Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras | Kim Butler

É mais que oportuna a publicação, no Brasil, do livro Diásporas imaginadas. O texto é resultado de uma profícua colaboração entre a historiadora norte-americana Kim Butler e o historiador brasileiro Petrônio Domingues. Ambos uniram seus esforços para apresentar um estudo que envereda por questões epistemológicas relacionadas aos estudos da diáspora e avançam na investigação de experiências da diáspora africana, mais especificamente da diáspora afro-atlântica, ao longo do século XX. Butler, que há mais de três décadas se dedica aos estudos da diáspora e investiga experiências brasileiras, recebeu Domingues no Department of Africana Studies, na Universidade de Rutgers, Nova Jersey (Estados Unidos), por ocasião de seu pós-doutoramento. Naquela oportunidade, Domingues, docente na Universidade Federal de Sergipe, cuja trajetória é igualmente longa nos estudos acerca da mobilização negra no Brasil, pôde investir na abordagem transnacional, introduzindo novas nuances à sua pesquisa.

Quando a colaboração que resultou neste livro foi iniciada, há quase dez anos, Butler presidia a Associação Mundial de Estudos da Diáspora Africana, sediada em Nova York. No Brasil, o debate fervilhava em torno da pertinência, ou não, da política de ações afirmativas para reserva de vagas no ensino superior. Entre aqueles que advogavam contra as cotas para negros na universidade, era recorrente a citação de que políticas implementadas no contexto norte-americano eram impertinentes para o contexto brasileiro. De modo que uma leitura que distanciava radicalmente a história e as demandas de comunidades afro-americanas das comunidades afro-brasileiras era mobilizada para invalidar a necessidade de políticas de ações afirmativas no Brasil. Mas, de fato, o que a sociedade brasileira sabia sobre as ações afirmativas norte-americanas? E como se podia garantir, com tanta facilidade, que não havia paralelos e diálogos historicamente construídos entre comunidades e movimentos sociais negros nos dois países que foram os maiores escravistas das Américas e hoje conformam as duas maiores comunidades negras fora do continente africano?

Diásporas imaginadas pretende contribuir para a reflexão e o debate no Brasil acerca de políticas específicas para comunidades negras, já que seu escopo abarca dinâmicas da diáspora africana da era moderna cujo maior fluxo se deveu ao tráfico transatlântico de escravizados. Na diáspora afro-atlântica, estabelecida nas Américas e no Caribe, comunidades negras descendentes de escravizados coexistem com outras comunidades de africanos e africanas que migraram mais recentemente, a “Nova Diáspora Africana”. Ao longo do livro, histórias de comunidades afro-brasileiras são analisadas – considerando o racismo e a supremacia branca estrutural como chave –, revelando como elas se mobilizaram transnacionalmente para a construção de solidariedades, lutas antirracistas, projetos de cidadania e mudanças locais.

O livro reúne nove capítulos, outrora publicados como artigos independentes, acrescido de uma apresentação e rápidas considerações finais. Butler assina os quatro primeiros capítulos e Domingues os cinco capítulos finais. Na primeira parte do livro, nos três capítulos iniciais, Kim Butler argumenta, dialogando com ampla e variada bibliografia, acerca de sua proposição para os estudos da diáspora. Seu objetivo é:

explorar a noção de diáspora, mapeando os significados, dilemas e potencialidades desse aporte analítico-conceitual para os estudos de diferentes contextos culturais marcados por deslocamentos dentro e entre fronteiras, reterritorializações, cruzamentos, zonas de contatos, fragmentação e reconstrução de identidades individuais e coletivas em sua interação glocal (local e global) (p. xviii).

No primeiro capítulo, a historiadora analisa definições da diáspora tradicionalmente mobilizadas na academia. À medida que mais comunidades no mundo se afirmam como diaspóricas, emergem questionamentos sobre quais as especificidades desse tipo de comunidade e como abordá-las. Conforme argumenta, as definições e abordagens recorrentemente utilizadas não dão conta da complexidade verificada nas diásporas contemporâneas. Nestas novas dinâmicas, a autora aponta, de modo geral, para questões que vão desde a facilidade de comunicações na era digital, que altera a dinâmica entre terra de origem e terra de destino, à diáspora queer, que desorganiza a centralidade do conceito de terra de origem para a constituição de uma diáspora.

