Lutas pela memória em África | Cláudio Alves Furtado, Lívio Sansone
Durante o ano de 2015, eclodiu na Cidade do Cabo, na África do Sul, uma onda de protestos estudantis que procurou denunciar os resquícios de colonialismo que percorriam o currículo da Universidade da Cidade do Cabo e, o que ganhou mais visibilidade, atacou diretamente a estátua de Cecil Rhodes situada nas dependências da instituição.1 O personagem, que esteve inegavelmente envolvido na colonização de diversas regiões da África e foi autor de várias declarações acerca do direito inglês ao governo e exploração de povos e territórios africanos, era representado nesse monumento de maneira imponente. A estátua lá estava porque Rhodes fora um dos financiadores da universidade, em tempos outros, com uma fortuna, muitos disseram, obtida graças à espoliação colonial.
O movimento, que ficou conhecido como #RhodesMustFall, grafia que o insere nos esquemas de representação virtual das redes sociais, tecia críticas às permanências de memórias positivas do colonialismo não só nos espaços públicos, mas nas estruturas da sociedade sul-africana. Para alguns, as políticas da nação “arco-íris” com relação à construção de novos símbolos e sentidos para o país não haviam sido suficientes e, não apenas o colonialismo inglês, mas também as clivagens políticas, sociais e raciais de tempos de segregação permaneciam, em partes, a se fazer valer após 1994. A principal crítica ia para o sistema educacional, tanto em termos de conteúdo quanto de acesso. Não por acaso, contemporâneo do #RhodesMustFall, foi o #FeesMustFall, que, protagonizado por estudantes da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, unia as reivindicações de mudança curricular à pauta do ensino universitário gratuito e acessível.
Esses dois grandes movimentos fomentados por estudantes foram considerados os primeiros de real envergadura desde a redemocratização. O vínculo representado pelo monumento de Rhodes entre a África do Sul democrática e um passado de legitimação de desigualdades raciais e sociais era o alvo inicial, mas os envolvidos nesses acontecimentos reivindicavam mais do que isso. Tratava-se de ter participação ativa em um processo de reestruturação nacional que tomou lugar central nas políticas públicas de patrimonialização e gestão da memória desde a eleição de Mandela. Esse estado de coisas teve reverberações ainda mais recentes, em meados de 2020, quando foi entendido como um precedente para as lutas pela derrubada de estátuas representativas de ligações conciliadoras com passados escravistas e segregacionistas em diversas partes do mundo, principalmente durante as agitações estadunidenses em torno da morte de George Floyd, mobilizadas por meio do nome #BlackLivesMatter. As lutas pela memória na África emergiam, assim, como parte de um repertório global.
É sobre embates deste tipo, em torno da memória, seus mecanismos e as formas de sua apresentação em diferentes países dentro da África, ou fora do continente, mas em referência a este e a seus habitantes, ao longo do século XX e, algumas vezes, até do XXI, que se debruça o livro aqui resenhado. Apontando para diversos processos de construção de narrativas sobre o passado, desde o patrimônio nacional até manifestações culturais mais ou menos marginalizadas, tanto no espaço público, quanto no âmbito privado, o livro é marcadamente interdisciplinar em suas abordagens e em sua relevância. Interessado em diferentes tipos de registro e na análise de atores de grupos sociais diversos e não apenas daqueles envolvidos na dimensão oficial das lutas pela memória, essa obra se divide em uma “Apresentação”, com alguns temas que preparam o leitor para a seleção de textos e autores que se segue, e quatorze capítulos sobre diferentes aspectos e perspectivas do problema central.
Já na “Apresentação”, assinada por Furtado e Sansone, a coletânea se anuncia como resultado do olhar que privilegia os significados e as configurações das disputas pelo passado em memórias coletivas e socialmente relevante. Segundo os autores, “nisto que pode ser chamado de política de esquecimento e perdão, cada ciclo econômico e político na África pós-colonial desenvolveu ‘regimes de memória’ específicos” (p. 10). Nesse sentido, as lutas culturais que acompanham as viragens sociais são enunciadas como a amálgama que une de forma coerente os diferentes tempos e agentes históricos abordados pelas contribuições que constituem o livro. Este se debruçaria sobre pelo menos três “ciclos”, entre os séculos XX e XXI: (1) o momento de euforia e esperança no imediato independência e pós-independência; (2) o período de crise e reestruturação; (3) e a subsequente entrada em um tempo de redemocratização e em um mundo fortemente globalizado.
