Nuno Álvares Pereira. Guerreiro/senhor feudal/santo. Os três rostos do Condestável | João Gouveia Monteiro

Entre 1978, ano da publicação original de La Nouvelle Histoire, e 1988, quando da sua segunda edição, ocorreram algumas “voltas” no campo historiográfico que mereceram considerações do diretor da obra, Jacques Le Goff, expostas num novo prefácio. Além da volta do acontecimento, da história-narrativa e da história política, observou-se também a volta da biografia, “a mais consensual” de todas elas, segundo o historiador francês. Uma biografia histórica, contudo, para ser considerada realmente nova, deve evitar, de acordo com Le Goff (1990, p. 6-8), reduzir o biografado “a uma explicação sociológica”: a vida humana que é objeto de estudo do historiador deve ser esclarecida pelas estruturas e estudada “através de suas funções e seus papéis”.

Naquela mesma década de 1980, Pierre Bourdieu (2006) já alertava os historiadores para o perigo da “ilusão biográfica”, qual seja, o de pensar a vida do biografado como um todo coerente e teleologicamente orientado. É principalmente a atribuição de um nome próprio, única constante na vida do indivíduo, do berço ao túmulo, que, segundo Bourdieu, gera a ilusão de essência, unidade e totalidade do eu, ao mesmo tempo em que desconsidera as mudanças biológicas e sociais enfrentadas por alguém em sua trajetória de vida – trajetória essa que nunca é linear, mas, qual uma malha de uma rede metroviária, apresenta várias possibilidades de idas e vindas. Ciente disso, o historiador biógrafo deve reconhecer que o sujeito biológico designado por um nome próprio pode ocupar simultaneamente diferentes posições e intervir como agente eficiente em diferentes campos.

Pensamos que tais precauções e orientações metodológicas foram exemplarmente seguidas pelo historiador português João Gouveia Monteiro em sua biografia do secundogênito que teve um importantíssimo papel na ascensão e consolidação da Dinastia de Avis, no reino de Portugal, entre o fim do século XIV e as primeiras décadas da centúria seguinte. Referimo-nos à obra Nuno Álvares Pereira. Guerreiro, senhor feudal, santo. Os três rostos do Condestável, lançada originalmente em 2017, pela editora Manuscrito – pertencente ao Grupo Presença –, e que, em 2021, já contava com cinco reimpressões, indicativo de sua boa acolhida junto aos leitores.

Como se pode perceber desde os subtítulos do livro, Monteiro preocupou-se em oferecer uma história de vida que tentasse dar conta dos distintos caminhos percorridos por D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431). Nas palavras do autor: “na verdade, Nun’Álvares é uma personagem tão extraordinária e tão multifacetada que se torna fascinante para qualquer historiador, em especial para quem tem na Idade Média o seu campo privilegiado de trabalho” (p. 12, grifo nosso). O fascínio exercido pelo biografado, porém, extrapola o público acadêmico. Beatificado pelo papa Bento XV, em 23 de janeiro de 1918, e canonizado em 26 de abril de 2009 por Bento XVI, o homem que ainda em vida ganhara a alcunha de Santo Condestável há séculos vem atraindo a atenção de gerações de portugueses, quaisquer que sejam os seus níveis de instrução.

Foram várias as fontes utilizadas por João Gouveia Monteiro para a escrita da biografia de D. Nuno Álvares Pereira. O primeiro capítulo do livro, “Como contar esta história?” (p. 19-69) detém-se sobre as fontes narrativas. No que diz respeito às que foram produzidas na época em que D. Nuno viveu, merecem destaque a Crónica do Condestabre e as narrativas históricas produzidas por Fernão Lopes (138?-c.1460) referentes aos reinados de D. Pedro I (1320-1367)1, D. Fernando (1345-1383) e D. João I (1357-1433).

