E foi a assim que eu e a escuridão ficamos amigas | Emicida

Emicida Leandro Roque de Oliveira Imagem Divulgacao Amigas
Emicida (Leandro Roque de Oliveira) | Imagem: Divulgação

E se um livro pudesse acalantar o coração de uma criança que tem medo do escuro? E se esse livro contasse uma história em formato de poema e não só convencesse os pequenos que o receio é comum e que até os adultos o sentem em certos momentos, mas também os encantasse com os versos rimados a cada virar de página? É dessa forma que Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, rapper, cantor, letrista, compositor e autor da obra “E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas” brinca com a imaginação e conta uma bela história em forma de poesia.

Emicida é muito assertivo com a escolha do tema do seu livro: o medo e este, relacionado ao escuro, é uma vivência muito comum na infância. Debater este assunto em um livro infantil em formato de poesia é uma sacada muito positiva do autor. Para deixar a história ainda mais convincente, o livro de Emicida conta com belíssimas ilustrações de Aldo Fabrini que fogem do comum e trazem traços bastante originais dando ainda mais vivacidade aos momentos que se intercalam entre o medo e a coragem.

Recentemente lançado, em 2020, pela Companhia das Letrinhas, o livro de Emicida vai, página por página, contando o drama que vivem duas meninas: uma que tinha muito medo da escuridão e a outra que não suportava a claridade. Enquanto uma implorava por uma luzinha: “Pode ter um vampiro aí (…).” A outra suplicava por proteção: “mamãe, me protege da claridão, da iluminação, sabe-se lá o que tem do outro lado. Quero não.”

E assim as meninas vão passando seus dias: uma aflita com a chegada da noite e a outra com a ideia do amanhecer. Essa angústia se prolonga tanto quanto a imaginação delas permite. E imaginação de criança todos sabemos que não tem tantos limites. Então imagine você o tamanho desse sofrimento. Estremecer só de pensar que logo mais é chegada a hora de dormir e com ela vem a temida escuridão? Ou, no caso contrário, ficar apavorada porque sabe que irá abrir os olhos e o desconforto da claridade invadirá o seu quarto? Mas o que escuridão e claridade podem fazer de tão mal para essas meninas? Nas cabecinhas delas, muitas coisas estão camufladas junto desses momentos.

Na ilustração que mostra a menina de olhos grandes e arregalados observando todos os detalhes do seu quarto que, no escuro, aparecem mais pelo contorno do que pela forma inteira, e ainda, embaixo da cama, a imaginação formata possibilidades infinitas de assombrações. Logo ao virar a página, os raios solares chamam a atenção por parecerem perseguir a menina que em “desespero e desalinho” tenta fugir “atrás de achar o nosso mundo mesmo que um pouquinho”. É o desconhecido que faz com que o medo, digo, o senhor medo, seja supervalorizado. E essa situação se repetia toda madrugada e toda aurora. A menina com medo da falta de luz, deitada em sua cama, com os olhos arregalados e o semblante assustado, segura uma lanterna iluminando parte do seu quarto. Do outro lado, outros dois olhos enormes temiam “o desconhecido que a aurora trazia”.

Enfim, damos de cara com quem mais persegue as meninas. Não é a escuridão e nem a claridade, mas sim o medo. Como diz o autor, um cara intrometido que entra sem ser chamado e, ainda por cima, chega convencido. Como quem não quer nada, “sussurra em nossos ouvidos mil histórias com monstros e bandidos” é parceiro da nossa imaginação e juntos nos aterrorizam com tantas perversidades criativas. E isso não acontece só com os pequenos, as crianças mais crescidas também são pegas desprevenidas e, de vez em quando, também se assustam com algumas coisas.

No entanto, assim que mudamos de página, nos damos conta de que o senhor medo não é de todo mal, ele apenas é “um cara preocupado, que vem nos lembrar: é importante ter cuidado”. Esse alerta é válido para que a gente perceba que o medo não deve nos paralisar, ele deve servir para que a nossa atenção seja retomada e assim esteja redobrada. Dessa forma não entraremos em apuros, pois estaremos atentos sobre os cuidados necessários.