O livro pode ser dividido, para os objetivos dessa resenha, em dois grandes blocos temáticos. Por um lado, um grupo de artigos em que a luta pela memória é apresentada do ponto de vista de seus enquadramentos e conflitos gerados no âmbito governamental e, por outro lado, um conjunto que coloca a ênfase nas contestações ou representações que, mesmo que de maneira subterrânea, podem ser entendidas como contranarrativas que desafiam os relatos oficiais das fundações nacionais e identitárias.
Dentro do primeiro grupo, podemos destacar, por exemplo, os textos de Fábio Baqueiro Figueiredo e Ciraj Rassool. Ambos os autores apontam para uma análise dos mecanismos e da arbitrariedade da criação de memórias oficiais nacionais em dois países da África austral, mas a partir de fontes e problemas de pesquisa bem diferentes. Trabalhando com o processo de independência e sua relação com a produção cultural em Luanda, Figueiredo aponta, por meio de fontes retiradas principalmente do Jornal de Angola, para os conflitos entre um discurso oficial que flertou com a imagem do “homem novo” e a cultura jovem urbana angolana que ganhava forma entre 1975 e 1977. O autor destaca a maneira como uma cartilha política que se desenvolveu na guerra de libertação passa a ser adaptada enquanto programa de fundação nacional nos anos anteriores ao recrudescimento dos conflitos internos. Aponta para as tentativas governamentais do Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA, de criar uma cultura jovem e revolucionária por meio do controle institucional, notável tanto no caso do rádio quanto do cinema. No período, fomentaram-se produções que se ligassem às imagens oficiais sobre as quais deveriam se debruçar os interesses e os engajamentos da juventude luandense, ao mesmo tempo em que cresciam os conflitos internos e os rompimentos com lideranças e alas jovens da organização transformada em partido.
Já Rassool se debruça sobre o caso da patrimonialização das biografias de líderes do Congresso Nacional Africano durante a criação de um novo arcabouço de legitimação histórico e memorial para a África do Sul, após o fim do apartheid e a eleição de Nelson Mandela para a presidência, em 1994. Ao analisar o ímpeto de formação de um país sob novas estruturas, a partir do lema de uma “nação arco-íris”, Rassool põe luz na maneira como as trajetórias de vida e as imagens de grandes lideranças, como a do próprio Mandela, constituem objetos de disputas e de narrativas diversas e até controversas em um cenário de abertura política e econômica. Para o autor, em consonância com o texto que abre a coletânea, a capitalização da luta contra o apartheid muitas vezes minou as possibilidades de participação ativa e real das comunidades locais nos processos de criação de memória. Estes últimos teriam se tornado produtos a serem inseridos em percursos que têm como destino não a população que participou das lutas ou foi diretamente atingida pelo regime de segregação racial, mas o turismo estrangeiro. Museus, memoriais e estátuas construídos durante o processo de redemocratização, com poucas exceções, acabariam distantes da gestão, seleção e criação de uma memória nacional que envolvesse grande parte da população sul-africana.
Uma abordagem que poderia dialogar com a de Rassool, mas centrada na história de uma estátua emblemática de Kwame Nkrumah, é a assinada por Carola Lentz. O trabalho de Lentz gira em torno da cultura material criada como memorabilia nacional em Gana durante e imediatamente após a declaração da independência do país, em 1956. A estátua de Nkrumah, erigida, duplicada e derrubada em diferentes momentos, tem suas vicissitudes ligadas à imagem do político representado e aos grupos que a reivindicaram, ao longo de décadas, até o século XXI.
No primeiro bloco de contribuições podemos inserir também os textos de Antonio Evaldo Almeida Barros, o de Larissa Oliveira e Gabarra e o de Colin Darch e David Hedges. Barros analisa as mudanças nas inserções e apropriações da biografia do político sul-africano John Dube, indo dos anos de 1970, período com grande visibilidade internacional do Congresso Nacional Africano, aos anos da formação da “nação arco- -íris”. Oliveira e Gabarra explora as reivindicações de diferentes grupos e partidos políticos, entre a República Democrática do Congo e Angola, do passado legitimador do Kongo, Estado africano que existiu na região que hoje é de fronteira entre os dois países, entre os séculos XV e XVIII. Já Darch e Hedges trabalham com a “Viagem Triunfal” de Samora Machel, de Cabo Delgado a Lourenço Marques, nos trinta dias que antecederam a proclamação da independência em Moçambique e como ela se prestou à criação de lugares de memória que procuraram inserir todo o território simbolicamente sob a insígnia de “zonas libertadas”, que passava a se confundir no discurso oficial com a própria ideia de nação moçambicana soberana. Todos esses capítulos trabalham, com fontes e temáticas diversas, a produção da memória nacional por atores governamentais, bem como os conflitos e as dissensões que permeiam e informam a dinâmica entre criação e apagamento de panteões de heróis, eventos, lugares e símbolos nacionais.