A Crónica do Condestabre, também conhecida como Estória de D. Nuno Álvares Pereira, é, segundo Teresa Amado (1993, p. 186-188), a única crônica biográfica senhorial produzida antes de 1450 em Portugal a chegar aos nossos dias. A historiadora situa a sua escrita no decorrer dos anos 30 do século XV e aventa a possibilidade de que o seu anônimo autor tenha sido algum cavaleiro pertencente a alguma ordem militar alheio à corte régia. João Gouveia Monteiro (p. 47-51), por seu turno, embora sem o afirmar peremptoriamente, aponta fortes indícios de que a Crónica do Condestabre pode ter saído do punho de Gil Airas, escrivão da puridade2 de D. Nuno Álvares Pereira, e no decorrer de toda a biografia o autor vai assinalando passos em que o dito Gil Airas era uma das pouquíssimas testemunhas de eventos cruciais da vida do biografado.

Com respeito às crônicas de Fernão Lopes enquanto fontes narrativas para a escrita da história da vida de D. Nuno Álvares Pereira, Monteiro (p. 63-67) alerta que elas tinham por principal objetivo louvar e legitimar a nova linhagem régia fundada pelo bastardo Mestre de Avis, o mesmo que foi depois aclamado rei como D. João I, nas cortes de Coimbra, em abril de 1385. Lopes era, pois, cronista régio, e não senhorial. De maneira perspicaz, Monteiro aponta algumas divergências e silenciamentos operados pelo primeiro cronista-mor de Portugal em relação à Crónica do Condestabre, apesar de esta ter sido, indubitavelmente, uma das principais fontes utilizadas por Fernão Lopes para escrever a sua Crónica de D. João I, como bem o demonstrou Teresa Amado (1997, p. 67-175), através de um criterioso cotejamento.

Outras fontes literárias utilizadas por Monteiro são posteriores à morte do condestável. Três delas, porém, foram produzidas ainda na primeira metade do século XV, duas das quais foram escritas pelo rei D. Duarte (1391-1438), que fora amigo de D. Nuno Álvares Pereira: (1) as instruções que o monarca deu a um prelado para serem utilizadas na composição das exéquias do condestável, que podem ser encontradas em seu Livro dos Conselhos (DUARTE, 1982, doc. 61, p. 225-229); e (2) uma carta que o soberano escreveu, em 21 de julho de 1437, ao beneditino português D. Gomes Eanes, que era abade em Florença, solicitando informações sobre o processo de canonização de D. Nuno. Com fins persuasórios junto à Santa Sé, D. Duarte anexou à sua missiva uma oração fúnebre que seu irmão, o infante D. Pedro (1392-1449), duque de Coimbra, compôs em latim em honra de Nun’Álvares (p. 69). Por fim, embora mais tardia, a Crónica dos Carmelitas, escrita por frei José Pereira Santana (1696-1759), não foi desprezada pelo historiador, uma vez que tal fonte, em seu objetivo de escrever a história da Ordem do Carmo em Portugal, cita documentos referentes a D. Nuno Álvares Pereira enquanto fundador e morador do convento carmelita de Lisboa, muitos dos quais se perderam com o terremoto que arruinou a capital lusitana, em 1755 (p. 67-68).

Cada um dos três capítulos seguintes dedica-se a oferecer um retrato dos “três rostos do condestável”, a saber: guerreiro, senhor feudal e santo3. Ressaltamos, contudo, que, longe de serem estanques, fechados em si mesmos, tais capítulos dialogam entre si, de modo que o predomínio de determinada faceta de D. Nuno em um deles não oblitera nem despreza os seus dois outros “rostos”, expostos com mais vagar nos demais capítulos, que seguem a mesma tônica.

Na economia geral da obra, o capítulo mais extenso é o segundo – “O general invencível e o seu exército” (p. 70-159). Não admira. João Gouveia Monteiro é pesquisador de história militar portuguesa no período medieval. Assim, guiados por sua expertise, acompanhamos a formação militar do biografado, de sua iniciação, aos 13 anos, durante a Segunda Guerra Fernandina (1372-1373), passando pelo apogeu, com 25 anos, na acachapante vitória na Batalha de Aljubarrota4, em 1385, até o último êxito bélico de D. Nuno, já quase sexagenário, com sua participação na tomada de Ceuta aos marroquinos, em 1415.

