Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários | João Pimentel, Zé McGill

O livro “Mordaça: história de música e censura em tempos autoritários” de João Pimentel e Zé McGill se apresenta como um instrumento de extrema urgência, tanto para pesquisadores da arte, bem como para todos que queiram compreender parte da história do Brasil por meio da música e dos personagens que estiveram de algum modo presentes durante um dos momentos mais perversos na esteira dos acontecimentos no âmbito político e cultural, que foi a ditadura militar e o famigerado AI-5 (Ato Institucional número 5). Leia Mais

Gold, Festivals, and Music in Southeast Brazil: Sounding Portugueseness | Barbara Alge

Barbara Alge Imagem Goethe Universitat 1
Barbara Alge | Imagem: Goethe Universität

O livro da etnomusicóloga Barbara Alge, Gold, Festivals, and Music in Southeast Brazil: Sounding Portugueseness, baseia-se numa etnografia da Festa de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do pequeno vilarejo de Morro Vermelho, um distrito de Caeté, Minas Gerais, e antigo centro de mineração que remonta ao início do século XVIII. Por meio de seu relato, a autora aborda diversos temas relacionados a debates contemporâneos na etnomusicologia e ciências sociais de modo geral, tais como: conceitos de raça e relações raciais; colonialidade e pós-colonialidade; patrimonialização; processos civilizatórios entre outros. Estas discussões têm, como pano de fundo, uma festa popular católica celebrada, em Morro Vermelho, supostamente a mais de 300 anos.

Desde quando Francisco Curt Lange fez suas primeiras investidas nas cidades históricas de Minas, a música colonial mineira tem sido investigada por diversos pesquisadores, como Paulo Castagna, José Maria Neves, Maurício Monteiro, Maurício Dottori entre outros. No entanto, talvez por sensibilidades musicais análogas às de Mário Andrade quando se deparou com os corais e orquestras das cidades históricas, a performance contemporânea de repertórios sacros ainda preservados por músicos locais foi, de modo geral, ignorada, com raras exceções (ver, por exemplo, LARA MELO, 2001; NEVES, 1987; REILY, 2006; 2011). É verdade que muitas destas corporações musicais envolvem participantes sem ou com pouco treinamento musical formal, evidenciando particularidades nas afinações e técnicas performativas. Mas, como este livro revela, estas performances apontam para valores estéticos e para a forma como estes valores estão implicados nas relações de classe e raça locais, relações estas implementadas e enraizadas, junto com o projeto civilizatório da colonização. Leia Mais

El dulce reato de la música. La vida musical en Santiago de Chile durante el período colonial | Alejandro Vera Aguilera

Alejandro Vera Aguilera Imagem Trendsmap
Alejandro Vera Aguilera | Imagem: Trendsmap

Este libro es fruto de muchos años de investigación rigurosa y un buen espécimen –tal vez el mejor– de la situación actual de los estudios de musicología histórica, cuya vigencia en el siglo XXI ha debido sortear los avatares propios de un quehacer eclipsado por su par y competidora directa, la musicología urbana. El autor declara, en efecto, anclarse en esa primera tradición, a sabiendas de que no goza de la mejor fama debido a su persistente aura positivista. Aparenta ser un texto escrito por y para el mundo musicológico, pero sus aportes para el conocimiento del pasado colonial, y para la historia –que es desde donde intento escribir esta reseña–, son decisivos. La obra recibió el Premio de Musicología Casa de las Américas (2018), y es y será un referente obligado para quien busque adentrarse en la vida musical de la ciudad de Santiago de Chile durante el período colonial12.

Vera realiza una propuesta teórica ambiciosa en la “Introducción” (pp. 11-53), donde formula la intención de que su trabajo refleje su interés, desde la música, de aproximarse a la historia de las emociones, a pesar de la aridez de las fuentes trabajadas (p. 19). Hay, asimismo, una tentativa por hilar una narración “densa” geertziana, aspecto sobre el que se insiste a lo largo de este apartado inicial. Sin embargo, esta promesa se encuentra algo desvinculada de planteamientos o métodos insertos en una trama mayor de la Historia Cultural13. El resultado termina acercándose más bien a aquello que las fórmulas de la musicología histórica han podido entregar, con un desenlace determinado por el “mayor énfasis […] en la partitura como fuente y al análisis musical como herramienta” (p. 21). Así, el texto se desenvuelve de manera cómoda en la tradición musicológica más apegada a la parte musical. Leia Mais

Também os brancos sabem dançar: um romance musical | Kalaf Epalanga

Kalaf Epalanga
Kalaf Epalanga | Foto: J. Carlos/DW

O músico e escritor Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo, recém-lançado no mundo da literatura, nasceu em 1987, na cidade de Benguela, em Angola. Ao fugir da Guerra Civil de seu país, mudou-se aos 17 anos para Lisboa, onde desde então vive em alternância com Berlim. Kalaf Epalanga é também autor da coletânea de crônicas (divididas em duas partes): Estórias de amor para meninos de cor (2011) e O angolano que comprou Lisboa (2014). Publica, em 2017, seu primeiro romance: Também os brancos sabem dançar: um romance musical.

Kalaf ganhou notoriedade no âmbito musical através do som frenético e envolvente produzido pelo grupo musical Buraka Som Sistema, do qual é membro. Em entrevista à revista Estante (2015), comenta que virar escritor não estava nos seus planos. Entretanto, o mundo das palavras sempre o seduziu e sua bibliografia, embora ainda pequena, possui enorme representatividade em função de suas obras dialogarem com temas relevantes que marcam a vida do autor, como identidade, migração e angolanidade. Leia Mais

Mandarin Brazil: race, representation, and memory. | Ana Paulina Lee

A obra Mandarin Brazil , premiada como melhor livro em humanidades na seção Brasil pela Latin American Studies Association, é uma leitura importante para a compreensão das representações dos chineses na cultura popular brasileira. O livro remonta a construção e ressignificação dos estereótipos raciais associados ao imigrante chinês na literatura, na música e no teatro nos séculos XIX e XX. A obra extrapola o enfoque da historiografia nacional sobre os debates e as construções raciais em torno da imigração chinesa entre 1850 e 1890. Ana Paulina Lee (2018) priorizou a elaboração, reprodução e apropriação da chinesness , expressões culturais que elaboram conceitos e estigmas raciais referentes à China e aos seus habitantes. Essas imagens foram concebidas e apropriadas em meio a um intenso diálogo global fortalecido após a abolição do tráfico negreiro. Tais representações circulam dentro de uma memória circum-oceânica, um processo criativo por meio do qual a cultura da modernidade se inventa ao transmitir um passado que pode ser esquecido, recriado ou transformado em uma memória coletiva. Leia Mais

Music, informal learning and the school – GREEN (O-ASPOM)

DIABATÉ Toumani seu filho Sidiki e seu grupo Symmetric Orchestra no festival Akoustik Bamako RFI David Baché
Toumani Diabaté, seu filho Sidiki e seu grupo Symmetric Orchestra no festival Akoustik Bamako RFI/David Baché

Music informal learning and the schoolGREEN, Lucy. Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy. Sn: Ashgate, 2008. Resenha de: COUTO, Ana Carolina Nunes. Opus, v. 26 n. 1, p. 1-10 jan./abr. 2020.

O ano passado marcou uma década do lançamento do livro Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy, de Lucy Green (GREEN, 2008). Dentro de um crescente interesse da musicologia a respeito daquela música popular que se insere na cultura pop e rock anglo-americana, o livro de Green se inseriu de forma a contribuir com os debates que buscam reposicionar o papel da música e do fazer musical na sociedade ocidental contemporânea. Nesse emaranhado de discussões emergentes, que procuram novos modelos teóricos para compreender os fenômenos musicais contemporâneos, cujo surgimento, manutenção, reprodução e valorização não mais são suportados teoricamente pelos antigos e canônicos critérios de legitimação, o livro em questão soma-se ao debate, apresentando uma nova proposta pedagógica para a sala de aula. Ainda que o marco temporal que completa uma década do seu lançamento seja algo significativo do ponto de vista da circulação, o livro pouco aparece dentre as referências da produção da área da educação musical no Brasil, o que se poderia explicar por diferentes razões. Uma forte aposta talvez seja a barreira da língua, uma vez que o texto continua sem tradução para o português. Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy faz parte de uma agenda de pesquisa mais ampla de Green, como veremos na sequência.

Professora e pesquisadora do Instituto de Educação de Londres (agora parte da University College London), Lucy Green foi integrante de um programa nacional de educação musical na Inglaterra chamado Musical Futures. Em 2001 publicou o livro How popular musicians learn (GREEN, 2002), no qual descreveu como 14 músicos populares adquirem suas habilidades e conhecimentos musicais. Neste livro, ela relata que os músicos populares aprendem por meio das chamadas “práticas informais de aprendizagem musical”[1] (GREEN, 2002: 5). Em suma, tais práticas evolvem a escolha do repertório a partir da preferência e identificação pessoal com a música que se deseja tocar; a prática de “tirar de ouvido”[2] essas músicas onde o recurso à partitura não é desejável e nem imprescindível; a aprendizagem através de grupos de amigos e/ou parentes, que interagem sem que ninguém exerça diretamente a função de professor; uma profunda integração das atividades tocar/compor/ouvir, com ênfase na criatividade; uma aprendizagem de natureza mais holística, ao invés daquela que é compartimentada em tópicos propositalmente organizados com intuitos explicitamente pedagógicos. Tudo isso ocorre dentro de um processo de “enculturação” no qual a “aquisição de habilidades e o conhecimento musical [acontecem] por imersão diária em música e em práticas musicais de um determinado contexto social” (GREEN, 2002: 22).

Tais práticas, que costumavam ficar à margem de ambientes formais de ensino de música, foram consideradas fundamentais para a aquisição de conhecimentos e habilidades pelos 14 músicos que Green investigou. A autora identificou que a utilização dessas práticas possibilita um melhor desenvolvimento da percepção auditiva de seus praticantes, uma vez que a tarefa de “tirar de ouvido” as músicas faz com que esta habilidade se aperfeiçoe. Além disso, outras habilidades, tais como flexibilidade, versatilidade, criatividade, desenvolvimento de um pensamento musical autônomo, foram identificadas como sendo comuns a todos aqueles músicos.[3]

A partir dessas informações, Green problematizou a inserção dessas práticas dentro de contextos formais de ensino, mais especificamente a escola,[4]dando início a uma pesquisa subsequente que resultou no livro objeto da presente resenha. Assim, Green se propôs a investigar como seria possível e desejável incorporar aquelas práticas informais de aprendizagem de música dentro do espaço escolar e conhecer como essa incorporação afetaria o processo de aquisição de habilidades e conhecimentos dos jovens, e também como elas poderiam modificar a forma com que eles ouvem, apreciam e compreendem música não apenas na sala de aula, mas também para além dela.

O livro está organizado em sete capítulos. Farei uma descrição sumária de cada um deles, para, em seguida, deter-me mais profundamente nos aspectos metodológicos do projeto de Green. A opção por esse caminho se dá por duas razões. Primeiramente, o livro traz diversos elementos diferentes que integram as discussões a respeito da pedagogia da música, e uma análise de todos eles numa resenha dessa natureza dificilmente escaparia à superficialidade. Segundo, a decisão pelo destaque dos aspectos metodológicos se faz considerando que a área de Música na academia ainda apresenta muitas dificuldades em relação às atividades envolvendo a pesquisa, como diversos autores já vêm apontando (BARROS, 2015; BORÉM; RAY, 2012; CAVAZZOTTI, 2003; COUTO, 2017; DEL BEN, 2010; DOMENICI, 2005, 2012; FIGUEIREDO; SOARES, 2012; GERLING; SOUZA, 2000; SANTIAGO, 2007; SANTOS, 2003; TOMÁS, 2015; TRAVASSOS, 2003). Desta maneira, a opção por construir a resenha dessa forma pode ser interessante, dentre outras coisas, do ponto de vista didático.

O capítulo 1 apresenta a problemática na qual surgiram a ideia do projeto e os procedimentos teórico-metodológicos de sua execução. O capítulo 2 descreve o primeiro estágio de execução do projeto, dando destaque para os cinco princípios que orientam as chamadas práticas informais de aprendizagem e sua inclusão dentro desse primeiro estágio. Relembrando, esses princípios são: a escolha do repertório pelos alunos, a partir de suas preferências; aprender através da prática “tirar de ouvido” as músicas, nos instrumentos de suas escolhas; aprender entre os colegas, seja através da imitação, troca de ideias e observações, sem que um professor esteja conduzindo e organizando as tarefas; construir os conhecimentos e habilidades holisticamente pela imersão na escuta e cópia da música escolhida, sem compartimentalização das tarefas ou conhecimentos; uma prática onde a escuta atenta, a performance, a improvisação e a criação estejam misturadas e integradas no processo da aprendizagem, com ênfase na criatividade pessoal (GREEN, 2008: 10). Um aspecto muito interessante deste capítulo, do ponto de vista da formação profissional, diz respeito à relação dos professores que participaram do projeto. Podemos acompanhar o processo de transformação da visão daqueles professores, que partiu do medo e receio iniciais e caminhou até um sentimento de entusiasmo provocado por novos insights didáticos. Assim, observamos como as modificações na metodologia do ensino de música podem suscitar conflitos internos e revelar as dificuldades de transposição de determinadas tradições enraizadas.

