Nazário e um plano de rebelião escrava na Aldeia dos Anjos: “os brancos eram uns pelos outros/por isso os negros também deviam fazer o mesmo” | Wagner de Azevedo Pedroso

A historiografia que estuda o extremo sul do Brasil já há muito abandonou a ideia de que naquela região a escravidão inexistiu ou teve pouco impacto. Se, por muito tempo, advogou-se que a mão de obra escrava era pouco importante para a economia e para a sociedade na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, hoje em dia essa hipótese já caiu por terra, graças à multiplicação de estudos rigorosos produzidos nos programas de pós-graduação em História.

De fato, nos últimos anos, historiadores e historiadoras têm mergulhado em documentação primária localizada em arquivos públicos, eclesiásticos e particulares e analisado com afinco o sistema escravista, trazendo à tona um quadro muito mais complexo e, ao mesmo tempo, bastante semelhante ao resto do Império brasileiro. As pequenas escravarias eram a marca da estrutura produtiva nas localidades menores, cuja economia era mormente voltada para o consumo interno. No complexo pecuário-charqueador, ligado ao mercado Atlântico, e em um grupo de comerciantes abastados podem ser encontrados os senhores de grande monta. Os escravos, por sua vez, à sua maneira e da forma que lhes pareceu mais estratégico, formaram famílias, apadrinharam-se entre si, lutaram em guerras externas, foram alforriados ou se auto libertaram. Eles e elas também organizaram insurreições e revoltas, cuja preparo, impacto e consequência variaram grandemente.1 É sobre esse último tópico que se ocupa o livro de Wagner de Azevedo Pedroso, intitulado Nazário e um plano de rebelião escrava na Aldeia dos Anjos e oriundo de sua dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2013.

A obra de Pedroso toma a pequena localidade de Aldeia dos Anjos2 na então província do Rio Grande do Sul como laboratório de análise. Utiliza como fio norteador o processo-crime instaurado para investigar um plano de insurreição capitaneado pelo escravo Nazário e por seus parceiros de cativeiro, em 1863, no qual os escravos intentavam assassinar seus senhores-moços a fim de conquistar a liberdade. Pedroso vai além: não só busca explicar o caso minuciosamente, quase que “afogando em nomes”,3 como também objetiva realizar uma análise mais estrutural, focando na maneira pela qual as elites adaptaram o sistema escravista à sua realidade, tendo em vista conjunturas críticas em meados do século XIX, quais sejam: a proibição definitiva do tráfico atlântico em 1850, a acentuação do tráfico interno, a concentração da mão de obra entre mais ricos e conflitos com outras nações que agitavam a fronteira sul do Império, aos quais os escravos não ficaram alheios.

Nas suas próprias palavras, o autor pretendeu “reconstruir fragmentos desta sociedade nas suas mais variadas facetas”, atentando para “conflitos e interesses que levaram os escravizados a buscarem a conquista da sua liberdade através da força” (p. 21). Ou seja, longe de ser a história de um local particular, trata-se de uma análise do escravismo brasileiro em um lugar específico.

O livro se divide em três capítulos e dialoga com a historiografia pertinente de maneira eficaz. A análise se baseia mormente em documentos produzidos pelo poder judiciário, com destaque para o próprio processo-criminal (resultado da ação das autoridades locais após a delação de um escravo que não aderiu ao plano de Nazário), para inventários post-mortem e para os registros cartorários. Além disso, Pedroso ainda se esforçou em rastrear seus personagens pelos valiosos e reveladores documentos eclesiásticos, de onde destrinchou as relações de parentesco consanguíneo e ritual entre senhores e entre escravos e libertos.

“Tudo começou em uma festa, a do Divino Espírito Santo” (p. 31), em 1863, alerta Wagner Pedroso. Como tantos outros escravos no Brasil Império, o grupo liderado pelo escravo Nazário da Aldeia dos Anjos utilizou uma celebração pública – cuja coordenação estava a cabo da elite local – para planejar sua revolta. É sobre a organização da revolta que se ocupa o primeiro capítulo da obra. Nele, o autor revela a intricada rede de contatos dos escravos, que circulavam por distâncias consideráveis para trocar informações e ideias. Se a festa do Divino foi compreendida como a oportunidade ideal para levar a cabo o projeto, a estrutura econômica, social e geográfica da Aldeia dos Anjos propiciou a mobilidade necessária para os revoltosos. Pedroso revela que a elite escravista local, cujos membros conectavam-se em relações interpessoais de amizade e parentesco, centralizava a produção de farinha de mandioca, importante produto para o mercado provincial. Tal organização social e produtiva influenciou “diretamente na rotina de trabalho dos escravizados, mas também propiciava aberturas para estes se movimentarem constantemente pelas roças das propriedades senhoriais” (p. 57). Em outras palavras, as tarefas das quais os escravos se ocupavam eram propícias ao contato intergrupo, o que acabou por facilitar a organização dos rebeldes.

