos profesionales surgen los clásicos prejuicios, miedos y mitos asociados con la homosexualidad. Un ejemplo de ello es la recurrente asociación de homosexualidad con promiscuidad.

Resulta provocador el foco del libro en la homoparentalidad masculina. Ya por sí sola la paternidad de un hombre, sin una mujer a su lado, resulta controversial. La crianza de los hijos está tradicionalmente asociada a lo femenino. Es curioso como los técnicos resaltan características femeninas y maternales de los adoptantes homosexuales para argumentar su idoneidad como padres. De alguna manera, a sus ojos, la orientación sexual de estos candidatos a padres los acerca a la figura maternal y, por lo tanto, los hace más capaces de asumir la paternidad. Sería interesante poder comparar qué pasa con las solicitudes de mujeres lesbianas para adoptar. ¿Está el tema de su sexualidad igualmente presente en los procesos de adopción? ¿Son menos cuestionadas al ser mujeres?

Es revelador que técnicos y operadores tiendan a cuestionar más la homoparentalidad en pareja que la paternidad individual de hombres homosexuales. El sentido común indica que es menos difícil criar un hijo entre dos y que para el niño es mejor tener dos personas que lo quieran, lo guíen y lo protejan. Sin embargo, la sexualidad, que puede ser invisibilizada en el caso de adoptantes individuales, pasa a ocupar un lugar central cuando se trata de una pareja de personas del mismo sexo. Se desprende de los discursos de los entrevistados y del análisis de los procesos que la sexualidad homosexual sigue siendo considerada algo sucio, desviado y con un alto potencial de contaminar a las personas que están cerca de ella, especialmente a los niños.

A lo largo de las páginas del libro de Uziel hay una pregunta que persiste ¿Cuál es la pertinencia de hablar de sexualidad cuando se trata de parentalidad? De acuerdo con los resultados de su investigación el tema de la sexualidad surge sólo cuando el que solicita la adopción es homosexual. La autora se pregunta ¿influye la orientación sexual en la capacidad de criar niños? O ¿existe una manera de ser padre diferente si se es homosexual o heterosexual? ¿Está relacionado el ejercicio de la parentalidad con la sexualidad? ¿Tiene sentido hablar de homoparentalidad? Creo que la autora toca aquí un tema clave para los estudios de familia y homosexualidad.

Un argumento para esgrimir que la homosexualidad y la parentalidad están relacionadas es que es en la familia y son los padres los que transmiten modelos de género y también sexuales a sus hijos. Los principales referentes de género y de relaciones de pareja que los niños tienen son entregados por sus padres. Sin embargo, aún sosteniendo la pertinencia de hablar de homoparentalidad cabe preguntarse ¿por qué el modelo de pareja homosexual es un mal modelo para los niños? Lo que está detrás es la idea de que la homosexualidad es algo desviado, negativo y que debe ser evitado. Al parecer, pesar de los avances respecto a la tolerancia a la diversidad sexual en Brasil, no se ha logrado construir una imagen positiva del ser homosexual. Esto está claramente reflejado en el análisis de los procesos y las entrevistas realizadas por Uziel.

Los padres homosexuales pueden cumplir todas las funciones tradicionalmente atribuidas a la parentalidad (socialización, cuidados, entrega de una identidad, protección, afectividad, etc.) Y, como señala Uziel, en muchos sentidos una pareja homosexual que cría un hijo no se distancia demasiado de la familia nuclear tradicional. En ambos casos la pareja conyugal es la misma que la pareja parental (entendida esta última como los padres que crían al niño).3

Uziel aborda lúcidamente un tema trascendental tanto para los estudios de familia como para nuestras sociedades. El reconocimiento legal y judicial de los vínculos entre padres homosexuales y sus hijos es vital para alcanzar el reconocimiento social. Hequembourg y Farrell4 señalan que a los padres y madres de mujeres lesbianas que no han adoptado legalmente a sus hijos no biológicos les es más difícil sentirse abuelos ya que sienten que el vínculo con sus nietos es más precario. No se debe olvidar que las familias constituidas por personas homosexuales se inscriben en contextos más amplios de familia extensa (abuelos, tíos y primos), instituciones escolares, instituciones de salud, etc. La plena aceptación por parte de estos contextos es vital para el desarrollo sano y feliz de los niños adoptados por personas homosexuales.

