Por um feminismo afro-latino-americano | Lélia Gonzalez

Estávamos falando do que a gente pode fazer nos próximos dez anos em termos de comunidade negra, e veja as dificuldades que a gente tem. A perspectiva é de que a gente abra alguns caminhos, e a gente tem que ter aí consciência da nossa temporalidade, ou seja, a gente vem e passa no sentido de passar mesmo, e passa também a nossa experiência para quem está chegando. Aí é que me parece que os africanos podem nos ensinar muito (Lélia Gonzalez, Entrevista ao jornal do MNU).

O foco desta resenha do livro Por um feminismo afro-latino-americano, de Lélia Gonzalez, organizado por Flávia Rios e Márcia Lima, será a Lélia que brota para os meus olhos. Embora eu seja de uma geração que ainda a acompanhou atuante, tive apenas um contato pessoal com ela, à volta de 1987 ou 1988, num seminário promovido pelo NEPEM – Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre a Mulher, na UFMG, onde eu estudava. Lembro-me de uma figura de discurso enfático nas palavras e nos gestos, recordo-me também de ela ter causado constrangimentos a algumas mulheres próximas, integrantes do grupo majoritário de mulheres brancas que a ouviam no CEDEPLAR, na antiga Faculdade de Ciências Econômicas. Lélia não deixava pedra sobre pedra.

Depois disso ouvia falar dela pelos olhos e palavras de Sueli Carneiro. Em 1994, num tempo pré-internet, quando fazia mestrado nos EUA, comuniquei a Luiza Bairros (que fazia o doutorado em outra cidade), por telefone, o falecimento de Lélia. Luiza entrou em silêncio profundo e eu entendi que deveria desligar o aparelho. É curioso que, contando isso a uma amiga, ela me disse que um amigo dela diz ter sido ele a dar a notícia a Luiza. Eu não entro nesse tipo de disputa e sei da seriedade com que trato as ancestres.

Houve também um professor etíope, em 1995, com quem conversei em um fastfood chinês próximo da Howard University, onde estudava. Vendo meu sotaque ao pedir a comida, ele perguntou se eu era brasileira. Respondi afirmativamente e almoçamos juntos. Conversa vai, conversa vem, ele contou animado que conhecera uma intelectual brasileira num congresso, uma mulher exuberante, chamada Lélia Gonzalez. Indagou se eu a conhecia. Respondi que sim e contei o quanto ela era importante para nós. Ele comentou que gostaria de reencontrá-la um dia e, nesse momento, não pude me furtar a informá-lo de que Lélia não estava mais entre nós. Esse senhor quedou profundamente triste, melancólico, passou a cantar baixo numa língua que eu desconhecia, até que se desculpou e voltou ao inglês. Me pediu para falar sobre ela e eu disse tudo o que sabia.

Agora, reencontro Lélia na leitura deste livro e passo a conhecê-la melhor, percebo o quanto sua subjetividade se enunciou em tudo o que escreveu, aparecem paradoxos e autocrítica, isso é de uma coragem tremenda.

O trabalho amazônico de Flávia Rios e Márcia Lima merece destaque. As pesquisadoras tecem, na introdução, primorosa e poderosa síntese que nos oferta chaves de leitura para o pensamento de Lélia. De cara, na quarta e quinta linhas do texto, elas fazem uma afirmação que teve em mim o impacto de um raio no peito. Reli várias vezes, a ver se não havia lido errado. As organizadoras caracterizam Lélia como “a intelectual negra mais expressiva do Brasil no século XX” (p.9). Discordo rotundamente.

Um século que teve intelectuais negras do porte de Ruth Guimarães e Luiza Bairros entre as que já se foram; Sueli Carneiro, Leda Maria Martins, Denise Ferreira da Silva entre os que permanecem conosco, não me permite dizer que Lélia Gonzalez foi a intelectual negra mais expressiva. Nem mesmo entre as militantes ou intelectuais orgânicas negras, Luiza Bairros e Sueli Carneiro, consigo adjetivar Lélia Gonzalez como a mais expressiva.

