Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários | João Pimentel, Zé McGill

O livro “Mordaça: história de música e censura em tempos autoritários” de João Pimentel e Zé McGill se apresenta como um instrumento de extrema urgência, tanto para pesquisadores da arte, bem como para todos que queiram compreender parte da história do Brasil por meio da música e dos personagens que estiveram de algum modo presentes durante um dos momentos mais perversos na esteira dos acontecimentos no âmbito político e cultural, que foi a ditadura militar e o famigerado AI-5 (Ato Institucional número 5).

João Pimentel foi durante muito tempo repórter crítico do jornal O Globo. Como autor, entre um de seus livros está “Blocos- uma história informal do carnaval de rua”, publicado pela editora Relume Dumara, em 2002. E Zé McGill, que é oriundo de Oregon, EUA, e que vive no Rio de Janeiro desde criança, também é jornalista, e entre suas produções encontra-se “Saquarema Sete Três”, publicada em 2018 pela editora Tinta Negra. Ambos os autores reúnem na presente obra aqui resenhada a experiência de um percurso vivenciado nas constantes observações, assim como dos entrelaçamentos do convívio com/na arte, cujo olhar perpassa e vai além do que está posto, pois enxergam as sensibilidades, e, durante as entrevistas souberam trazer para o leitor elementos de suma importância para a costura e exposição que se mostram como atemporais: o autoritarismo.

Diante dessa questão, portanto, percebe-se que o mandonismo, que se ramificou durante esses longos e tensos anos, foi ressignificado, e que até nos dias atuas é posto como a arma letal de uma elite desmesurada. A multiplicidade com o qual o estudo é conduzido faz com que o leitor note uma arte de resistência. Aquela que subverte a ordem estabelecida. As fontes são apresentadas conforme a leitura avança: reportagens de jornais, fotografias, as entrevistas (pesquisa oral), além das letras com as anotações e carimbos da censura, enriquecem o livro.

Desde a capa, que nos instiga a pensar sobre o silenciamento pela conduta autoritária dos governos da época, logo projeta o leitor para o prefácio escrito de forma lúcida e sensível por Sérgio Augusto.

A obra, portanto, é composta por 29 seções que são distribuídas ao longo de suas 335 páginas. No entanto, algumas dessas divisões são compartilhadas por mais que um sujeito daquela engrenagem histórica. São 31 personagens e uma multiplicidade de experiências vividas nos turvos tempos da ditadura.

Já na introdução, o leitor tem o caminho sedimentado pelos conceitos, a exemplo de Censura, que percorrerá as linhas subsequentes. Dessa maneira, é feita uma cronologia, de forma que são apresentados alguns momentos onde o uso conceitual da palavra censura, assim como suas práticas, foi utilizado, e com o passar dos anos, esse mecanismo foi sendo transformado, e apropriado pelos governos de cada momento histórico. Desde o período colonial (1500- 1822), passando pela República Velha (1889-1930), Estado Novo (1937-1945), até desembocar na ditadura militar, em 1964.

É possível notar que suas variadas práticas autoritárias não são estanques. Contudo, sua essência permanece: que é a tentativa de asfixia e apagamento do outro. O cerceamento da liberdade é mote para as reformulações de embate e perseguição.

Dessa maneira, portanto, a Arte surge como elemento transgressor. As rupturas impostas através do pensar crítico coloca o leitor frete às relações sociais, suas fragmentações, e uma conjuntura altamente perigosa para todos aqueles que fazem da linguagem seu instrumento de luta.

Na primeira seção, na série de apresentações sobre os principais personagens e sujeitos históricos que compõem essa obra, temos “A força da persuasão”. Os títulos de cada capítulo nos indicam o sentido em torno do que os autores pretendem situar o leitor. Nesse caso, é sobre um personagem que não esteve envolvido com a produção autoral da música, mas na defesa desta. João Carlos Muller era advogado, e atuou para vários artistas. Fica claro que ao apresentar já de início este personagem, significa passar para o leitor como funcionou os bastidores e organicidade das relações naquela época, de maneira a evidenciar os censores, e quem fazia esse intermédio.

