A Revolução Russa | Sheyla Fitzpatrick

No ano de 2017, houve uma profusão de obras historiográficas pela ocasião do centenário de um dos maiores acontecimentos do Século XX, a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia. Uma dessas obras reeditada neste ano, de suma importância para a compreensão dos primeiros 20 anos do processo revolucionário soviético, foi A Revolução Russa, de uma das pesquisadoras mais destacadas entre os sovietólogos na atualidade, a australiana Sheyla Fitzpatrick. A autora, que atualmente leciona História da Rússia Moderna na Universidade de Sydney, expõe as primeiras duas décadas da primeira e mais duradoura revolução socialista, que abriu as portas para dezenas de outros processos revolucionários em todo o mundo.

A pesquisadora subdivide, por uma questão metodológica, as etapas do que chamou de “revoluções russas” em cinco partes: a fase pré-revolucionária; o período exato da revolução em 1917; os anos da Guerra Civil; o período da Nova Política Econômica (NEP); e, por fim, os dez anos de “revolução de Stalin”, que encerram o processo com o famigerado Grande Expurgo de 1936- 37. Durante toda a pesquisa, estabelece relações entre as mudanças sociais, econômicas e políticas dessas cinco fases, e como os principais atores políticos – as lideranças revolucionárias, encarnadas nos bolcheviques – se modificaram com o passar dos anos devido a suas próprias inserções no processo de revolução que criaram, com o auxílio da massa de trabalhadores que deu suporte à República Soviética.

A obra percorre o último quarto do Século XIX e os primeiros anos do Século XX, traçando um panorama social, econômico e político da Rússia czarista. Durante os últimos anos de vigência do Antigo Regime, já combalido devido a crises políticas e à insurreição de movimentos operários e pela pressão de democratas liberais, os russos observaram um intenso crescimento econômico, oriundo do alto investimento estrangeiro na indústria extrativista mineral (principalmente de carvão) e na indústria de base. Fitzpatrick narra o surgimento das primeiras contradições que permitiram o surgimento, ainda no último quarto do Século XIX, de movimentos socialistas populares (Narodniks) que utilizavam do terrorismo como resposta política, com forte influência no campesinato. Em seguida, devido a conquistas democráticas que impuseram um relaxamento nos mecanismos de controle do czar, o surgimento dos primeiros partidos socialistas legalizados impulsionou ondas de greves nas maiores fábricas das grandes cidades russas, como Moscou e São Petersburgo, então capital política da nação.

Foram nessas fileiras que surgiram as primeiras lideranças que, anos depois, aplicariam o “golpe” – nas palavras da autora, o ato da tomada de poder pelos bolcheviques foi um “golpe” sobre a direção dos sovietes, composta em maior parte por socialistas-revolucionários de direita, de esquerda e mencheviques – em outubro de 1917 e derrubaria o Governo Provisório da Duma. Contudo, durante décadas a revolução foi ensaiada pelos militantes comunistas: da Revolução de 1905, que prendeu centenas de operários, militantes e camponeses e deixou pilhas de mortos pelas ruas das grandes cidades – e inspirou cenas antológicas como o fuzilamento de manifestantes nas escadarias de Odessa, filmado pelo diretor russo Serguei Eisenstein em O Encouraçado Potenkim (1925) – até as revoluções de Fevereiro e Outubro, o movimento operário e socialista russo, em suas mais variadas frações e subdivisões, queria fazer a revolução e se preparava para isso.

Fitzpatrick narra os principais motivos que culminaram na vitória da fração bolchevique, liderada até meados de 1921 por Vladimir Ilitch Ulianov (Lênin). Entre eles, a intensa conexão política surgida entre essa fração de militantes e a classe operária russa, a qual, embora minoritária em uma nação esmagadoramente camponesa e iletrada, constituía a base social urbana. O apoio do exército e da marinha (que viriam a se tornar o Exército Vermelho, em 1918) também foi fundamental para essa empreitada, uma vez que sequer houve resistência do Governo Provisório no ato da tomada de poder pelos revolucionários.

O socialismo na Rússia foi o impulso modernizador do país, que não viu se desenvolverem forças produtivas sob relações de produção capitalistas, ao contrário do que a maioria dos comunistas, ávidos leitores de do marxismo ocidental, supunham que aconteceria. No entanto, todo o processo mostrou-se conturbado, levando em consideração as imensas dificuldades encaradas pelo governo bolchevique. Desde a entrada na Primeira Guerra Mundial até os anos de 1924-25, praticamente não houve balanços econômicos favoráveis: o desemprego subia exponencialmente devido ao abandono das fábricas expropriadas; os campos aumentavam de tamanho por conta do êxodo urbano (trabalhadores urbanos sofreram muito mais com a fome e a falta de ocupação do que camponeses); os lucros provenientes da venda de alimentos eram mínimos porque a inflação era galopante, o que resultou na criação de um “mercado negro” entre camponeses para trocarem suas mercadorias entre si e não venderem ao Estado. Todo esse cenário, catastrófico tanto para os cidadãos quanto para os próprios bolcheviques, conviveu com a criação de centenas de organizações políticas, artísticas, culturais (trens de agitação e propaganda, institutos artísticos como a ROSTA, universidades para trabalhadores) após a revolução bolchevique.