Abrindo as contribuições do segundo grupo estão os textos de Antonio Motta e Jamile Silva. O primeiro, de Motta, refere-se às lutas pela memória travadas por protagonistas africanos no Brasil, mais especificamente jovens estudantes universitários congoleses inseridos no grupo conhecido como sapeurs. O segundo, de Silva, centra-se em um questionamento sobre as novas relações possíveis de serem criadas com a inserção, em processos e políticas de patrimonialização e criação de acervos e museus, de agentes diversos, não oficiais e não acadêmicos. Para a autora,
Sair das velhas práticas canônicas de exposições coloniais, de coleta através de espólio, roubos, expropriação da produção cultural de diferentes grupos para chegar ao que se postula hoje na perspectiva de uma nova museologia social de “coleta do presente” é um desafio que se põe a todos que estão envolvidos com a área da patrimonialização e da cultura, especialmente em sociedades pós-coloniais e pós-independência (p. 73).
Essas duas abordagens travam um forte diálogo ao apontarem para os aspectos globalizados das lutas pela memória, inclusive ao situar contextos de fundação de imagens relevantes para a história da África fora do espaço físico do continente. No artigo de Motta, a perspectiva parte da interação de jovens congoleses no Brasil com seus colegas de sala, com a curadoria do Museu da Abolição, no Recife, e também com os visitantes da instituição; e, no texto de Silva, é central o exemplo do projeto de formação de acervo do Museu Afrodigital, da Universidade Federal da Bahia. Esses dois textos trazem, portanto, representações e experiências da África e de africanos que transitam e permeiam as memórias coletivas em regiões do Brasil, no século XXI. Estas surgem com uma inscrição ambígua nas disputas pelo passado nacional brasileiro, podendo ser, em certa medida, alvo de interesse público, de patrimonialização e até de transformação em museu e, ao mesmo tempo, objetos de cerceamento por um repertório cultural prévio que tende a não aceitar determinadas ressignificações do continente e de seus habitantes. Nesse sentido, é interessante retomar o argumento de Motta, que chama atenção para as imagens e opções de estilo de vestimenta e performance social dos jovens sapeurs congoleses que, aliadas a sua posição como estudantes universitários bolsistas, geraram uma situação de hostilidade em que o uso de roupas de grifes europeias, sabidamente inacessíveis mesmo para a grande maioria da classe média branca brasileira, foi entendido como descompassado e incompatível com os significados disponíveis e compartilhados da África enquanto lugar de origem em diferentes grupos sociais.
Além dessas duas análises, pode-se destacar nesse segundo conjunto de textos o de Paolo Israel, que se debruça sobre as formas do mapiko em Moçambique. O autor trabalha com manifestações que são caracterizadas pelo uso de músicas para a realização de performances de dança em que os bailarinos utilizam-se de vestimenta e máscaras que respondem a códigos e normas localmente instituídos, atentando para o surgimento de novas variações a partir do estilo considerado canônico e sua interação com narrativas sobre o passado colonial, a guerra de libertação, a guerra civil e a democratização. Israel põe o foco na região norte de Moçambique e no surgimento, após o fim da guerra civil e em meio a um processo de abertura política, de um novo grupo performativo. No texto, destacam-se as complexas relações entre seus integrantes e as mudanças promovidas nas vestimentas e nos modos de apresentação do mapiko, assim como suas interações ambíguas com o discurso político governamental e as memórias da guerra de libertação na área. Mesmo deixando claro que o mapiko, enquanto manifestação cultural e estética, não pode ser resumido às lutas pelo passado ou ao investimento em uma ou outra memória nacional ou coletiva, Israel abre o olhar do leitor para uma renovada abordagem. Por meio do cotejamento das apresentações de grupos diversos, relatos orais de seus membros e a análise de variados contextos moçambicanos, vislumbram-se as maneiras pelas quais as populações distantes do centro do poder criam representações do mundo político que transitam entre o global e o local, conciliando ou colocando em conflito discursos nacionais e experiências coletivas traumáticas.
Também podemos inserir nesse conjunto de textos os capítulos de Igor de Carvalho Gonçalves da Costa, de Teresa Cruz e Silva e de Dmitri van den Bersselaar. Costa trabalha com livros de memórias escritos por ex-combatentes sul-africanos brancos e com os mecanismos mobilizados por estes para construir relatos de sua participação em conflitos que passaram a ser considerados como vergonhosos para a memória nacional após o fim do apartheid. Cruz e Silva constrói uma análise dos sentidos que permeiam a imagem de Eduardo Mondlane, a partir da interpretação do relato oral de seu motorista quando de sua curta estadia em Moçambique, em 1961. Van den Bersselaar constrói um relato do ponto de vista da história empresarial sobre as imagens públicas da United Africa Company, na Nigéria, e como ela passa, no século XXI, a reivindicar sua ligação, negada nos anos imediatamente posteriores à independência, com o colonialismo inglês, o que estaria em diálogo com mudanças na opinião pública nigeriana sobre a história nacional. Trata-se de textos que procuram dar destaque ao protagonismo de diferentes atores não-governamentais, que entram em conflito, modificam ou procuram se conciliar com discursos oficiais, em geral de âmbito nacional.