Na parte seguinte, intitulada “Driblando com uma caneta na mão”, após as incursões nos bastidores diante de tensas e intensas relações descritas anteriormente, é nos contada a trajetória daquele que seria um dos mais perseguidos pela ditadura: Chico Buarque. Foi um dos nomes mais combativos durante os anos de chumbo. Suas músicas expuseram as vísceras daquele sistema nefasto. Embora o livro tenha como foco central o universo da música, com Chico a perseguição se transpôs para o campo teatral, quando do embate dos órgãos governamentais para impedir a apresentação de “Roda Viva” no ano de 1968. Na música, a mais sistematicamente perseguida, no caso do mencionado autor, foi “Apesar de Você”. Com isso podemos dimensionar o tamanho da versatilidade de Chico Buarque frente aos obstáculos da época.

E assim as linhas que compõem a obra são costuradas, de forma que a cada página os artistas reavivam por meio de relatos de suas experiências fatos até então desconhecidos. Ivan Lins, por exemplo, em “Não ande nos bares, esqueça os amigos”, tece os aspectos da vida privada, quando diz que o pai era a favor da revolução (golpe militar de 1964), mas o mesmo seguiu num contra fluxo do âmbito familiar, e se envolve desde muito cedo no engajamento daquilo que propõe a luta de esquerda.

Na seção seguinte, denominado de “A recomeçar como canções e epidemias”, é possível acompanhar os relatos de João Bosco, que menciona a importante parceria com o poeta e compositor Aldir Blanc, que faleceu em 2020 vitimado pela Covid-19. Já na parte seguinte, “levando os censores para o churrasco”, Rildo Hora e Genilson Barbosa, que eram produtores, e faziam a ponte entre artistas e gravadoras, de maneira a intermediar as relações, que quase sempre se mostravam como extremamente desgastantes. Todavia, diante das dificuldades enfrentadas nessa tarefa, utilizava-se de estratégias para conseguirem o máximo de aprovação. Essa tônica se tornou comum durante o período ora apresentado.

A cada capítulo e relatos dos sujeitos históricos uma nova multiplicidade de questões se entrelaça, e nos conduz pelos labirintos da memória. Diante disso, e na esteira desses acontecimentos, na apresentação de “Da Bossa Nova à canção de protesto”, Carlos Lyra, nome de referência musical, que de alguma maneira transitou por vários espaços, reafirma seu gosto pelo marxismo, e de que maneira seu conhecimento alicerçou o caminho para subverter, escrever e se posicionar àquela altura. Também esteve envolvido com as atividades em torno da UNE, CPC (Centro Popular de Cultura), além da aproximação com outros nomes de grande importância, como o poeta Ferreira Goulart e o cineasta Leon Hirszman, entre outros.

Tendo em vista esses fatos, o leitor, além de se apropriar das histórias de cada canção, e os significados das palavras ali postas, observa que algumas instituições e grupos, a exemplo dos citados acima, serviram de espaços de vivências e convivências. Foram redutos das consolidações e propagações das ideias e ações que transgrediram aquele establishment.

São histórias de músicas e resistências que denotam as relações sociais, e a leitura dessa obra é bastante esclarecedora e substanciosa, sobretudo quando o personagem que foi uma testemunha ocular daquelas tensas relações, e ajudou a tecer as linhas que expressavam o clamor da classe. Marcos do Valle foi um dos condutores de um manifesto contra aquele sistema. E como o próprio título que trata dessas elucubrações- “A previsão do tempo instável”-, comprova a pulsação das veias que entrecortavam o campo minado em que estavam estabelecidos.

As divisões seguintes são alinhavadas de forma que outras experiências contemplem os aspectos políticos e culturais. São vozes dissonantes. Esse destoar, típico das contravenções de uma arte proferida e combativa, tem em “Eternamente grávida”, a fala e vez de uma mulher: Joyce Moreno. Seu combate se deu de múltiplas formas. Além de negar que suas músicas apenas atendessem os anseios mercadológicos (exigência das gravadoras) combatia contra a estrutura patriarcal erigida ao longo da história. Isso mostra o quanto o capitalismo já estava enviesado nas estruturas de poder da elite econômica.

Outra personagem feminina é Beth Carvalho, o nome do título retrata a grandeza da cantora, que está registrado em “A madrinha e o grande poder transformador”. Assim como Joyce, Beth também é uma das poucas artistas que ganhou notoriedade no espaço da música durante a ditadura militar. Além de fazermos reflexões acerca das letras e suas histórias, esse fato reforça o quanto perverso era aquela atmosfera. Na mesma medida, no entanto, podemos observar que algumas mulheres já iniciavam a quebra dos paradigmas estruturados pelo poder patriarcal.

