Black Feminisms Reimagined: After Intersectionality | Jennifer C. Nash

Black Feminisms Reimagined, o segundo e mais novo livro de Jennifer C. Nash, crítica cultural e professora de estudos afro-americanos, de sexualidade e gênero, analisa a complexa história institucional e intelectual do feminismo negro, na era do que ela chama de “guerras de interseccionalidade”, e propõe um armistício entre departamentos de estudo de gênero e o feminismo negro através da teoria do afeto. Nash leciona na Universidade Northwestern em Evanston, Illinois, nos Estados Unidos, e é doutora em Estudos Afro-Americanos pela universidade de Harvard. Seu primeiro livro, The Black Body in Ecstasy: Reading Race, Reading Pornography, publicado em 2014, analisa representações visuais do corpo de mulheres negras em um espaço que ela define como “lugar de desconforto” para o feminismo negro: a pornografia racializada. Nesse livro, ela questiona os limites das interpretações vigentes no engajamento teórico do feminismo negro com as representações visuais sexualizadas. Sendo assim, ambos os estudos de Nash procuram investigar os limites teóricos, ou zonas de desconforto, dentro do feminismo negro.

Nash afirma que Black Feminisms Reimagined, estudo institucional do que se passa na academia estadunidense, foi inspirado pelo relacionamento contencioso entre departamentos de Estudos de Gênero e ativistas do feminismo negro, disputa essa que teve início quando o conceito de interseccionalidade se tornou central em discussões sobre gênero dentro e fora da academia. Nash argumenta que, com a popularização do conceito e seu consequente esvaziamento semântico, feministas negras se posicionaram como protetoras da teoria interseccional. As feministas negras, ela argumenta, passaram, assim, a ocupar uma “posição defensiva” dentro das universidades estadunidenses, tentando preservar o vínculo entre interseccionalidade e feminismo negro. Elas se tornaram, portanto, guardiãs do significado político e teórico de estudos interseccionais e passaram a considerar a teoria interseccional como “um território que precisa ser preservado e protegido através da vigilância de feministas negras” (p. 3). Nash identifica essa posição defensiva como uma barreira à produção acadêmica. Como resposta a uma posição defensiva, que ela identifica como “a afetividade de contenção [the affect of holding on]”, Nash propõe um relacionamento entre teóricas do feminismo negro e suas práticas interseccionais que libertem as pesquisadoras de suas posições defensivas — o que Nash considera um obstáculo às “capacidades visionárias de recriação do mundo” por parte do feminismo negro. Nash postula que o “projeto maior de seu livro é encorajar uma “ética do desapego [an ethic of letting go]” e romper com as afirmações de territorialidade e defesa que “passaram a animar a prática acadêmica do feminismo negro” (p. 73). Ela afirma que, ao propor a “posição defensiva” como uma parte integral da estrutura afetiva do feminismo negro, seu livro produz uma definição das partes constituintes dessa variante do feminismo, definindo-o como “um projeto múltiplo, com dimensões teóricas, políticas, militantes, intelectuais, eróticas, éticas e criativas” (p. 5). Nash crê que ao se desvencilhar de suas posições defensivas, as feministas negras passarão a produzir um entendimento mais expansivo e criador da teoria interseccional.

A autora sugere que programas de estudos de gênero nos Estados Unidos se encontram em um estado de “guerra pela interseccionalidade”, que ela descreve em comparação com as guerras sexuais feministas das décadas de 1970 e 80, nas quais acadêmicas feministas se dividiram por causa de questões em torno do prazer sexual e seus perigos para o movimento. A guerra de interseccionalidade proposta por Nash não debate a cultura sexual (e sua censura), mas contempla a seguinte questão: “serão as feministas negras capazes de ‘salvar’ o chamado feminismo branco através de sua insistência sobre o papel da teoria interseccional como instrumento analítico que livrará o feminismo de seu passado e presente excludentes?” (p. 37). Nash embasa seu estudo sobre a era das guerras de interseccionalidade na teoria do afeto, com atenção particular ao conceito de cuidado da outra, e propõe uma prática acadêmica baseada na “leitura fiel [faithful reading]” como forma de amenizar as tensões entre departamentos de estudo de gênero e feministas negras.

