M: o filho do século | Antonio Scurati

Por dever de ofício, historiadores com frequência riscam algumas palavras de seus dicionários. “Natural”, “espontâneo” e “inevitável” costumam ser algumas delas. Seu apelo autoexplicativo justifica a recusa: há nelas uma tendência em tornar evidente exatamente aquilo que precisa ser entendido, estudado. Agindo assim, terminam justamente por onde o fazer historiográfico deveria começar. Para o ofício, são um perigo. De qualquer forma, vale o risco em contrariar a cautela e dizer que o crescimento da extrema-direita ao redor do mundo torna o interesse por M: o filho do Século quase natural, espontâneo, e que a sua leitura vai, aos poucos, se tornando mais e mais inevitável. Lançada originalmente na Itália em 2018, a obra, que encontrou sua tradução brasileira pela Editora Intrínseca apenas um ano depois, não é propriamente um trabalho historiográfico. Tampouco seu autor é historiador. Escrito por Antonio Scurati, professor de Literatura Contemporânea da Universidade de Comunicação e Línguas (IULM) de Milão, o livro pode ser melhor definido como um “romance histórico”: uma classificação atestada não apenas pela formação e pela vinculação institucional de seu autor, mas também por ter sido laureado com o Prêmio Strega, um dos mais importantes da literatura italiana. Trata-se, portanto, de trabalho não muito frequente entre historiadores, algo que, longe de diminuir seu interesse para o grupo, o reforça.

Se o trabalho de Scurati não é propriamente historiográfico, também não é completamente imaginado. É ele próprio quem cuida de dizê-lo quando, ao introduzir o texto aos leitores, os alerta de que seus fatos e personagens “não são fruto da imaginação do autor”. Embora reconheça o ingrediente ficcional, é também ele quem alerta para o caráter “historicamente documentado” de sua narrativa. A este respeito há, no livro, uma novidade metodológica: ao final dos capítulos, são anexados trechos de documentos que serviram como referência para a construção da trama central. Por meio do procedimento, o leitor pode observar os excertos que compõem a base da redação do texto. Relatórios policiais, correspondências, discursos parlamentares e notícias de jornal formam o principal substrato da documentação e apontam para um verdadeiro trabalho de pesquisa. A apresentação de fontes primárias, ainda que evidentemente sempre sujeitas à interpretação, torna possível endossar a observação do autor de que sua narrativa, tal qual a narrativa da história, “não é nada arbitrária” (Scurati, 2019, p. 5).

Como “romance documental”, o livro narra os primeiros anos do fascismo italiano: sua criação como movimento, sua expansão, sua chegada ao poder, sua consequente transformação em regime e os dois primeiros anos em que governou a Itália. Iniciada em 1919, a cronologia se encerra em 1924, ano em que Giacomo Matteotti, deputado socialista e corajoso opositor do fascismo, é brutalmente assassinado. Se Mussolini é personagem central, não está só. Ao longo das páginas, figuras conhecidas se juntam ao homem que se tornaria seu líder. Roberto Farinacci, Ítalo Balbo, Filippo Marinetti, Cesare De Vecchi, Amerigo Dùmini, Dino Grandi e Alfredo Rocco são alguns dos nomes que surgem com frequência. As muitas amantes de Mussolini por vezes aparecem. A mais famosa delas, a rica colecionadora e crítica de arte Margherita Sarfati, tem um lugar especial: fato que se deve não apenas à sua relação íntima com o futuro Duce, mas, e principalmente, por tê-lo inserido parcialmente em seu círculo social. A eles todos se soma aquele que seria o mais poderoso e perigoso concorrente de Mussolini, Gabriele d’Annunzio. A ocupação de Fiume, patrocinada pelo poeta, é descrita com precisão, assim como são descritas as relações sempre tensas entre ele e o líder fascista. De uma forma um tanto irônica, d’Annunzio e Matteoti, completamente diferentes entre si, são as figuras que, em alguns momentos, mais perto chegam de competir com Mussolini pela centralidade do texto. Sombras do Duce em vida, são também seus adversários na ficção.