Beth soube se impor diante das dificuldades. Colocou o Samba como seu sustentáculo, e avançou até romper com uma série de barreiras. Entre o ato de amamentar sua filha Luana, entre um espetáculo e outro, presenciou o ataque com bombas no Riocentro.

É importante notar que o livro, ao final de cada relato, faz algum tipo de paralelo com a conjuntura do momento na qual a entrevista foi realizada. Nesse caso, àquela altura, Beth revela seu posicionamento político, e que mesmo debilitada, assistia perplexa, porém carregada de esperança, as eleições de 2018. Mesmo assim, saiu para votar em Fernando Haddad, naquela corrida presidencial. A cantora veio a falecer em 2019, mas deixou um legado de luta no âmbito político e cultural.

Ainda sobre a participação das mulheres, como forma de analisar a circularidade de suas ideias e criações na vida pública, é interessante buscar no pensamento de Michelle Perrot, um ponto de convergência e elucidação para embasar ainda mais a transversalidade da presente obra. Dessa maneira, a autora assim nos conta, em um dos capítulos de seu livro, intitulado Minha História das Mulheres: “As compositoras foram raras e esquecidas […] Atualmente, as dificuldades persistem no domínio musical […]” (PERROT, 2015. p. 105). Durante longo tempo a história das mulheres, como nos indica a autora, sofreu com muitas restrições, que teve suas rupturas paulatinas. Contudo, algumas se destacaram nos tempos mais sombrios, e nos espaços predominantemente masculinos, e por certo abriram caminhos para outras gerações.

Na parte denominada de “Patriotas ou Idiotas”, Nelson Motta comenta aquela universalidade na perspectiva do jornalista e músico. Talvez sua aproximação com o noticiário e aquele mundo multifacetado o fez constatar dois anos antes o que estava se desenhando. E junto com esses tracejados de mistura envolvendo notícia, poesia e música, também temos a incitação para o pensar crítico. A criação de Jards Macalé, que levou a apresentação de seu álbum “Banquete dos Mendigos” para as mentes inquietantes, e levantou certa preocupação do governo, uma vez que esse tipo de questionamento poderia desmascarar o tão propagado “milagre” econômico e social, que apenas existia no mundo fechado da elite econômica.

Os aspectos polifônicos encontram em Caetano Veloso mais um ponto de grande importância e colaboração para o presente estudo. Isto posto, em “Há algo de ridículo na censura”, temos o desenrolar dessa vertente combativa. Reflexo desses combates é respondido, duas semanas após o decreto do AI-5, por sua prisão, juntamente com Gilberto Gil. O exílio, assim como o retorno, é contado também por meio de fotos e documentos. São fontes históricas de primeira grandeza que possibilita para quem os observa como um exercício, assim como todos os outros mencionados. Como não poderia faltar, a Tropicália reforça sua experiência com a rotina de combate ao autoritarismo.

A cada página há uma nova descoberta. A tentativa de asfixia da arte naquele momento era aplicada de várias maneiras, como a retirada de palavras que os censores não entendiam, ou julgavam que era uma espécie de código subversivo. Até as músicas cantadas por Odair José passavam pelo crivo do órgão. Temos o exemplo da letra da música “Vou tirar você desse lugar”, que foi interpretada pelos censores como sugestão para a deposição do presidente Médice.

Caminhando pela rota das leituras iconográficas, inserimos nesse debate as capas dos discos, que eram temas de debates na época. Ney Matogrosso apareceu nu na capa do seu disco de 1978. A imagem tinha como objetivo banalizar o discurso conservador, além de causar certa curiosidade sobre o conteúdo. O que deu certo. Ney já vinha sofrendo perseguições desde os tempos do grupo Secos & Molhados.

João Pimentel e Zé Mcgill reúnem no livro uma série de imagens, quase todas são de documentos com as observações e justificativas para os vetos. Contudo, para além disso, encontramos na obra uma vasta compilação de documentos, que de alguma maneira pode ajudar o pesquisador a entender um pouco mais sobre cada artista e o recorte de tempo e espaço aqui abordado.