Creo que Uziel acierta al comparar la homoparentalidad con el divorcio, un cambio ahora asimilado pero que en su momento causó mucho revuelo y sin duda es una transformación importante en las formas que puede tomar la familia. El libro Homosexualidad y adopción es un gran aporte que nos ayuda a comprender las resistencias que encuentran las nuevas formas de construir familia.

Notas

1 David SCHNEIDER, 1980.

2 Anne CADORET, 2003.

3 CADORET, 2003; y Florencia HERRERA, 2009.

4 Amy HEQUEMBOURG y Michael FARREL, 1999.

Referencias

CADORET, Anne. Padres como los demás: homosexualidad y parentesco. Barcelona: Gedisa, 2003.         [ Links ]

HEQUEMBOURG, Amy; FARRELL, Michael. “Lesbian Motherhood: Negotiating Marginal-mainstream Identities.” Gender and Society, v. 13, n. 4, p. 540-557, 1999.         [ Links ]

HERRERA, Florencia. “Tradition and Transgression: Lesbian Motherhood in Chile.” Sexuality Research & Social Policy: Journal of NSRC, University of California Press, v. 6, n. 2, p. 35-51, 2009. ISSN 1553-6610.         [ Links ]

SCHNEIDER, David. American Kinship: A Cultural Account Second Edition. London: The University of Chicago Press, 1980.         [ Links ]

WEEKS, Jeffrey; HEAPHY, Brian; CATHERINE, Donovan. Same Sex Intimacies: Families of Choice and Other Life Experiments. London: Routledge, 2001.         [ Links ]

WESTON, Kath. Families We Choose: Lesbians, Gays, Kinship. New York: Columbia University Press, 1991.         [ Links ]

Florencia Herrera – Universidad Diego Portales, Chile.

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Juventude em conflito com a lei – PAIVA (E-CHH)

PAIVA, Vanilda; SENTO-SÉ, João Trajano (Org.). Juventude em conflito com a lei. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. 280p. Resenha de: LOBO, Leylane Cabral. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus,  vs. 12 e 13, ns. 22 e 23, p.395-400, jul./dez. 2009 e jan./jun. 2010.

Tem sido comum o enfrentamento do aumento dos casos de violência praticados por crianças e adolescentes com a utilização de medidas repressivas, meramente punitivas, em detrimento de ações educativas que visem à diminuição de atos infracionais.

O uso extensivo e arbitrário de medidas socioeducativas de restrição de liberdade não tem servido para transformar a vida daqueles que enveredam pelo caminho da criminalidade. Encerrar jovens que cometeram pequenos delitos juntamente com outros que praticaram infrações mais violentas em nada contribuiu para a diminuição da prática de atos infracionais por adolescentes.

Igualmente importante é reconhecer que não necessariamente os adolescentes cometem crimes mais graves que os adultos. Nas últimas décadas, os meios de comunicação, em geral, e setores mais conservadores da opinião pública reivindicaram mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) amparados no argumento de que os adolescentes, devido à sua condição de imaturidade emocional e cognitiva, são autores de atos criminosos mais violentos e recebem medidas brandas Pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas, evidenciaram, entretanto, que o perfil dos crimes cometidos por adolescentes no Brasil não se diferencia significadamente dos praticados por adultos e que, ao contrário do que se apregoa, a lei prevê punição aos adolescentes que praticam atos violentos, cabendo, entretanto, ao judiciário aplicá-las.