O capítulo 3 dá destaque ao processo de produção da música e, entrelaçadamente a este, ao desenvolvimento da escuta. As formas como os alunos manipulam diretamente os sons através dos seus instrumentos e/ou voz como decorrência das práticas de “tirar de ouvido” são analisadas, evidenciando a complexidade do fenômeno de aprendizagem por essa via. O capítulo 4 problematiza o quanto a educação musical tradicional valoriza os processos para aquisição e domínio da leitura e escritas da música em detrimento da habilidade de ouvir. Diante disso, Green retoma a centralidade que a escuta desempenha na trajetória de aprendizagem dos músicos populares e analisa detalhadamente como a experiência realizada com os alunos de seu projeto operou mudanças nos tipos de habilidades e conhecimentos que estes desenvolvem não apenas com os seus instrumentos, mas especialmente em relação à apreciação musical, inclusive para além da sala de aula.

O capítulo 5 destaca a subjetividade dos alunos em suas diferentes relações com música. O papel do envolvimento afetivo com o fazer musical aparece como determinante para a compreensão musical. Nesse sentido, as práticas informais de aprendizagem musical resgatam a importância do prazer e conduzem a uma autonomia da relação dos alunos com atividades musicais que ultrapassam aquelas realizadas no espaço da sala de aula.

O capítulo 6 analisa o aspecto coletivo desse tipo de aprendizagem. São examinados como os alunos se organizam, os processos de cooperação para o alcance da aprendizagem, bem como o surgimento de lideranças entre eles. Nesse sentido, o capítulo aponta caminhos para lidar com situações de diferenças nos níveis de habilidades e conhecimentos entre alunos de uma mesma turma.

O último capítulo do livro é o relato da mesma experiência com as práticas informais de aprendizagem de música, porém com um repertório diferente: a música clássica de tradição europeia. Com essa nova variável – a mudança do repertório –, Green pôde demonstrar como uma metodologia que insere as práticas informais, especialmente aquela de “tirar de ouvido” músicas de gravações, passa a ser o ponto de virada para repensarmos os modos de ensino da música. Ao verificar que os alunos melhoraram consideravelmente sua aprendizagem e sua relação com um repertório que não costumava agradá-los, Green ganha força em seu argumento de que, mais do que o repertório, o que importa é o método. A autora termina enfatizando que não se trata de uma proposta de abandono ou substituição das antigas metodologias, mas, sim, da inclusão de novas práticas que caminhariam conjuntamente em sala de aula.

Passaremos agora à análise metodológica da obra.

Questões metodológicas de Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy

Como argumento de problematização, Green afirma que, desde os anos 1960, os educadores musicais têm se empenhado em encontrar maneiras de aumentar a motivação e a participação dos alunos em sala de aula. Dentre as várias estratégias utilizadas, houve a tentativa de tornar o aprendizado musical mais significativo a partir da inserção de músicas que fossem familiares ao contexto social dos alunos. Com isso, novas músicas foram incorporadas às aulas, alterando-se o conteúdo dos currículos. No entanto, um aspecto importante teria sido negligenciado: o método. Isso levantou as suspeitas de que, mesmo após a inclusão de músicas populares nos currículos das escolas, a pedagogia utilizada em sala de aula pelos professores poderia ser o fator causador da permanência da indiferença e apatia dos alunos em relação às aulas de música, e não mais e unicamente o tipo de repertório utilizado (GREEN, 2008: 2-3). A partir dessa hipótese, Green propôs uma pedagogia alternativa que consistiu em incluir práticas informais de aprendizagem musical dentro da sala de aula, modificando não apenas o conteúdo, mas também o método de ensino.

Green delimitou cinco principais diferenças entre as metodologias empregadas nas aprendizagens formal e informal. Esquematicamente, tais diferenças estão sintetizadas no Quadro 1 a seguir:

 

Quadro 1: Características das aprendizagens formal e informal

Quadro 1 Característidas das aprendizagens formal e informaç

Segundo Green (2008: 4), as habilidades promovidas pela prática informal foram negligenciadas dentro do ensino musical durante muito tempo. A autora afirma que o uso delas dentro da sala de aula poderia ser visto como uma atitude inclusiva, por oportunizar que diferentes habilidades musicais se façam presentes no desenvolvimento dos conteúdos, permitindo assim que mais alunos, muitas vezes rotulados de não musicais, também consigam se expressar musicalmente.

Identificada essa problemática e delineado o objeto, Green elaborou algumas questões de pesquisa:

  1. As práticas de aprendizagem informal de música (GREEN, 2002) poderiam aumentar a motivação para aprender música e ampliar a gama de habilidades musicais dos alunos?
  2. Essas práticas poderiam tornar a educação musical mais inclusiva, principalmente para aqueles alunos que tiveram suas capacidades embotadas nos ambientes formais?
  3. As práticas informais poderiam conduzir a uma ampliação da apreciação musical dos alunos, tanto do tipo de música presente em seus contextos de origem quanto do tipo de música existente além dele? (Adaptado de GREEN, 2008:4).

O objetivo, portanto, foi investigar se seria possível e benéfico trazer alguns dos aspectos das práticas de aprendizagem informal de música popular para dentro do ambiente da sala de aula escolar (GREEN, 2008: 9). Especificamente, o estudo visou:

  1. Possibilitar a emergência e descoberta de determinadas habilidades musicais dos alunos que até então não eram possibilitadas através da prática formal;
  2. Despertar nos alunos a capacidade de ouvir e compreender criticamente as músicas oriundas tanto de seus contextos quanto de quaisquer outros;
  3. Desenvolver nos alunos a autonomia para que eles mesmos sejam capazes de escolher estratégias que orientem a aprendizagem musical (GREEN, 2008: 13-14).

No total, participaram do projeto 21 escolas secundárias, 32 professores e aproximadamente 1.500 alunos. No entanto, para um estudo aprofundado, foram selecionadas 7 escolas localizadas nas cidades de Londres e Hertfordshire. A idade dos alunos variava entre 13 e 14 anos. Daquelas 7 escolas, foram selecionados um total de 200 alunos e 11 professores, dos quais foram extraídos os dados (GREEN, 2008: 14-15).

As escolas selecionadas concluíram os 2 primeiros estágios do projeto, que num total foi organizado em 7 estágios.[5] No entanto, Green afirma que o foco principal para levantamento dos dados se concentrava na realização do estágio 1 da pesquisa[6] (GREEN, 2008: 14). Tal motivo se explica pelo fato de que é “[…] nesse estágio em que se encontra o núcleo da abordagem, uma vez que é o estágio que mais se aproxima em replicar as práticas informais de aprendizagem musical da maneira que ocorrem fora da escola” (GREEN, 2008: 24). Ela contou com a colaboração de uma equipe de pesquisadores para a realização da pesquisa.

Para levantamento e coleta de dados, que durou um ano acadêmico em cada escola participante, Green utilizou uma multiplicidade de métodos, materiais empíricos, perspectivas e observadores em seu estudo. As ferramentas de coleta de dados foram: observação participante não estruturada dos estudantes trabalhando em pequenos grupos; observação das aulas; gravação de áudio do trabalho em grupo dos alunos; gravação de áudio e vídeo das performances e outras atividades com toda a turma; gravação de entrevistas semiestruturadas com alunos e professores em intervalos regulares; e gravação de reuniões da equipe de professores. Também foram feitas notas de campo de conversas nos corredores e salas de reuniões (GREEN, 2008: 14-15).

Green utilizou entrevistas semiestruturadas com os professores e também com alunos. Além das entrevistas individuais, também foram feitas entrevistas com grupos, tanto de professores quanto de alunos. A escolha de Green por realizar esse segundo tipo de entrevista se justificou como uma tentativa de esclarecer determinadas dúvidas e divergências particulares que surgiam nas entrevistas individuais realizadas ao longo do projeto. Além disso, para ela, “[…] todos os seres humanos formam suas visões e respostas para os fatos como fazendo parte de um grupo” (GREEN, 2008: 17).

As observações ocorreram desde o início do projeto, durante as atividades semanais dos alunos trabalhando em grupo e também nas aulas com a turma toda, e Green as considera como a principal fonte de coleta. Assim, essa estratégia foi tomada como “um bloco de construção central das estratégias do projeto, em relação não só aos papéis dos pesquisadores, mas também dos professores” (GREEN, 2008: 19). Após verificar que a naturalidade dos alunos estava comprometida pela presença dos pesquisadores, o grupo que trabalhou juntamente a Green no projeto optou pela utilização de equipamentos de gravação de áudio durante todo o tempo em que as atividades dos alunos ocorriam, com o consentimento dos alunos. As gravações eram transcritas logo em seguida.

Outras fontes de coleta de dados foram questionários, com respostas fechadas e abertas. Essa estratégia, além de ter servido como meio comparativo com as respostas fornecidas nas entrevistas, também foi um recurso utilizado para assegurar que os respondentes tivessem um espaço de expressão mais reservado, por se tratar de questionários anônimos. Assim, Green procurou garantir respostas individuais livres de uma possível pressão de colegas, e também para oportunizar que pessoas mais tímidas pudessem se expressar. Conversas informais ocorridas em corredores e em outros espaços, tais como sala de reuniões, também foram registradas em notas de campo.

A quantidade de dados coletados reúne cerca de 800 páginas de transcrições e notas de campo e cerca de 100 gravações de áudio, a maioria delas com mais de uma hora de duração.

Green (2008: 20) justifica que, numa pesquisa qualitativa, não é possível afirmar com completa exatidão os pensamentos e ideias dos participantes, considerando que o objeto é mutável. Consciente disso, os dados apresentados e discutidos não são generalizáveis para todo e qualquer contexto. Sempre que possível, as declarações foram ilustradas com excertos de falas ditas pelos atores. Além disso, há a recorrência aos dados obtidos das fontes quantitativas (questionários), como alternativa de checagem de suas afirmações.

Não existe um tópico específico no livro de Green que reúna descritivamente os resultados, considerando a opção da autora pela forma de construção cíclica em relatar o trabalho. Contudo, é possível reunir sumariamente os principais achados de seu estudo a partir do que foi analisado no decorrer dos capítulos, conforme a lista abaixo:

  • Todos os professores que responderam ao questionário final disseram que o uso das abordagens informais na sala de aula mudou positivamente suas maneiras de ensinar (GREEN, 2008: 22);
  • Os alunos aprenderam práticas que lhes possibilitaram a aquisição de uma consciência de suas próprias musicalidades, principalmente aqueles alunos que não tinham tido oportunidade de serem alcançados até então pela educação musical tradicional (GREEN, 2008: 22 e 64);
  • Os alunos adquiriram maior autonomia para direcionarem suas próprias práticas de aprendizagem; essa foi uma razão mencionada por eles para afirmar que essa forma de aprender foi mais prazerosa e mais eficiente pedagogicamente (GREEN, 2008: 102 e 117); OPUS v.26, n.1, jan./abr. 2020 8 COUTO. Resenha de Music, informal learning and the school
  • Os alunos mostraram uma melhora na compreensão e apreciação de músicas, não só daquelas que eles já conheciam, mas também de outras, tornando-os ouvintes mais críticos e com uma mentalidade mais aberta a novos estilos (GREEN, 2008: 22, 82-84 e 168).

Por fim, Green procura deixar claro que todo este trabalho não significou a sugestão pela substituição ou abandono do ensino tradicional de música. Segundo a autora, a utilização das práticas de aprendizagem informal de música seria uma pedagogia alternativa que poderia ocorrer como um complemento às abordagens já utilizadas.

Considerações finais

A música é um produto humano passível de ser investigado tanto pelas ciências empíricas – as naturais (enquanto fenômeno acústico) e as sociais (enquanto fenômeno sonoro-cultural) – como também através de uma abordagem não empirista, por meio de uma concepção formalista (matematizante), pois em música está implícito um pensamento lógico-matemático que possibilita a sua compreensão e transmissão através dos números. Talvez mesmo por tal multiplicidade, somando-se ao fato do pouco tempo de realização de pesquisa por músicos no Brasil, a maioria do conhecimento que produzimos nos cursos de Música ainda lançam mão de processos metodológicos e epistemológicos “emprestados” de outras áreas do conhecimento mais consolidadas no metiê da pesquisa acadêmica. Dentre as necessidades do músico que pretende enveredar-se pela atividade da pesquisa estão o conhecimento das diferentes metodologias e a capacidade de discernir qual delas utilizar, de acordo com a natureza de seu objeto.

Uma das possibilidades de aprendizagem destes aspectos está na observação e análise de trabalhos considerados referência para a área. Lucy Green possui ampla experiência como educadora musical, o que certamente lhe conferiu subsídios para compor seu perfil como intelectual e pesquisadora. Longe de pretender avaliar os méritos da adoção ou não da pedagogia que Green propõe como decorrência de seu estudo aqui descrito, a questão que interessou especificamente nesta resenha foi observar como uma pesquisadora reconhecida internacionalmente elaborou seu projeto de pesquisa e a metodologia para sua execução. A construção de sua problemática se deu a partir de uma trajetória ampla e de longa data, ou seja, a capacidade de Green para olhar a forma de se ensinar música nas escolas de seu país e a sua decorrente problematização só foi possível graças a uma série de conhecimentos práticos e teóricos que são frutos dessa trajetória e experiência.

