Before Boas: The Genesis of Ethnography and Ethnology in the German Enlightment | Han F. Vermeulen

Before Boas é daqueles livros cuja leitura produz diferentes efeitos e reverberações, não apenas quanto ao material, cenários e interpretações propostas pelo autor, mas também pelos desafios e implicações teóricas e analíticas daquilo que é apresentado e na maneira pela qual se o faz.

Fruto de trabalho extenso de pesquisa, leitura e de acesso a materiais inéditos, esquecidos e/ou explorados de outra maneira, seu olhar permite ao mesmo tempo desdobrar e repensar um longo investimento mais recente em se investigar a gênese e os acúmulos de conhecimento produzidos pela antropologia e também os diferentes esforços interpretativos de sua história, desenvolvimento e movimentos, particularmente a partir de uma de suas versões mais aceitas, ou seja, do papel inovador e inaugural do antropólogo Franz Boas na condensação e consolidação de uma tradição de investigação germânica na constituição de uma nova disciplina chamada Antropologia.

Sendo um livro construído através de diferentes esforços de aprofundamento sobre trajetórias, contextos e eventos, dotado de uma narrativa detalhada ao longo de seus sete capítulos — além de um epílogo e conclusão que condensam a investigação e projetam novas possibilidades de conhecimento —, Before Boas possui aquelas marcas de artesania e cuidado intelectual que são fundamentais na constituição de um campo investigativo mais complexo, sem para isso deixar de reconhecer a informação acumulada ao longo dos anos por diferentes pesquisadores. Produz no leitor um ganho de conhecimento evidente e de maneira pedagógica através de sua atenção ao detalhe e a precisão no fazer acadêmico. Tal cuidado também sinalizará os limites da abordagem, conclusões e recortes propostos pelo autor.

Marcadamente, Han F. Vermeulen vai construindo aos poucos o fio narrativo de sua obra, embora partindo da premissa inicial de que

etnografia e etnologia originaram-se no iluminismo alemão muito antes destes estudos se constituírem em outras partes da Europa e América. (p. xiii)

Seus argumentos são baseados largamente em diferentes materiais e momentos históricos de vários países, que vão sendo gradualmente apresentados permitindo ao leitor remeter-se a uma riqueza de temas e enfoques que o autor considera relevantes para estudantes de

antropologia, etnografia, e etnologia; da história da Rússia e Alemanha modernas; da ciência e sociedade durante o iluminismo (p. xiii),

e que faz com que cada capítulo revele conteúdos que em si já são temas de tal profundidade investigativa que renderiam uma pesquisa especifica. Mas o autor aposta na riqueza das articulações teóricas e nos projetos de construção de conhecimento por diferentes atores, o que se torna uma das maiores qualidades analíticas da proposta por ele desenvolvida.

O livro de Vermeulen inicia com o capítulo “História e teoria da Antropologia e da Etnologia”, em que o autor recupera e destaca a importância e o crescimento das pesquisas sobre a história da disciplina. Realiza um balanço das diferentes formas de tratar a antropologia e sua história — indicando os mais de trinta anos de pesquisa que conduziu em diferentes arquivos, com auxilio de muitos pesquisadores em vários países — e, de alguma maneira, se condensa na ideia citada na epígrafe, de que quando não se tem história (pesquisa), os homens criam mitos.

O autor enfatiza a recuperação de origens, sociedades de pesquisa, pesquisadores que têm sido tomados e recontados como fundantes da disciplina antropológica. Entre as versões apresentadas, acaba se desenhando a ideia de que a antropologia moderna teria se desenhado por volta da década de 1860, tendo Inglaterra, Estados Unidos e França como lócus centrais. Neste sentido, Vermeulen recupera diferentes autores, descobertas, formulações, conceptualizações, permitindo perceber como algumas contribuições seminais antecipariam em séculos a formulação de práticas, métodos, conceitos e um tipo de curiosidade e entendimento pela diversidade humana que só mais tarde se constituirá sob o nome de antropologia.

