Vozes da vida religiosa feminina: experiências, textualidades e silêncios (Séculos XV-XXI)

Em Portugal, os estudos sobre as experiências históricas com relação às mulheres e questões de gênero chegaram tardiamente, por volta da década de 1970, após a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Em outros países tai perspectiva de estudo já estava caminhando desde a década de 1960. Em um primeiro momento, os períodos mais estudados, com relação às mulheres, foram os séculos XIX e XX, para os quais se propugnava uma reconstrução historiográfica do que havia sido banido pelo Estado Novo Português. A partir daí foram incrementados outros temas de estudos sobre as mulheres, tendo como exemplo as pesquisas que resultaram no clássico História das Mulheres no Ocidente, organizado por Georges Duby e Michelle Perrot (1993), além de revistas da área de Ciências Sociais, que tinham o objetivo de discutir a temática de gênero e seus desdobramentos sociais.

Atualmente, o leque temático relativo aos estudos de gênero alargou-se. A proposta é a diversidade de abordagens, de maneira a inserir as mulheres como agentes, ao lado dos homens, na constituição da sociedade portuguesa, não deixando de lado as barreiras impostas pelo mecanismo estrutural da dominação masculina (BOURDIEU, 2003). Todavia, os estudos têm elencado principalmente personagens conhecidas, como rainhas, princesas ou personagens de grande veiculação na contemporaneidade, deixando de lado outras vivências.

No âmbito da história religiosa, as vozes femininas foram emudecidas, seja por preferências de cunho historiográfico, seja por razões históricas. A tensão entre homens e mulheres foi propulsora de inúmeros discursos no decorrer da história cristã e resultou no fomento a uma estrutura rígida que norteou as relações entre os sexos, tanto no meio secular como na estrutura da Igreja, o que levou à diversificação dos modos de vida das religiosas e a consequências significativas dentro das congregações. Tais questões têm sido a mola propulsora de diversos estudos centrados nas representações das mulheres com relação à santidade. Os discursos primeiramente associados ao masculino e ligados à Eclésia deram lugar a uma nova conjuntura que permitiu às mulheres ascender às letras e construir sua própria história, mesmo que esta permanecesse diminuta e sob forte vigilância masculina.

Com o propósito de discutir o lugar dessas vozes religiosas femininas em Portugal, sobre o que era dito sobre as religiosas e sobre o que elas diziam sobre si mesmas, a Universidade Católica Portuguesa, por meio do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), realizou, entre os dias 28 e 29 de junho de 2013, as jornadas de estudo Vozes e silêncios femininos na vida religiosa. Do evento resultou o livro, publicado em 2015, intitulado Vozes da Vida Religiosa Feminina: experiências, textualidades e silêncios (Séculos XV-XXI). A obra foi composta com o intuito de evidenciar o lugar feminino na história religiosa portuguesa e contemplou textos introdutórios inseridos de modo a fornecer elementos para reflexão em sobre os demais capítulos que formam o livro.

Como introdução aos estudos, Ivone de Freitas Leal apresentou o texto intitulado “As mulheres na vida religiosa portuguesa: fontes, itinerários e problemáticas”, tendo por base o verbete “Mulher” publicado no Dicionário de História Religiosa do CEHR (AZEVEDO, 2001). No dicionário, a autora dispôs a problemática sobre gênero de forma pioneira, o que suscitou dos organizadores da obra a sua reedição, de modo a tornar o texto mais acessível aos leitores e a servir de ponto de partida para refletir sobre as questões que norteiam o livro. O segundo texto que compõe essa parte introdutória é o ensaio de Zulmira C. Santos, intitulado “Escrita conventual feminina: um ‘arquipélago submerso’: apenas algumas notas”, no qual a autora apresenta considerações sobre a forma de estudo relativo à vida conventual feminina, principalmente na Época Moderna.

Gilberto Coralejo Moiteiro foi o responsável pelo capítulo inicial, chamado “Texto e experiência religiosa feminina. Estratégias discursivas hagiográficas no seio da observância dominicana portuguesa”. O autor faz uso da Crónica da Fundação do Convento de Jesus de Aveiro, escrito entre os anos de 1513 e 1525, para analisar os discursos das religiosas, no sentido de apresentar os modelos de conduta a serem desempenhados de modo a atingirem uma vida de plenitude religiosa.

