Angola Janga: uma história de Palmares | Marcelo D’Salete

Há muito tempo, os primeiros homens e mulheres foram pegos… Levados nos tumbeiros, pelo calunga… até esta terra. Cansados, marcados e amedrontados. Abandonados pra trabalhar e morrer no engenho. Parecia não haver saída. Apesar de tudo, um grupo fugiu! Cheios de gana… Eles caminharam muitas noites pelo cafundó… Alguns sonhavam ainda voltar pra terra além do Calunga, em Matamba… Outros sabiam ser impossível. Depois de muitos dias… chegaram numa terra protegida, vistosa e fértil… Mata repleta de palmeiras pra comer e construir mocambos. Terra onde sementes de massango, guando e muito mais… podem brotar e florescer… (D’SALETE, 2017, p. 196-197)

Muito antes do seu lançamento em novembro de 2017, a história do Quilombo dos Palmares já era bastante esperada e não era pra menos: foram onze anos de pesquisa e trabalho de Marcelo D’Salete, conhecido e premiado quadrinista nacional que teve, em outros títulos, tais como Encruzilhadas (2011) e Cumbe (2014), abordagem de questões sociorraciais de forma bastante crítica. Mais uma vez, agora com Angola Janga, o autor trouxe uma história afrocentrada, buscando fugir do que ele chamou de “narrativas tradicionais”, que seriam aquelas que trazem os personagens negros secundarizados, “eclipsados e subalternizados”.

Angola Janga: uma história de Palmares é uma ficção histórica em formato de romance gráfico que conta os acontecimentos do conjunto de mocambos mais famoso do Brasil em suas últimas décadas de existência, trazendo consigo diversos personagens – alguns pouco estudados ou sequer contemplados em narrativas anteriores – tais como Ganga Zumba, Ganga Zona, Antônio Soares, Andala Quituche, Zumbi, além dos sertanistas André Furtado e Domingos Jorge Velho.

Embora a obra traga como protagonista o escravo Antônio Soares – personagem que esteve com Zumbi durante boa parte de seu período como líder do quilombo e raramente encontrado nas narrativas sobre Palmares – o foco narrativo muda no decorrer dos onze capítulos da história e é a partir deles que temos acesso à construção da personalidade de personagens como Zumbi e Domingos Jorge Velho. Mas é por meio de Soares que o leitor acessa as suas decisões importantes, sua participação no jogo político enquanto conhecemos as tramas envolvendo os líderes de Palmares, governadores portugueses, membros da Igreja Católica, indígenas e bandeirantes, além do próprio desfecho da história do qual ele é participante ativo.

A obra conta com bons dados históricos para situar o leitor dos acontecimentos daquele período, incluindo um resumo sobre os mocambos e a atividade econômica em torno dos engenhos, um glossário de termos utilizados no enredo – a maioria deles de origem banta e/ou da oralidade e das tradições africanas –, uma cronologia sobre Palmares, informações sobre os ataques aos mocambos, dados sobre embarques e desembarques de escravizados durante o período colonial, mapas da região da Serra da Barriga, do comércio intercontinental de escravosvdo litoral Atlântico da África, além das referências bibliográficas.

O enredo tem início com Soares – cativo de uma fazenda produtora de açúcar – e seu desejo de liberdade. A rotina do trabalho em uma grande fazenda, as relações com os capatazes, senhores e a religiosidade são abordados desde o início. O leitor toma conhecimento, ainda no primeiro capítulo, das fugas e de algumas estratégias de resistência dos africanos que buscavam o caminho para Palmares. A história prossegue com o nascimento do pequeno Francisco, mais tarde rebatizado Zumbi, num capítulo de muita violência contra os escravizados que buscam o caminho para os mocambos que formavam o grande quilombo dos Palmares.

A partir do terceiro capítulo conhecemos Zona, irmão de Ganga Zumba e personagem central nos eventos que levaram o acordo de Cucaú – tentativa de acordo de paz firmado entre o Quilombo de Palmares e o Reino Português entre 1678 e 1680 – que, na história de D’Salete, é apresentado como etapa fundamental para que Zona viesse a se tornar líder na área reservada pelos portugueses. A construção de Zona como antagonista ocorre ao mesmo tempo que o leitor tem contato com a infância e juventude de Zumbi – letrado, inteligente e corajoso – que abre mão do “conforto” de viver com seu protetor, o padre Antônio Melo, para cumprir sua profecia e liderar homens e mulheres na resistência de Angola Janga.