Entre 1373 e 1415, contudo, outras batalhas, todas contra os castelhanos, também contaram com a atuação decisiva de D. Nuno Álvares Pereira, como a de Atoleiros, em abril de 1384, seu “primeiro grande triunfo” (p. 94-97), e a de Valverde, em outubro de 1385, na qual aconteceu o místico episódio do afastamento de D. Nuno para rezar, entre penedos, num momento de revés que poderia ter-lhe custado não apenas a vitória, mas também a vida (p. 115-118). Eis um dos exemplos em que o biógrafo oferece uma antevisão do “rosto” de santo de D. Nuno no capítulo em que trata de sua trajetória enquanto guerreiro.

Apesar da sua fama de impulsivo – o que, de fato, demonstrou ser em diversas ocasiões –, o condestável deve ser analisado também enquanto um grande estrategista militar, segundo Monteiro. Vejamos dois exemplos, dentre os que são oferecidos pelo historiador. Antes da Batalha de Atoleiros, D. Nuno parou o seu exército num lugar que lhe era favorável, a cerca de 20 metros de uma linha d’água: a distância era suficiente para que as setas dos besteiros e as pedras lançadas pelos peões atingissem os castelhanos que, num terreno alagadiço, teriam dificuldades de se movimentar com os seus cavalos (p. 95). Foi na Batalha de Atoleiros, a propósito, que D. Nuno introduziu em Portugal, provavelmente por influência inglesa, que já a vinha utilizando na Guerra dos Cem Anos, a tática do combate “pé terra”, na qual os nobres lutavam apeados (MONTEIRO, 2003, p. 262-264).

A escolha prévia do local da batalha foi também fundamental para o sucesso dos portugueses em Aljubarrota: na véspera, D. Nuno, acompanhado de alguns dos seus homens, fez o reconhecimento do terreno, entre Porto de Mós e Leiria, e decidiu alojar as hostes num planalto estreito, entre duas linhas d’água, de modo que o exército castelhano fosse obrigado a lutar subindo uma ladeira e com o sol a ferir a vista. Como, prudentemente, os inimigos deram a volta, D. Nuno não se deu por vencido e escolheu um novo local, dois quilômetros ao sul, que provavelmente também já fora visitado no dia anterior. Embora não tivessem mais a “vantagem do sol, nem do declive frontal”, como explica Monteiro (p. 111), “aquele era um ponto de estrangulamento natural do terreno, e continuava a haver duas linhas de água que, com os respectivos barrancos, dificultariam qualquer tentativa de envolvimento por parte do exército adversário”. À vantagem da posição das hostes anglo-portuguesas somou-se a artimanha de cavar centenas de covas e fossos, disfarçados com ramagens, dentro dos quais havia troncos de pontas afiadas, o que provocou a queda e a confusão entre os guerreiros franco-castelhanos na sua primeira investida. Assim, conforme planejado pelo condestável, a escolha de um terreno naturalmente vantajoso, enriquecido com armadilhas, favoreceu a vitória do exército de D. João I, a despeito da sua desvantagem numérica (p. 110-115).

Outro aspecto do Nuno estrategista ressaltado por João Gouveia Monteiro diz respeito à sua resistência em montar cercos para tomar vilas e cidades. Primeiramente porque tais operações, em geral, demoravam semanas e envolviam riscos para os sitiantes, como o de serem atacados pelos sitiados ou de adoecerem e morrerem devido a epidemias em seu arraial – o que era facilitado pela concentração de homens e pelas débeis condições sanitárias. Ademais, a logística envolvida em cercos tornava-os caros, fosse pelos engenhos utilizados para tentar derrubar as muralhas, fosse pela alimentação e pagamento de soldo a guerreiros por um período extenso. “Pelo contrário, o ‘correr terra’ e o dar batalha tinham outra honra e proveito, como se vira em Aljubarrota: quem triunfasse na batalha campal, dominaria as praças fortes” (p. 120). Nisso o condestável discordava do rei: para D. João I, “o controlo de um território pressupunha o domínio das fortificações, trazia maior prestígio a um monarca e tinha mais consequências políticas, acarretando a rendição de outras cidades e vilas” (p. 120).