Além dos conhecimentos sobre música e seu ensino, outro elemento que confere habilidade para sua prática enquanto pesquisadora é o diálogo com outras áreas do conhecimento. Notamos que o plano estratégico da autora para alcançar as respostas de suas questões de pesquisa demonstra perícia e domínio da metodologia de pesquisa amplamente empregada pelas Ciências Sociais. Este fato se dá não apenas pela natureza do objeto construído, mas também porque a autora sempre buscou, em sua trajetória, uma relação muito estreita entre a música e a sociedade (GREEN, 1988, 1997). Isso lhe permite domínio para escolher com conscienciosidade o melhor caminho metodológico para operacionalizar sua pesquisa. Pudemos verificar, então, a construção de um objeto bem delineado na área de educação musical e a escolha e aplicação de determinadas estratégias metodológicas que são facilmente encontradas em livros e manuais de pesquisa em Ciências Sociais. Tais elementos podem servir para os músicos iniciantes na OPUS v.26, n.1, jan./abr. 2020 9 COUTO. Resenha de Music, informal learning and the school atividade de pesquisa como um exemplo de realização de pesquisa sobre o ensino de música em contextos escolares.

Acredito que esse tipo de exercício analítico sobre trabalhos considerados referenciais, não só para a subárea da educação musical, mas também para outras subáreas da Música, pode contribuir para o aprimoramento da formação do músico pesquisador.

Referências

BARROS, Luís Cláudio. Retrospectiva histórica e temáticas investigadas nas pesquisas empíricas sobre o processo de preparação da performance musical. Per Musi, Belo Horizonte, n. 31, p. 284-299, 2015.

BORÉM, Fausto; RAY, Sônia. Pesquisa em performance musical no brasil no século XXI: problemas, tendências e alternativas. In: SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUANDOS DA UNIRIO, 2., 2012, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. v. 1. p. 121-168.

CAVAZOTTI, André. Periódicos brasileiros da área de música: uma breve cronologia (1983-2003).

Opus, v. 9/2, p. 21- 27, dez. 2003. Disponível em: http://www.anppom.com.br/opus/opus9/ opus9-2.pdf. Acesso em: 20 ago. 2010.

COUTO, Ana Carolina Nunes do. A dialética social da pesquisa em Música: produção do conhecimento e autonomia profissional dos músicos performers na pós-graduação brasileira. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFPE, Recife, 2017.

DEL BEN, Luciana. (Para) Pensar a pesquisa em educação musical. Revista da Abem, Porto Alegre, v. 24, p. 25-33, set. 2010.

DOMENICI, Catarina Leite. Interpretando o hoje: uma proposta metodológica para a construção da performance da música contemporânea. In: CONGRESSO DA ANPPOM, 15., 2005, Rio de Janeiro.

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FIGUEIREDO, Sérgio Figueiredo; SOARES, José. Desafios para a implementação metodológica de pesquisa em larga escala na educação musical. Opus, Belo Horizonte, v. 18, p. 257-274, 2012.

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GERLING, Cristina Capparelli; SOUZA, Jussamara. A performance como objeto de investigação. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL, 1., 2000, Belo Horizonte. Anais […]. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 114-125.

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TRAVASSOS, Elizabeth. Balanço da Etnomusicologia no Brasil. Opus, Campinas, v. 9, p. 66-77, 2003.

Notas

[1] Informal music learning practices.

[2] Nota da tradução: O termo utilizado pela autora é copy (copying by ear), conforme consta em todas as suas publicações sobre a aprendizagem dos músicos populares citados neste artigo. A autora destaca a centralidade dessa prática dentro dessa cultura: “By far the overriding learning practice for the beginner popular musician, as is already well known, is to copy recordings by ear” (GREEN, 2001: 60). No entanto, no Brasil o termo vernacular equivalente ao copy do inglês seria “tirar de ouvido”. Optei por mantê-lo da forma que utilizamos aqui, buscando coerência com traduções anteriores de textos da autora no Brasil (GREEN, L. Ensino da música popular em si, para si mesma e para “outra” música: uma pesquisa atual em sala de aula. Revista da Abem, Londrina, v. 20, n. 28, p. 61-80, 2012), onde o termo traduzido também foi “tirar de ouvido”.

[3] 3 Esclareço que a autora discorre sobre a prática de “tirar músicas de ouvido” como sendo o primeiro estágio de autoaprendizagem, formador da base para o desenvolvimento criativo que ocorre a posteriori. Detalhes deste processo podem ser encontrados no capítulo 3 de sua obra de 2002, citada no presente artigo. Abstive-me de entrar na discussão epistemológica sobre criação musical e problematizá-la aqui, por não ser o objeto tratado no artigo.

[4] 4 “Na maioria das salas de aula do Reino Unido, a educação musical assume a forma de uma educação geral ou liberal que é fornecida para todos os alunos até a idade de 14 anos, independentemente da capacidade ou escolha” (GREEN, 2008: 23-24, tradução minha). Original: “Music education in most UK classrooms takes the form of general or liberal education which is provided for all pupils up to the age of 14, regardless of ability or choice”.

[5] Para detalhes, ver Green (2008, Apêndice B).

[6] “Estágio 1: Os alunos trazem músicas de suas próprias escolhas. Em pequenos grupos formados por laços de amizade, eles ouvem e escolhem uma música. Então eles escolhem os instrumentos e tentam ‘tirar a música de ouvido’, direcionando sua própria aprendizagem” (GREEN, 2008, Apêndice B, tradução minha). Original: “Pupils bring in the own choice of music. In small friendship groups they listen to it, and choose one song. They then select instruments and attempt to copy the song by ear, directing their own learning”.

Ana Carolina Nunes do Couto – Doutora em Sociologia pela UFPE (2017), mestra em Música (2008) e especialista em Educação Musical (2004) pela Escola de Música da UFMG. Possui Graduação em Licenciatura em Música pela Universidade Estadual de Londrina (UEL, 2002). Atua como professora junto ao Departamento de Música do Centro de Comunicação e Artes da UFPE desde 2009, trabalhando com o ensino de piano em grupo e com pesquisas sobre música popular e epistemologia da música. É professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPE, atuando na linha de pesquisa: Música, Educação e Sociedade. É membra do Grupo de Pesquisa Sociedade e Práticas Musicais. Tem artigos publicados em revistas especializadas e eventos científicos da Música. [email protected].

 

 

Música y noches de moda. Sociedades, cafés y salones domésticos de Murcia en el siglo XIX – CLARES CLARES (PR)

CLARES CLARES, M. E. Música y noches de moda. Sociedades, cafés y salones domésticos de Murcia en el siglo XIX. Murcia: Universidad de Murcia, Servicio de Publicaciones, 2017. 474p. Resenha de: TEROL, E. Micó. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.195-197, 2019.

El Servicio de publicaciones de la Universidad de Murcia ha editado Música y noches de moda. Sociedades, cafés y salones domésticos de Murcia en el siglo XIX, trabajo imprescindible para comprender los hábitos musicales de socialización de los murcianos durante la centuria decimonónica. El mismo título, Música y noches de moda, inspirado en el lenguaje periodístico del momento, como indica la propia autora, nos sitúa en la esencia de la obra. El objetivo principal de este trabajo es estudiar la música que se generó y consumió en los salones de asociaciones culturales, casas particulares y cafés de la Murcia del siglo XIX. Estos núcleos de producción y consumo musical, extraordinariamente dinámicos, fueron también espacios idóneos para la enseñanza de la música y de la cultura en general, como ha quedado patente en el trabajo de la Dra. Clares.

El campo de investigación y ámbito de estudio de la Dra. Clares se centra en la música española de los siglos XVIII al XX, prestando especial interés a la música murciana. La prensa periódica constituye el soporte documental de mayor peso en las investigaciones de la autora -también de este estudio, como ya constató en sus trabajos La vida musical murciana en la primera mitad del siglo XIX a través de la prensa: estudio y documentario; en su Tesis Doctoral La vida musical de Murcia durante la segunda mitad del siglo XIX y en diversos artículos centrados en la música teatral y en asociacionismo murciano de los siglos XIX y XX. Un minucioso vaciado de diversas colecciones y prensa periódica murciana le ha permitido recoger noticias de interés social y cultural para poder contextualizar con detalle la actividad musical de la capital murciana del Levante Español. Este sólido conocimiento del contexto y el manejo de las fuentes hemerográficas ha permitido a la autora analizar con mayor conocimiento y profundidad la socialización musical murciana. Destaca, por otro lado, la consulta al valioso archivo del Casino de Murcia, cuya documentación ha aportado a la Dra. Clares las claves para reconstruir la trayectoria de esta importante entidad murciana, todavía existente.

La obra de la Dra. Clares muestra los usos de la música de una ciudad española de la periferia, invitándonos a reflexionar sobre el enfoque reduccionista que tenemos en torno a la música española del siglo XIX. La autora examina el papel de la música en una ciudad de provincias de extraordinario dinamismo, los espacios de sociabilización del momento (cafés, salones de asociaciones y de ámbito doméstico); los hábitos de entretenimiento de la época; los gustos y la recepción del repertorio musical; la evolución de diversos géneros musicales: ópera, zarzuela, música de salón y aporta centenares de datos e información sobre composiciones de autores murcianos. La excelente idea de reproducir ilustraciones de la moda femenina de la segunda mitad del siglo XIX, como trajes sociales, nos acerca, todavía más si cabe, al ambiente de la época.

La obra está estructurada en una Introducción y tres grandes bloques, divididos en ocho capítulos: 1) La música en las sociedades culturales y recreativas (capítulos 1-3), 2) La música en los cafés (capítulos 4-5) y 3) La música en el ámbito doméstico (capítulos 6-8). El estudio se complementa con unas Conclusiones y diecinueve Apéndices. La bibliografía, los índices de Tablas, Ilustraciones, Gráficos e índices Onomástico y Toponímico cierran este magnífico estudio prologado por María Gembero-Ustárroz, Científica Titular de la Institución Milá y Fontanals del CSIC.

Esperanza Clares desgrana entre los capítulos 1-3 la trayectoria de treinta sociedades culturales y recreativas murcianas que resultan cruciales para comprender el importante papel que desempeñaron en la difusión de nuevos repertorios musicales dentro de la sociedad burguesa de la segunda mitad del siglo XIX. La sociedad murciana acudía a estos espacios de sociabilización, como ocurría en otras capitales de provincia, en busca de esparcimiento pero también de instrucción. Particularmente relevantes resultaron en Murcia la Escuela de Canto y Declamación para la carrera artística y teatral italiana y española (1881-1892), que llegó a suplir la falta de un conservatorio local, la sociedad recreativa El Casino de Murcia, que contó con orquesta propia, y organizó variadísimas actividades, desde veladas-concierto hasta bailes de sociedad y el Círculo Industrial (1862-1878), denominado posteriormente Liceo (1878-1883), que fomentó la música teatral y en su seno nació, en 1873, la Escuela de Canto y Declamación Padilla. En su análisis, la Dra. Clares demuestra que este tipo de instituciones no solo fueron cruciales para entretejer redes de socialización y canalizar el recreo de la ciudadanía sino también para atender a la –cada vez mayor- demanda de enseñanza de la música. Por tanto, este tipo de asociaciones lúdico-culturales asumieron el rol fundamental de proporcionar educación musical a la sociedad, ante una debilitada capilla de música de la catedral, otrora encargada de cubrir este rol, ante la ausencia de un plan de estudios general y de ámbito nacional que incluyera la música entre sus materias obligatorias en las enseñanzas primarias e incluso ante la ausencia de escuelas municipales de música o un conservatorio oficial en la ciudad de Murcia. Así pues, se trata de un amplio estudio de la implicación de cada una de las asociaciones analizadas y se ofrece, por primera vez, un análisis del entramado de todas ellas en una misma ciudad.

En los capítulos dedicados a la Música en los cafés (capítulos 4-5), Esperanza Clares indaga en otro espacio para la sociabilización, particularmente de moda desde mediados del siglo XIX, y a los que acudía la sociedad murciana “de cualquier condición social” en busca de ocio y entretenimiento: los cafés. La autora ha podido reconstruir gracias a las noticias aparecidas en la prensa diaria cuáles eran las formaciones instrumentales más habituales en las veladas-concierto que ofrecían, sus intérpretes, las piezas musicales que se podían interpretar en días laborales o festivos, el horario habitual y la frecuencia en que solían ofrecerse estos conciertos. Mención especial tuvo el Café Oriental, inaugurado en agosto de 1875, que se convirtió en uno de los predilectos para los murcianos y en el que llegó a actuar en alguna ocasión coros de las compañías que actuaban en teatros de la capital. El capítulo dedicado a los cafés es, junto a la música en los salones particulares, una de las partes más enriquecedoras del libro, dado que aborda una temática realmente poco estudiada por la musicología española.

La celebración de veladas-concierto en salones de casas particulares y trastiendas de almacenes de música (capítulos 6-8) fue una actividad muy frecuente en la época. Se trata de reuniones sociales que ofrecían los anfitriones a amigos y familiares, y en las que se les obsequiaba con dulces y licores. Estas “soirées” o conciertos privados incluían música, bailes e incluso, en alguna ocasión, la representación de alguna zarzuela. La autora reconstruye cómo transcurrían estas veladas desde la primera que documenta en la prensa murciana en 1865. El repertorio que se podía oír en estas veladas incluía arreglos de números de ópera y zarzuela; piezas de salón (fantasías, variaciones, nocturnos, mazurcas y valses, entre otros) para piano y o armonio; música de cámara, música religiosa y música popular. Particularmente destacadas fueron las veladas ofrecidas en el almacén de música de Adolfo Gascón y en el domicilio del compositor Antonio López Almagro.