O segundo capítulo, denominado “Uma tipologia de quase silêncio – Um sermão de Clarissa: texto e contexto”, escrito por Isabel Morujão, analisa o Sermão do Glorioso Santo Aleixo, de 1699. Editado por uma freira clarissa portuguesa, essa fonte distingue por ser um gênero textual destinado ao gênero masculino. Morujão se debruçou sobre o texto na perspectiva de reconstruir o cenário de sua produção, finalidade e desvendar os dados sobre a autoria do escrito.

Antónia Fialho Conde é responsável pelo terceiro capitulo, denominado “Expressões de religiosidade e misticismo no jardim fresco e ameno de S. Bento de Castris”. A autora aborda as relações conventuais no período contra-reformista. Utilizando como exemplo o mosteiro de Cástris, traz à luz novas fontes de cunho literário e sobre práticas piedosas, como também sobre a música, prática bem menos conhecida nos meios conventuais.

Já Cátia Tuna, apresenta os resultados da sua pesquisa voltada ao contexto de difusão do fado. O capítulo intitulado “A voz religiosa feminina no repertório das cantadeiras de fado (c. 1930- c.1960)”, tem por intuito, nas palavras da própria autora, “estudar a forma como a mulher fadista exprime uma intencionalidade de natureza religiosa na construção e na forma como faz uso da voz para se sublevar como protagonista no âmbito social e espiritual”( p. 139).

Em “Vidas exemplares femininas nas leituras do Convento de Santo Alberto, Lisboa (século XVIII)”, Fernanda Maria Guedes de Campos realizou uma investigação em torno das leituras realizadas pelas freiras, a partir dos inventários de livros existentes no ambiente monástico. São postas em destaque as obras que tratavam de relatos de vida de santos e santas e verifica-se que, em muitas delas, havia referências à realidade da mulher.

O sexto capítulo, de Joana Serrado, intitulado “Joana de Jesus (1620-1680). Ânsias amorosas a partir de João 20:17”, apresenta os escritos da religiosa e mística cisterciense, analisando como Joana de Jesus interpretava a obra de São João utilizando do conceito de “ânsias amorosas”.

“Vozes femininas na génese de institutos regulares: Genoveva Maria do Espírito Santo (1732- 1821) e o Mosteiro de Vila Pouca da Beira” é o título do sétimo capítulo, de autoria de Maria Luísa Jacquinet. No texto, a autora se debruça sobre a história da fundadora do mosteiro do Desgravo do Santíssimo Sacramento, Genoveva Maria do Espírito Santo, e relata sua trajetória de vida e as suas relações devocionais.

O último capítulo, de Paula Borges Santos, “Aspetos do discurso religioso de Maria de Lourdes Pintasilgo (1968-2004): a experiência da fé e o papel das mulheres no cristianismo”, oferece uma abordagem contemporânea acerca das práticas de fé e do papel das mulheres no cristianismo atual a partir da análise dos discursos religiosos de Maria de Lourdes, que pregava a existência de uma nova Igreja, com uma nova roupagem, que seja capaz de valorizar o papel das mulheres e se adequar às novas necessidades e formas de espiritualidade.

Em suma, Vozes da Vida Religiosa Feminina: experiências, textualidades e silêncios (Séculos XV-XXI) discute minúcias da trajetória religiosa de mulheres, de diversos períodos, muitas vezes levadas ao silêncio histórico. Provocadora, a obra aguça o interesse do leitor e o apresenta às sociedades nas quais o movimento de mulheres religiosas é significativo. O livro trata de temas de natureza histórica, religiosa, mas também social. Sua principal contribuição é fomentar novas investigações que possam trazer luzes às vozes femininas do cristianismo.

Referências

AZEVEDO, C. M. (Dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Circuito de Leitores, 2001.

BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

DUBY, G; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1993. 4 vol.


Resenhista

Alex Rogério Silva – Mestre em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ANDRADE, Maria Filomena; FONTES, João Luis; MARQUES, Tiago Pires. (Org.). Vozes da vida religiosa feminina: experiências, textualidades e silêncios (Séculos XV-XXI). Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa, 2015. Resenha de: SILVA, Alex Rogério. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 18, n. 1, p. 100-102, maio. 2018. Acessar publicação original [DR]

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