É necessário reconhecer que a adolescência é uma fase da vida específica, marcada por profundas mudanças no processo de seu conhecimento interno, na formação de caráter e na construção de sua personalidade.

No Brasil e no mundo, os jovens vêm sendo os principais perpetradores das formas mais graves de violência. E têm sido também suas principais vítimas. Com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, os infantes e os adolescentes passaram a ser considerados sujeitos de direito e com deveres, e a estar amparados por lei, entretanto, essa mesma lei não vem sendo cumprida em sua integralidade. As medidas socioeducativas deveriam reeducar e integrar esse jovem à sociedade, contudo, atualmente ela tem sido usada de forma extremamente punitiva e repressora.

O livro Juventude em conflito com a lei é uma importante publicação que traz para o debate diversificadas questões sobre a relação de adolescentes com a prática de crimes. O livro foi elaborado a partir das discussões ocorridos no Seminário Internacional “Juventude em conflito com a lei” e retrata a realidade das práticas de medidas socioeducativas e sua eficácia na reintegração desse jovem à sociedade, trazendo à tona uma descrição crítico-analítica das intervenções e dos projetos de instituições públicas e privadas com relação à juventude e suas desordens sociais, retratando a busca pela reeducação desses jovens e, principalmente, seu processo de mudanças em relação às práticas criminais. Aborda uma conjuntura de fatores que influencia o aumento dessas práticas violentas por crianças e adolescentes, onde várias questões sociais interferem em sua evolução, tendo como principal aspecto o tráfico de drogas. A professora Vanilda Paiva e o professor João Trajano Sento-Sé, organizadores da coletânea, apresentam reflexões sobre a temática juvenil e as medidas socioeducativas, principalmente no contexto do Rio de Janeiro, entretanto, pontuam casos de outras localidades.

O livro é trabalhado em três momentos, além da introdução, e contém quinze textos de autores que possuem vasta experiência e conhecimento da temática. A abordagem está focada na prática de violência por crianças e adolescentes, destacando as atividades culturais e educacionais destinadas aos jovens que praticaram infrações, a eficácia dessas medidas, além de englobar uma visão histórica dessas ações. Trata a questão de forma original, utilizando uma visão contextualizada e pontuando não só suas práticas, mas explanando aspectos das relações sociais que englobam os aspectos psicológicos, físicos e biológicos.

No texto de introdução, elaborado por Paiva, é apresentado o contexto complexo das temáticas abordadas no livro. De forma descritiva, tece uma ligação entre os textos revelando os contextos de sua elaboração, pré-definindo posicionamentos dos autores quanto às infrações cometidas por crianças e adolescentes.

O primeiro momento, “Pesquisa e ação social entre jovens em conflito com a lei”, enfatiza dados de pesquisas constituídas na área de violência juvenil e a efetivação das práticas socioeducativas de reinserção desse jovem na sociedade, e é composta por quatro seções que têm como autores Paiva, Soares e Duarte, Potengy e Calheiros e Soares. Aborda a precariedade da estrutura funcional destinada a jovens infratores, relata os resultados de pesquisas e faz um mapa do contexto histórico da ação de legitimação da punição.

O segundo, individualizado como “Outras visões do problema”, elenca sete seções e tem textos de: Dubar, Heitmeyer, Misse, Gonçalves, Sento-Sé, Teixeira e Lacey. Apresenta um olhar sociológico da compreensão da delinquência juvenil, questionando suas funções e interação. Destaca as possíveis causas e consequências, além de propor a prevenção do fator potencial que gera a violência juvenil, (o tráfico de drogas). A partir de projetos de pesquisa, retrata a prática da punição e não da inserção; o uso da violência como reivindicação, as mudanças no conceito de violência e o aumento da repressão ao jovem.

“O projeto e seus atores”, é o terceiro ensejo, ele traz Botelho, Silva, Paiva e Porfírio, através de seus escritos, e expõe as ações dos CRIAMs, e relatam projetos “bem sucedidos” sobre a valorização da família na reinserção desse jovem e as características conceituais da juventude.