E assim, a história lembra que, independente do problema, sempre há uma solução como a palavra ilustrada ocupando duas páginas inteiras para mostrar que não importa o tamanho do problema, a solução sempre é maior. Ainda mais quando se tem algo que lhe faz acreditar e lhe motiva agir para resolver qualquer situação. Por mais insignificante que ela pareça ser, por chegar de mansinho, como quem não tem muito a oferecer, mas sabe que de alguma forma pode ser útil e, de repente, cresce e entende o seu poder, só pode ser a coragem! Nesta fase, o senhor medo é ilustrado com um enorme cabeção, olhos grandes expressando desconfiança e, pasmem: medo! No outro lado, a sombra de uma menina, empoderada, com coroa e tudo se forma em frente a uma porta.

Agora é a coragem que tenta acalmar o senhor medo, lembrando-o de que ambos têm fibra, tem alma. E assim, aos poucos ela vai crescendo, ganhando mais voz, falando mais alto, ganhando mais força, convencendo a todos de que “aquele monstro feroz, de garra forte e veloz, na verdade nem existe. O outro é como nós.”. E é aí que o senhor medo convencido de que ele não tem mais nada a fazer ali, vai embora contente por ver que foi a coragem que triunfou lindamente. Neste momento da história, as duas meninas que antes tinham medo, uma da escuridão e outra da claridade, agora estão juntas de braços dados com a amiga coragem, admiradas com tanto poder elas vêem o senhor medo, sorrindo, aos poucos desaparecer.

Amigas unidas pela coragem, as meninas abraçadas entendem que “tudo é uma questão de olhar, às vezes, o que nos assusta, tem muito da gente. (Só é um pouco diferente!)” o que assustava uma, era o que salvava a outra e vice-versa, agora que ambas superaram esse desafio poderão dormir e acordar felizes e sem preocupações com o que virá junto da escuridão ou com a claridade, pois agora elas sabem que, de todo aquele medo, a única coisa que restou foi uma bela amizade.

Nas duas últimas páginas da obra encontram-se, resumidamente, as biografias do autor Emicida e do ilustrador Aldo Fabrini. Sobre o autor consta que ele “nasceu em uma casinha bem pobrezinha na parte norte da cidade de São Paulo. A imaginação foi sua melhor amiga e o fez visitar mundos incríveis transformando-o em astronauta, desenhista, pirata, rei, pintor, samurai e muitas outras coisas. Tudo sem sair de casa. Foi brincando com a imaginação e as palavras que Emicida descobriu sua habilidade de contar histórias em forma de poesia. E não parou nunca mais de escrever. Chegou a acreditar que muitas coisas na vida eram impossíveis; hoje acredita no contrário e prova, através das histórias que conta, que tudo é possível.” A contracapa é agraciada com um lindo poema de Mauricio de Sousa que diz assim: “O Emicida tem uma gostosa mania: Falar (e escrever) tudo rimado. Mostra que o medo não tem vilania. É somente um homem preocupado. Este livro também trata de coragem. Tem um texto tão bonito que assim diz: Estou trazendo a você boa mensagem: Nunca tenha medo de ser feliz.”

“E foi a assim que eu e a escuridão ficamos amigas” é uma obra indicada para crianças a partir dos quatros anos de idade, mas eu recomendaria para qualquer idade, pois trata de um assunto tão presente na infância (e até na vida adulta, diga-se de passagem): o medo. O medo por vezes paralisa as ações, corrói os sonhos, destrói as chances de alguma aventura. Mais do que isso, gera angústia, dor, sentimentos inexplicáveis para uma criança.

O medo causa tristeza, gera ansiedade. O medo causa sofrimento físico e psicológico, por isso não pode passar despercebido. Uma criança com medo merece atenção, carinho e cuidado. Acredito que a leitura compartilhada, entre pais e filhos, desta obra pode, além de estreitar os laços, contribuir para causar melhor empatia e compreensão sobre algo tão delicado.


Resenhista

Marluci Fontana Drum – Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz do Sul (UNISC). Mestre em Letras pela mesma instituição (2019). Bolsista CNPq.


Referências desta Resenha

EMICIDA. E foi a assim que eu e a escuridão ficamos amigas. Ilustrações de Aldo Fabrini. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2020.  Resenha de: DRUM, Marluci Fontana. “E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas”: uma história em formato de poema para pais, mães e filhos(as) lerem juntos. Literatura, História e Memória. Cascavel, v. 17, n. 30, p. 345 348, 2021. Acessar publicação original [DR]

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