Particularmente no primeiro capítulo, a análise da literatura acerca das relações entre antropologia e colonialismo mostrará como numa Rússia imperial se produziriam investigações, só possíveis em contextos coloniais, sobre povos e regiões. Esse encontro entre tradições acadêmicas e práticas coloniais em determinados cenários permitirá que a etnografia seja inventada por acadêmicos alemães na Rússia do século XVIII, se beneficiando a antropologia da exploração colonial russa da Sibéria (p. 28). Estas trocas acadêmicas favorecerão a constituição e difusão do conhecimento etnológico, mas este se fez em realidades históricas concretas, muitas delas diretamente constituídas através de empreendimentos coloniais. Afinal, a agenda colonial também consistia no inventário de populações. Conforme o autor,

[m]inha tese é que a antropologia não nasceu do colonialismo (como Gough e outros afirmam com base nos séculos XIX e XX) mas que se desenvolveu-se dentro deste contexto (p. 28)

Neste capítulo também se enuncia outro elemento central e recorrente da argumentação do autor: a importância de cunhar termos e conceitos para a formulação da disciplina

Descrição dos povos [VolkerBeschreibung] (1740), etnografia [ethnographia] (1767-75), Conhecimento dos povos [Volkerkunde] (1771-81), e etnologia [ethnologia] (1781-83) (p. 34)

no contexto alemão. Atenta assim o autor para a diversidade étnica e a preocupação com a linguagem, e reforça o argumento geral da antecipação em um século do surgimento da etnografia e da etnologia. Após esta entrada, que define as preocupações de Vermeulen, os três capítulos seguintes articulam seu projeto e conexões investigativas.

No Capitulo 2, “Teoria e prática: G. W. Leibniz e o avanço da ciência na Rússia”, o autor recupera o processo de construção dos saberes científicos, sua produção e redes de relações na Europa entre o final do século XVII e o início do século XVIII, exemplificando, especificando, a trajetória de Leibniz, de seu programa de pesquisa científica, seu encontro com o Czar Pedro, o Grande, e a constituição de preocupações cientificas na Rússia. É nesta conjuntura de encontros, trocas e a onstrução de uma demanda acadêmica que se produzirá o espaço onde a etnografia e a etnologia surgirão.

A ideia é indicar os antecedentes do período e de lugares pesquisados: as tensões, conflitos e rebeliões na conquista russa da Sibéria; as pretensões modernizadoras do império russo; a formulação de um programa de pesquisa inspirado nas concepções de Leibniz; a busca de sua execução através da fundação de instituições acadêmicas e a preocupação especifica com coleta, sistematização e disseminação de dados. Através da atuação de acadêmicos alemães em território russo se esboçarão os futuros desdobramentos que levariam à formação da etnografia e etnologia alemãs.

O terceiro capítulo procura explicitar as relações entre iluminismo e pietismo que produzirão as condições para a formação de cientistas que encaminhariam as pesquisas alemãs na Sibéria. Neste capítulo, Vermeulen também apresenta um expediente recorrente no livro, qual seja, a trajetória de um pesquisador — no caso D. G. Messerschimdt — e as primeiras explorações e expedições na Rússia. Destaca-se o quadro explicativo composto pelo autor, em que diferentes interesses convergem para coleta e investigação cientificas, especificamente como os objetivos formativos das escolas pietistas alemãs — centradas na construção, formação e aplicação de conhecimento — convergem na pesquisa sobre a região alvo de colonização do Império Russo. Essa correlação é exemplificada na trajetória e no legado de Messerschmidt, contratado para produzir estudos que permitiriam perceber o esboço das formas de investigação — relatórios, revistas científicas, listas, manuscritos, divulgação — em que a Sibéria é pensada como laboratório.

O Capítulo 4, “Etnografia e império: G. F. Müller e a descrição dos povos siberianos”, é central para os argumentos desenvolvidos por Vermeulen. Analisando detalhadamente a trajetória de Müller, seu programa de pesquisa, sua execução na segunda expedição a Kamchatka na Sibéria, os materiais coletados e produzidos por ele, o autor argumenta que nesta expedição não só se esboçou, mas se produziu a gênese da etnografia. Recupera o detalhamento, as técnicas, o esforço em produzir instruções e sintetizar dados etnográficos que marcariam a gênese da etnografia na Rússia do século XVIII. Apesar do trabalho de Müller permanecer até recentemente pouco conhecido — devido às tensões na Academia de Ciências Russa e uma circulação restrita da copiosa coleção de dados produzidos pela expedição — o cuidado em agregar informações de maneira extensiva e contínua constitui um marco na produção de conhecimento só recentemente recuperado e reconhecido.

Também é interessante o movimento de Vermeulen, ao pensar as relações entre antropologia e colonialismo, para fugir tanto de uma abordagem que não considera relevante pensar tais relações, por ser a antropologia uma disciplina com interesse cientifico, como a perspectiva de uma relação umbilical genérica entre os dois. Partindo do argumento de Talal Asad de que a estrutura de poder colonial tornou o objeto de estudo da antropologia acessível e seguro (p. 215), Vermeulen reconhece as relações específicas entre império e produção etnográfica na Rússia, ao mesmo tempo em que avalia que os dados produzidos pareciam de pouca serventia para a atuação cotidiana dos funcionários coloniais.