O termo diáspora, cuja definição básica “é a dispersão de pessoas de sua terra de origem”, quando aplicado às Ciências Humanas, incorpora uma heteronormatividade implícita e privilegia as pessoas que viajam, desconsiderando “muitos outros tipos de atores e interações” (p. 5). Butler propõe que haja uma revisão de como temos lidado com os estudos da diáspora, desde essa concepção mais básica, até os estudos que vêm sendo realizados mais recentemente e abordam os estudos da diáspora a partir de casos isolados. Buscando compreender como determinadas comunidades definem suas diásporas de modo específico, a exemplo da judaica ou africana, corre-se o risco de essencializar essas experiências. E se a definição de diáspora continuar mudando conforme cada novo grupo adota o termo, torna-se ainda mais difícil a construção de uma categoria de análise útil para as mais diversas experiências. Tanto em relação a comunidades bastante estudadas quanto em relação às novas diásporas. Muitas são as questões colocadas por Butler que não podem ser respondidas por essas abordagens etnográficas. Eis algumas delas:

Como essas novas diásporas se cruzam com seus países de destino, com sua terra de origem, suas distantes relações com outras partes do mundo ou com as gerações mais antigas de migrações anteriores de sua terra natal? Como a existência das diásporas afeta a política das nações? Estas nações se aproximam dos antigos patrícios, que agora vivem em países mais ricos, em busca de ajuda financeira, ou lhes permite o direito de votar nos assuntos internos? As populações minoritárias podem alavancar a posição de suas nações ancestrais para se posicionarem de forma mais favorável nos negócios? (pp. 2-3).

O destacado número e a diversidade das comunidades que se afirmam como diásporas a partir de diferentes bases de identidade, quer religiosa, nacional, regional ou transnacional, com potencial cada vez maior para influenciar a política das nações e mobilizar apoio internacional, não podem ter sua complexidade alcançada se estudadas isoladamente. Para transcender histórias específicas, estudiosos comparatistas destacaram quatro características compartilhadas por todas as diásporas: dispersão por vários locais; relacionamento com a terra de origem; identidade coletiva; existência ao longo de múltiplas gerações (pp. 8-9). Contudo, para Butler, é necessário complicar esses pontos comuns, resultado de análises etnográficas, uma vez que eles não contemplam a complexidade das identidades simultâneas e as diferentes fases da “diasporização” ao longo do tempo, focando na observação do grupo em vez de focar nos processos sociais dinâmicos (p. 11).

Com o objetivo de contribuir para uma epistemologia dos estudos da diáspora e a construção de “um instrumental com o qual comparar uma diáspora à outra” (p. 10), a autora elege a diáspora africana para explorar suas complexidades a partir de uma abordagem transnacional comparativa que considere o movimento dinâmico entre espaços, refletindo “a fluidez das identidades pessoais e das comunidades sociais” (p. 11). Para tanto, destaca quatro processos gerais comuns a todas a diásporas, pontos de partida para a comparação entre todas elas que podem suscitar múltiplas questões e permitir investigar a dinâmica das diásporas antes de determinar, previamente, como cada ponto deve se encaixar nas considerações tradicionais: a principal dispersão, causas, condições e narrativas; relacionamento com a terra de origem; relacionamento com a terra de destino; inter-relações no interior das comunidades da diáspora (p. 13).

A autora destaca o último ponto como essencial para a análise, já que é crucial para forjar a consciência da diáspora, suas instituições e redes (p. 23), e ressalta a necessidade de situar as diásporas historicamente. Entre os desafios para estabelecer uma epistemologia focada na singularidade da diáspora, observa os desafios metodológicos para recuperar experiências que não estão escritas, que exigem múltiplas abordagens e disciplinas, sem deixar de atentar que as identidades que emergem nas diásporas são transnacionais, proporcionam uma base alternativa de poder e propõem uma identidade alternativa à do Estado-nação.

