Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação | Silvia Hunold Lara || Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678 | Silvia Hunold Lara, Phablo Roberto Marchis Fachin
Palmares tem sido estudado e descrito desde o início do século XIX na literatura científica brasileira e, ocasionalmente, na portuguesa. É bem conhecido no Brasil graças tanto a trabalhos acadêmicos quanto à representação popular; mas é também muito conhecido fora do Brasil, pois há uma extensa historiografia sobre aquela comunidade quilombola escrita em inglês (e bem menos em outras línguas).
Os africanos mantidos como escravos e seus descendentes são bem conhecidos e amplamente estudados na historiografia das Américas, e comunidades de fugitivos ― chamadas diversamente mocambos, quilombos, palenques, maroons e assim por diante, ganharam uma boa parte da atenção nesses estudos. Entre as muitas comunidades desse tipo por todas as Américas, Palmares é apenas superada pela Revolução do Haiti em termos de sua extensão e bem sucedido exemplo de resistência armada à escravidão. Já grande e disseminado nos anos de 1640, ele cresceu e se expandiu no final do século XVII para se tornar um complexo conjunto de assentamentos (alguns contanto, possivelmente, com mais de dez mil moradores) com pelo menos alguns indícios de liderança centralizada.
Nas mentes dos colonos brasileiros, a guerra contra Palmares foi bem parecida com a guerra holandesa entre os mais importantes acontecimentos do período. Mesmo nos livros setecentistas de história do Brasil, Palmares era assim reconhecido, mesmo se tais textos davam pouca atenção aos escravos.
Silvia Hunold Lara vem estudando Palmares há muitos anos, e Palmares & Cucaú é a pedra angular desse empenho. E que empenho! Enquanto coleções de documentos sobre Palmares são bastante conhecidas, Lara reuniu a mais completa documentação jamais produzida, a qual ela estudou, analisou e publicou. Ao mesmo tempo em que contém um pequeno anexo documental, o livro anuncia um banco de dados online que inclui milhares de documentos digitalizados, incluindo as referências aos acervos onde podem ser encontrados.
Lara incorporou muitos documentos não usados ou pouco usados até agora, especialmente um fundo documental com conteúdo ainda inédito do Arquivo Histórico Ultramarino e também as recentemente descobertas Disposições dos Governadores de Pernambuco, depositados no Arquivo da Universidade de Coimbra. Não há dúvida de que o trabalho de Lara se baseia num conjunto documental expressivo, maior do que o usado por qualquer outro pesquisador; de fato, é justo dizer que se trata de uma base de dados completa, salvo descobertas documentais futuras.
Essa prodigiosa coleta de dados, um projeto de muitos anos de pesquisa diligente, é complementada por leitura e análise judiciosas, cuidadosas e íntimas da documentação. Isso é inteiramente atestado por uma outra publicação paralela, intitulada Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678, organizado por Lara e Phablo Roberto Marchis Fachin. A descrição de Palmares em 1678, primeiramente publicada em 1859, é sem dúvida o documento mais importante sobre o quilombo tanto por seu tamanho, como por sua visão interna do quilombo, no que diz respeito à sua organização, estrutura e política na época. Embora esse documento seja bem conhecido e citado com frequência, Lara dedicou muito trabalho a localizar diversas versões dele, a determinar a maneira como foi repassado e especialmente a identificar o autor dessa peça documental. Publicada em duas versões (com o objetivo de mostrar o modo como foi retrabalhado), o volume vem acompanhado por diversos documentos adicionais, inéditos, dando assim uma inteira contextualização a esse importante texto.
Como se não bastasse, Lara também desenvolveu um banco de dados online (Documenta Palmares, https://www.palmares.ifch.unicamp.br) que contém milhares de imagens digitais de documentos inéditos (e os manuscritos originais daqueles já publicados) que ela encontrou durante sua pesquisa. Ali estão incluídos todos os documentos pertinentes escritos em holandês, com frequência publicados já traduzidos, mas nunca na língua original. O site contém, além disso, a mais completa bibliografia sobre o tema, listando livros, artigos e outros materiais produzidos sobre Palmares ou a respeito de Pernambuco no tempo de Palmares. Quando disponíveis, Lara também acrescentou PDFs dessas fontes secundárias.
Lara não se ocupou de escrever uma história narrativa de Palmares, em parte porque narrativas desse tipo já estão disponíveis, na maioria dos casos descrições de tentativas portuguesas e holandesas para extinguir o quilombo. Essas histórias nos dizem relativamente pouco a respeito de questões mais amplas relativas a como aquela comunidade evoluiu e o que ela representou para seus habitantes. Contudo, baseada em documentação por ela descoberta, ela adicionou detalhes substanciais às narrativas conhecidas a respeito das campanhas contra Palmares.