No quinto capítulo, denominado “Antropologia e o Oriente: C. Niebuhr e a expedição dinamarquesa alemã à Arábia”, Vermeulen analisa outras expedições para pensar elementos, contextos, objetivos e métodos que marcariam o período de constituição de uma nova ciência acadêmica. Recuperando a importância dos levantamentos, coletas e expedições que Linneu e seus discípulos empreenderam, bem como a busca por manuscritos bíblicos pela expedição à Arábia, organizada pelos pesquisadores da Universidade de Gottingen, o autor recupera circuitos, percursos, resultado e recepção das expedições, para mostrar programas de pesquisa e teorias que as informam. As semelhanças e diferenças entre as produções e trajetórias investigativas de Niebuhr e Müller são exploradas para destacar a preocupação de ambos em acumular materiais de uma pesquisa que, porém, é orientada por diferentes visões e sentidos – que o autor atribui, entre outros elementos, ao background acadêmico mais cartográfico de Niebuhr e mais historiográfico de Müller.

As descontinuidades de momentos, locais e perspectivas na constituição da disciplina ajudam a avançar a abordagem e o argumento de Han Vermeulen. No caso do Capítulo 6, “Do campo ao estudo: A. L. Schlözer e a invenção da etnologia”, o autor salienta a importância da figura central de August Ludwig Schlözer para que se construísse um olhar mais abrangente para a nova disciplina. A ideia é mostrar que pesquisadores como Leibniz, Linneu e Schlözer, em diferentes momentos, contribuíram para a produção de sínteses que ajudaram a constituição deste campo de conhecimento que será denominada etnologia muito antes de existirem as sociedades de etnologia nos Estados Unidos, França e Inglaterra. A preocupação de Schlözer com a linguagem, seu esforço para mapear e classificar línguas ajudará na criação da nomenclatura da disciplina, chamada de Volkerkunde (etnologia) em 1771. A criação deste campo de conhecimento vem junto à criação de revistas etnológicas, enciclopédias, dicionários, que investem na ideia de uma etnografia regional e ajudará a produzir uma etnologia geral, reforçando o juízo do autor sobre o surgimento de um discurso etnológico como fruto do trabalho pioneiro de pesquisadores alemães.

Esse argumento será aprofundado no oitavo capítulo, “Antropologia no Iluminismo alemão: abordagens plurais para a diversidade humana”, que faz um mapeamento dos diferentes usos e formulações conceituais da antropologia. As demandas e disputas por termos, classificações e definições do que é a antropologia reforçariam a ideia de uma diversidade de formulações, entre elas o debate sobre se haveria uma só raça humana ou raças humanas. O autor procura explorar os diferentes estudos antropológicos do Iluminismo alemão, percebendo que vários deles, concebidos como etnológicos, foram conduzidos no Sacro Império Romano e na Rússia imperial no século XVIII, ao mesmo tempo em que aponta para a disseminação mais geral do termo antropologia para qualificar este tipo de interesse científico. É importante o destaque que o autor dá para a abordagem de viés mais histórico e compreensivo da etnologia alemã, em comparação com a perspectiva mais biologizante, médica, que emergirá fortemente no século XIX. Perspectiva esta que se consolidará como a versão mais recorrente da origem da disciplina como vinculada ao evolucionismo do século XIX.

Vermeulen também estuda, neste último capítulo, a recepção da tradição etnográfica alemã em diversos países, como França, Estados Unidos, Inglaterra, Rússia e Holanda. Sua atenção centrará na disseminação de sociedades antropológicas e etnológicas, de museus etnográficos e de terminologias utilizadas. Neste sentido, Franz Boas teria um papel central para a institucionalização e divulgação da moderna antropologia. Em alguma medida a recuperação histórica reforça a ideia de que o surgimento da etnografia moderna se deu 275 anos atrás, na atuação de pesquisadores alemães na Sibéria.