Era preciso vencer a guerra contra os Exércitos Brancos e os camponeses insurretos dos Exércitos Verdes. Para isso, era preciso atuar também no terreno da cultura. Somente um período revolucionário dessa envergadura poderia produzir jovens artistas e intelectuais como o poeta Vladimir Maiakóvski, o artista plástico Alexander Rodchenko e o diretor de cinema e teatro Serguei Eisentein, donos de obras antológicas e manifestamente anti-artísticas em relação aos cânones. Fitzpatrick expõe sem muitos detalhes o impacto da agitação e da propaganda do novo regime, porém não deixa de ressaltar a importância desses produtos culturais que seriam massacrados posteriormente pela “máquina” da Revolução Cultural estalinista, a partir da guinada na política cultural do bloco em 1928, que culminou na instauração do realismo socialista como doutrina cultural da URSS a partir de 1934.

A entrada da Rússia na Guerra Civil redirecionou todos os esforços do país para a guerra e inaugurou a controversa etapa do Comunismo de Guerra. As estatizações do sistema bancário, das grandes fábricas e comércios atingiram quase que a totalidade das propriedades privadas urbanas. Os bolcheviques, sob a batuta do Exército Vermelho liderado pelo Comissário da Guerra, Lev Davidovich Bronstein (Trótski), avançavam ao campo para iniciar a estatização das propriedades privadas dos grandes latifundiários (kulaks), resistentes ao regime. No entanto, Fitzpatrick demonstra que também os pequenos camponeses, prestes a perder terras para as grandes fazendas estatais (kholkozs), não estavam tão contentes com a política agrária imposta pelo novo Estado revolucionário, assim como não estavam satisfeitos com as políticas agrárias do czarismo. Razão pela qual todas as políticas de coletivização agrária empreendidas em três décadas não foram bem sucedidas, das reformas agrárias de Piotr Stolypin durante a primeira década do Século XX à coletivização forçada da agricultura empreendida pelo então Secretário Geral no fim da década de 1920, Josef Stalin.

Quase metade do orçamento durante os primeiros anos da revolução ia para a “maior burocracia” russa, o Exército Vermelho. Em 1921, o exército tinha mais de cinco milhões de soldados, recrutados tanto de forma voluntária como forçadamente entre a população. Fitzpatrick expõe em detalhes como a combalida economia russa, que viu o escambo voltar e filas de velhos, mulheres e crianças nos armazéns estatais, conseguiu alcançar os primeiros saltos econômicos positivos em 1924, devido à também controversa Nova Política Econômica (NEP). O “passo atrás”, nas palavras de Lênin – que foi contrário à primeira redação da NEP tal qual foi posta em discussão –, consistia em uma consistente abertura econômica que proporcionou o recebimento de investimentos estrangeiros e o renascimento de atividades empresariais e industriais novamente mediadas pelo mercado. Era uma porta aberta para a contrarrevolução, apontavam muitos comunistas.

Os anos da NEP entregaram uma União Soviética novamente reerguida após uma década de reveses sociais, porém foram palco de uma série de conflitos no interior do Partido Bolchevique. Neste momento, Fitzpatrick ressalta as constantes rusgas entre os dirigentes que não aceitavam a nova orientação econômica e a classificavam como uma guinada ao capitalismo, entre eles o próprio Lênin, vítima de um derrame em 1924 e que acreditou que a NEP era nociva ao processo revolucionário. Porém, o balanço proposto pela autora em relação a essa época foi de que, não fosse a NEP e o “recuo” em relação à estatização e à planificação econômica, o socialismo na URSS não teria resistido às constantes crises de desemprego, abastecimento e produção.

Os últimos dez anos analisados por Fitzpatrick são constituídos de uma nova reorientação econômica no bloco soviético. O Primeiro Plano Quinquenal aplicado em 1928 tinha como objetivo máximo a industrialização da União Soviética e a coletivização das propriedades rurais, que deveriam ser transformadas de pequenas propriedades em grandes latifúndios estatais. Ambos os processos ocorreram de modo assimétrico e conturbado, sendo o primeiro deles muito mais bem sucedido do que o segundo: a produção de ferro, aço, maquinário e bens duráveis obteve um salto impressionante, muito além do registrado em qualquer outro país até então (levando em conta os quatro anos e meio de duração do Primeiro Plano).