A maneira como vários dos personagens fascistas aparecem é crucial. Ela faz ver que, diferente do que o título poderia sugerir, o objeto da interrogação é menos a singularidade da vida de Mussolini e mais o fascismo como fenômeno histórico, como um projeto ideológico construído e partilhado coletivamente. Mussolini não nasceu poderoso, tornou-se poderoso. Não nasceu Duce, foi feito Duce. Embora ele próprio preferisse pensar diferente, sua ascensão ao poder não era fruto de sua vontade, virilidade ou predestinação. Ao contrário: resultou tanto do engajamento de seus seguidores quanto da complacência de alguns de seus opositores. O alerta de Ian Kershaw, principal biógrafo do Führer alemão, de que “para explicar seu poder, devemos primeiro olhar para os outros, não para o próprio Hitler” (Kershaw, 2010, p. 30), serve para seu congênere italiano: se quisermos entender Mussolini é preciso olharmos, também, para fora dele. Parece ser justamente o que Scurati tem em mente ao inserir o Duce em uma intrincada teia de relações.

De forma não muito linear, o livro apresenta um perfil social e psicológico dos primeiros fascistas. Futuristas, ex arditi, antigos sindicalistas e socialistas intervencionistas aparecem como a clientela inicial do movimento. A relação com a Guerra e o consequente ressentimento com uma Itália que, formalmente vitoriosa, apareceu como derrotada, surge como elemento vital na coesão do grupo. Como parte da mesma coesão, o nacionalismo excessivo, de tendências místicas, com apelo regenerador e unitário, é uma constante. O culto à violência engrossa ainda mais o caldo de ingredientes explosivos do fascismo e, quanto a este aspecto, o movimento podia contar com uma “mão de obra especializada”: recruta homens experientes, treinados na prática de banditismo generalizado. Acostumados a espancar adversários, a resolver problemas pessoais por meio da surra, a desfilar com cassetetes e punhais, são eles os primeiros a verem, nos fasci di combattimento, um local adequado para darem vasão às suas pulsões primitivas. São seguramente aquilo que Hannah Arendt definiria como a escória, que “brada sempre pelo ‘homem forte’, pelo ‘grande líder’”, que “odeia a sociedade da qual é excluída, e odeia o Parlamento onde não é representada”1 (Arendt, 2013, p. 159). É este o material humano apresentado por Scurati como parteiro do fascismo. “Não foi assim, por acaso, que sempre se fizeram as revoluções: armando todo o submundo social com revólveres e granadas?”, questiona ele (Scurati, 2018, p. 20). No fascismo, a violência é purgada de sua gratuidade, é enobrecida. Agora ela tem uma causa: serve à nação.

Se o livro de Scurati descreve tão bem a formação do fascismo, vai além, mostrando o processo por meio do qual ele se viabilizou como alternativa política. A aliança entre o movimento e os proprietários de terra, inicialmente aqueles do norte da Itália, ocupa papel de destaque. O desejo, partilhado por ambos, de destruir as organizações e lideranças socialistas, solidifica a aproximação. As operações fascistas de assassinato e intimidação, cujo sucesso dependia do apoio logístico dos proprietários e das vistas grossas da polícia, mostram a ação concertada desses grupos. A maneira vívida como são descritas dão ao leitor a dimensão do cenário: demonstram como o terror foi arrastado para o centro da agenda do movimento. Tornado catalisador, ele, o terror, serve para purgar a pátria de seus inimigos: elemento regenerador, tem prioridade sobre outros aspectos. O terror funciona como uma mola, a compelir para aquilo que realmente importa: a ação. “O programa de San Sepolcro? É só um pedaço de papel, uma premissa constrangedora. Enfiaram nele várias exigências perturbadoras, mas, no fim das contas, eles são os Fasci di Combattimento, e seu verdadeiro programa está inteiramente contido na palavra ‘combate’” (Scurati, 2018, p. 64). Nascido de combatentes, o movimento se pensa como luta constante, uma luta que nivela seus membros: “[…] agora o sangue derramado os aparentou, ninguém está mais sozinho, não se contam mais divisões nem facções; a igualdade social é a dádiva da experiência fundamental de matar juntos” (Scurati, 2018, p. 310). A cumplicidade no crime os une: o fascismo é o “partido armado porque, em última instância, é a força que decide” (Scurati, 2018, p. 515).