Ao investigar “A migração do termo da experiência judaica para a africana e a sua utilização universal”, no segundo capítulo, Butler começa citando diversos diálogos e intercâmbios entre diferentes comunidades da diáspora africana desde a virada do século XX, incluindo tentativas de alianças entre ativistas negros nos Estados Unidos e no Brasil que serão melhor discutidas nos capítulos posteriores. À medida que a política e a tecnologia avançavam, com um número maior de pessoas libertas da escravidão e com a circulação de jornais, avançava também a internacionalização do pensamento e da ação política da diáspora africana. A abolição da escravidão foi fundamental para o mundo afro-atlântico funcionar como diáspora. Contudo, a utilização do termo diáspora na academia para se referir à experiência africana aconteceria somente a partir dos anos 1960.

A experiência judaica e sua íntima associação à ideia de diáspora tornou-a um parâmetro para observar qualquer outra vivência diaspórica. Sua compreensão contribuiu para o avanço nos estudos da diáspora africana, mas também resultou em limitações, já que para uma comunidade ser considerada “diáspora” tinha que compartilhar de especificidades da experiência judaica. “Uma miríade de maneiras pelas quais a diáspora pode ser vivida é uma característica essencial do próprio fenômeno que está em perigo de ser silenciado pelo privilégio do arquétipo” (p. 43).

A partir da década de 1960, mas sobretudo a partir dos anos 1980, quando intelectuais africanos, norte- -americanos, caribenhos e europeus começaram a utilizar o termo diáspora africana, eles não estavam buscando copiar a experiência judaica mas buscando uma narrativa fundamental que fosse a base de toda e qualquer diáspora. Muito antes disso, as comunidades afro-atlânticas já tinham ciência das narrativas bíblicas, criando paralelos entre a experiência judaica e a africana, se identificando enquanto metáfora com o cativeiro na Babilônia ou no Egito, ou pregando o retorno à África como terra de origem, conforme fez Marcus Garvey no início do século XX. Contudo, para Butler, diante das sucessivas independências africanas nos anos 1960 e a necessidade de governar as novas nações, o conceito de diáspora evoluiu do pan-africanismo e passou a ser utilizado para acomodar as diversas práticas dos Estados africanos buscando seu fortalecimento. Os novos Estados, liderados por negros, “exigiam uma compreensão diferenciada da diáspora que refletisse com precisão seus múltiplos contornos” (p. 41). Ou seja, o conceito tem aplicações práticas e políticas. Com a utilização do conceito de diáspora nos estudos africanos, criou-se uma distinção entre diáspora enquanto ativismo pan-africanista e enquanto ferramenta para abordar a comunidade africana ou afrodescendente fora da África. Esses estudos servem para fundamentar estratégias políticas, embora nem sempre contribuam para a solidariedade.

Muitas são as questões de pesquisa que emergiram com os estudos da diáspora. Estes contribuíram para mapear o mundo africano, com análises de diásporas dentro e fora do continente, com mapeamentos da origem e rotas percorridas por escravizados e migrantes. Assim, “os estudos políticos e culturais comparativos entre comunidades da diáspora têm sido centrais no estudo da diáspora africana” (p. 55). Esses estudos abriram novas possibilidades de colaboração entre a agenda acadêmica e a agenda pan-africanista, permitindo compreender as forças internas e externas às comunidades diaspóricas, simultaneamente. Uma das propostas é que diáspora africana é uma metadiáspora, ou seja, uma diáspora maior composta de outras menores mas inter-relacionadas (p. 56). Os estudos da diáspora africana, ao lidarem com diversos níveis de complexidade – como os mitos da história africana, a invisibilidade das experiências afro-atlânticas, as diferentes periodizações, a luta contra o racismo e os termos de pertencimento –, ajudaram “a refinar abordagens dos estudos comparativos” (p. 59), exigindo metodologias capazes de perceber as nuances. Ao focar nos processos sociais que moldam as diásporas, será possível caminhar para questões que iluminem o fenômeno como um todo.

