Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil | Patricia de Santana Pinho
Alguns anos atrás, durante uma de minhas muitas viagens para Salvador, lembro de ter assistido a um programa na televisão que mencionava a chegada de turistas afro-americanos para a festa de Nossa Senhora da Boa Morte, que sempre acontece em agosto na cidade de Cachoeira na Bahia. Como pesquisador soteropolitano radicado no exterior que tem interesses em estudos de raça, o tema imediatamente chamou minha atenção. Soube pouco tempo depois, através do guia de turismo Frederico Bomsucesso, que essas visitas estavam acontecendo regularmente. A notícia, de fato, não me surpreendeu. Tive a oportunidade de trazer alunos afro-americanos para fazer intercâmbio em Salvador e já sabia que a relação deles com a cidade é sempre especial. Imaginava que mais cedo ou mais tarde alguém descobriria esta fatia de mercado para o turismo baiano.
Foi então com surpresa e alegria que soube do livro de Patricia de Santana Pinho, professora da Universidade da California em Santa Cruz. Jamais pensei que esse “turismo de raízes” viesse a tornar-se objeto de estudo. O resultado desse projeto de Pinho vem enriquecer a todos os pesquisadores de estudos raciais e a todos que se dedicam aos estudos interamericanos.
Em Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil, a autora investiga esse turismo de raízes a partir de três enfoques principais. O primeiro é como esse turismo proporciona a construção e transformação de identidades diaspóricas, observando como identidades raciais e nacionais interagem entre si, às vezes se complementando, outras se contradizendo. Ela se interessa, por exemplo, pela forma como o turismo gera reflexões sobre ser estadunidense e como o afro-brasileiro se percebe com a presença do afro-americano. Suas reflexões levam em consideração elementos como classe social e gênero e como estes dialogam com raça.
Seu segundo enfoque é o transnacionalismo da solidariedade negra. Para ela, esse turismo estabelece um importante diálogo entre duas importantes comunidades negras, que confrontam os limites geopolíticos da nação quando enfatizam suas semelhanças raciais. Esse turismo também nos faz repensar a noção de que o turismo internacional reproduz o colonialismo, em países como o Brasil, porque nesse caso o turista — e não apenas aquele que o serve — é também descendente de africanos. Para Pinho, apesar de ocupar lugar de destaque na relação de poder global por ser estadunidense, o turista afro-americano beneficia os afro-brasileiros.
O terceiro aspecto que a autora destaca é a geopolítica da diáspora negra. Pinho analisa as diferentes posições de poder dessas duas comunidades negras, uma situada no Sul Global e a outra no Norte Global. Segundo ela, o turismo de raízes subverte a posição secundária que o Brasil de certo modo tem ocupado nas diásporas negras, onde predominam as concepções de negritude estadunidenses. O turismo de raízes, portanto, revela e acentua a importância que o Brasil tem nessas diásporas. Além disso, Pinho propõe que esse turismo subverte a ideia de turismo como um multiplicador das desigualdades globais e discute os desafios que ele apresenta para as hierarquias do mundo negro do Atlântico. A autora explica que as posições de centro e periferia podem ser intercambiáveis e que o estudo do turismo de raízes proporciona formas alternativas para compreender essas posições.
Segundo Pinho, esse turismo começa, de fato, no fim dos anos 1970, quando intelectuais e artistas afro-americanos começaram a viajar para a Bahia procurando semelhanças compartilhadas. Isso acontece ao mesmo tempo em que turistas afro-americanos partem em busca da herança africana viajando para a África e pela diáspora, sendo o Brasil o país que mais atrai esses turistas. Pinho cria um “mapa de africanidade”, que englobaria lugares que permitem que estes turistas de raízes aprimorem sua identidade afro-americana. O grupo é bastante diverso, mas a maioria é de mulheres. Sua pesquisa, contudo, dá enfoque a grupos turísticos que buscam heranças culturais. Esses turistas em geral possuem curso superior, têm entre sessenta e setenta anos, são aposentados e filiados a alguma instituição negra nos Estados Unidos. Eles também têm condições financeiras suficiente para fazer uma viagem ao exterior e aqueles que entrevistou não demonstraram interesse algum em turismo sexual. Uma curiosidade, talvez não surpreendente, é a centralidade do candomblé para esses grupos, apesar de muitas vezes formados por protestantes ou pentecostais. Em geral, a diferença religiosa não os impede de buscar na religião afro-brasileira aspectos essenciais da herança africana cultivada no Brasil.
A autora ressalta que, ao contrário de outros grupos, que usam o turismo como uma forma de descobrir um “Outro” exótico, eles procuram o que há de igual nos afro-brasileiros. Ela explica que há diferenças nessa igualdade, o que chega a gerar frustração. Mas a frustração se torna uma parte importante da experiência. Apesar de ser um tipo de turismo étnico, Pinho prefere o termo “de raízes” por causa do movimento em busca de elementos que possibilitem a reconstrução ou o fortalecimento de suas identidades étnicas. Outra razão pela qual ela escolhe esse termo é a crença de que no Brasil eles poderão encontrar suas “raízes”, as tradições africanas que acreditam já não existir nos Estados Unidos. Pinho conceitualiza “turismo de raízes” e o distingue muito bem de outros tipos relevantes e associados a ele, como “turismo de herança”, “turismo de história familiar” e “turismo de diáspora”.