O acordo de Cucaú divide homens e mulheres negras que gostariam de ter liberdade. Nessa cisão temos, de um lado, Zona e Ganga Zumba defensores da paz com os portugueses e, de outro, Soares e Zumbi que almejavam o fim da ameaça que Cucaú representava aos demais mocambos. Nesse contexto, Zumbi se despede definitivamente de sua vida na antiga vila onde fora criado para assumir o posto de único Ganga de Palmares. É nesse momento que a história apresenta sutilmente o debate entre “ser livre” num vilarejo de portugueses ou conviver com “cativos” em Angola Janga. É a partir daí também que o leitor tem contato com os bandeirantes – e seus aliados indígenas – como último recurso dos portugueses para derrotar Zumbi e seus comandados.

Da oitava parte em diante o autor nos apresenta a violência da guerra em Palmares, os acordos entre os representantes da Coroa e os bandeirantes que, aos olhos dos portugueses, eram indesejáveis e demasiadamente selvagens. As páginas dos últimos capítulos revelam que durante pouco mais de cinco anos Angola Janga foi atacada, Zumbi ferido e, posteriormente, assassinado para servir de exemplo a não ser seguido pelos escravos de Pernambuco. Ao contrário do que pudesse parecer a morte de Zumbi não propõe o fim da resistência e nem da luta pela liberdade. A mensagem final da obra é a da continuidade da luta e a oposição à opressão e, por isso mesmo, embora traga um episódio que ocorreu no século XVII, o diálogo proposto é absolutamente atual, sobretudo quando insere os negros como protagonistas e agentes de sua própria história.

A construção de narrativas afrocentradas se faz muito necessária em tempos de avanço do conservadorismo e de discursos de manutenção do status quo que, apesar de sempre terem existido no Brasil, encontrou uma nova escalada reacionária a partir de 2014 com a divisão do país após as eleições daquele ano. Os guias politicamente incorretos, publicados desde 2009, que tanto fazem sucesso no Brasil, parecem ser os porta-vozes do viés mais recente desse fenômeno retrógrado, sobretudo quando tratam da escravidão em território africano ou daquela “praticada” dentro dos quilombos. De forma velada, o que ocorre é uma tentativa de diminuir a importância de Palmares e seus líderes, bem como a responsabilização dos próprios africanos pela escravidão na América.

Por trás da desonestidade intelectual de Leandro Narloch – quando cita fontes parciais ou subverte informações sem respaldo historiográfico no seu Guia politicamente incorreto do Brasil – há um grande esforço em manter estereótipos e em alimentar o imaginário da população que coloca os negros e negras em lugares e situações determinados, como o trabalho doméstico, em presídios, na senzala, no tráfico, etc. Basta verificarmos as representações de negros e negras na TV, no cinema ou nos comerciais, a exploração dos corpos, a hipersexualização do corpo da mulher negra, a associação dos negros ao esforço manual, a virilidade masculina, entre outros estereótipos.

Nesse sentido, Angola Janga é uma obra necessária, tanto porque traz à tona parte da história do Brasil do século XVII – geralmente com ênfase para as invasões holandesas – quanto pela construção da narrativa afrocentrada. Não há, no enredo, a reprodução de ideias fixas e cristalizadas sobre os africanos: as mulheres aparecem com relevância e como membras ativas da comunidade, inclusive nas tomadas de decisão; os palmaristas são inteligentes nas estratégias de defesa, antecipam os ataques inimigos e procuram outras formas de resistência para além da guerra; fazem parte de uma comunidade autossuficiente, organizada e bem gerida; seus corpos não são sexualizados e nem restritos as atividade manuais; suas personalidades não são infantilizadas e tampouco precisam de um branco para liderá-los no processo de libertação. Os negros de Angola Janga são seres pensantes capazes de refletir sobre sua situação e agir em conformidade com suas crenças.

Marcelo D’Salete traz para seu leitor a complexidade das relações no ambiente escravistas e também dentro dos mocambos, como quando nos deparamos com cisão entre os moradores de Palmares na ocasião do acordo com os portugueses, quando Zona mata seu companheiro como parte de seu plano para convencer seu mocambo a se aliar com os portugueses, quando Soares envenena Ganga Zumba pensando ser o melhor para a resistência de Angola Janga ou na atuação do Terço dos Henriques – milícia formado por negros e mulatos – que também lutou contra os palmaristas. É digno de nota que o autor traga esses conflitos para o debate para que não haja uma essencialização dos negros e negras, como se não pudessem agir conforme seus interesses particulares ou do grupo.