Se a “diversidade da diáspora” é uma das características que se sobressaem na experiência africana, no terceiro capítulo Butler objetiva discutir como funciona sua prática política contemporânea. “O que liga essa diáspora” (p. 64), apesar das flagrantes “diferenças entre experiências de povos negros em diferentes localizações” (p. 65)? Para investigar a prática da mobilização política na diáspora, a autora avança na análise da “Nova Diáspora Africana”, resultado dos novos movimentos de pessoas de países africanos para Europa, Ásia e Américas, motivadas por questões as mais diversas, desde migrações intelectuais a refúgio em decorrência de guerras. Dessas experiências contemporâneas, a autora destaca a capacidade de mobilização de redes não estatais para a construção de políticas de colaboração e solidariedade. Anova diáspora difere fundamentalmente da diáspora que resultou do tráfico e da escravidão. Ela pode se articular para interferir no continente africano ou em Estados específicos de origem, a exemplo da intervenção da diáspora no regime do Apartheid na África do Sul. Estados e nações também podem estabelecer relações com suas diásporas, a exemplo de Gana, que promove um turismo cultural e identitário dirigido a membros da diáspora africana, sobretudo nos Estados Unidos. A União Africana já reconheceu a contribuição da diáspora na política africana continental. Mas “embora os africanos estejam claramente trabalhando juntos na diáspora, essas colaborações podem ser mais corretamente entendidas como coalizões de várias comunidades da diáspora” (p. 77).

Butler toma como estudo de caso a cidade de Nova York para exemplificar a interação entre diferentes comunidades da diáspora africana. Se o estado de Nova York registra a maior comunidade negra dos Estados Unidos, sua concentração está na cidade de Nova York, que recebe diferentes grupos de migrantes africanos ou afrodescendentes desde sua fundação no século XVII e tendem, historicamente, a se concentrar nos mesmos bairros “negros”. Embora todos sejam reconhecidos como afro-americanos, há uma pluralidade de comunidades, como caribenhos, guineanos, “africanos”, que sustentam diferentes identidades étnicas. Os imigrantes mais recentes podem contar com redes transnacionais que não dependem dos caminhos nacionais, mesmo que tenham de criar estratégias para o enfrentamento do racismo.

No intuito de avançar nas convergências e divergências dos diferentes membros da diáspora, Butler analisa a mobilização em torno de um assassinato. Em 1999, um policial matou a tiros o jovem guineense Amadou Diallo, que estava desarmado. O fato evidenciou o racismo por trás da ação policial e mobilizou diferentes segmentos da diáspora africana nos Estados Unidos, especialmente uma rede de ativistas de direitos civis, resultando numa investigação pelo Escritório da Procuradoria Geral de Nova York, que levantou dados sobre a disparidade na proporção de negros e hispânicos em relação aos brancos, entre os detidos pela polícia. Isso não levou a um arrefecimento das abordagens racistas da polícia norte- -americana, que sistematicamente resultam no assassinato de homens negros, de modo que, nos anos seguintes, após outros casos repercutidos pelas novas mídias, surgiu o movimento Black Lives Matter.

Butler ressalta que, “independentemente das identidades étnicas assumida por indivíduos, as percepções de raça impunham aos negros um fardo compartilhado e uma causa comum” (p. 82). Destaca ainda que essa solidariedade não é inerente, mas pode ser despertada, sobretudo em situações de crise. Se noutras experiências de diáspora o lugar de origem é mais importante, na diáspora afro-atlântica o racismo antinegro é sua razão política. Para que essas diferentes comunidades interajam, é necessário pensar a diáspora como projeto político. A recente afirmação da ascendência africana dos indianos, os siddis, é um exemplo desse potencial.