En definitiva Música y Noches de Moda es un documentado estudio de más de cuatrocientas páginas que nos traslada a las costumbres y formas de vida de Murcia en el siglo XIX. Una obra de enorme valor por su rigor científico y por las magníficas aportaciones que supone para el estudio de la música española decimonónica. Merece la pena disfrutar con su lectura.

Elena Micó Terol – Profesora de Secundaria.

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Pensando a música a partir da América Latina: problemas e questões | Juan Pablo González

Pensando a música a partir da América Latina: problemas e questões, lançado em 2016 pela editora Letra e Voz, é a primeira obra de Juan Pablo González publicada no Brasil. Musicólogo e historiador chileno, o autor pretende discutir a história da música e da musicologia latino-americanas no século XX, visando entender os processos que levam à formação de ritmos, gêneros, artistas, identificações e diferentes representações no continente. Tendo em vista a extensão do recorte temporal e espacial, o autor toma como foco principal de análise três países – Chile, Argentina e Brasil, porém durante sua narrativa são estabelecidas conexões com outras regiões, tais como os Estados Unidos da América.

Composto por 12 capítulos, que podem ser divididos em dois grupos, o livro reúne textos produzidos e publicados pelo autor no decorrer de sua carreira como pesquisador, possibilitando ao seu leitor conhecer pontos distintos sobre a música latino-americana no século XX. Entre os principais temas abordados estão: as predominantes correntes historiográficas sobre a música latino-americana, as propostas pós-coloniais para compreensão da musicologia no século XX, o espaço feminino na música, os movimentos de vanguardas e as relações inter-americanas. Leia Mais

Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII – DARNTON (FH)

DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Tradução de Rubens Figueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 228p. Resenha de: PAIVA, Thayenne Roberta Nascimento. Música e oralidade na queda do Antigo Regime. Faces da História, Assis, v.4, n.2, p.249-255, jun./dez., 2017.

Em 2014, a Companhia das Letras publicou o mais recente livro do historiador norte-americano Robert Darnton, intitulado Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII, que teve publicação original em inglês, pela Cambridge, nos EUA, em 2010. Em linhas gerais, o livro destina-se a percorrer circuitos difusos de comunicação e intrigas políticas, que culminaram em uma série de poemas e canções populares sediciosas, e, portanto, de protesto e de cunho difamatório, na Paris de meados do século XVIII.

Robert Darnton é formado pela Universidade de Harvard e com Doutorado pela Universidade de Oxford. Assumiu a chefia da Biblioteca de Harvard em 2007, sendo responsável pela autorização e disponibilização na Internet de considerável produção intelectual da Universidade. Especialista em História do Livro e sobre a França do século XVIII, produziu obras renomadas, tais como O Iluminismo como negócio (1996), Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (1998), A questão dos livros: passado, presente e futuro (2010), O beijo de Lamourette – Mídia, cultura e revolução (1990) e O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (1984) ̶ sendo sua obra mais difundida ̶ , Os dentes falsos de George Washington (2003) e O diabo na água benta, ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão (2012), dentre outras.

O livro é estruturado em introdução, quinze capítulos curtos, conclusão. Além disso, possui um apêndice, aonde estão presentes as letras, em francês, dos seis poemas sediciosos que foram produzidos, contendo, inclusive, as referências bibliográficas de sua localização (anexo intitulado As canções e os poemas distribuídos pelos Catorze); a respeito do poema “Qu’une bâtarde de catin” (que inclusive intitula o capítulo desta seção), expõe-se como o texto sofreu modificações ao longo de sua difusão; relatos sobre a circulação do poema sedicioso, que gerou a queda do ministro francês Maurepas e de que modo o poema foi apresentado em algumas referências bibliográficas; no capítulo seguinte, intitulado O rastro dos Catorze, adquirimos conhecimento de um resumo geral da investigação; acerca de A popularidade das melodias, tem-se uma noção estatística sobre as chansonniers mais populares na década de 1740; e, o último capítulo deste apêndice, sob o título Um cabaré eletrônico: canções de rua de Paris, 1748-50. Cantadas por Hélène Delavault, apresenta um site de Harvard2 disponibilizando as melodias mais comuns na Paris do século XVIII e sobre as quais foram usadas para introduzir os versos sediciosos produzidos. Neste capítulo, ainda temos as letras em francês, e sua tradução, dos poemas musicados e outras, sobre a queda de Maurepas, Luis XV, dentre outras.

A respeito do conteúdo propriamente dito da obra, Poesia e polícia parte da observação e investigação de uma complexa rede de comunicação, a partir do estudo de caso sobre o episódio conhecido como “O caso dos Catorze” (L’Affaire des Quatorze), iniciado com a prisão do estudante de medicina, François Bonis, em 1749. O motivo foi ter recitado um poema não autorizado contra Luís XV, já que “Difamar o rei num poema que circulava abertamente era uma questão de Estado, um crime de lèse-majesté” (DARNTON, 2014, p. 13). À sua prisão seguiram-se outras, relacionadas ao poema, contabilizando, ao final, catorze prisões de homens pertencentes “às camadas médias da provinciana sociedade parisiense” (Idem, 2014, p. 22).

O historiador igualmente averigua a criação de cinco outros poemas populares seguidos a este e, especialmente, a introdução destes em chansonnieres, canções populares que disseminavam a opinião pública sobre a corte de Luís XV. Esses dois mecanismos de disseminação do descontentamento popular expõem sob quais modos circulavam a informação na sociedade francesa setentecista. Assim, a meta de Darnton é descobrir porque tais poemas se revelaram do interesse das autoridades de Paris e de Versailles, além do interesse pela rede de comunicação existente sobre os poemas.

Para tanto, Robert Darnton recria, por meio de uma metodologia de policial investigativo, algo da cultura oral que geralmente é difícil de ser apreendida pelo historiador, dada a ausência de suportes textuais que garantam sua preservação. Em outras palavras, debruça-se sobre as trocas de informação por meio da oralidade. Este é o ponto central deste livro, resgatando-o em investigações policiais, nos dossiês da época. O objetivo é “(…) seguir a trilha de seis poemas por Paris em 1749, à medida que eram declamados, memorizados, retrabalhados, cantados e rabiscados em papel (…) durante um período de crise política” (Idem, 2014, p. 8). Dada a empreitada, discute a ilusão de se supor que as sociedades pretéritas não se preocupavam ou não possuíam uma rede de comunicação. É anacrônico pensar em uma “sociedade da informação” somente pelo avanço tecnológico − o que Darnton critica, chamando de espécie de “falsa consciência acerca do passado” (Idem, 2014, p. 7).

Embora a composição do grupo dos Catorze fosse principalmente de escrivães e abades, grupo social letrado, muitas vezes a transmissão dos poemas acontecia pela memorização. Como aponta o historiador, o Caso dos Catorze pode ser visto como manifestação da opinião pública, mas de uma maneira mais prática, no recurso mnemônico e na circulação dos poemas, tomando-a como força motora da história.

Destes poemas, dois foram transmitidos pela música, na forma de melodias populares, as chansonniers – que funcionavam como uma espécie de troca oral. A composição destas melodias se exprimia com letras novas em melodias antigas.

Outro aspecto salientado foi a gama de informações produzidas pelo inspetor geral de polícia, Joseph d’Hémery3, que era profícuo e meticuloso em seus detalhamentos sobre as prisões. Destarte, Darnton destaca que todas as prisões efetuadas produziam dossiês com informações abundantes sobre os comentários políticos que apareciam nestes circuitos de comunicação.

Não obstante, tais informações jamais apontaram o autor dos poemas. Para o historiador dificilmente possa ter existido um autor principal, dado os acréscimos e modificações que as estrofes sofriam, sustentando a ideia de uma autoria coletiva, a partir da memorização daqueles que faziam, considerando-os igualmente autores dos poemas. Além disso, ainda que os poemas pudessem ser percorridos, pois muitos deles foram encontrados rabiscados em pedaços de papel no bolso daqueles que foram presos, a transmissão deles era incerta. Estes poemas desapareciam de modo aleatório e ressurgiam já modificados.

Não apenas as linhas de transmissão, mas também os próprios versos das canções eram substituídos por outros – criando uma espécie de “interferência subjetiva” (Idem, 2014, p. 73). Isto expunha um fácil sistema de improvisação com fins de entretenimento, dada sua ocorrência em “tavernas, bulevares e desembarcadores”, o que implica em uma circulação muito maior do que se imaginaria, pois, qualquer pessoa, nobre ou plebeu, poderia modifica-los dada uma “versificação que era tão simples”. Percebe-se, assim, que as melodias funcionavam como recurso mnemônico e os poemas eram multivocais.

Portanto, se não possui autoria precisa, também não existia uma direção ideológica específica, afirma Robert Darnton. Nos dossiês analisados não se encontra movimentos iniciais de revolução, no máximo “Um sopro de Iluminismo, sim; uma suspeita de hostilidade ideológica, seguramente; mas nada parecido com uma ameaça ao Estado” (Idem, 2014, p. 31). Tanto que, na exposição do interrogatório de um dos presos, Alexis Düjast, o interesse residia pelos aspectos poéticos e políticos dos poemas, isto é, “(…) nada semelhante a uma conjuração política” (Idem, 2014, p. 25). Então, Darnton, em boa parte dos capítulos iniciais, levanta a questão: “(…) Por que a polícia reagiu de forma tão enérgica?” (Idem, 2014, p. 28).

O historiador Robert Darnton admite, momentaneamente, a impossibilidade de resposta ao interesse tão forte da polícia sobre este caso, mais ainda por dois pontos por ele sublinhados: esta rede não teceu comunicação nem com a alta burguesia e nem com o povo. Mas o que Darnton ressalta e, que talvez ajude a clarear sobre a autoria dos poemas é que eles circulavam também na Corte, ou mesmo que tenham sido criados, inicialmente, em Versailles. Qual fato justificaria isso, então? Quando ocorreu a mudança no equilíbrio de poder, com a destituição de Jean-Frédéric Phélypeaux, o conde de Maurepas4 do cargo de ministro de Luís XV, sendo exilado em 24 de abril de 1749.

A causa principal foi a coleção de poemas sediciosos, além de canções de mesma natureza, que ele colecionava. Continham os mexericos e intrigas acerca da vida na corte. O próprio Maurepas encomendava os poemas para difamar as amantes do rei (além do próprio rei), como foi com Jeanne-Antoinette Poisson, a Madame Pompadour5.

O intuito do ministro era enfraquecer a influência dela sobre o rei. Não obteve sorte, pois Mme Pompadour influenciou Luís XV para demitir Maurepas, assim sendo feito.

A quantidade de canções e poemas circulantes pós esse exílio revelam possivelmente uma tentativa desesperada de Maurepas e seus seguidores de retornar ao poder.

A influência de Pompadour era emblemática, ascendendo ao mesmo cargo o seu “braço direito” Marc-Pierre de Voyer de Paulmy, conde d’Argenson6. Este, em sua busca frenética pela autoria dos poemas desejava “consolidar sua posição na corte durante um período em que os ministros estavam sendo redistribuídos e o poder, repentinamente parecia instável”, podendo, desta forma, “controlar o novo governo” (Idem, 2014, p. 41).

Desse modo, Darnton expõe o coração pulsante no caso dos Catorze: por trás de meras declamações de poemas, representava, em seu interior, “uma luta pelo poder situada no coração de um sistema político” (Idem, 2014, p. 41). Em relação aos catorze envolvidos no caso tiveram suas vidas arruinadas, corroborado pelo exílio que sofreram. Significa afirmar, segundo o próprio historiador, que os catorze envolvidos não possuíam consciência de seus atos, ainda mais na qualidade de crime, como foram classificados.

Em termos metodológicos, Darnton se propõe a uma longa exposição descritiva do Caso dos Catorze, sob interpretação cultural, não direcionando uma linha teórica clara, apenas adotando a postura de um historiador investigativo, procurando pistas e fios condutores. A ausência de um condutor teórico em sua obra, embora com uma linguagem acessível e para um público tanto acadêmico quanto não-acadêmico, seja um dos aspectos negativos. Outro ponto negativo é que não há delimitações conceituais sobre o que ele considera opinião pública. Além disso, o historiador torna o texto confuso quando em alguns momentos afirma não poder dar respostas ao interesse tão forte da polícia sobre O Caso dos Catorze, o que é sempre desmontado no capítulo seguinte, o que talvez exponha a fraca habilidade de Darnton de tentar fazer deste livro um encadeamento paulatino de mistérios e possíveis soluções.

Entretanto, outrossim, possui aspectos positivos, tais como a circulação destes poemas, que embora tenham começado com um grupo de letrados, expandiu-se para as camadas mais populares da França do século XVIII, que se entretinham com a mudança de versos, para zombar ou difamar o rei Luís XV, suas amantes e a Corte. Para o historiador Robert Darnton, os poemas são apenas uma das formas de “literatura de protesto” (Idem, 2014, p. 125) contra o Antigo Regime e que mesmo descoberto alguns de seus atuantes, revela a participação crítica e de insatisfação de quase todas as camadas da sociedade parisiense.