Lélia precedeu e inspirou Sueli e Luiza, apontou caminhos, moldou o barro, mas não foi mais expressiva do que elas. Talvez seja como comparar Pelé e Leônidas da Silva, este, que jogou numa época em que não havia televisão, não pôde ter suas jogadas imortalizadas em movimento, mas, como disse um cronista esportivo, “Leônidas não foi maior do que Pelé, mas menor também não foi”.

Na tríade Lélia-Luiza-Sueli, o requinte do pensamento e expressão escrita de Luíza é inigualável. Sueli, em sua capacidade de fazer leituras abrangentes e profundas dos cenários existentes, de desenhar outros cenários e de traçar estratégias (e rotas de fuga) para cada um deles, é imbatível. E Lélia, em sua capacidade de antecipar-se e de propor o que as pessoas só alcançariam anos mais tarde, de falar com o povo e ser compreendida, de discursar como oradora de palanque com imensa antena parabólica na cabeça, foi única e insuperável.

Sobre essa capacidade de antecipação de Lélia Gonzalez, as organizadoras do livro nos chamam a atenção: “Impacta, na leitura de seus textos e discursos transcritos, exatamente a atualidade das posições tomadas por ela mais de três décadas atrás: críticas à persistência do racismo e do sexismo na cultura brasileira; a defesa das candidaturas negras e de mulheres desde que ancoradas em representação substantiva e de valores, e não apenas descritiva, movida exclusivamente por cor ou gênero e a importância da autonomia dos movimentos em relação aos partidos políticos, mas sem deixar de lado a relevância da atuação política institucionalizada em conselhos, em organizações partidárias, no parlamento. Ademais, a autora apresenta posições firmes hoje talvez comuns entre intelectuais e ativistas experientes na história política e na cultura brasileira, mas que à época causaram certa perplexidade, já que vários processos ainda não tinham se desenhado de forma definitiva na nossa jovem democracia” (p. 10).

O livro divide-se nas seguintes partes: “Ensaios”, “Intervenções” e “Diálogos”, nas quais são apresentados alguns textos que até este momento não haviam sido traduzidos para o português. Optei por comentar cada uma delas, interagindo mais profundamente com textos que me parecem ser reveladores da persona política e da subjetividade de Lélia Gonzalez, seus paradoxos e talvez alguns deslizes ou mesmo equívocos. Sim, podemos e devemos ler criticamente as intelectualidades que nos formaram.

Antes disso, cumpre ainda destacar alguns aspectos sintetizados por Flávia Rios e Márcia Lima na introdução, aliás, um trabalho minucioso que a mim, como resenhista, cabe apenas referenciar, pois não seria justo repeti-los como possíveis percepções minhas. Vejamos:

  • Nos ensaios encontraremos as formulações mais aprofundadas de Lélia;
  • O título escolhido para o livro, que é também título de um artigo de Lélia – “Por um feminismo afro-latino-americano” – busca, segundo as organizadoras, “dar vazão ao esforço da pensadora brasileira em refletir sobre as formas de dominação e resistência da região, escapando das fronteiras hemisféricas, linguísticas e nacionais” (p. 11);
  • Entre as grandes correntes teóricas europeias, Lélia leu atentamente o feminismo, o marxismo e a psicanálise;
  • “Uma das críticas mais agudas de Lélia se refere à possibilidade não apenas da resistência, mas também da subversão realizada por pessoas escravizadas nas casas-grandes – o não silenciamento das formas de insurgências negras na esfera do cotidiano se tornou uma de suas marcas distintivas em contraste à intelectualidade de sua geração” (p. 15);
  • A produção de Lélia revisitada pelas gerações contemporâneas dialoga diretamente com as abordagens decolonial, interseccional, psicanalítica e com o pensamento feminista negro;
  • A perspectiva feminista negra de Lélia, segundo as organizadoras da obra, ancora-se em quatro aspectos:
  1. Na Década da Mulher (1976/1985) estabelecida pela ONU, Lélia teve participação ativa nos coletivos de mulheres negras criados no Brasil e na produção ativa de um pensamento sobre a condição das mulheres negras;
  2. Lélia foi artífice e executora de uma articulação profunda entre pensamento e ação;
  3. Lélia desconstruía uma perspectiva essencialista das experiências das mulheres negras. “Ela pontuava a necessidade de construção de um viés interpretativo a partir do olhar e da experiência das mulheres negras e suas vivências sem naturalizá-las” (p. 19); “Lélia abordou, enfrentou e desconstruiu representações essencialistas sobre as mulheres negras: ‘mãe preta’, ‘mucama’, ‘doméstica’ e ‘mulata’” (p.19).
  4. “O quarto elemento marcante de seu pensamento é a sua construção interseccional, que vem chamando a atenção de suas leitoras e leitores atuais. Essa construção é fruto da atuação política de Lélia nas esferas do movimento negro e do movimento feminista, mas também resultado de uma abertura intelectual incomum para os dias de hoje. Ela se nutria de fontes muito diversas tanto na produção nacional quanto internacional, não ficando presa a um campo disciplinar, o que lhe permitiu conexões e interpretações que contribuíram para que sua análise seja hoje nomeada como interseccional” (p. 19).