Já a coletivização, fracassada pela via colaborativa, passou a ser forçada. Devido à sabotagem dos camponeses, que queimavam campos e matavam animais de tração para dificultar o trabalho dos administradores, a produção agrícola e pecuária foi seriamente comprometida durante quase todo o Primeiro Plano Quinquenal. Aliada à coletivização forçada, às crises ambientais e à política de confisco de grãos (que eram pagos em espécie aos camponeses), uma onda de fome se abateu sobre o campo nos anos de 1932-33, principalmente na Ucrânia.

Mesmo o salto evolutivo na economia industrial e pesada deve ser olhado com cautela. A falta de planejamento estratégico da economia planificada resultou num desperdício enorme de matérias-primas. A construção de complexos enormes de ferro e aço, como Magnitogorsk, elevou exponencialmente a produção, no entanto os custos humanos e naturais foram sentidos pelos trabalhadores em geral. O exponencial crescimento econômico se deu à custa do trabalho duro de milhares de soviéticos, incentivados a sacrificarem-se em condições muitas vezes terríveis de trabalho para a construção do socialismo. Apesar dos aumentos de produção, após o lançamento do Segundo Plano Quinquenal em 1933 os salários dos operários industriais estavam cada vez mais distantes dos salários de técnicos e burocratas de alta patente, deixando para trás a equidade salarial que persistiu durante os primeiros anos da revolução. Fitzpatrick defende que os administradores comunistas estavam, com várias ressalvas e nuances, se tornando a “nova burocracia” que se acostumaram a criticar durante o czarismo – sem deixar de considerar que todo governo moderno necessita de uma burocracia.

As disputas intestinas pelo poder também são relembradas pela autora, sem uma defesa laudatória nem de Trótski, nem de Stalin. Rememorando denúncias tanto de lideranças estalinistas como Mólotov quanto do próprio Trótski – no início de 1930, já exilado e expulso do Partido Bolchevique -, Fitzpatrick ressalta a nova “reação termidoriana” empreendida pela cúpula de Stalin a partir de 1927. Entretanto, não há uma análise unívoca da parte da pesquisadora em considerar apenas as soluções stalinistas como autoritárias, visto que em muitos aspectos ambos os líderes em conflito concordavam em erradicar a oposição no plano político, tanto de direita como de esquerda. Ela salienta, contudo, que no caso de Stalin a reação foi pior do que nos anos de relativa tolerância política durante o período de Lênin. Dezenas de correntes e facções disputavam o poder até 1923, apesar do fracionamento do partido nunca ter sido aceito pelos bolcheviques e de os mesmos terem aplicado, por diversas vezes, medidas autoritárias contra a oposição socialista.

No entanto, essa diversidade mais ou menos aceita pela direção se esvaiu tão logo assumiu a nova direção do Politburo, em 1927. Os expurgos ocorreram muito mais intensamente no stalinismo, de modo que alcançaram seu ápice em 1936-37. Utilizando dados do próprio governo soviético, liberados após a dissolução do Bloco Socialista na década de 1990, a autora ressalta que 1,3 milhões de pessoas foram exterminadas nos gulag. Entre as lideranças bolcheviques da velha guarda, que fizeram a Revolução de Outubro, poucos sobreviveram. Milhões de militantes e pessoas comuns foram acusadas de “traição” e de serem “elementos subversivos”, tanto pelos policiais da NKVD quanto através de delações de cidadãos, os quais eram incentivados a denunciar possíveis traidores para cumprirem dever cívico de protegerem a revolução.

Ficaria claro, na opinião da autora, que com os Expurgos uma revolução se encerrara, com o ânimo e a energia revolucionárias refreados definitivamente já após a década de 1940. Além disso, a obra não reduz o ocaso da Revolução de Outubro a desejos megalomaníacos e sádicos de um líder ou de um conjunto de lideranças, senão propõe a compreensão de como esses métodos de coerção e correção (delações, vigílias, prisões, fuzilamentos) eram empregados em todas as épocas revolucionárias pelo medo (real) de uma ofensiva contrarrevolucionária, de espiões infiltrados e de potenciais ações terroristas das potências ocidentais.

A recente edição d’A Revolução Russa de Sheyla Fitzpatrick é uma importante e detalhada fonte histórica dos anos iniciais da mais importante revolução socialista da história, que continua intrigando pesquisadores e suscitando debates nas ciências sociais. Conforme a própria autora afirma no final do livro, bem mais relevante do que a opinião que se tenha, tanto em nível mundial quanto da população russa, a respeito dos 70 anos de uma alternativa de mundo que ficou para trás é compreender de que modo essa experiência longeva e única na história impactou pelo menos uma geração inteira. Por mais que se queira esquecer ou reviver, é necessário, antes, compreender esse imenso e importante processo.


Resenhista

Willian Fusaro – Graduado em Jornalismo e mestrando em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FITZPATRICK, Sheyla. A Revolução Russa. São Paulo: Todavia, 2017. Resenha de: FUSARO, Willian. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 31, n. 2, p. 313- 320, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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