Também válido foi a apresentação do projeto eletrônico da Universidade de Harvard, possibilitando as pessoas a se transporem para aquela época, com a musicalização destes poemas – como fontes de época −, no sítio eletrônico <www.

hup.harvard.edu/features/dapoe>, sob interpretação de Hélène Delavault. Igualmente acertado a mobilização de imagens que ilustram cantores itinerantes, os manuscritos dos poemas, as partituras de algumas das músicas originais que serviam como base para a troca dos versos e uma lista rabiscada em um papel com os nomes daqueles que foram presos.

Notas

2 O site www.hup.harvard.edu/features/darpoe é indicado pelo autor, como forma de os leitores tomarem conhecimento de como as letras e melodias foram produzidas durante o período de colapso do Antigo Regime. O endereço eletrônico é fornecido por Darnton e se encontra na p.177.

Para maiores informações a respeito dos procedimentos e estruturação dos dossiês gerados por d’Hémery em outros casos investigativos, ver, especialmente, DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

4 Para maiores informações sobre o conde de Maurepas, consultar: RULE, John C. Jean-Frederic Phelypeaux, comte de Pontchartrain et Maurepas: Reflections on His Life and His Papers. The Journal of the Louisiana Historical Association, vol. 6, 1965, p. 365-377 e RULE, John C. The Maurepas Papers: Portrait of a Minister. French Historical Studies, vol. 4, Duke University Press, 1965, p. 103-107.

5 Sobre Madame Pompadour, ver, por exemplo: ABBOTT, Elizabeth. Mistresses: A History of the Other Woman. London: Penguin Books, 2011 e MITFORD, Nancy. Madame De Pompadour. London: Hamish Hamilton, 1st edition, 1954.

6 Esclarecimentos sobre esta figura histórica podem ser obtidos em: COMBEAU, Yves. Le comte d’Argenson (1696-1764): Ministre de Louis XV. Paris: École des Chartes, 1999.

Referências

ABBOTT, Elizabeth. Mistresses: A History of the Other Woman. London: Penguin Books, 2011.

COMBEAU, Yves. Le comte d’Argenson (1696-1764): Ministre de Louis XV. Paris: École des Chartes, 1999.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

________________. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Tradução de Rubens Figueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

MITFORD, Nancy. Madame De Pompadour. London: Hamish Hamilton, 1st edition, 1954.

RULE, John C. Jean-Frederic Phelypeaux, comte de Pontchartrain et Maurepas: Reflections on His Life and His Papers. The Journal of the Louisiana Historical Association, vol. 6, 1965.

___________. The Maurepas Papers: Portrait of a Minister. French Historical Studies, vol. 4, Duke University Press, 1965.

Sítio eletrônico citado na obra www.hup.harvard.edu/features/darpoe. Acesso em: 21 de março de 2017.

Thayenne Roberta Nascimento Paiva – Graduada em Bacharelado e Licenciatura, respectivamente, pelo Instituto de História e a Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é mestranda em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: [email protected].

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De segunda a um ano – CAGE (AF)

CAGE, John. De segunda a um ano. Tradução Rogério Duprat; revista por Augusto de Campos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. Resenha de: VEIGA, Milton Castelli. Artefilosofia, Ouro Preto, n.16, jul., 2014.

O livro De segunda a um ano é uma coleção de ensaios do compositor norte-americano John Cage (1912-1992). O primeiro e único livro do compositor traduzido para o português, graças ao pioneirismo de Rogério Duprat, ganhou em 2013 sua segunda edição; sendo que a primeira fora publicada pela Hucitec em 1985 por ocasião da visita do compositor à 18ª Bienal de São Paulo.

John Cage (John Milton Cage Jr.) foi um dos compositores mais controversos do século XX e o que mais exerceu influência na música do pós-guerra. Foi um dos criadores da música concreta e o primeiro artista a fazer um happening. O principal ícone da chamada música experimental traz ainda o título de ter sido o inventor do piano preparado 1. Viveu de maneira muito própria as antinomias estéticas do século; sua educação musical se deu num momento delicado da história da música ocidental, quando a linguagem da tradição, ou seja a linguagem tonal, estava sendo sistematicamente abandonada. Alguns sistemas referenciais foram projetados para sua substituição, e apesar de proféticos e promissores muitos deles estavam longe de se estabelecer como consensuais ou caminho seguro a ser trilhado; ademais, nenhum desses sistemas de composição sequer ultrapassou duas gerações de compositores. Cage iniciou sua carreira de compositor utilizando o sistema dodecafônico, seguindo, assim, os passos de seu professor Arnold Schoenberg, mas foi a partir de 1938 na Cornish School of Arts, quando veio a desenvolver trabalho com o coreografo Merce Cunningham, que seu ímpeto pelo novo alçou voos pelo experimentalismo. Sua teoria acerca do silêncio no processo de criação deu-lhe projeção internacional – chegando, inclusive, a dar nome a seu primeiro livro, publicado em 1961. O uso do acaso no processo da criação também foi fundamental na sua carreira. Cage não se limitou ao ofício de compositor; era também crítico, filósofo, poeta, artista gráfico, pintor e designer. Em 1946, através do músico indiano Gita Sarabhai, John Cage entrou em contato com a filosofia oriental e a partir daí sua concepção de mundo se transformou, transformando também seu entendimento sobre a estrutura e a compreensão musical. São emblemáticas desse momento suas Sonatas e Interlúdios de (1946-8) onde se fazem presente as oito emoções permanentes da estética indiana. Em fins da década de 40, o compositor se aproxima das teorias hindus e do Zen Budismo donde passa a cultivar a estética do silêncio. De Segunda a um ano faz parte desse momento, onde o compositor se põe a refletir sobre outras possibilidades de compreender o mundo. O próprio título do livro é fruto de suas concepções acerca do acaso, como o autor demonstra já na introdução. Diferente de seu primeiro livro, Silence, este se dedica menos a assuntos propriamente musicais do que temas sociais ligados ao pensamento de N. O. Brow n, Marshall McLuhan, Buckminster Fuller, Marcel Duchamp e Jasper Johns. Durante a redação dos textos que enfeixam o livro, o compositor depositou tanto interesse nas teorias sociais que chegou a refutar o próprio fazer musical, o qual, aliás, interessava-lhe cada vez menos, pois via no compositor uma figura autoritária. De fato, essa postura não harmonizava com os princípios anárquicos de Cage. Felizmente logo após a conclusão do livro, Cage volta a dedicar-se à composição. A editora Cobogó, Rio de Janeiro, nos presenteou com um trabalho primoroso, tanto pela beleza da edição, como pela dedicada prudência na preservação da concepção gráfica, nada convencional, utilizada pelo autor. A presente edição se coloca à altura do projeto de Cage, provocando e estimulando os nossos sentidos de percepção. Traz dois prefácios assinados pelo poeta Augusto de Campos. O primeiro com o título CAGE: CHANCE: CHANGE fez parte da primeira publicação brasileira de 1985. Esse texto é de uma beleza tão rara quanto o próprio restante do livro. O poeta dispôs-se da licença poética para apresentar, através de sua incrustada técnica concretista, o percurso criativo de John Cage até a década de 80. Para essa nova edição, Campos assinou uma segunda introdução, onde complementa o percurso do compositor até seu falecimento em 1992.

De segunda a um ano é um livro-mosaico formado por artigos, manifestos, conferências, proposições, pensamentos e aforismos. Uma miscelânea de textos construídos de modo maravilhosamente não linear. Um livro audiovisual, diria Campos. Os textos foram concebidos entre 1961 e 1967 – com exceção de Conferência na Juilliard, Conferência sobre o compromisso, e algumas histórias englobadas sob o título Como passar, chutar, cair e correr, que remontam à década de 1950. No Antepapo e Fim de Papo o autor descortina o enigma do título do livro e mostra-nos a partir daí sua capacidade de lidar com o acaso e o indeterminado como uma estética anárquica da vida. Alguns textos obedeceram às operações do acaso, obtendo dessas elaboradas operações a ordenação das ideias, a quantidade de palavras, a formatação e o tipo gráfico. Nessa linhagem está o texto Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores) em que o autor estreita os laços com os projetos de Fuller, principalmente com a teoria do “comprehensive design”; ainda nessa linha temos a Conferência sobre o compromisso e o Diário: audiência. O texto Duas proposições sobre Ives também chama a atenção pelo projeto gráfico, pois o autor incorpora à linguagem escrita alguns códigos de expressão musical. O Papo nº 1 também se destaca pela sua estrutura gráfica. Esse modo de conceber o texto, onde os meios de comunicação exercem influência na percepção dos sentidos, é resultado do contato que Cage teve com a obra de McLuhan. Os leitores que têm interesse no pensamento musical do compositor poderão se deleitar com os textos Diário: seminário de música de Emma Lake, Seriamente Vírgula!, Happy New Ears, Daqui, para onde vamos?, Conferência na Juilliard, Ritmo etc., e no Como passar, chutar, cair e correr. Já o texto Mosaico é um interessante comentário crítico sobre as cartas de Arnold Schoenberg selecionadas por Erwin Stein.

De cativante interesse são os textos 26 proposições sobre Duchamp, Jasper Johns: histórias e ideias, Miró na terceira pessoa: 8 proposições, Nam June Paik: um diário onde o autor expõem sua relação com o projeto artístico desses seus coetâneos. Todos os textos são precedidos por uma pequena introdução, onde o autor explica a finalidade do texto e quando necessário, explica a técnica para a sua leitura. Enfim, o livro surge como um projeto de “renuncia à competição” e um apelo à “iluminação do mundo” bem aos moldes de Buckminster Fuller; e apresenta-nos um artista curioso e observador, que buscou interpreta r o mundo pelo viés social e anárquico. Cabe-nos, ainda, ressaltar o notório empreendimento do maestro Rogério Duprat em traduzir esse livro poucos anos depois de sua publicação original. Certo é que esse feito é uma das inegáveis contribuições que Duprat concedeu à música brasileira e à reflexão musical da vanguarda brasileira. Sem adentrarmos em detalhes sobre a formação musical e intelectual de Rogério Duprat, quero sublinhar o seu pioneirismo em empreender tal tradução que, diga-se de passagem, acusam não só o seu domínio das poéticas e estéticas musicais do século XX, mas sua intimidade com a linguagem prosaica e poética ao “recriar” as aventuras de Cage. Enfim, De segunda a um ano é um livro provocativo, divertido e de rara beleza onde podemos encontrar as principais inquietações do compositor, o que já se manifesta a partir de sua dedicatória: “Para nós e todos aqueles que nos odeiam, para que os EUA possam se tornar simplesmente uma outra parte do mundo, nem mais nem menos.” -John Cage.

Nota

1 O papel do compositor no trato do piano preparado foi fundamental para a compreensão desse instrumento como forma de expressão, porém não podemos desconsiderar a iniciativa do compositor austro-boêmio Heinrich Ignaz Franz von Biber (1644-1704), que utilizou de técnica semelhante na obra Battalia à 10 D-dur, C.61 (1673).

Milton Castelli Veiga-Graduado em música pela Universidade Cruzeiro do Sul/SP e mestrando em música pela UFRJ.

Acessar publicação original

White Power Music

SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. Northampton: RNM Publications, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. A extrema-direita faz barulho: música, fascismos e intolerância no recente cenário europeu. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 14, p. 81-84, out./dez. 2013.

Em 06 de agosto de 2012, o ex-militar norte-americano Wade Michael Page, então com 40 anos, entrou um templo Sikh na pequena cidade de Oak Creek, em Winscosin, munido de uma submetralhadora, com a única intenção de ferir os fieis que praticavam seus rituais religiosos naquela manhã de domingo. O resultado foi a morte de 8 pessoas, incluindo um policial e o próprio Page, que cometera suicídio. Naquele mesmo ano os Estados Unidos já havia se chocado com dois crimes semelhantes: os massacres da escola primária de Sandy Hook, em 14 de dezembro, e de Aurora, no Colorado, em 20 de julho. No entanto, o crime cometido por Wade Michael Page levantou no país novos questionamentos, além do já tradicional debate sobre as armas.

No mesmo dia em que o fato ocorreu, o The New York Times publicou uma matéria intitulada “Winscosin killer fed and was fueled by hate-driven music”II (ou “o assassino de Winscosin alimentava e era alimentado por músicas guiadas pelo ódio”).

A chamada Hate Music, a qual Page era adepto por meio do White Rock, passou a ganhar destaque junto ao crime, não sendo representada apenas como um mero detalhe, mas como um relevante motivador da intolerância praticada por ele. Tratam-se de gêneros musicais voltados ao ódio ao Outro, a tudo e todos que não se aproximam do ideal de raça e sociedade que as bandas, em sua maioria composta por skinheads fascistas, defendem.

Mas o que é este grande rótulo musical chamado Hate Music e, principalmente, seu mais ativo subgênero, o White Rock? Estas questões são exploradas a fundo no livro “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance”, publicado em 2012 e organizado pelo historiador Paul Jackson e pelo cientista político Anton Shekhovtsov, através da RNM Publications. Sua produção independente é resultado de trabalhos realizados pelo “Radicalism and New-Media Research Group”III (“Grupo de pesquisas em radicalismo e novas mídias”), da University of Northampton, na Inglaterra, e compila nove artigos dedicados às “músicas de ódio”.