Não faltaram ocasiões em que Nun’Álvares e suas tropas tiveram de se retirar, às vezes com baixas consideráveis, é verdade (p. 147-178). Feitas as contas, contudo, o condestável foi mais vencedor que vencido. E a honra demonstrada em campo de batalha e em incursões guerrilheiras contra os castelhanos garantiu-lhe o proveito material, conforme João Gouveia Monteiro (p. 160-212) demonstra no capítulo 3, “O senhor feudal e o seu patrimônio”. O historiador valeu-se de cerca de 170 documentos, consultados principalmente nas chancelarias de D. Pedro I, D. Fernando, D. João I e D. Duarte, para mapear o assombroso crescimento do cabedal de D. Nuno, fruto, em sua maior parte, de mercês régias (p. 11). Como era de se esperar, o Rei da Boa Memória foi o mais generoso para com o condestável, devido ao grande papel exercido por D. Nuno na ascensão e manutenção da bastarda Dinastia de Avis no trono português.

Membro da poderosa família dos Pereira, D. Nuno não era, antes de aderir à causa do Mestre de Avis, um desvalido. Os privilégios que D. Pedro I e D. Fernando concederam ao seu pai, D. Álvaro Gonçalves Pereira (c.1300-1375/1379), prior da Ordem do Hospital, bem como a alguns de seus irmãos, engrossaram os bens materiais dos Pereira. Além disso, a legitimação de Nun’Álvares5, ainda com um ano de idade, concedida por D. Pedro I, foi condição para que o biografado viesse a desfrutar da parte que lhe cabia do patrimônio familiar e a ter o necessário prestígio social enquanto fidalgo para, através do matrimônio, aumentar as suas rendas, o que veio de fato a ocorrer. Aos 16 anos, mesmo contra a sua vontade, D. Nuno, para agradar o pai, casou-se com D. Leonor de Alvim (c.1356-1388), rica dama que acabara de enviuvar, e foi viver nas terras que recebera junto com a esposa, no Minho. Três anos antes, por ocasião de sua introdução na corte régia pelas mãos do pai, D. Nuno já havia sido agraciado pelo rei D. Fernando com algumas vilas e suas respectivas rendas. Tal pecúlio era considerável, mas, como lembra Monteiro (p. 206), “só por si, nada disto o transformava ainda num grande senhor feudal, poderoso e rico, com influência nacional e capacidade de pressão política junto dos centros de decisão”. A crise que caracterizou o interregno de 1383- 1385 e o seu apoio à causa do Mestre de Avis foram sabiamente utilizadas por esse filho segundo para tornar-se, abaixo do rei, o homem mais rico e poderoso de Portugal.

João Gouveia Monteiro argutamente relaciona as doações recebidas pelo biografado das mãos do Mestre de Avis / D. João I com os seus sucessos político-militares: D. Nuno foi feito condestável e mordomo-mor do reino em seguida à aclamação de D. João I, em 1385; ascendeu, nesse mesmo ano, a conde de Ourém e recebeu um extenso território, de norte a sul de Portugal, após o triunfo de Aljubarrota; foi feito conde de Barcelos depois da vitória alcançada em Valverde, ainda em 1385; obteve rendas, para si e alguns parentes, durante o cerco de Chaves, em 1386, vila da qual viria a ser senhor, dois anos depois. Monteiro sugere ainda que o condado de Arraiolos tenha sido concedido ao condestável como recompensa pelos triunfos no Alentejo, em especial com a vitória em Atoleiros, em 1384. D. Nuno Álvares Pereira foi recompensado, portanto, com três condados, com todas as benesses, em pecúlio e em prestígio, daí advindas (p. 206-207).

Mas, se D. João I atendeu ao pedido de Nun’Álvares de ser “o único homem em Portugal com o estatuto de conde” (p. 207), por outro lado, o soberano, aconselhado “pelos legistas mais empenhados no reforço do poder da realeza e que viam com maus olhos a afirmação de grandes poderes senhoriais concorrentes” (p. 127), convocou a nobreza, entre o fim de 1393 e o começo de 1394, para, sob a justificativa de montar as casas dos seus filhos infantes, reaver parte das terras doadas anteriormente. O nobre mais atingido por tal decisão, evidentemente, foi o condestável, que já tinha, à maneira de um típico senhor feudal, distribuído parte dos bens e privilégios recebidos entre os seus melhores guerreiros, na condição de vassalos. Ora, esse era precisamente o nó da questão: D. João I decidiu que, em Portugal, somente o rei poderia ter vassalos. Contrariado, D. Nuno retirou-se do paço e manifestou aos seus dependentes o desejo de partir do reino, qual cavaleiro andante.