Como forma de esclarecer o sentido do observar os aspectos implícitos em cada imagem, durante a leitura podemos refletir sobre aquilo que Peter Burke nos aponta sobre o tema. Que assim nos diz:

Antes de tentar ler imagens ‘entre as linhas’, e de usá-las como evidência histórica, é prudente começas a compreendê-la pelo seu sentido […] Imagens são feitas para comunicar. Em um outro sentido elas nada nos revelam […] (BURKE, 2017. p. 55).

O exercício do olhar para além do que está posto é um desafio para quem avança nas linhas e nos caminhos trilhados por cada personagem. São vivências interpostas nas fronteiras de uma série de acontecimentos. Ao impedir uma palavra, quando uma música era vetada, podemos expandir, esmiuçar e atrelar o sentido daquilo para um autoritarismo que procurava dominar não somente os corpos, mas as mentes. As torturas eram aplicadas de diversas formas.

Observa-se que alguns casos se repetem sistematicamente com vários artistas, a exemplo de Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Ricardo Vilas, Solano Ribeiro, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro, Eduardo Gudin, Martinho da Vila, Evandro Mesquita, Leo Jaime, Phelippe Seabra, Clemente Nascimento, Benegão e Gilberto Gil.

E para completar o ciclo de conversas, não por acaso, a obra aborda a trajetória de Gilberto Gil. Mais uma vez é tratado sobre o exílio, como Caetano já havia mencionado, assim como descreve a importância dos festivais de músicas, e como essa experiência ajudou aqueles jovens a encontrarem coesão e fazer com que suas vozes se tornassem audíveis naqueles turvos e turbulentos dias.

Outro episódio interessante contado no livro trata sobre a letra que Gil compusera com Chico Buarque: Cálice. Sobre isso, temos:

A censura, no entanto, perseguiria Gilberto Gil. Se não havia mais repressão pesada, da violência física contra os artistas, havia o cerco às ideias […] O episódio de ‘Cálice’, parceria com Chico Buarque proibida pela censura, é bastante conhecido e já comentado nesse livro. É possível ver em vídeos na internet a apresentação dos dois no festival Phono 73. Enquanto Gil canta palavras ininteligíveis sobre a melodia, Chico repete o ‘Cale-se’. Quando Chico tenta cantar, o microfone é cortado. (PIMENTEL; McGILL. p. 306)

No referido trecho temos dois momentos que nos faz refletir sobre os diferentes momentos de asfixia que se consolidou por meio da violência das ideias e física. Aquela que perdurou por um longo período, onde muitas pessoas foram assassinadas por pensar diferente. O outro momento ficou mais latente pela tentativa de apagamento das ideias, que num grau elevado acabava estrangulando também a alma, e, por conseguinte, o corpo.

Por fim, como parte da composição da obra, e não menos instigante, temos o “Posfácio: censura nos anos Bolsonaro”. Nessas linhas finais, que servirão de referência para as gerações vindouras, consta-se a perversidade do atual presidente nas inúmeras tentativas de censurar diversas áreas culturais. O caso do filme de Wagner Moura, Marighella, a extinção do Ministério da Cultura são simbólicos na atual conjuntura. Esses foram apenas alguns, dentre os vários relacionados ao final da obra.

Em virtude do exposto, é possível constatar que esse livro nos coloca diante de um processo histórico altamente dinâmico, e, na mesma medida, perverso. Todavia, a Arte foi seu principal instrumento de resistência. Essa história se confunde com os dias atuais. Durante os relatos, tecido muitas vezes como um manual de combate, pudemos perceber que o caminho, ainda hoje, para derrubar o autoritarismo que ainda insiste em reestruturar-se com outras roupagens, é através da munição da Arte de contravenção.


Referências

BURKE, Peter. Testemunho Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2015.

PIMENTEL, João; MCGILL, Zé. Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários. Rio de Janeiro: Editora Sonora, 2021.


Resenhista

Edinei Pereira da Silva – Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em História, Sociedade e Cultura pela mesma instituição. Graduado em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (FSA). E graduado também em História pela UNICID- Universidade Cidade de São Paulo. E-mail para contato: [email protected]


Referências desta Resenha

PIMENTEL, João; MCGILL, Zé. Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários. Rio de Janeiro: Editora Sonora, 2021. Resenha de: SILVA, Edinei Pereira da. Revisitando a obra “Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários”. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, v.1, n. 28, p. 116- 127, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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