Trata-se de uma publicação inédita no Brasil, cujo acesso está limitado aos próprios sites do grupo e de seus colaboradores, podendo ser adquirido pelo valor de 12 libras (aproximadamente R$44,00). Ela faz parte da série “Mapping the Far-Right”, cujo objetivo é realizar um mapeamento de ações da extrema-direita na Europa, de onde são provenientes todos os autores que colaboram com o livro. Neste caso, é o rock fascista que ganha destaque em artigos que abordam sua presença em diferentes países: Alemanha, França, Suécia, Grécia, Hungria, Romênia e República Tcheca. Há também a presença de textos que não necessariamente abordam os cenários musicais, mas os personagens do White Rock, a simbologia, debates sobre gêneros nos círculos fascistas e a participação a importância da informática para os músicos.

É Anton Shekhovtsov que, em sua introdução, faz uma síntese do que é o White Rock, como surgiu e por que é um objeto tão importante para compreender a existência dos fascismos na Europa atualmente. Com isto, o leitor desavisado situa-se no tema que será explorado repetidas vezes. Embora certos aspectos sejam abordados muitas vezes no decorrer do livro por diferentes autores, há variadas visões sobre uma ou outra conceituação, diferentes formas de abordagem e possibilidades múltiplas de questionamentos, que acabam realizando uma rede de informações.

Por exemplo, embora alguns textos, como o livro “Diário de um skinhead: Um infiltrado no movimento neonazista”, do jornalista espanhol Antonio Salas, afirmem que o White Rock possui uma relação de troca entre músicos e partidos de extremadireita, onde jovens são recrutados aos partidos pelas músicas e os partidos financiam as bandas, a socióloga Chiara Pierobon apresenta sistematicamente evidências que comprovam esta relação. Ela afirma, graças a uma metodologia específica, apresentando tabelas com resultados numéricos de pesquisas, que em meio à crise das organizações de extrema-direita na Alemanha, a música é vista como um elemento agregador central.

O White Rock age, portanto, como um instrumento ideológico e de socialização. Neste sentido, estamos acostumados a pensar que as bandas são meros fantoches para os partidos, detentores do patrocínio que será utilizado em seu benefício, como se estivesse contratando um serviço. Mas o historiador francês Nicolas Lebourg e seu colega Dominique Sistach, tentam provar o contrário quando afirmam que os grupos políticos “Nouvelle Resistance” e “Unité Radicale” passaram a usar em adesivos e panfletos um símbolo que representava a banda “Fraction”.

Um dos artigos que mais chama a atenção é escrito pela socióloga grega Sofia Tipaldou, abordando a presença do subgênero na Grécia atualmente, diante de um cenário de crise onde a participação política ativa do “Aurora Dourada”, partido explicitamente neonazista, vem sendo observado com preocupação. Ela afirma que a música vem sendo cada vez mais difundida entre os parceiros do partido e explorada como mecanismo político. Isto revela o papel da música não como forma de entretenimento, mas um agente em nome das causas fascistas. Esta faceta evidencia-se na frase que acompanha a logo do selo musical Black Sun Rising Records, usado pela autora pala ilustrar este pensamento: “Algum dia eles desejarão que nós estejamos fazendo apenas música”.

Respeitando suas metodologias, suas ciências e pesquisas específicas, os autores concordam que o White Rock é um tipo de música que exalta as ideologias e práticas fascistas, buscando uma doutrinação de seus ouvintes por meio de suas bandas. Mais do que isto: evoca seus ouvintes a realizarem atos de violência intolerante contra todos que se mostram contrários às suas visões de mundo, ou diferentes dos indivíduos que integrariam suas “sociedades perfeitas”. Todo este pensamento é confirmado por Paul Jackson, ao fim do livro. Ele estabelece que o principal objetivo do livro é expor diferentes propostas de abordagem deste que é um tema importante para compreender os fascismos no Tempo Presente.

A música como meio de comunicação e propaganda entre os fascistas de hoje é sempre uma questão levantada por autores que exploram seus principais consumidores, os skinheads. A diferença apresentada neste livro é que a música é um elemento central, abordado com minúcia pelos colaboradores. Estes, por sua vez, não recebem detalhamentos importantes que normalmente são incluídos em outros livros, como as áreas em que atuam ou outras contribuições que já realizaram, sendo necessário recorrer aos seus currículos para conseguir estas informações.

Os textos que compõem “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance” oferecem novas análises sobre as mudanças nos fenômenos fascistas da atualidade por meio da música. Nos mostram que este subgênero preserva narrativas ultranacionalistas e racistas, recrutando jovens às causas políticas envolvidas com os fascismos. Além disto, o White Rock evoca confrontos urbanos onde a violência ao Outro é levada às últimas consequências.

Referências

SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. RNM Publications: Northampton, 2012.

Pedro Carvalho Oliveira – Graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).

Marking samba: A new History of race and music in Brazil – HERTZMAN (NE-C)

HERTZMAN, Marc. A. Marking samba: A new History of race and music in Brazil Durhcham: University Press, 2015. Trad. Livre  Dmitri Cerbonicine Fernandes. Resenha de: FERNANDEZ, Dmitri Cerbonicine. De “pelo telefone” a “internet”: tensões entre raça, direitos, gênero e nação. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.102, Jul, 2013.

Nos últimos quinze anos, os chamados brasilianistas norte-americanos e britânicos voltaram seus olhos a temas anteriormente circunscritos aos nativos – caso geral da música popular brasileira e, em específico, do samba e do choro1. Se, por um lado, nossas obras musicais populares desde há tempos são bastante apreciadas e (re) conhecidas, chamando a atenção de vasto público, o mesmo não se poderia dizer das reflexões acadêmicas tecidas sobre essas obras e seus criadores.Os trabalhos da nova geração de brasilianistas são,por isso mesmo,um alento em diversos sentidos.A mera existência de um interesse estrangeiro por objetos de pesquisa tradicionalmente relegados a segundo plano nas ciências humanas auxilia a modificação do panorama de certo desapreço pelo assunto, forçando a universidade e demais instituições a reverem suas posições.A lastimável ausência de tradução dessas pesquisas para o português e a falta de interlocução dos estudiosos brasileiros – muitas vezes encerrados apenas na discussão em língua pátria e,quando não,em sua própria área ou subárea-talvez estejam com os dias contados; prenúncio de uma possível maturação de um campo de estudos que, embora secundário se comparado com o dos “grandes temas” – políticos, históricos, sociais -, não se iniciou ontem2.

Conquanto os resultados das análises empreendidas por esse novo grupo de brasilianistas variem bastante em termos de metodologia empregada, escopo, materiais coletados e ineditismo, são evidentes o impacto e a qualidade, se não de todas, pelo menos de algumas delas, o que as equipara ao que de melhor já foi escrito por aqui sobre a música popular em seus diversos aspectos. Dentre os livros que se destacam, um deles, sem dúvida, é Making samba: a new history of race and music in Brazil, do professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos, Marc A. Hertzman. Originalmente uma tese de doutorado em História da América Latina defendida na Universidade de Wisconsin-Madison, em 2008, o livro recebeu dois prestigiosos prêmios nos Estados Unidos3, o que o gabaritaria, por si só, à tradução imediata.

Logo de início, Marc Hertzman propõe um novo mergulho em águas passadas, quer dizer, ele se dispõe a revisitar pelo menos três eixos estruturantes de nossa música que já foram, em separado, alvos da bibliografia específica: 1) o lugar do negro e as possibilidades de ação, repressão e reconhecimento no nascente universo artístico4; 2) o aparecimento das instituições comerciais em meio ao fazer musical popular e as resistências e colaborações que essas instituições passaram a alimentar da parte de artistas, intelectuais, jornalistas, políticos, folcloristas etc.5; 3) os sentidos do entrelaçamento da ascendente forma musical popular brasileira no início do século XX com a ideia emergente de nação e a instauração da República6. No entanto, há em sua problematização um entrelaçamento entre esses três eixos, algo que nunca havia sido tentado antes. O resultado é um livro que traz inúmeros dados, situações, fotos e declarações que recebem nova luz interpretativa, fornecendo no conjunto um panorama inédito de questões que se pensavam solucionadas.Os que,mesmo assim,ainda imaginarem que se trata de mero exercício desnecessário e repetitivo de diletantismo rapidamente se convencerão do contrário por conta de outro motivo: a presença de um elemento que confere o tom central à obra e que, sozinho, já a justificaria de imediato. Falamos aqui da postura epistemológica adotada por Hertzman, que o diferencia do viés que predominou durante largo espaço de tempo na academia brasileira: o do ensaísmo.

Por um lado, é bem verdade, tal pendor ao ensaio conformou uma maneira toda especial, muito criativa e prolífica de interpretação em um ambiente científico inóspito e incipiente,momento em que financiamentos para a realização de surveys e a disposição de arquivos e materiais minimamente organizados eram escassos em nosso país. Em tal conjuntura, onde sobravam erudição e capacidade de síntese aos nossos intelectuais “heroicos”, a necessidade teve de se fazer virtude, e os clássicos pioneiros demarcaram o início de uma profunda autocompreensão que ensejou, por linhas tortuosas, trabalhos como os do próprio Marc Hertzman. Por outro lado, há até hoje resquícios desse modo de fazer que, desacompanhados das antigas virtudes, mais servem para escamotear resultados duvidosos, destilar arrogância, falta de empenho e de energia em vasculhar bibliotecas, museus e arquivos do que em iluminar o que quer que seja. Atêm-se ou a materiais recauchutados, apropriando-se de modo acrítico de “verdades” jornalísticas que rondam os mais diversos estudos sobre música no Brasil há tempos, ou a letras de canções e células musicais, como se a partir delas, e só delas, fosse possível, sem um objetivo claro ou um problema teoricamente orientado, reconstruir toda a história de um gênero musical ou de uma época.

Nesse sentido, Hertzman desdobrou-se como poucos haviam feito nos estudos históricos sobre o samba; correu atrás de comprovações documentais, muitas delas localizadas em acervos pessoais de difícil acesso ou em museus que, geralmente, sofrem e sofreram durante décadas com o descaso governamental, a falta de verbas, incêndios, desfalques, perdas, desorganização. O resultado dessa tarefa árdua e minuciosa de levantamento de informações não o tornou mero coletor nem fez de seu trabalho uma descrição insossa de materiais repertoriados,o que costuma ocorrer quando tamanha energia tem de ser gasta tão somente no serviço de garimpagem. Pelo contrário, ele logrou conectar a criatividade intelectual e a audácia interpretativa de nossos antigos ensaístas com o emprego de uma empiria embasada em recolhimento e análise de dados, descortinando de maneira surpreendente, aos nativos e aos gringos, um novo universo em torno de um domínio que, à primeira vista, nada mais ou muito pouco ainda tinha a render. Dito isso, não se trata, assim, de qualquer “revisita” às três questões apontadas; antes, de uma pesquisa de fôlego que tenta fornecer, se não a última palavra sobre o assunto, ao menos uma palavra muito mais balizada, material e metodologicamente bem orientada do que as que tínhamos à mão até o presente momento.

O livro percorre um largo período cronológico ao longo de seus nove capítulos: passa-se desde a abolição da escravidão no Brasil, em 1888,até meados da década de 1970,quando se dá a instauração definitiva das modernas leis de proteção aos direitos autorais – embora as análises mais consistentes do livro, com fartura de materiais inéditos, estejam concentradas nas quatro primeiras décadas do século XX. Apenas o último capítulo se dedica ao escrutínio da conjuntura musical da década de 1960 em diante, o que, no conjunto da obra, representa mais elemento de verificação das teses defendidas sobre a “época de ouro” do que uma parte autônoma. O acompanhamento da noção de autoria, em termos legais e materiais, e seu correlato simbólico, qual seja, a individuação dos artistas, bem como o desenvolvimento das instituições que lidavam com essas questões e a legislação pertinente serviram como o fio de Ariadne de toda a estruturação do argumento de Hertzman; ele empregou uma embocadura até então menosprezada pelos demais estudiosos no intento de penetrar, de modo inovador, por veredas já caminhadas: “Embora estudiosos de muitas disciplinas venham se fascinando com a construção da autoria, poucos se interessaram pela relação entre propriedade intelectual e constituição nacional pós-colonial – sobretudo nas Américas – ou as histórias imbricadas entre raça, propriedade intelectual e nação” (p. 3)7.Em outras palavras,os marcos legislativos e as instituições que regulamentavam o fazer musical, a distribuição monetária e o papel desempenhado pelo Estado na garantia,manutenção e modernização de todo o engenho assomado no espaço de tempo compreendido pela pesquisa fizeram render uma nova visão sobre processos há muito mal compreendidos, pois faltavam materiais pertinentes ao demais autores,conforme argumentado,a fim de que pudessem chegar a conclusões mais robustas e precisas, que ultrapassassem o acolhimento acrítico dos depoimentos de quem viveu os acontecimentos em tela – referenciais fartamente empregados até então por alguns estudiosos.E é justamente a esta tarefa que Marc Hertzman se propõe:buscar no emaranhado que se formou entre as questões que envolvem raça, propriedade intelectual e nação o sentido da constituição do samba e, em uma via de mão dupla, a partir da problematização que parte da constituição do samba enquanto gênero musical negro, comercial e nacional, enxergar de modo mais exato e minucioso a imbricação de todo o processo cultural,econômico e político que conformou o Brasil.