A sofisticação no trato dessas nuances aparece não só com a representação dos africanos na obra, mas, também, dos outros grupos apresentados. O mesmo ocorre, por exemplo, quando, mesmo com medo, os portugueses recorrem aos bandeirantes e estes aos indígenas como parte da estratégia para derrubar Macaco, a capital de Palmares. O capítulo que trata dos sertanistas é intitulado “Selvagens” o que, antes da leitura, poderia sugerir ser uma parte destinada aos indígenas. Durante a trama o autor demonstra o quanto as autoridades lusas relutaram até buscar Domingos Jorge Velho para o trabalho. O paulista, por sua vez, passa por uma cuidadosa construção de personalidade e a relação que ele desenvolve com outras pessoas tem uma interessante abordagem simbólica. Os indígenas são igualmente tratados com suas particularidades e interesses, sendo alvos, muitas vezes, da violência – em forma de coação, chantagem, sequestro e assassinato – por parte dos portugueses ou dos próprios bandeirantes, mas tendo autonomia das decisões dentro das limitações que lhes são impostas.

Certamente nós só temos acesso aos pensamentos dos personagens e à construção de suas personalidades devido à liberdade estética do autor. A opção pela ficção na construção de Angola Janga provavelmente se deu pela falta de elementos que completassem as histórias ocorridas nos diversos mocambos espalhados pela Serra da Barriga nos mais de cem anos de duração daquelas comunidades. As narrativas oficiais a respeito de Palmares foram feitas por meio de registros de pessoas que tentaram destruí-lo – relatos de holandeses, cartas das autoridades para a Coroa, recibos de bandeirantes, documentos de religiosos e de soldados, registros policiais, entre outros. Para inserir, portanto, os negros como protagonistas foi necessário recorrer à ficção na elaboração de diálogos, situações, condensação de personagens históricos, etc. O que não falta, contudo, são referências às obras consagradas sobre escravidão africana e a outras produções sobre Palmares e seus líderes.

Dessa forma, a opção pela história em quadrinhos torna-se um meio poderoso para tratar de assuntos sérios e espinhosos. A historiografia já conta com diversas opções de objeto dentro desse tipo de mídia que tratam de episódios da história do Brasil e tem se popularizado a ponto de serem discutidas em disciplinas de graduação e nos programas de pós-graduação. No caso específico de Angola Janga, as imagens não são meras ilustrações, mas também contam histórias numa conjugação de poesia e denúncia. Quadros bastante indigestos revelam a tortura, os estupros e os assassinatos, enquanto outros são de belíssimas referências com sutilezas metafóricas que realmente chamam a atenção.

D’Salete proporciona para o leitor alguns elementos que são muito caros no processo de valorização da cultura afro, tais como a oralidade e as tradições religiosas. São várias formas sutis que vão do título da obra – que possui origem banta e quimbunda – até termos próprios das tradições orais africanas, mostrando que a relação entre dominação e subalternidade também passa pela língua por puro preconceito sociorracial, e fazem parte de um conjunto imenso de dispositivos institucionais que agem em torno da inferiorização e manutenção das assimetrias branco x negro. Esses ‘detalhes’ fazem a diferença em uma sociedade marcada pela histórica dominação colonial/imperial, que padronizou corpos, instituiu o cabelo ideal, a forma correta de falar, o jeito certo se relacionar e de se vestir – universalizando o europeu – e que muitos negros, como defende Frantz Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas, buscam ‘embraquecer-se’ importando o modelo do colonizador.

A obra certamente destina-se para aqueles que desejam tomar conhecimento de uma versão afrocentrada do Quilombo dos Palmares, mas também para professores de graduação, sobretudo nas áreas da História Cultural, da Literatura e da Comunicação, como fonte de pesquisa. Outra possibilidade é o uso da obra na educação básica para trabalhar a cultura afro, a resistência africana, a colonização portuguesa entre outros assuntos. A leitura na íntegra é absolutamente possível entre jovens e adolescentes, tanto pelo interesse desse público nas histórias em quadrinhos, quanto pela leitura acessível e de fácil compreensão. É notório que já há algum tempo a história do Brasil está sendo contada por outras fontes que não os livros e nem a sala de aula – algumas bem mais poderosas como o cinema, a internet e as histórias em quadrinhos – e, por isso, é prudente que os professores não se furtem de tomar conhecimento delas.


Resenhista

Kássius Kennedy Clemente Batista – Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia, Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

D’SALETE, Marcelo. Angola Janga: uma história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017. Resenha de: BATISTA, Kássius Kennedy Clemente. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 31, n. 2, p. 305- 312, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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