Como parte da mesma dinâmica, o livro explora o caráter altamente mobilizador do movimento. Seu alvo, as massas, é retratado com competência. No lugar do indivíduo, da pluralidade, o povo unificado. No lugar da racionalidade, os sentimentos, os instintos. A diluição do singular no conjunto homogêneo, a adesão fanática, o partido único, a organização de milícias e o culto aos mitos da pátria golpeiam a tradição em torno da qual se pensava a vida pública: o coletivo passa a ser de massas, não de cidadãos. Adoração ao líder e valorização da irracionalidade são os instrumentos encontrados para lidar com estas massas, feitas novos personagens, recém-chegados ao mundo político. Se não é mais possível ignorá-las, é preciso discipliná-las, organizá-las, arrumar uma maneira de canalizar sua energia e usá-la do melhor jeito. Disciplina, obediência, integração são as palavras de ordem: dão o tom do comportamento massificado. Quanto a isso, as marchas parecem emblemáticas. Como bloco unido, os fascistas marcham: primeiro em Ferrara, depois em Bolonha, finalmente para Roma. A força das massas organizadas é um motor a impulsionar o fascismo para o centro do poder.

De qualquer forma, se o uso generalizado da violência e a mobilização constante das massas foram fundamentais para pavimentar o caminho do fascismo rumo ao poder, não são os únicos elementos. Com perspicácia, Scurati aponta o longo processo por meio do qual, após sucessivas concessões, o establishment italiano viabilizou a escalada do movimento no aparelho de Estado. A admissão do movimento, tornado Partido Nacional Fascista, no jogo eleitoral, e a maneira como Mussolini e os fascistas foram acolhidos no parlamento que pretendiam destruir, são descritas de forma escandalosamente constrangedora. Igualmente espantosa é a descrição da atitude de Vítor Emanuel III diante da marcha sobre Roma: podendo repeli-la, o Rei preferiu compactuar com ela. “Bastará apenas uma assinatura para que a marcha dos fascistas termine não em Roma, mas na cadeia, ou no cemitério” (Scurati, 2018, p. 554), constata o autor, depois de mencionar a possibilidade de decretação do Estado de Sítio. A assinatura, entretanto, não vêm. As forças oficiais são desmobilizadas. O motivo? Scurati se furta a responder. “É inútil se perguntar por quê. As razões são muitas e nenhuma”, conclui (Scurati, 2018, p. 565). O fato é que, agindo assim, o Rei fechou a última trincheira que separava seus antigos críticos, originalmente antimonarquistas, de governarem o país sobre o qual ele reinava.

A colaboração do establishment é um dos pontos fundamentais do enredo. Se, de fato, o fascismo, com seus homens broncos e violentos, podia não ser a primeira opção de aliança para a suposta elite bem educada de conservadores e liberais, ainda assim era uma alternativa para lidar com a crise que assolava a Itália. Fica evidente, aqui, um ingrediente especialmente audacioso, que dá o tom das negociações: os fascistas se colocavam como a única força capaz de resolver um problema que eles próprios haviam ajudado a criar. A aposta do establishment, representado sobretudo por Giolitti, é “conter a ilegalidade fascista, considerada um fenômeno passageiro, prendendo-a no arco constitucional”. Enquanto isso, “Mussolini tem um contraplano: suscitar a desordem para mostrar que só ele pode restabelecer a ordem” (Scurati, 2018, p. 375). Plano e contraplano se defrontam ao longo das páginas. Do embate surge o argumento: diferente do que os fascistas gostariam de pensar, o fascismo não assaltou, sozinho e por completo, o poder. Ao contrário: sua chegada e instalação no coração do governo dependeram não somente de bravura e bravata, mas da complacência, de um misto de titubeio e cooperação daqueles que, podendo enfrentá-lo, com ele pactuaram.