Nash observa que estudos sobre o afeto, que levam em consideração as experiências sentidas, historicamente ignoram questões de raça. Ela declara então sua intenção de complicar a genealogia de teorias do afeto que minimizam ou negligenciam o trabalho afetivo produzido através do feminismo negro. Ela cita Ann Cvetkovich – uma das mais importantes pesquisadoras da teoria do afeto dentro da disciplina de estudos de gênero e sexualidade nos Estados Unidos – como uma das pesquisadores que têm ignorado as mulheres negras na discussão sobre o afeto. Para Nash, entender teoria do afeto através do feminismo negro abre novos caminhos para perceber conceitos como “‘sobrevivência’, ‘perda’, ‘dor’, ‘espírito’, ‘luto’, e ‘desejo’”. Ela baseia sua visão de uma teoria afetiva feminista e negra no trabalho de Ann duCille, que, centrada na vida dos sentimentos da mulher negra, afirma que “há tanto interesse em mulheres negras [no mundo acadêmico] hoje que eu comecei a pensar em mim como um tipo de texto sagrado”.1 Nash observa que o corpo das mulheres negras é, paradoxalmente, “um texto sagrado” enquanto objeto de estudo, como afirma duCille, e um corpo negligenciado pelo mundo acadêmico estadunidense. Nash conecta o conceito de “cuidado”, central à teoria do afeto, com o autocuidado prevalente no discurso do feminismo negro. De acordo com ela, a retórica do autocuidado tem se tornado parte das estratégias de sobrevivência negra. Ela afirma que propor uma estratégia de autocuidado, no contexto da mortalidade negra, “significa fazer um poderoso apelo político” (p. 60). A solução proposta por Nash para essa disputa entre feministas negras e acadêmicas da área de gênero é a prática de uma “leitura fiel”, na qual se exercita o “cuidado” como método de leitura, se comprometendo a um “relacionamento íntimo entre leitoras e os fundamentos analíticos do texto lido” (p. 59).

No capítulo um, “Carta de amor de uma crítica”, Nash explora as possibilidades de um relacionamento baseado no afeto entre “nós–feministas negras” e os críticos da teoria interseccional. Nash sugere que feministas negras considerem suas críticas como “figuras que escrevem com amor”, como uma forma de promover o potencial de criação de mundo pelo feminismo negro. Neste capítulo, a autora demonstra preocupação particular com a fusão [slippage] indevida entre interseccionalidade, feminismo negro e os corpos de mulheres negras que ocorre com frequência no mundo acadêmico. Nash descreve essas (con)fusões como momentos em que conceitos distintos – interseccionalidade como teoria, o feminismo negro como disciplina acadêmica e mulheres negras como indivíduos – se confundem e indiferenciam. De acordo com ela, essas confusões interrompem discussões sobre os limites e as possibilidades da interseccionalidade, já que criticar a teoria interseccional se torna sinônimo de combater o estudo do feminismo negro e atacar os corpos de mulheres negras simbolicamente. Essa fusão indevida se torna mais grave para aqueles que acreditam que “a crítica é uma prática violenta”, uma opinião que Nash contesta. No contexto desta crença, qualquer crítica contra a interseccionalidade implica um ato de violência contra o feminismo negro e contra os corpos de mulheres negras. Nash observa que a linguagem usada para descrever críticas à interseccionalidade é frequentemente a linguagem da violência: “apagando, mercantilizando, colonizando…” (p. 38). Neste sentido, universidades nos Estados Unidos em geral e departamentos de estudos de gênero, em particular, se tornaram arenas de disputas maniqueístas pelo significado e potencial criador da interseccionalidade como instrumento analítico. Nesta batalha intelectual, “feministas negras” se tornam as guardiãs defensoras e suas “críticas” se tornam as destruidoras.