A partir do quarto capítulo, “Diásporas imaginadas”, Butler e Domingues investem na diáspora afro-atlântica em perspectiva transnacional, sobretudo nas histórias afro-brasileiras, buscando evidenciar como, ao longo de todo o século XX, houve diálogo, trocas e influências mútuas, solidariedades, leituras e traduções, entre experiências negras no Brasil e noutros países da diáspora africana, refutando a afirmação de que as identidades negras no Brasil seriam uma mera cópia da norte-americana.

A construção de identidades negras no Brasil resulta de “diálogos diaspóricos” não apenas com os Estados Unidos, mas também com o continente africano, é o que Butler evidencia no quarto capítulo, ao analisar o carnaval da cidade de Salvador, no Brasil. Os clubes negros, ou seja, diferentes agremiações e grupos carnavalescos organizados por afro-brasileiros são objeto da análise da historiadora. No período do pós-abolição, quando vigoravam no Brasil as teorias raciais que previam a extinção da presença africana no Brasil, emergiram diversos grupos que traziam nos nomes e nas indumentárias “a fantasia da África”. À época acreditava-se que eram resultado apenas de memórias dos africanos, mas a autora demonstra como os temas, músicas e performances de alguns desses grupos, especialmente a Embaixada Africana e os Pândegos da África, estavam conectados com discussões contemporâneas no continente africano, a exemplo de suas realezas e a ocupação colonial. Décadas depois, nos anos 1970, emergiram os blocos afro, na esteira do Ilê Aiyê, o primeiro, nos quais a África novamente figura como a chave para as alegorias carnavalescas, fruto do compartilhamento entre seus membros de informações a respeito do continente africano e suas lutas pela independência, além de manifestações da diáspora negra, a exemplo do reggae jamaicano e do movimento Black Power nos Estados Unidos.

Butler utiliza o conceito de internacionalismo diaspórico para enfatizar a circulação transnacional de ideias, tecnologias e recursos, mais do que somente a circulação de pessoas, e demonstrar como a diáspora afro-atlântica, conectando diferentes comunidades negras, se tornou uma realidade. “Os clubes mobilizaram suas conexões com uma comunidade negra global que oferecia caminhos alternativos de pertença e valorização, além de recursos espirituais e materiais, para redefinir os contornos da cidadania negra baiana” (p. 107).

A autora destaca a aproximação cada vez maior entre ativistas e blocos afro, especialmente no papel educativo alternativo que os últimos oferecem e era uma das preocupações centrais do movimento negro. Em se tratando do trabalho educativo ou da valorização de práticas estéticas, a atuação das mulheres negras é destacada por Butler no final deste capítulo. Seu esforço é visibilizar a articulação de mulheres negras – e cita uma dezena delas – cujo trabalho contribuiu para redefinir cultura e política na diáspora negra.

A partir do quinto capítulo adentramos nos escritos produzidos por Petrônio Domingues, cujos esforços concentram-se em analisar diferentes experiências da diáspora africana no Brasil, com recorte cronológico entre anos 1920 até 1990. Utilizando-se da abordagem transatlântica, o autor enfatiza a circulação de pessoas e ideias no interior de outras comunidades do Atlântico negro. Domingues demonstra que ativistas, artistas, jornalistas, intelectuais estavam em diálogo com ideias que circulavam nos países do Atlântico negro e que impactaram de diferentes maneiras a agenda política negra no Brasil. Muito longe de uma recepção passiva do pensamento gerado em outros países, sobretudo dos Estados Unidos, o autor evidencia a articulação dos afro- -brasileiros ao “selecionar, rearticular, e ressignificar as ideias ‘estrangeiras’, incorporando-as aos seus projetos originais de atuação e emancipação no âmbito nacional” (p. xviii). E, mais ainda, como nessas trocas as propostas políticas dos afro-brasileiros também vão dialogar com experiências de outros países, evidenciando o papel ativo do Brasil na formação intelectual do Atlântico negro.