O argumento sobre essa nova gênese para a etnografia é reforçado na conclusão. Os elementos tradicionalmente considerados para pensar a institucionalização da etnologia no século XIX — museus especializados, sociedades cientificas, revistas acadêmicas, professores e departamentos universitários — reforçam apenas versões consolidadas. O acesso ao material de pesquisa de Müller, recentemente publicado em alemão, permitiu que se tivesse conhecimento da execução de um programa de pesquisa com método sistemático e coleta extensiva. A anterioridade da etnografia como método e prática, calcada em técnicas de pesquisa inovadoras e uma perspectiva teórica muito distinta dos relatos de viagem à época é claramente demonstrada pela pesquisa de Vermeulen. Deste primeiro movimento se constituirá um segundo, que busca conceituar como etnologia essa nova forma de pensar — novos termos e linguagem — e a consequente criação e disseminação de conceitos, práticas e publicações, distintos dos encontrados em estudos bíblicos ou de moral e costumes.

A pesquisa de Han Vermeulen abre possibilidades de melhor compreender situações históricas e etnográficas pouco conhecidas e fundamentais para a formação da antropologia; a criação, uso e disseminação de termos, teorias e práticas antropológicos; e uma história da disciplina mais complexa, além da reflexão sobre as relações entre antropologia e colonialismo.

O argumento de Vermeulen permite historicizar e complexificar versões mitificadas do surgimento da antropologia, como sua origem na antiguidade ou derivada das teorias evolucionistas. Esse mesmo rigor nos faz seguir seu argumento e nos faz perceber a complexidade de relações, redes e a constituição de uma nova disciplina; e também nos permite pensar em algumas questões que a abordagem suscita. Sua preocupação em colocar a gênese da etnografia na atuação de pesquisadores alemães no império russo permite-nos perguntar até que ponto a busca por uma gênese seria um elemento realmente significativo e/ ou catalizador de uma disciplina.

O longo percurso para que etnografia, etnologia e antropologia se tornassem termos e práticas singulares, regulares e disseminadas nos faz pensar até que ponto um surgimento específico é central para a compreensão histórica. Enquanto a gênese de certos termos remonta a seus primeiros usos, a variedade de sentidos só indica processos e debates muito mais extensos e variados, como o próprio autor aponta. Em alguma medida, se os dados, a proposta analítica e os debates teóricos recuperados e utilizados tornam plausível perceber as antecipações geradas em conjunturas e períodos pouco explorados, a ideia de um fiat lux, de uma gênese pensada como acontecendo um século antes, também nos faz perguntar até que ponto um momento, um evento ou um termo pela primeira vez anunciado são cruciais para o entendimento dos processos.

Em alguma medida, elencar um novo momento crucial apenas desloca e posterga uma visão menos romantizada e heroica da construção dos saberes científicos. Como o trabalho de Vermeulen explora bastante, as experimentações, disputas e desdobramentos são processos complexos que levam tempo para serem absorvidos, ganham sentidos distintos e, muitas vezes, a pouca circulação ou as disputas acadêmicas e/ou políticas postergam consolidações e aprofundamentos de abordagens inovadoras para as narrativas da história da antropologia. Sendo assim, mesmo se contrapondo a versões pouco complexas da história da disciplina, a preocupação em marcar uma gênese ou a primeira menção de certos termos, muito mais do que indicar a originalidade ou a curiosidade por algum evento ou momento, atrela o autor a uma perspectiva de descoberta como elemento central para a antropologia.

Este mesmo movimento que o trabalho de Vermeulen sinaliza — a compreensão mais aprofundada, complexa e histórica dos fenômenos pesquisados — também produz outro estranhamento e, particularmente, uma ausência acerca dos empreendimentos investigativos e coloniais anteriores à expansão russa sobre a Sibéria. O período inicial da expansão europeia pelo globo gerou práticas e teorias que não só refletiam concepções e práticas medievais de conhecer e colonizar, mas, em grande medida, gerou as condições para que os acadêmicos alemães produzissem e experimentassem novas práticas investigativas e teóricas no século XVIII. Especificamente, a formação do império português — em muitos momentos com práticas e formulações nem sempre idênticas ao império espanhol — torna a perspectiva do compartilhamento de práticas e técnicas investigativas muito mais complexas, agregando ao que o excelente trabalho de Vermeulen nos apresenta. Imagino que explorar essas conexões possa ser um desafio para novas pesquisas que Before Boas tão habilmente nos estimula a continuar.


Resenhista

José Gabriel Silveira Corrêa – Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

VERMEULEN, Han F. Before Boas: The Genesis of Ethnography and Ethnology in the German Enlightment. Lincoln e Londres: University of Nebraska Press, 2015. Resenha de: CORRÊA, José Gabriel Silveira. Surgimento antecipado: práticas e pesquisas etnográficas e etnológicas no iluminismo alemão. Afro-Ásia, n. 58, p. 269-275, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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