Embora a vontade do monarca tenha prevalecido com respeito à nobreza como um todo, D. João I contemporizou em relação ao condestável: não o forçou a vender quaisquer terras à Coroa e ainda permitiu que aquelas que haviam sido doadas por D. Nuno fossem usufruídas por seus homens vitaliciamente, só retornando ao patrimônio régio após as suas mortes. Historiador militar como é, Monteiro (p. 130) explica essa desavença entre o rei e D. Nuno da seguinte maneira: “mais do que a instalação das casas dos infantes, a minha interpretação é a de que seria sobretudo o risco de exércitos particulares privados poderosos que preocupava D. João I e os seus conselheiros”.

À “construção” do cabedal do condestável, cuja extensão máxima fora atingida por volta de 1392, seguiu-se a sua “desconstrução”: distribuição de terras e privilégios entre os seus companheiros, em 1393 (o que gerou o conflito com o rei acima aludido); cessão de terras e do título ducal de Barcelos a D. Afonso (1377-1461), bastardo régio, por ocasião do seu casamento com D. Beatriz (1380-1414), única filha de D. Nuno, em 1401; três anos depois, o condestável fez a sua primeira doação ao convento que mandara erigir em Lisboa; alienação do seu patrimônio, em 1422, em favor dos netos: o condado de Ourém a D. Afonso (c.1402-1460), o de Arraiolos a D. Fernando (1403-1478), e terras, com suas respectivas rendas, a D. Isabel (140?-1465); por fim, em 1423, doou o convento lisboeta à Ordem do Carmo. Já não lhe restava nenhum bem próprio, e o condestável passou a viver no cenóbio carmelita (p. 210-212).

Ao concluir dessa maneira o capítulo dedicado a face de senhor feudal de D. Nuno Álvares Pereira, Monteiro realça, através do despojamento material, o seu “rosto” de “santo”. Está lançada, pois, a base para o quarto e último capítulo da biografia (p. 213- 327). Como fizera nas páginas precedentes, o historiador intercala as facetas de D. Nuno. E assim é que Monteiro destaca nesse capítulo que, enquanto guerreiro, o condestável nunca se descuidou dos seus hábitos religiosos, fazendo-se acompanhar, em sua hoste, de sacerdotes para celebrarem missa, ouvirem sua confissão e proporcionar-lhe a oportunidade de comungar, além de ter organizado procissões em seu arraial e de ter demonstrado misericórdia para com os adversários (p. 291). Ora, no próprio capítulo dedicado ao “rosto” de guerreiro, o biógrafo já havia feito alusão ao patrocínio do condestável à construção de igrejas, às romarias que fizera em agradecimento pelas vitórias e à tentativa de impor entre os seus homens um comportamento moralmente elevado, através da proibição da presença de mulheres acompanhado as tropas.

Tais virtudes cristãs, como era de se esperar, haveriam de ser demonstradas com maior fervor durante os anos finais de D. Nuno Álvares Pereira, passados, entre 1422 e 1431, no convento carmelita que construiu, com recursos próprios, em Lisboa. Monteiro reconhece a exiguidade de fontes relativas a esse período, dado o próprio estado de recolhimento do biografado, e ancora-se, sobretudo, nas informações contidas na citada Crónica dos Carmelitas, de frei José Pereira Santana, do século XVIII – pontuando, contudo, quais delas são verossímeis e quais são, provavelmente, criações, fruto do desejo do religioso de enaltecer a sua ordem –, bem como nos igualmente citados documentos escritos pelo rei D. Duarte e pelo infante D. Pedro logo após o trespasse de D. Nuno.