No quinto capítulo são abordados aspectos da biografia e da agenda política do “Moisés dos pretos”, Marcus Garvey, e sua repercussão na imprensa brasileira dos anos 1920. As ações do jamaicano, que fundou a UNIA,1 uma organização dedicada às lutas pelos direitos civis dos negros nas Américas e na África, apresentada pelo slogan “África para os africanos de casa ou no exterior”, e chegou a ter um milhão de afiliados em quarenta países, não passaram despercebidas da imprensa brasileira. O capítulo apresenta aspectos da marcante trajetória de Garvey, que além dos Estados Unidos circulou por países do Caribe, Inglaterra e Canadá, e o caráter transnacional da UNIA, cuja mensagem de solidariedade ao mundo afro-atlântico, em tom carismático e profético, circulou através do jornal The Negro World.

No Brasil, as ideias de Garvey foram abordadas de diferentes maneiras. Jornais que circulavam em larga escala no Rio de Janeiro e São Paulo deram pouco destaque, definindo-o como utópico, exótico e até embusteiro. Jornais da imprensa negra demonstraram seu apreço a Garvey, celebrando-o e envidando esforços para traduzir sua mensagem. Mesmo que os afro-brasileiros não se alinhassem totalmente às suas propostas, pois embora aplaudissem sua capacidade de mobilização política e a faceta modernizadora dos empreendimentos da UNIA, eles não concordavam com a ideia de retorno à África.

A “Vênus Negra” é o tema do sexto capítulo. A ascensão da dançarina negra norte-americana Josephine Baker e sua passagem pelo Brasil, no final dos anos 1920, permitiu aos afro-brasileiros o contato com aspectos da modernidade negra global. No período entre guerras houve uma “conjuntura de valorização dos símbolos, paradigmas e artefatos artísticos culturais afrodiásporicos” (p. 167), o que explica o sucesso quase instantâneo na França dos espetáculos protagonizados por Baker, nos quais, vestida apenas com plumas, executava movimentos frenéticos ao som de pulsantes músicas negras, com destaque para a novidade do jazz. O corpo e outros símbolos negros eram explorados “pela perspectiva do exótico, do pitoresco e do espetacular” e inspirou obras de artistas modernistas europeus e brasileiros, artistas e intelectuais afro-americanos. Domingues envida esforços para dimensionar como Baker tornou-se uma referência para os afro–brasileiros, perscrutando os jornais da imprensa negra brasileira, como o Clarim d’Alvorada e o Progresso, que construíram uma representação enaltecida da dançarina: “talentosa, famosa, rica e civilizada” (p. 189) e minimizando suas contradições e polêmicas, sobretudo relacionadas à nudez e a suas práticas sexuais.

O sétimo capítulo, “Como se fosse bumerangue”, aborda como o Chicago Defender, o maior jornal da imprensa negra norte-americana, noticiou ações da Frente Negra Brasileira (FNB) nos anos 1930. Para Domingues, “a mobilização racial protagonizada pela FNB alcançou uma dimensão sem precedentes para uma organização afro-brasileira” (p. 209). O periódico norte-americano tendeu a supervalorizar as ações da FNB e a inflar seus dados, com o intuito de sugerir que aquela destacada organização brasileira era resultado direto da influência negra norte-americana. O autor argumenta que isso fora resultado do prestígio que a FNB adquiriu no circuito afro-atlântico, quando “as lutas políticas, estratégias e táticas da militância e metodologias discursivas em prol da igualdade racial de fato não respeitavam fronteiras nacionais, circulando multilateralmente e viajando na rede de conexões engendrada no Atlântico Negro” (p. 197).