O segundo capítulo foca nos motivos que levaram Nazário e seus colegas a investir em plano tão audacioso quanto arriscado. E aqui está o cerne do argumento de Pedroso para compreender a fracassada revolta: os insurgentes da Aldeia dos Anjos tinham como objetivo reformular a escravidão, mas não destruí-la. Preocupados com o envelhecimento de seus senhores e com o possível esgarçamento das relações sociais uma vez que passassem à posse de seus senhores-moços, Nazário e seu grupo planejaram assassinar esses últimos para posteriormente pedirem sua liberdade.

A análise do autor se centra em quatro grupos familiares de senhores e, utilizando processos de inventários e partilhas, defende que a figura do senhor-moço, para os revoltosos, representava “uma nova forma de domínio senhorial” (p. 71). Os senhores-moços seriam muito menos sensíveis às demandas dos escravos (por autonomia, por exemplo), dado o contexto mais amplo de “aumento do preço dos cativos e concentração” da sua posse (p. 104).4 A transferência da propriedade através da herança, assim, poderia resultar, considerando a racionalidade específica daqueles atores, na quebra de laços horizontais de solidariedade e provável distanciamento entre parentes, amigos, parceiros.

O terceiro e último capítulo busca entender por que o plano falhou e de que forma os senhores e o Estado reagiram à organização do grupo liderado por Nazário. O autor ainda acompanha os escravos “após a delação do plano de rebelião” (p. 33). Ponto importante – até então não mencionado pelo autor – é que os senhores dos cabeças da revolta dominavam o aparato de controle social em escala local. De fato, desfilavam com suas patentes (de tenentes-coronéis, capitães e alferes) pela aldeia e tinham acesso privilegiado à burocracia estatal. Ora, trata-se de ponto pouco fortuito: as elites brasileiras do século XIX participavam ativamente da vida militar/miliciana do país (via polícia e Guarda Nacional) e ganhavam com isso em termos estratégicos, já que dominavam a máquina desenhada para suprimir revoltas como aquela da Aldeia dos Anjos.5 Não foi à toa que, graças à delação de um escravo que não planejava participar da revolta, os senhores da região logo agiram e, bem organizados, perseguiram, reprimiram e processaram os insurgentes. Wagner Pedroso revela que as opções tomadas pelos escravos diante do fracassado plano variaram: enquanto vários optaram por entregar-se, outros buscaram padrinhos que os ajudassem a negociar o perdão com seus senhores; alguns ainda decidiram rumar à fronteira, almejando encontrar refúgio na província argentina de Corrientes.

“Foi no domingo, 30 de agosto [de 1863], que o sonho de liberdade dos escravizados, iniciado próximo ao dia 24 de maio, se acabou” (p. 125). Sabemos que a ideação de Nazário e seus colegas acabou não se concretizando. Fracassada a revolta, resultou a trágica morte de seu líder e um seu companheiro, e na prisão de outros, quando empreendiam uma desesperada fuga. Seguiu-se um longo processo criminal para investigar a revolta e julgar os presos. Os acusados de insurreição, depois de processados, foram condenados a levar cinquenta chibatadas e carregar ferros no pescoço por um mês. Não cessaram os escravos da região, no entanto, de buscar sua autonomia. Conquistaram a alforria (mormente via pagamento) com seu próprio pecúlio ou com a ajuda de compadres e parentes, ou decidiram se juntar às tropas brasileiras no front contra o Paraguai (1865-1870). Alguns faleceram ainda sob o jugo do cativeiro.

O livro nos ajuda a entender que, como bem salientou Regina Xavier em seu prefácio, a escravidão no Brasil profundo não foi um “sistema estrito de enclausuramento dos cativos em senzalas guardadas por feitores e/ou capatazes” (p. 14), já que permitiu que escravos como Nazário e seus colegas circulassem de uma localidade para outra, formassem famílias e tivessem a oportunidade de criar laços comunitários, fossem estes mais ou menos sólidos. Por outro lado, a obra também nos convida a refletir sobre a efetiva forma de controle, “mais difusa”, empreendida por “uma classe senhorial fortemente endogâmica e enredada na região” (p. 14) – o que certamente não foi exclusividade da Aldeia dos Anjos.