Lara começa seu livro com a África. Rompendo com uma longa tradição de considerar Palmares uma conjunção de muitas etnias africanas, das quais a angolana seria talvez a mais importante, ela aproveita um estudo que Linda Heywood e este resenhista produziu sobre o tráfico negreiro no período inicial das colônias inglesas e holandesas para conectar nosso trabalho ao Brasil. Lara aceita nosso argumento de que houve uma “onda angolana” que literalmente inundou as Américas com africanos vindos de regiões em redor da recém-fundada (1575) colônia portuguesa em Angola. Observando que a “onda angolana” foi em grande parte criada e promovida por Portugal ― e que outras potências europeias conseguiam seus escravos atacando navios portugueses ―, Lara propõe que, embora outros grupos étnicos estivessem presentes, o tom e o arcabouço culturais vieram principalmente de Angola.
Esse entendimento, por consequência, a leva a um exame detalhado da colônia de Angola, suas próprias guerras e as guerras na sua vizinhança, para então delinear as áreas exatas de onde vieram os milhares de cativos que construíram a indústria açucareira de Pernambuco. Esse pano de fundo ajudou-a bastante a entender a linguagem política e cultural dos fugitivos.
Lara adiciona um segundo importante componente à história de Palmares, ao examinar a questão da fundação de Cucaú ― tema central do livro ―, que dividiu a comunidade palmarina. Ao encaixar o desenvolvimento dessa comunidade numa estratégia portuguesa mais longa de “descer” povos nativos independentes (na sua maioria indígenas) para territórios designados pelos portugueses, Lara discute a historiografia desses assentamentos. Tipicamente, essas comunidades terminaram, efetivamente, sob controle das autoridades portuguesas, com frequência de religiosos. Fica claro pela documentação analisada que Cucaú fora fundada nessa mesma tradição, especialmente porque concessões de sesmarias foram dadas aos portugueses com a provável expectativa de que os palmaristas de Cucaú lhes servissem de mão de obra. Não causa surpresa que essa manobra não tenha obtido sucesso, conforme Lara demonstra com grande detalhe.
A historiadora também apresenta uma importante perspectiva que ela foi buscar no campo palmarista, ao sugerir que a decisão de Gana Zumba aceitar ir para Cucaú resultara de uma compreensão anterior de vassalagem nas relações entre africanos e portugueses, algo que se deu ainda em Angola. Assim, a autora pensa o racha na comunidade de Palmares no contexto da política das linhagens parentais no Ndongo e nas vizinhas comunidades falantes do quimbundo, nas quais o vassalo desfrutava plena soberania em troca de tributos específicos. Essa situação contrasta a vassalagem angolana com a posição mais subordinada imposta pelos portugueses aos indígenas da América portuguesa.
Finalmente, Lara produz um relato altamente elaborado da longa campanha para exterminar Palmares, mostrando como os vários mocambos ao longo da Serra da Barriga foram atacados, dos anos 1680 em diante, culminando com a mais abrangente narrativa das batalhas finais em 1694. Dentro de poucos anos, a trilha documental desaparece naquilo que podiam ser campanhas de limpeza da área empreendidas pelos colonos. Em nenhum outro lugar esse silêncio é mais claro do que nos arquivos pernambucanos no Recife, onde a documentação que sobreviveu sobre Palmares (mas que só começa no finalzinho do século XVII) é numerosa até cerca de 1705, e virtualmente ausente para o período posterior.
Embora o grande e organizado quase-Estado de Palmares fosse destruído, parece altamente improvável que a Serra da Barriga e terras vizinhas não continuassem a abrigar centenas, talvez milhares, de quilombolas. Vivendo em pequenos quilombos do tamanho de uma aldeia, escondidos, distantes, em região de difícil acesso, os quilombolas não representavam o tipo de ameaça que Palmares inspirava, mas certamente eles continuavam a existir. Os registros de operações militares no nível local apresentam quase nenhuma menção aos fugitivos da Serra da Barriga. Mas os paulistas de Domingos Jorge Velho mantiveram sua presença na região e escreveram sobre operações punitivas em período adentrado do século XVIII e, mais do que um poder militar ameaçador, a serra se tornaria semelhante ao interior de dezenas de sociedades coloniais do Atlântico baseadas no trabalho escravo.
Palmares & Cucaú é um livro fundamental, ancorado numa monumental coleção de fontes primárias. Deverá tornar-se, e por muito tempo, um texto modelar e ponto de referência essencial para futuras pesquisas sobre Palmares e outras comunidades quilombolas.
Resenhista
John K. Thornton – Boston University. https://orcid.org/0000-0001-8760-2634
Referências desta Resenha
LARA, Silvia Hunold. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. São Paulo: EdUSP, 2021. LARA, Silvia Hunold; FACHIN, Phablo Roberto Marchis (Orgs.). Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678. São Paulo: Chão Editora, 2021. Resenha de: THORNTON, John K. Palmares revisitado. Trad. da resenha João José Reis. Afro-Ásia, n. 65, p. 731-735, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]