No primeiro capítulo, Hertzman procura traçar uma espécie de pré-história das formas musicais populares que desaguariam no samba, bem como dos condicionantes sociais que assomavam ao final do século XIX com elas, isto é, os lugares de raça, de autoria e do vínculo possível dessas formas artísticas e seus produtores correspondentes com a ideia de nação em uma sociedade escravocrata. Hertzman, no entanto, passa longe de um denuncismo vazio ou de tomar um parti pris tão comum nos estudos atuais sobre raça e nação. O autor deixa claro desde o início que não guarda o propósito de esposar asserções como as que essencializam o samba como puro produto de uma “resistência negra” em abstrato nem as que retiram a agência dos negros, outorgando aos intelectuais brancos ou ao Estado varguista a proeminência na conformação dos traços das expressões culturais brasileiras. Hertzman tampouco se vincula seja à visão que adula a intermediação efetuada pelos meios de reprodução comercial da música popular,seja à que a rechaça apriori,pois considerada maléfica ou deturpadora de uma imagem “pura” e “autêntica”.Pelo contrário,colocar todas essas cosmovisões nativas abraçadas pela academia em perspectiva, fazê-las confrontarem-se umas com as outras para que, ao fim e ao cabo, venha à tona um panorama mais complexo do que aquele com o qual a literatura específica se habituou: este sim é um dos propósitos centrais de Hertzman, alcançado justamente por meio do que anunciamos como o grande feito de seu trabalho, quer dizer, a confrontação com materiais inéditos, que auxiliam a desvendar mitos até então inquestionáveis e uma visão que não se detém em fronteiras específicas do saber.

Um desses mitos que fundamentaram o memorialismo da música popular brasileira é o do que o autor denomina de “paradigma da punição” (p. 31). A ação supostamente praticada por parte do Estado de maneira sistemática,que penalizava os praticantes do samba com a prisão, de acordo com declarações à imprensa de sambistas que viveram a “época gloriosa dos primórdios”,é posta em suspenso no segundo capítulo. Hertzman, por meio de pioneiro mergulho nos arquivos penais das primeiras décadas do século XX,descobre que jamais houve uma única punição estatal por conta da prática do samba,ao contrário do que é alardeado em quase todos os trabalhos acadêmicos que lidam com a época. Tal relato mais servia como estratégia discursiva – um tanto exagerada para antigos sambistas firmarem-se como mártires de uma época ou para construírem a autenticidade requerida do gênero samba e, de lambujem, de si mesmos, dentro do circuito de valores que aos poucos foi se estabelecendo naquele gênero – do que refletia fielmente os processos históricos, entremeados na realidade de alianças e colaborações entre a polícia, o Departamento de Imprensa e Propaganda de Vargas e os órgãos representativos dos músicos.Isso não quer dizer, por outro lado, que Hertzman pinte um ambiente de igualdade e liberalidade generalizados para a prática musical popular no início do século XX, conforme veremos a seguir.

O olhar atento do historiador,que busca em uma miríade de eventos nem sempre vinculados imediatamente ao fenômeno a ser explicado os desenvolvimentos possíveis dos caminhos da história, evidencia-se no terceiro capítulo, em meio à interpretação de uma ilustração de um jornal da década de 1910 trazida à baila por Hertzman. O desenho tentava retratar uma tragédia: um dos primeiros artistas populares de relativo sucesso à época, um negro de apelido “Moreno”, havia sido supostamente traído por sua esposa,uma branca portuguesa.Ele resolveu matá-la a facadas e, em seguida, se matar. A representação da situação congregava todas as chaves necessárias para o desvendamento da figuração que ascendia na primeira década do século XX, para os temores que suscitava, para as apreensões que fazia refulgir: um novo universo estava se abrindo,com possibilidade de fama e sucesso àqueles que sempre foram apartados da ribalta da vida nacional, embora prenhe de todas as contradições que tão bem expressam a nossa formação. Que se atentasse para o “perigo” de permitir que essas figuras tão fascinantes quanto temerárias, aos olhos dos brancos, prosseguissem por uma via de acesso a patamares que já tinham dono: as mulheres brancas, o dinheiro, a fama. Isso é o que argumentavam os jornalistas que comentaram a mencionada cena de “Moreno”:o negro não tinha estruturas psicológicas nem sociais para angariar sucesso, para se manter na independência econômica, para se casar com uma mulher branca, em suma, para deixar de ser negro naquela sociedade dominada pelos brancos (p. 87). A igualdade democrática, o reino do direito abstrato e universal, a possibilidade de uma vida econômica e socialmente digna em seu próprio país não passavam de quimeras. Afinal, “quem eles pensavam que eram?”. Em contrapartida, alguns conseguiam escalar parcialmente as trilhas abertas pelo desenrolar da individuação artística e pelo novo comércio, por mais que tivessem que forjar por meio de suas mãos,do sangue de “Moreno”,ou de oportunidades ímpares, por um lado, ou apoiados em trajetórias distintas e caminhos compartilhados com os dominantes, por outro.

O que importa até aqui é que não cabem mais,de acordo com a proposta do autor,a aceitação pura e simples de quaisquer generalizações de categorias, como as de “o samba”, “a raça”, “a nação”, “a autoria” ou “o comércio”: há nas entrelinhas dos processos constitutivos de cada um dos fatores assinalados minúcias geralmente ignoradas, tensões e conflitos constitutivos dos próprios conceitos e processos que, se vistos desvinculados dos artífices que lhes deram viço,de seus tempos históricos, das funções que cumpriram e das atuações concretas dos atores que as encarnavam, mais borram a compreensão historiográfica do que a auxiliam em sua missão de reconstituição da figuração em pauta. Assim, Hertzman dá à mostra que existiram projetos autorais, intelectuais mesmo, por trás de cada grupo e personagens distintos que ocupavam posições díspares na sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX. Figuras que, ao mesmo tempo que se confrontavam, teciam por vezes alianças e podiam ainda manter certo grau de cumplicidade, de animosidade, de distanciamento ou de proximidade, a depender de coordenadas e de conjunturas específicas.

Uma das mais expressivas comprovações diz respeito ao escrutínio dos que rodeavam a famosa casa de Tia Ciata, figuras centrais que participaram do que se convencionou denominar de “a nossa música” (p. 95): Hertzman demonstra no quarto e no quinto capítulos que jamais eles poderiam ser equiparados sem mediação a outros artistas que não tivessem nem a inserção socioeconômica deles, nem o conhecimento formal de música, nem o trânsito com jornalistas, industriais da arte e figurões da política e da intelectualidade nacional, nem a decorrente capacidade de mediação, seja artística ou intelectual. Igualar um Pixinguinha a um Baiaco ou a um Brancura, ou até mesmo a um Ismael Silva, pelo simples fato de serem negros esconde um abismo muito revelador do próprio modo pelo qual o racismo à brasileira se constituiu: por meio de reentrâncias e sutilezas, ou, mais especificamente, por meio de um engenhoso dégradé. Se é verdade que em determinado momento de suas trajetórias artísticas todos os citados enfrentaram alguma face do racismo, não se pode dizer que tenha sido da mesma maneira: as margens de manobra variavam muito, bem como o grau de sofrimento que os acometia,a depender da posição social que ocupavam. No caso de Pixinguinha e dos seus, tratou-se de notícias jornalísticas denominando-os de “negroides pardavascos”, incapazes de representar o Brasil,ou de pretendentes a um patamar mais elevado, como Catulo da Paixão Cearense, a desatiná-los (p. 113); no caso de Brancura, Baiaco e Ismael, tratou-se de uma vida tortuosa e de pobreza, de marginalidade, eivada de prisões, brigas e outros eventos manifestos de violência. Embora todos eles, de alguma forma, tenham contribuído para a criação e sustentação de símbolos guindados à condição de “nacional”, Hertzman chama a atenção para o fato de que cumpre visualizar com cuidado os modos pelos quais quando e cada um deles pôde – e se pôde – e por meio de quais contextos e estratégias ser alçado e se alçar ao panteão do samba e, por que não e por consequência, ao panteão nacional. A luta que envolveu a imposição de certa visão que concedia às suas criações a imagem de autêntica, única, sofisticada e respeitável toma, assim, lugar de destaque na análise (p. 115).

Transparecem, destarte, por meio de diversos exemplos, elementos intrínsecos à formação da nação, caracterizada sobretudo pelo tipo de estrutura social herdada da escravidão. Pela primeira vez tal situação é sistematicamente levada em consideração em conjunto com os efeitos simbólicos e econômicos que incidiram nas atividades artísticas populares. Hertzman demonstra no capítulo sexto como até mesmo intelectuais e artistas do porte de Villa-Lobos,Mário de Andrade e Luciano Gallet compartilhavam com maior ou menor ênfase de visões de época, segundo as quais se deveriam abrir alas à construção de um desejado Brasil “civilizado” e seu pressuposto, as correntes da modernidade, o que incorria em algum tipo de rebaixamento do que era apreendido como hierarquicamente inferior em uma escala artística de sensibilidade e racionalidade. Nesses casos, iniciavam-se discussões sobre o que podia ser aproveitável ou não para se entabular o concerto da nação,e aquilo que identificassem como “africano” era posto na berlinda.O mesmo se passava entre os intelectuais nativos do samba, como Tio Faustino, Vagalume ou China, irmão de Pixinguinha,que buscavam enfatizar a autenticidade de certa herança da África contra o que viria a ser uma África corrompida (p.156).Nesse cenário, alguns podiam tanto desempenhar o papel de dominantes em meio aos dominados como podiam ser defenestrados e ter as portas fechadas em diversos âmbitos. Em outros momentos, conforme frisado por Hertzman no capítulo sétimo, alguns podiam até mesmo se reportar diretamente ao presidente da República, como ocorreu em 1930 com os mencionados Pixinguinha e Donga, que clamavam a Getúlio Vargas,em meio a uma procissão de músicos,o auxílio do “pai dos pobres” à música nacional (p. 170). Já dentre os diversos artistas negros, sobretudo os semidesconhecidos resgatados pelo autor na intenção de iluminar comparativamente as possíveis trajetórias artísticas e seus liames com suas posições sociais, a situação era distinta: torna-se claro como os empecilhos enfrentados por eles dificultavam não só suas condições simbólicas naquelas instituições como ainda a simples manutenção econômica de suas vidas. A vinculação desses e de vários estorvos com outros fatores, como o de gênero, foi realizada no trabalho também de modo pioneiro.

A ascensão do samba em sua concretude pôde ser vislumbrada por meio de representações monetárias de quanto ganhava um grande artista – um cantor branco como Francisco Alves, por exemplo – em comparação com um compositor negro à margem dos estabelecimentos comerciais da música, como Ismael Silva (p. 129); de outro lado,a partir da constatação de uma tal pista micro,quer dizer, da assimetria econômica existente entre figuras de um mesmo universo, passa-se ao escrutínio do modo pelo qual se organizavam as instituições políticas e culturais, e como os elementos “raça”, “classe” e “gênero” se vinculavam de forma intrínseca ao funcionamento dessas instituições. É o que se vê com nitidez nos capítulos sétimo e oitavo. No caso das que lidavam com a música popular, como a Sociedade Brasileira de Autores (SBAT, fundada em 1917), a primeira que tomou para si a função de arrecadação e distribuição monetária dos proventos das atividades artísticas em geral no Brasil, percebia-se em suas entranhas a reprodução de todas as desigualdades de nossa sociedade em termos econômicos e simbólicos. O mesmo ocorrendo com os produtos de seus cismas ao longo do tempo,casos da União Brasileira dos Compositores (UBC),a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM) etc., todas as que deram origem ao moderno sistema de arrecadação e distribuição de direitos ainda hoje vigente.Seus dirigentes,em maioria homens brancos vinculados a atividades consideradas “nobres” à época – como o teatro ou a “grande” música, em meados dos anos 1910 e 1920,ou os mais bem-sucedidos em termos econômicos com a ascensão do universo musical popular, a partir dos anos 1930 -, não se fizeram de rogados para eternizar a posição subalterna que os artífices negros, sobretudo os socialmente mais desprivilegiados, ocupavam em meio às estruturas das instituições à primeira vista “universais” que dirigiam, o que sublinha o caráter racial e economicamente assimétrico que perpassou a constituição de todas as nossas instituições democráticas, quando vistas de mais perto.

Emerge, assim, uma verdadeira história “materialista” do samba – e, por que não, do choro -, na melhor acepção do termo: em primeiro lugar, pelo fato de Hertzman lidar com estimativas sistematizadas de vendas de discos, com cifras relativas aos direitos autorais de canções, de lucros de gravadoras e de estações de rádio, de execuções de canções e de várias operações econômicas que dão à mostra a real dimensão das transformações estruturais ocorridas em meio à atividade musical popular. Em segundo lugar, o aspecto eminentemente “materialista” de sua proposta também se revela por conta do método: a visada totalizante, que pressupõe uma aguçada capacidade comparativa entre fatos, personagens e momentos aparentemente despidos de qualquer relação ou pertinência a fim de iluminar, a partir de distintos vieses, uma mesma questão específica. Hertzman arrisca, destarte, uma espécie de história total, onde condicionantes institucionais, geográficos, raciais, econômicos e culturais são movimentados para dar vida à agência dos atores (p. 11). Modificando seu foco a todo instante,passando de uma interpretação de um fato micro a uma correlação estrutural macro,e vice-versa,um verdadeiro mosaico das relações que davam viço àquela figuração nascente vem à tona. Embora a incursão na justificativa teórica de seu trabalho seja deveras enxuta,haja vista Hertzman nomear,e muito de relance,apenas Homi Bhabha, Michel Foucault e Peter Wade como inspiradores da empreitada (p. 10), é notória a contribuição tácita de autores como Norbert Elias, Pierre Bourdieu, Fernand Braudel, E. P. Thompson, Raymond Williams,dentre outros grandes nomes das ciências humanas,em seu modo de reconstituir a urdidura da história em voga. Mas essa explicitação, enfim, é o que menos importa, pois o primordial foi efetuado, quer dizer, o manejo teoricamente orientado do material levantado para além das fronteiras disciplinares artificialmente demarcadas.