Os autores analisam a violência praticada pelos jovens como uma característica comum a essa fase da vida que busca desafios, novas experiências e a quebra de barreiras e/ou regras, constatando que as “revoltas” dos jovens expressam o descontentamento, em que várias questões sociais interferem nessas ações, e não só propriamente a miséria e as desigualdades. Enfatizam a influência de outros elementos que alimentam as mudanças, como a busca por uma identidade e a auto-afirmação perante a sociedade. Entretanto, mesmo quando assumem essa posição de agressores, o fazem num contexto de dúvidas, questionamentos, imposições, o que por si só já lhes ressalva o “papel” de vítima.

Contudo, na maioria das vezes, as respostas estão centradas em posicionamentos e ações exclusivamente punitivas.

A violência praticada por jovens tem sido uma temática que vem merecendo destaque na sociedade brasileira nos últimos anos. Essas práticas violentas perpetradas por jovens vêm fazendo parte do cotidiano das escolas, das ruas e fazendo parte da agenda dos jornais. Os autores vão mais além desta constatação e mapeiam as causas e consequências do crescimento dessas práticas, contestando o que está sendo feito para lidar com esse movimento de ‘quebra’ das leis e regras sociais.

Traçando um panorama da aplicação das medidas socioeconômicas os autores defendem o “tratamento” desses jovens infratores de forma humanizada, em que a família, a comunidade e o Estado trabalhem em cooperação em prol da conscientização e reinserção desses jovens à sociedade. Tendo por meta também promover ações a fim de impedir os consequntes esteriótipos e condutas que visem à marginalização marginalizada desses jovens, visto que é natural serem classificados como com conduta considerada como nata, própria da pobreza, destituída de moralidade, e este seria um fator que implicaria na reincidência criminal.

O livro instiga o leitor estudioso ou interessado na temática e o atualiza sobre o que está sendo feito no sentido do enfrentamento da questão por autoridades, educadores e pesquisadores.

Além de evidenciar questões de fundo, como a necessidade de cobrar do Estado sua parcela de contribuição na luta para tirar essas crianças e adolescentes de práticas criminais; o aumento da repressão como gerador do aumento da violência; a influência da massificação do consumo pela mídia na colaboração para a reprodução da violência juvenil; além da situação complexa dentro dessas instituições, onde “aglomeram-se” jovens de várias organizações criminais em um mesmo espaço sem garantir sua segurança. Ponderando essas questões que caracterizam um contexto específico, podemos, na maioria das problemáticas, generalizar as características para o plano nacional e mundial, e lendo as descrições do livro podemos encontrar vários traços que podem ser atribuídos aos jovens de nossa realidade.

É um trabalho importante, que deve ser reservado como fonte de consulta permanente, especialmente para aqueles que se propõem a fazer análises acerca dos atos infracional praticados por jovens em seus mais diferentes aspectos. Pela riqueza dos relatos, pela cuidadosa seleção dos conteúdos trabalhados e pela transparência das ideias, o livro permite a mediação e a reflexão de profissionais das áreas jurídica, educacional, sociológica, entre outras, auxiliando numa discussão aberta da temática destacada.

Assim, pode ser dito, que o livro é uma contribuição fundamental, pois utiliza a análise reflexiva e formadora de um posicionamento que visa proteger a infância e juventude do “julgamento” coercitivo e da esteriotipização de marginalidade.

É necessário entender o contexto sócio-histórico dos jovens autores de ato infracionais e tentar compreender o aparecimento desse fenômeno, buscando encontrar soluções efetivas, pois a aplicabilidade da punição não parece ser uma “solução” efetiva e viável, já que produz como efeito a exclusão e não da reintegração desse jovem à sociedade.

Leylane Cabral Lobo – E-mail: [email protected]

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