No oitavo capítulo, o autor se dedica a investigar a Associação Cultural do Negro (ACN). Fundada em São Paulo na década de 1950, essa associação surgiu num período de experiência democrática brasileira sobre o qual pouco se tem investigado de uma perspectiva afro-brasileira. Fundada por 25 pessoas, a ACN nutria o objetivo de trabalhar pela “recuperação” dos afro-brasileiros realizando ações voluntárias no âmbito da educação e cultura, oferecendo cursos diversos. Publicou o jornal O Mutirão e Cadernos de Cultura da ACN. Chegou a reunir 850 associados, incluindo pessoas brancas. Fomentou ações culturais, conferências, tributos, saraus e manteve intercâmbio com outras associações no período. Afirmava a existência do preconceito racial e se posicionou contra ações racistas nos EUA e na África do Sul. Buscou diálogo com eventos e associações internacionais, com destaque para o Movimento Afro-Brasileiro pela Libertação de Angola (MABLA), sediado no Brasil, e a Société Africaine de Culture, que editava a revista Présence Africaine, em Paris, incluindo o envio de um delegado para o II Congresso Mundial de Escritores e Artistas Negros, em Roma, em 1958. A atuação da ACN deve ser vista dentro do internacionalismo negro brasileiro. A associação perdeu fôlego nos anos 1960, durante a ditadura militar, encerrando suas atividades em 1976.

O Movimento pelas Reparações no Brasil (MPR), nos anos 1990, é abordado no capítulo final do livro. Em “Agenciar a raça, reinventar a nação”, Domingues se debruça sobre esse movimento pouco tratado nos estudos acerca da mobilização negra no Brasil. O autor retoma a ação que marcou o MPR, quando militantes se tornaram capa de jornais no dia 20 de novembro de 1993 ao se recusaram a pagar uma refeição num dos mais caros restaurantes de São Paulo, alegando “a dívida secular que a sociedade brasileira tem com todos os afrodescendentes” (p. 243). A ação lançou a campanha Reparações já! – Eu também quero o meu, que reivindicava o pagamento em dinheiro de 102 mil dólares a cada afrodescendente brasileiro pelo trabalho não remunerado durante a escravidão ou após a abolição do trabalho escravo. A proposta emergia numa década em que o Brasil registrava índices alarmantes de desigualdades sociorraciais, que confirmavam a manutenção e reprodução dos privilégios dos brancos. Se o tema das reparações era novo no Brasil, há décadas já havia registro desse tipo de ações noutros países, caso inclusive dos judeus após a segunda guerra mundial. Nos países do Atlântico negro, a discussão sobre reparações ganhou força, incluindo ações da Organização da Unidade Africana (OUA). Se a proposta de reparação em dinheiro não foi (ainda) à frente, foi decisiva para o debate que resultou na política de reservas de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras.

Merece nota os esforços dos autores deste livro para evidenciar a ação das mulheres nas histórias da diáspora no Atlântico negro, inclusive na própria revisão da definição de diáspora, metáfora que seria incompleta sem uma referência à terra mãe como útero gerador no qual as sementes podem germinar (p. 5).

Quando a redação do livro era finalizada, em finais do ano de 2018, a novidade era o lançamento do filme Pantera negra, no qual Butler viu uma metáfora para o conceito de diáspora trabalhado ao longo do livro. No lançamento do livro, no início de 2021, o cenário já é outro. As imagens mais comentadas são aquelas que registram o brutal assassinato de George Floyd, homem negro que foi asfixiado por um policial branco na cidade de Mineápolis, nos Estados Unidos, em 25 de maio de 2020. A divulgação de um vídeo dessa ação policial sinistra foi seguida de imensas manifestações, mobilizações e reivindicações de comunidades negras e outras ao redor do mundo. A defesa da vida de homens e mulheres negras ante a brutalidade e recrudescimento do racismo é, conforme argumenta Diásporas imaginadas, a principal razão para a coalização de diferentes comunidades que constituem a Diáspora Africana.


Nota

1 Universal Negro Improvement Association and Conservation Association and African Communities League.


Resenhista

Luiza Nascimento dos Reis – Universidade Federal de Pernambuco. https://orcid.org/0000-0002-9859-8121


Referências desta Resenha

BUTLER, Kim; DOMINGUES, Petrônio. Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras. São Paulo: Perspectiva, 2020. Resenha de: REIS, Luiza Nascimento dos. Complicando a diáspora. Afro-Ásia, n. 65, p. 778-790, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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