Para compreender a decisão do condestável de abrir mão de seus bens materiais e simbólicos – queria ele, desde então, ser chamado apenas de “Nuno”, desprezando os títulos, o nome de família e o tratamento de “dom” –, de entrar no convento lisboeta, em 1422, e de vestir o hábito carmelita como donato6, no ano seguinte, João Gouveia Monteiro situa o biografado no quadro social e religioso da época. Lembra que foi justamente durante o período em que D. Nuno viveu que as ordens mendicantes, com sua devotio moderna, se espalharam por Portugal – em especial no Alentejo, onde o condestável passou boa parte da sua vida –, e não poucos dos seus contemporâneos leigos abandonaram o mundo secular e se retiraram, numa fuga mundi, com vistas a alcançar a salvação. Ademais, sendo um Pereira, D. Nuno teve o pai e um irmão que ocuparam o priorado do Hospital, ordem militar de cariz cruzadístico (p. 295-297).

Mas o historiador vai além. Propõe uma interpretação “um pouco contra a corrente”, segundo suas palavras (p. 297), para tentar entender que motivos levaram o guerreiro e senhor feudal a enclausurar-se, numa vida religiosa e contemplativa. Para Monteiro, a estreita relação de intimidade e confiança que D. Nuno tinha com os eremitas, em especial com os que habitavam a região da serra de Ossa, no Alto Alentejo, foi o que mais pesou em sua opção pela vida apartada, num cenóbio. A simpatia pelos anacoretas, aliás, era manifestada por outros membros da família Pereira: Iria Gonçalves, mãe de D. Nuno, refundara um eremitério na região de Portalegre, em 1385; e, em Flor da Rosa, onde seu pai, o prior D. Álvaro Gonçalves Pereira, foi sepultado, surgiu, por volta de 1410, um pequeno eremitério, o que não teria acontecido sem a concessão dos Pereira. Ademais, Monteiro lembra o relato, presente na Crónica do Condestabre, de uma doença que o biografado vinha sofrendo, no primeiro semestre de 1398. A cura veio, segundo o anônimo autor, de forma súbita, quando levaram D. Nuno para Alferrara, “um dos eremitérios mais importantes da região de Setúbal!” (p. 301). Por fim, o historiador traz novamente à tona a ocasião, durante a Batalha de Valverde, em que o condestável, ferido no pé, se apartou dos seus homens e dos seus inimigos para rezar, ajoelhado, entre penedos. Monteiro evoca, aqui, as palavras do cronista – e contemporâneo do biografado – Fernão Lopes: “não como guiador da sua hoste, mas como simples eremitão, fora de todo o negócio” (apud MONTEIRO, 2017, p. 303, grifo do autor). A própria tradição de eremitismo dos carmelitas, a propósito, que tinham por fundador mítico o profetaeremita Elias, explicaria o motivo de o condestável ter entregue o convento por ele patrocinado à Ordem do Carmo (p. 304). E, assim, justificado está o título escolhido pelo autor para esse que é o derradeiro capítulo do livro: “Um eremita da ‘pobre vida’ no mosteiro”.

Desse modo, a obra que ora resenhamos não é apenas mais uma biografia de D. Nuno Álvares Pereira. Com o seu olhar perscrutador, João Gouveia Monteiro compulsou fontes narrativas e documentais, atentando para detalhes que passaram desapercebidos por outros pesquisadores, e, a partir daí, ofereceu novas interpretações sobre diferentes dimensões da vida de D. Nuno. Uma vez terminada a leitura do livro de Monteiro, conseguimos discernir, com um pouco mais de nitidez – ou, talvez seja mais correto dizer, de forma menos embaçada – os vários rostos do homem que teve muitos nomes: D. Nuno Álvares Pereira, Santo Condestável, Beato Nuno, São Nuno de Santa Maria e, como ele quis ser chamado no ocaso de sua vida, simplesmente Nuno.

Teve o autor, ainda, a humildade acadêmica de reconhecer o caráter provisório de suas asserções: “A História é uma estrada sem destino, uma fascinante construção sempre em aberto, e o futuro permitirá avaliar melhor a pertinência da minha proposta” (p. 302). Resta-nos, portanto, aguardar novas pesquisas sobre o condestável para vermos em que pontos essa biografia pode ser refutada ou corroborada. Uma coisa, porém, é certa: o livro de João Gouveia Monteiro é, desde sua publicação, em 2017, leitura obrigatória para todos aqueles que, pesquisadores ou não, se interessam pela vida de D. Nuno Álvares Pereira.