Ao estudar uma revolta escrava no pós-1850 – um período de pretensa estabilidade do Segundo Reinado, mas que foi marcado por revoltas de escravos que pipocaram por todo o território brasileiro, como a que foi objeto do livro em tela –, Wagner Pedroso busca entender de que forma os escravos desafiaram a ordem vigente a partir de seus próprios horizontes de possibilidades e planos para o futuro. Em uma edição cuidadosa, o autor optou por revisar sua dissertação fazendo seu texto ficar mais palatável ao grande público. O uso econômico das notas de rodapé e a adição de quadros explicativos em muito facilita a leitura. Alguma repetição acaba por incomodar o leitor mais atento, mas não reduz a qualidade final do trabalho, que se torna referência para os renovados estudos sobre rebeliões escravas no Brasil oitocentista.


Notas

1 Moreira e Maestri realizaram compêndios detalhados das revoltas, rebeliões, insurreições e planos malogrados no Rio Grande do Sul oitocentista. Ver: Paulo Roberto Staudt Moreira, “Por que os brancos eram uns pelos outros, os negros também deviam fazer o mesmo: revoltas escravas no Rio Grande do Sul na segunda metade do oitocentos” in João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Revoltas escravas no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2021), pp. 413-457; Mário Maestri, “Insurreições escravas no Rio Grande do Sul (século XIX)” in Reis e Gomes (orgs.), Revoltas escravas no Brasil, pp. 458-511.

2 Cuja maioria da população, de cerca de cinco mil habitantes, era formada por pretos e pardos, de acordo com o censo de 1872.

3 Termo utilizado por Fragoso em um importante texto sobre método micro-histórico e história econômica. Ver: João Fragoso, “Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica”, Topoi, v. 3, n. 5, (2002), pp. 41-70 https://www.scielo.br/j/topoi/a/gd7JDsNPXbtMMkqKyd7MbDF/?lang=pt.

4 Pedroso demonstra que houve concentração da posse escrava nas mãos dos donos de atafonas (moinhos para produzir farinha movidos por força animal ou por roda d’água), a partir da análise de inventários post-mortem. A concentração da posse escrava pelos mais ricos seria mais bem comprovada se Pedroso houvesse dividido a análise dos inventários post-mortem por faixa de tamanho da escravaria em períodos específicos (Tabela 2, p. 56), tal como realizou para a análise dos preços. Fontella e Matheus publicaram um balanço historiográfico sobre a estrutura de posse escrava na província do Rio Grande do Sul e demonstraram, através de análise da bibliografia secundária, que “a disseminação da posse cativa era a tônica” e que a escravidão “gozava de uma ampla legitimidade social em meio aos diferentes estratos sociais”. Ver: Leandro Fontella e Marcelo Matheus, “Estrutura de posse escrava na província do Rio Grande de São Pedro: um balanço historiográfico”, Revista Latino-Americana de História, v. 2, n. 9 (2013), p. 91 https://revistas.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/view/306.

5 Para Uricoechea, a criação da Guarda Nacional, em 1831, e sua posterior reforma, em 1850, levaram a um intenso processo de militarização da sociedade e da vida política no Brasil imperial. Mügge, por sua vez, demonstra que 48% dos homens adultos livres em idade militar na província do Rio Grande do Sul estavam arrolados na Guarda Nacional (no mesmo período estudado por Wagner Pedroso). Ver: Fernando Uricoechea, The Patrimonial Foundations of the Brazilian Bureaucratic State, Berkeley: University of California Press, 1980, pp. 38-57; Miquéias H. Mügge, “A milícia revisitada: números da Guarda Nacional no Rio Grande do Sul oitocentista”, Navigator, v. 13, n. 26 (2017), pp. 61-73 https://revistanavigator.com.br/navig26/dossie/N26_dossie5.html


Resenhista

Miquéias H. Mügge – Princeton University. https://orcid.org/0000-0003-0133-6844


Referências desta Resenha

PEDROSO, Wagner de Azevedo. Nazário e um plano de rebelião escrava na Aldeia dos Anjos: “os brancos eram uns pelos outros, por isso os negros também deviam fazer o mesmo”. Porto Alegre: Editora Coragem, 2020. Resenha de: MÜGGE, Miquéias H. Horizontes futuros em uma revolta escrava no sul do Brasil. Afro-Ásia, n. 65, p. 736-741, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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