Encerrando-se em 1924, o livro abrange os dois primeiros anos de exercício do regime fascista. Ainda que o período pareça curto, em comparação com os mais de vinte anos nos quais o fascismo governou a Itália, ele dá mostras da dinâmica por meio da qual o poder fascista foi exercido. De forma literária, Scurati acompanha a transformação do movimento em regime, com o consequente início do processo de fascistização do Estado italiano. O autor oferece um quadro vívido daquilo que Robert Paxton definiu como um dos problemas centrais para a fascistização: “manter a energia do partido em ponto de fervura sem perturbar a ordem pública nem incomodar seus aliados conservadores” (Paxton, 2007, p. 219). A tensão entre o exercício do poder de Estado, teoricamente limitado pelos acordos e alianças, e a busca por um poder total, sem a qual o fascismo perderia sua razão de ser, acompanha o texto. A descrição das ações de Mussolini frente à “normalização” é crucial. Se, por um lado, o Duce realiza mudanças eleitorais, força a retirada do líder do partido católico, pressiona o parlamento e persegue opositores, por outro tenta controlar, sem esvaziar por completo, os membros mais raivosos de seu séquito, aqueles que, dispostos a tudo destruir, podem ameaçar sua permanência no governo. A equação é engenhosa: ao mesmo tempo em que precisa dar algumas garantias ao establishment, não pode minar sua base independente de poder. O resultado, um embate constante entre a “normalidade” e a revolução, entre a manutenção e a ruptura, estrutura a nova forma de exercer o poder: a instabilidade induzida e permanente.

A maneira como a instabilização contínua é descrita constitui um dos pontos altos do livro. A disputa em torno da institucionalização da milícia é certamente um dos eventos mais emblemáticos. Emblemáticas são, também, as disputas entre os membros do partido. “A Itália está dividida em feudos fascistas lutando entre si”, sintetiza o autor (Scurati, 2018, p. 628). Arrivismo, vaidade e violência são essenciais: funcionam como correias no motor de radicalização. Ao final, na instauração de um sentido guerreiro da vida que, por meio de um darwinismo social desenfreado, reduz seres humanos à sua animalidade, pode-se descobrir o cerne do fascismo. Ao fim e ao cabo, é a destruição que organiza o novo regime fascista.

Como o leitor pode ter notado até aqui, são muitos os motivos pelos quais o livro de Antonio Scurati merece atenção. Seu maior mérito está na capacidade de conciliar ficção e pesquisa, de organizar problemas históricos importantes em uma narrativa literária elegante e bem documentada. Além de um bom texto, o leitor encontrará, também, argumentação sólida. Ao final do percurso, estará mais capacitado para entender aquele que foi um dos principais fenômenos do século XX, mas que, infelizmente, parece ter fincado raízes e sobrevivido para além dele…


Nota

1 É válido destacar que Arendt não se refere, em momento algum, ao caso italiano. Em seu estudo sobre os totalitarismos, a autora exclui a Itália, justamente por não considerar o fascismo italiano como totalitário.


Referências

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 1. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

KERSHAW, Ian. Hitler. Tradução de Pedro Maia Soares. 1. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

PAXTON, Robert O. A Anatomia do Fascismo. Tradução de Patrícia Zimbres e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

SCURATI, Antonio. M: o filho do século. Tradução de Marcello Lino. 1. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.


Resenhista

Thiago Amado – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0003-0552-8253


Referências desta Resenha

SCURATI, Antonio. M: o filho do século. Trad. Marcello Lino. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019. Resenha de: AMADO, Thiago. Sobre um retrato literário do fascismo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n. 91, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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