Notas

1 O período temporal entre parênteses refere-se aos anos de nascimento e morte dos monarcas, e não de seus reinados.

2 “Puridade”, no português medieval, significava “segredo”, “privacidade” (DUARTE, 2005, p. 216-217). Desse modo, Gil Airas era uma espécie de “secretário particular” de D. Nuno Álvares Pereira e participava da sua intimidade.

3 A inspiração, como reconhece Monteiro (p. 15), veio do artigo “As três faces de Afonso Henriques”, de José Mattoso (1992). Nesse texto, Mattoso apresenta “três retratos contrastantes” do primeiro rei de Portugal: “instrumento de Deus”, “chefe do bando guerreiro” e “rival dos senhores feudais”.

4 Ocorrida no final da tarde de 14 de agosto de 1385, na qual se decidiu a independência de Portugal, sob o reinado de D. João I, em relação a Castela, cujo rei, D. Juan I (1358-1390), pleiteava o trono português por ser casado com D. Beatriz (1373-c.1420), filha legítima de D. Fernando, último rei da Dinastia de Borgonha. As tropas portuguesas, apoiadas por soldados ingleses, mesmo em menor número (cerca de 10 mil homens), derrotaram as hostes castelhanas, auxiliadas por cavaleiros franceses, com um efetivo total entre 20 mil e 30 mil guerreiros (DUARTE, 2007; MONTEIRO, 1998, p. 295-308; MONTEIRO, 2003, p. 273-274; MONTEIRO, 2017a, p. 188-193).

5 O condestável era filho bastardo do prior do Hospital com Iria Gonçalves, “mulher solteira ao tempo da nascença do dito Nuno Álvares”, conforme se pode ler na carta de legitimação, de 24 de julho de 1361 (apud MONTEIRO, 2017, p. 172).

6 Na condição de semifrater, isto é, meio frade, como explica o autor (p. 302).


Referências

AMADO, Teresa. Crónica do Condestabre. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe (org. e coord.). Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. 2. ed. Trad. José Colaço Barreiros e Arthur Guerra. Lisboa: Caminho, 1993. p. 186-188.

AMADO, Teresa. Fernão Lopes, contador de história: sobre a Crónica de D. João I. Lisboa: Estampa, 1997.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). Usos & abusos da história oral. Trad. Luiz Alberto Monjardim et al. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 183-191.

COELHO, Maria Helena da Cruz. D. João I: o que recolheu Boa Memória. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005.

DUARTE, D. Livro dos conselhos de el-rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Ed. diplomática de José Alves Dias. Lisboa: Estampa, 1982.

DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte: réquiem por um rei triste. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005.

DUARTE, Luís Miguel. Aljubarrota: crónica dos anos de brasa. 1383-1389. Matosinhos: Quidnovi, 2007.

LE GOFF, Jacques. Prefácio à nova edição. In: LE GOFF, Jacques (dir.). A História Nova. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 1-9.

MATTOSO, José. As três faces de Afonso Henriques. Penélope. Fazer e desfazer a história, Lisboa, n. 8, p. 25-42, 1992.

MONTEIRO, João Gouveia. A guerra em Portugal nos finais da Idade Média. Lisboa: Notícias, 1998.

MONTEIRO, João Gouveia. De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449): os desafios da maturidade. In: BARATA, Manuel Themudo; TEIXEIRA, Nuno Severiano. Nova história militar de Portugal. v. I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003. p. 163-287.

MONTEIRO, João Gouveia. Nuno Álvares Pereira. Guerreiro, senhor feudal, santo. Os três rostos do Condestável. Lisboa: Manuscrito, 2017.

MONTEIRO, João Gouveia. Parte I (1096-1495). In: TEIXEIRA, Nuno Severiano (coord.). História militar de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2017a. p. 15-206


Resenhista

Jerry Santos Guimarães – Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB); professor de História da Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC/BA). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MONTEIRO, João Gouveia. Nuno Álvares Pereira. Guerreiro, senhor feudal, santo. Os três rostos do Condestável. Lisboa: Manuscrito, 2017. Resenha de: GUIMARÃES, Jerry Santos. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.12, n.1, e-212309, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.