Notas

1 Ver, por exemplo, DAVIS, DARIÉN J. White face, black mask: Africaneity and the early social history of popular music in Brazil. East Lansing: Michigan State University Press, 2009; Livinsgton-Isenhour, Tamara E. e Garcia, Thomas G. C. Choro: a social history of a Brazilian popular music. Bloomington: Indiana University Press, 2005; McCann, Bryan. Hello, hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham: Duke University Press,2004;Stroud,Sean.The defence of tradition in Brazilian popular music: politics, culture and creation of Música Popular Brasileira. Aldershot: Ashgate, 2008; Shaw, Lisa. The social history of the Brazilian samba. Aldershot: Ashgate, 1999.

2 Ressalte-se a ausência de obras dedicadas à reflexão sobre música popular nos principais centros brasileiros produtores de conhecimento até meados da década de 1970, que vê, muito timidamente em sua segunda metade, o início de estudos regulares e sistematizados sobre o assunto. Balanços críticos de publicações na área podem ser encontrados em Béhague, Gerard. “Perspectivas atuais na pesquisa musical e estratégias analíticas da Música Popular Brasileira”. Latin American Music Review. Austin: University of Texas Press, v. 27, no 1, 2006; Napolitano, Marcos. “A Música Popular Brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural”. In: IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, Nicarágua. Atas del IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, mimeo; Naves, Santuza C. et alli. “Levantamento e comentário crítico de estudos acadêmicos sobre música popular no Brasil”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais — BIB. São Paulo: ANPOCS, no 51, 2001.

3 Trata-se do prêmio de melhor tese de doutorado da New England Council of Latin American Studies (NECLAS) e de uma menção honrosa do Bryce Wood Book Award pelo livro, comenda concedida anualmente pela Latin American Studies Association ao melhor livro que verse sobre a América Latina.

4 Como, por exemplo, RODRIGUES, Ana Maria. Samba negro, espoliação branca. São Paulo: Hucitec, 1984.

5 Como, por exemplo, FROTA, Wander Nunes. Auxílio luxuoso: samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e indústria cultural. São Paulo: Annablume, 2003.

6 Como, por exemplo, WISNIK, José Miguel e SQUEFF, Enio. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo:Brasiliense,2a ed.,1983.

7 Tradução livre realizada pelo autor da resenha.

Dmitri Cerboncini – Fernandes– Professor de Sociologia na Universidade Federal de Juiz de Fora.

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White Noise: Inside the International Nazi Skinhead Scene – LOWLES (CTP)

LOWLES, Nick; SILVER, Steave. (Ed). White Noise: Inside the International Nazi Skinhead Scene. Londres: Searchlight, 1998. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. Barulho, cabeças raspadas e raiva: neonazismo e música em White Noise, de Nick Lowles e Steve Silver. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 08 – 08 de julho 2012.

Se observarmos como, no século XX, a juventude se manifestou, perceberemos que em cada um de seus movimentos houve uma trilha sonora. Nos anos 1950, o surgimento do rock’n’roll com Chuck Berry, Elvis Presley e Little Richard, entre outros, evocava o direito de ser jovem, de se divertir e esquecer o conflito político entre capitalismo e socialismo no auge da Guerra Fria (1945-1991), ditando uma nova forma de se comportar. Nos anos 1960, este mesmo rock tentava combater com palavras e acordes tudo que estava errado: a guerra do Vietnã (1965-1975), o conservadorismo e o autoritarismo. Nos anos 1970, o punk rock voltava ao princípio, às mesmas bases do rock’n’roll cinquentista e eliminava a preocupação política, atrelado a uma espécie de niilismo lírico, conformado com uma guerra nuclear iminente que nunca aconteceu, embora mais tarde tenha ganhado feições de contestação.

Por gritar a liberdade e o direito de ser, de expor seus sentimentos, suas angústias, suas vontades, o rock tornou-se o porta-voz dos anseios da juventude de maneira que são eles os principais consumidores do mercado cultural ligado a este gênero. Uma cultura que não está apenas restrita aos discos, mas também a camisetas e acessórios de suas bandas favoritas, ou com os lemas preferidos de contestação ao stablishment. Entretanto, a história dos movimentos jovens em todo o mundo nos enganou, de certa forma, ao nos fazer pensar de maneira ingênua que a revolta da juventude era apenas contra os símbolos da repressão, contra o que era visto como antiquado, excessivamente autoritário e conservador. Ledo engano.

O livro White Noise – Inside de international nazi skinhead scene (Searchlight: Londres, 1998) vem para nos mostrar exatamente o contrário. Editado por Nick Lowles e Steve Silver, ativistas de uma das maiores organizações anti-fascistas da Inglaterra, a Searchlight, o livro expõe em suas 89 páginas as principais características dos movimentos neonazistas ingleses, por meio da organização musical. Seus principais traços, os esquemas mundiais de distribuição e a forma como a música neonazista é um grande atrativo para jovens que, insatisfeitos, aceitam atacar inimigos que, a princípio, não são os seus, mas que logo acabam se tornando.

Se no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 os punks não acreditavam num futuro, como bradava Johnny Rotten, vocalista da lendária banda inglesa Sex Pistols, parte dos skinheads britânicos, influenciados por partidos de extrema-direita como o National Front e o British Movement, principalmente, acreditavam que havia sim um futuro. Mas, este estava em medidas políticas e sociais tomadas no passado. Para eles, nem o capitalismo norte-americano e nem o socialismo soviético pareciam alternativas interessantes para seus anseios. Os protestos que faziam em suas músicas eram contra ambos, mas a favor de uma doutrina fascista, do racismo e da intolerância, edificado por Adolf Hitler na Alemanha e que deveria ser seguido como exemplo em todo o mundo.

É exatamente disso que o livro trata: os aspectos dessa música e toda a ideologia em torno dela, sua presença entre os jovens como forma de propaganda e exaltação da memória nazistas, além da forma como este tipo de música está articulado. As organizações, como a Blood & Honour, os selos musicais como o alemão Rock-O-Rama e o francês Rebelle Européens; as lojas de artigos, como a inglesa Cutdown; a divulgação, por meio de zines e revistas como a própria Blood & Honour. A música nazista, ou “música de ódio”, é retratada de maneira profunda pelos organizadores da obra, a fim de que seja chamada a atenção da Europa para o mal que representa este gênero entre a juventude.

Trata-se, segundo o livro, de um mercado que foi crescendo no submundo da Inglaterra, até atingir outras regiões do continente europeu. Os lançamentos em CDs eram, em sua grande maioria, clandestinos e caseiros, possuindo um aspecto artesanal, como algo realizado às escondidas. O mesmo ocorria com os shows, os quais o público só conhecia o local de apresentação das bandas poucas horas antes do evento, a fim de que a polícia ou os manifestantes anti-fascistas não interferissem. A divulgação era realizada de maneira independente, no boca a boca, ou por meio dos fanzines, espécies de panfletos em forma de pequena revista, normalmente fotocopiado ou impresso em casa. Trata-se de uma espécie de clube, restrito a brancos, nacionalistas e nacional-socialistas, indivíduos supostamente puros e cientes de seu papel na sociedade: limpá-la do que consideravam diferente. Mesmo que o livro possua uma vasta quantidade de informações pertinentes sobre os movimentos skinheads neonazistas e seu envolvimento com a música (sendo este um ponto para observar o seu relacionamento também com as políticas de extrema-direita na Europa), devemos nos debruçar de maneira crítica sobre ele. Por ter sido produzido e distribuído por uma organização concentrada em denunciar grupos intolerantes, a Searchlight, a obra possui um caráter de denúncia que não se apóia claramente em informações que impeçam a existência de alguns deslizes. Por exemplo, desde o início seus autores e colaboradores se preocupam em defender que os skinheads, neonazistas ou não, são um grupo que possui a intolerância em suas bases, ditando modelos de masculinidade e de comportamento, os quais não admitiam divergências. Segundo o livro, embora os skinheads tenham se alinhado à música jamaicana, como ao ska e ao reggae, e tenha se identificado com a cultura dos imigrantes caribenhos, o racismo era algo intrínseco à sua cultura, aproveitando-se muito mais dos ritmos musicais do que o que o povo jamaicano tinha a lhes oferecer.

Este tipo de declaração não agradaria ao jornalista escocês George Marshall, autor do livro “Espírito de 69 – A bíblia do skinhead”, talvez a mais completa obra a respeito do tema já escrita. Nela, Marshall aborda a cultura skinhead, o seu surgimento, suas principais características, suas ramificações, seus gostos musicais e as diferenças entre os skinheads neonazistas e os chamados trad skins, ou skins tradicionais. Estes segundos, de acordo com Marshall, possuem afinidades indiscutíveis com os negros, são declaradamente anti-racistas, embora, admite o autor e também skinhead, a violência tenha feito parte daquele estilo de vida. Entretanto, há capítulos em sua obra dedicados à forma como, por meio da música, os skinheads tentaram se desvincular do rótulo de neonazistas, quando os primeiros começaram a surgir no fim dos anos 1970.

Mesmo que Marshall tenha sido um skinhead, nos permitindo pensar que sua afetividade com o grupo não lhe permitiria difamá-lo ou simplesmente admitir certos problemas (o que, de fato, ele acaba fazendo), ele não é o único a escrever sobre os skinheads afastando-os da ideia de serem todos neonazistas ou racistas. Antonio Salas, pseudônimo do jornalista espanhol que esteve, durante um ano, infiltrado no movimento skinhead neonazista espanhol, o que rendeu o livro “Diário de um skinhead – Um infiltrado no movimento neonazista”, não parece ter adquirido qualquer tipo de empatia pelos jovens nacional-socialistas com quem teve contato. Ainda assim, é claro em sua obra que o surgimento de ideias de extrema-direita entre estes grupos ocorreria muitos anos depois de sua maturação, num momento em que, inclusive, o movimento parecia estar decadente.

O importante neste livro, e isto é mostrado de maneira bem organizada e detalhada, é podermos compreender a estrutura das organizações musicais neonazistas, o interesse dos jovens pelo gênero e o modo como estes podem ser comparados aos hippies dos anos 1960 e aos punks já nos anos 1980, muito embora os repugne: a música é uma saída, um meio de protestar e de tentar conversar, de expressar e de legitimar sua identidade. A diferença é que enquanto hippies pregavam a paz e os punks pregavam o anarquismo, os skinheads neonazistas pregavam o direito de gritar o ódio contra negros, homossexuais, judeus, comunistas, prostitutas, todos aqueles que acreditam serem uma mancha para a sociedade que integram. Uma situação preocupante e alarmante, que o livro não apenas denuncia, mas também explica.

Apesar de se restringir à Europa, White Noise nos introduz neste que aparenta cada vez mais ser um elemento intrínseco aos skinheads neonazistas: seu envolvimento com a música. O não muito grande, porém significativo mercado nacional-socialista não está mais restrito à Carnaby Street, onde existia a Cutdown, nem tampouco aos shows para 30, 40 pessoas organizados pela Skrewdriver e o Blood & Honour. Com a chegada da Internet, ele ganhou lojas virtuais que enviam seus produtos para todos os lugares do mundo. Criaram ambientes virtuais onde divulgam suas ideias e são capazes de se organizar mais efetivamente, através de fóruns e salas de bate-papo. Hoje, estamos a dois ou três cliques do ressurgimento de um ideal violento e intolerante. Ideal este que tem soldados, uniformes e hinos.

Referências

CAMUS, Jean-Yves. Skinheads. In: MEDERIOS, Sabrina Evangelista; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; VIANA, Alexander Martins. Dicionário crítico do pensamento da direita: idéias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad, 2000. p. 417-419.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. LOWLES, Nick; SILVER, Steve. White noise: Inside the international nazi skinhead scene. Londres: Searchlight, 1998.

MARSHALL, George. Espírito de 69 – A bíblia do skinhead. Tradução de Glauco Mattoso. São Paulo: Trama Editorial, 1993. SALAS, Antonio. Diário de um skinhead – Um infiltrado no movimento neonazista. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Planeta, 2006,

Pedro Carvalho Oliveira – Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (CNPq/UFS) Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET História/UFS) Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (DHI/UFS).

Acesso à publicação original

Contextos Estudios de Humanidades y Ciencias Sociales | UMCE | 1998

Contextos Estudos de Humanidades

Revista Contextos, Estudios de Humanidades y Ciencias Sociales (Santiago, 1998-) es una publicación semestral, editada de forma ininterrumpida por la Facultad de Historia, Geografí­a y Letras de la Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación desde 1998. Su principal misión es la difusión de trabajos en los que se discuta, analice y reflexione en torno a la literatura, lenguaje, filosofí­a, artes plásticas, música, comunicación, historia, geografí­a y semiología.

Periodicidade semestral

Acesso livre

ISSN 0717 7828 (Impresso)

ISSN 0719 1014 (Online)

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