O livro é transdisciplinar. Como explica a autora, ela utiliza de forma livre elementos de várias disciplinas, adaptando-os quando apropriado. É construído com base na antropologia e na sociologia e utiliza o arcabouço teórico das teorias pós-coloniais e decoloniais, dialogando com áreas como estudos culturais, especialmente com os estudos culturais latino-americanos. É leitura obrigatória para os estudos sobre turismo em geral e em particular sobre turismo internacional. A pesquisa etnográfica aconteceu em quatro momentos distintos, entre 2000 e 2012, basicamente no Brasil. Seu início coincide com a pesquisa para o primeiro livro da autora, Mama Africa: Reinventing Blackness in Bahia, publicado pela editora da Universidade Duke, em 2010. Ela entrevistou turistas, guias turísticos, agentes de turismo no Brasil e nos Estados Unidos, assim como lideranças e intelectuais afro- -brasileiros. Também usou um questionário para colher respostas sobre a experiência dos afro-americanos que viajavam pela Bahia e o Brasil. Seu objetivo era investigar os discursos desses turistas afro-americanos e dos afro-brasileiros com quem eles interagiram.
Pinho usa frases de turistas afro-americanos para começar cada capítulo do livro. O primeiro capítulo, “That’s My Face: African American Reflections on Brazil” (“Essa é a minha cara: reflexões afro-americanas sobre o Brasil”), brinca com a dualidade do termo “reflexão”, oferecendo tanto uma análise do turismo de raízes afro-americano no Brasil, que ela historiciza e contextualiza desde o fim do século XIX, como uma exploração da ideia de “semelhança” embutida nesse encontro com um Outro que também é o “mesmo”. A autora discute como o Brasil vem sendo imaginado por afro-americanos e como as representações do Brasil se comparam com as de outros países também visitados por esse grupo. Além do desejo de “reconectar” com o Outro afro-brasileiro, Pinho acredita que os afro-americanos escolhem lugares onde a maioria da população é negra por causa do racismo que o grupo sofre em casa.
O segundo capítulo, “The Way We Were: Brazil in the African American Roots Tourist Gaze” (“Como éramos: o Brasil no olhar do turista de raízes afro-americano”), reflete sobre a noção de que afro-americanos podem encontrar seu passado no Brasil. Há um confronto do discurso dos turistas com textos encontrados em livros, documentários, filmes, artigos de jornais, ou folhetos turísticos. Entre outras percepções interessantes, a autora destaca as ideias de que a Bahia seria uma “África mais perto” dos Estados Unidos e de que os afro-brasileiros estariam em um estágio mais inicial no caminho de uma forma moderna de negritude, já alcançada pelos afro-americanos.
No terceiro capítulo, “Black Gringos in Brazil?: Encounters in Sameness, Difference, Solidarity, and Inequality” (“Gringos negros no Brasil?: encontros na semelhança, diferença, solidariedade e desigualdade”), Pinho discute a construção de uma solidariedade racial negra consequente desse turismo de raízes. Ela analisa como algumas instituições afro-brasileiras se beneficiam e como os afro-americanos tentam direcionar seus gastos de forma a ajudar os afro-brasileiros. Há também uma análise de como atores e ativistas afro-brasileiros são críticos das práticas dos turistas afro-americanos, ao passo que em geral as aceitam. Um guia turístico, por exemplo, mencionou que a presença dos “poderosos” afro-americanos acaba sendo um bom exemplo para os afro-brasileiros.
Apesar de discussões sobre gênero aparecerem por todo o livro, sua maior ênfase está no quarto capítulo. “We Bring Home the Roots: African American Women Touring the Diaspora and Bearing the Nation” (“Trazemos para casa as raízes: mulheres afro-americanas excursionando pela diáspora e levando a nação”) analisa as semelhanças e diferenças percebidas nos discursos dos turistas de raízes homens e mulheres. Enquanto estas geralmente buscam a herança africana para “levar de volta para casa”, os homens quase sempre veem suas viagens como uma forma de reforçar a posição de liderança dos afro-americanos na diáspora. A autora enfatiza também que, apesar de as mulheres formarem a maioria dos turistas afro-americanos no Brasil, esse segmento de mercado é ainda administrado por homens.
O quinto e último capítulo, “The Awakening Giant: The State’s Belated Acknowledgement of Roots Tourism” (“O gigante a despertar: o reconhecimento atrasado do turismo de raízes pelo Estado”), estuda a mudança de atitude do governo da Bahia em relação ao turismo de raízes afro-americano. A criação da CAHT (Coordenação do Turismo Étnico Afro) pela Bahiatursa, em 2008, é para Pinho um momento decisivo, que ela analisa não apenas como uma resposta a um mercado crescente, mas principalmente em relação a mudanças políticas e sociais que aconteceram no Brasil no âmbito das relações raciais de 2003 a 2016, muito devido ao governo do Partido dos Trabalhadores, tanto no estado da Bahia como na presidência da república.
O livro termina com uma conclusão que explica e reforça a importância do estudo do turismo e com um epílogo no qual a autora analisa como o ainda recente aumento do turismo de raízes afro-americano para Cuba e o surgimento do turismo de ativistas de organizações ligadas ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) podem vir a afetar o turismo de raízes afro-americano para o Brasil.
Mapeando a Diáspora vem para somar no campo de estudos raciais. Além da análise do turismo de raízes em si, o livro traz importantes discussões sobre relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, sobre as relações entre estes dois países, assim como sobre as conexões entre eles e outros países africanos e da diáspora africana. É também um texto importante para os estudos hemisféricos americanos.
Resenhista
Antonio Luciano de Andrade Tosta – University of Kansas. https://orcid.org/0000-0001-5643-2708
Referências desta Resenha
PINHO, Patricia de Santana. Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2018. Resenha de: TOSTA, Antonio Luciano de Andrade. Mapeando a diáspora: turismo afro-americano de raízes no Brasil. Afro-Ásia, n. 64, p. 775-780, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]