Cabe mencionar, para completar a listagem dos capítulos, que dois artigos foram de difícil inclusão na análise que essa resenha propõe. De certa forma, tanto o texto de Cecilia Dau Novelli quanto o de Kenneth Inyani Simala podem ser considerados como deslocados do sentido mais amplo da coletânea, embora por fatores distintos.
O capítulo de Novelli apresenta-se como uma discussão sobre as leituras e releituras do passado colonialista e até fascista no cenário italiano, com destaque para a trajetória do diplomata e político Aldo Moro. Ainda que a autora trabalhe com os sentidos das relações Itália-Etiópia, dificilmente esta contribuição pode ser considerada como referente às lutas pela memória em África ou ao papel ativo de africanos e de seus descendentes fora de seus limites territoriais.
Já Inyani Simala refere-se a um tema de inegável potência, como é o caso da epopeia suaíle de Fumo Liyongo, bem como à importância das fontes orais para a pesquisa em história da África. Porém, em seu texto, a epopeia de Fumo Liyongo, fonte central anunciada pelo autor, não tem seu conteúdo, sua organização ou seu contexto de enunciação, compilação e transferência ao longo do tempo descritos, sequer brevemente. Além disso, seu papel na construção de uma narrativa nacional suaíle, afirmada continuamente pelo autor, não é trabalhada em sua dimensão histórica, mas apenas repetida como um dado que confirmaria “que os esforços de Fumo Liyongo podem ser considerados o primeiro nascimento de um nacionalismo pan-suaíli que, mais tarde, se tornaria a base civilizacional da nação suaíli” (p. 511). Esse tipo de afirmação carece de argumentação no texto, o que o torna deslocado da discussão em torno das lutas pela memória e, é possível ponderar, implicado em um apagamento da dimensão da mudança, das conciliações e dos conflitos em torno da criação de representações nacionais africanas. Isso principalmente se se considera que a figura histórica à qual Inyani Simala se refere viveu, segundo o autor, em algum momento entre 1160 e 1204.
Essa leitura crítica do artigo de Inyani Simala, por sua vez, aponta para uma importante ausência, no livro em geral. Embora centrado na temática da memória, este carece de uma reflexão sobre as implicações diretas das disciplinas das ciências humanas, principalmente da História, na informação de passados legitimados, principalmente em discursos oficiais ou deles derivados. Nesse sentido, embora a coletânea seja uma reflexão atual do ponto de vista de sua temática e das abordagens propostas, não traz uma problematização metalinguística das funções às quais o relato histórico se prestou ao longo do tempo, tanto no continente africano quanto fora dele.
De maneira geral, porém, a coletânea tem o trunfo de sua diversidade de abordagens, assim como da interdisciplinaridade de temas, autores e debates, e é bem sucedida em comprovar que os fatores em jogo na escrita ou reescrita do passado em África são dinâmicos. Talvez nisso resida a chave para entender as potencialidades de movimentos como #RhodesMustFall ou #FeesMustFall. Além disso, sua leitura aponta para a conclusão de que, na medida em que cresce novamente a relevância política da ideia de renovação em contextos nacionais diversos dentro do continente, as lutas pelo passado e pelo poder de sua enunciação, ainda que em novas roupagens e configurações, recuperam a centralidade de meados do século passado.
Nota
1 Abdul Kayum Ahmed, “The Rise of Fallism: #RhodesMustFall and the Movement to Decolonize the University”, Tese (Doutorado em Educação Internacional e Comparada), Columbia University, Nova York, 2019, pp. 14-48 https://academiccommons.columbia.edu/doi/10.7916/d8-n7n3-e372.
Resenhista
Raissa Brescia dos Reis – Universidade Federal do Rio de Janeiro. https://orcid.org/0000-0003-0147-6871
Referências desta Resenha
FURTADO, Cláudio Alves; SANSONE, Lívio (Orgs.). Lutas pela memória em África. Salvador: EDUFBA, 2019. Resenha de: REIS, Raissa Brescia dos. Novos contextos históricos e perspectivas de pesquisa para as lutas pela memória da África e dos africanos. Afro-Ásia, n. 64, p. 650-658, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]