Nash reconhece que muitos acadêmicos levantam questões importantes sobre a interseccionalidade e seus limites, mas lamenta que a crítica violenta prevaleça na academia estadunidense. De acordo com ela, práticas institucionais e a pressão para publicar recompensam a discórdia ao invés de discussões criativas. O resultado desse ambiente de guerra é a “posição defensiva” de feministas negras. Nash observa que ela própria ocupa ambas as posições, como “uma acadêmica dedicada a produzir uma teoria robusta a partir do feminismo negro” e “uma acadêmica cujo nome é incluído na lista de ‘críticos’ com frequência”. Sua reivindicação, portanto, é por uma relação mais produtiva entre essas duas posições, ao invés de uma guerra sem fim pelo futuro da interseccionalidade. Para Nash, o papel dos críticos da teoria interseccional é de propor novas direções e “outros modos de ser e sentir o feminismo negro” (p. 57), para além de simplesmente anunciar o conceito como ultrapassado.

Nos capítulos dois e quatro de seu livro, “A Política da leitura” e “Amor nos tempos da morte”, Nash conversa com o conceito de “trabalho de vigília [wake work]” que Christina Sharpe desenvolve, sobretudo, em relação ao conceito de cuidado.2 De acordo com Sharpe, o conceito de trabalho de vigília proporciona uma forma de pensar cuidado como um instrumento que gera significado para “o não/ser do negro no mundo [Black non/being in the world]”. O conceito de trabalho de vigília é, portanto, ontológico, e Sharpe entende teorias do afeto – como a questão do cuidado – como parte vital da ontologia negra. Nash observa que o cuidado, entendido como parte do trabalho de vigília, é particularmente relevante para a elaboração de estratégias de resistência à “violência de gênero contra pessoas negras” (p. 80). Ela alerta, entretanto, que “cuidado, amor e afeto” podem servir para “mascarar uma possessividade perniciosa” e uma resistência ao desapego [letting go] que impede a evolução da interseccionalidade “de maneiras inesperadas e talvez desafiadoras” (p. 180). Nash também dialoga com a teoria do “trabalho de vigília” de Sharpe na elaboração do conceito de “políticas de amor do feminismo negro [black feminist love-politics]”, que ela constrói através de dois compromissos centrais: “vulnerabilidade mútua”, uma estratégia para dependência e sobrevivência mútuas, e “testemunho [witnessing]”, a estratégia de nomear as violências cotidianas perpetradas contra mulheres negras. Testemunhar, de acordo com Nash, se baseia no conceito de “trabalho de vigília” como parte da relação do feminismo negro com a sobrevivência.

Apesar – ou talvez por causa – do engajamento de Nash com o afropessimismo e com a teoria do não/ser negro elaborada por Sharpe, “Amor nos tempos da morte”, o quarto e último capítulo do livro, conclui com um apelo por um feminismo negro “sustentado pelo amor ao invés da territorialidade e a possessividade” (p. 130). Para Nash, a estratégia de se desapegar da teoria interseccional cria um caminho arriscado para o desenvolvimento do seu potencial como ferramenta analítica. Mas o risco compensa, já que Nash apresenta o desapego como o único caminho para a evolução da teoria interseccional, capaz de gerar novas possibilidades para o feminismo negro, para além da territorialidade. Em última análise, Nash propõe uma teoria interseccional mais diversa e dinâmica através da teoria do afeto.


Notas

1 Ann duCille, Skin Trade, Cambridge: Harvard University Press, 1996, pp. 81-82.

2 Christina Elizabeth Sharpe, In the Wake: On Blackness and Being, Durham: Duke University Press, 2016.


Resenhista

Diana Silveira Leite – The University of Texas at Austin. https://orcid.org/0000-0001-9988-5539


Referências desta Resenha

NASH, Jennifer C. Black Feminisms Reimagined: After Intersectionality. Durham: Duke University Press, 2019. Resenha de: LEITE, Diana Silveira. Reimaginando pelo afeto o feminismo negro na era da interseccionalidade. Afro-Ásia, n. 61, p. 462-467, 2020. Acessar publicação original [DR/JF]

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