Essa quarta afirmação das organizadoras me parece mais presente no campo do desejo do que da realidade. Explico: tenho a sensação (não é meu campo de pesquisa) de que as novas gerações são muito menos tributárias a Lélia Gonzalez do que deveriam. Não me refiro a motivos afetivos, mas à necessidade de construir um referencial teórico que rastreie o que veio antes, quem veio antes e os tais “passos que vêm de longe” alardeados nos discursos de pretenso impacto, mas insuficientemente analisados do ponto de vista da ancestralidade e das pistas e contextos que formaram o caldo de cultura para os conceitos e teorias divulgados nas redes sociais no mundo hodierno. Falta às novas gerações conhecer o nascedouro das ideias, falta estabelecer conexões entre as ações desenvolvidas no tempo, em síntese, vivemos uma insuficiência de compreensão e prática das noções de contexto e tempo histórico.

Lélia Gonzalez é a precursora de todas as mulheres negras que se identificam com os princípios filosóficos e políticos de eliminação da opressão sofrida pelas mulheres, desigualdades daí decorrentes e promoção da autonomia das mulheres negras. Já no final dos anos 1970, Lélia chamava atenção para a interseccionalidade (sem usar essa expressão) das opressões sofridas por nós. Lélia articulava as questões ligadas à opressão de gênero, de raça e de classe. Fazia isso no mesmo período em que Patrícia Hill Collins escrevia as reflexões que viriam a substantivar o trabalho de muitas ativistas e pesquisadoras negras no Brasil e no restante da América Latina.

Parte 1 – Ensaios

Nos anos 1970, a liderança do ativismo político negro era dos homens. Lélia quebrou esse monopólio e se jogou na expressão escrita, terreno ainda mais reservado aos homens, tanto mais nos temas duros como capitalismo, marxismo, relações raciais no Brasil, condições gerais da América Latina.

No ensaio “A juventude negra e a questão do desemprego” (texto anterior ao censo de 1980), Lélia afirma peremptoriamente que existe no Brasil uma divisão racial do trabalho. Trata-se de uma análise feita desde dentro da comunidade negra, por quem estava acostumada a ver gerações e gerações de adolescentes negros trabalhando, em detrimento da frequência à escola e também ao que se descreve nesse excerto do texto: “Um dos mecanismos mais cruéis da situação do negro na força de trabalho se concretiza na sistemática perseguição, opressão e violência policiais contra ele. Quando seus documentos são solicitados (fundamentalmente a carteira profissional) e se constata que está desempregado, o negro é preso por vadiagem; em seguida é torturado (e muitas vezes assassinado) e obrigado a confessar crimes que não cometeu. De acordo com a visão dos policiais brasileiros, ‘todo negro é um marginal até prova em contrário’”(p.46). Em sua análise interseccional, Lélia demonstrava o que sobra aos sobreviventes que não tenham sucumbido ao que ela chamava de “fome congênita” – “o trabalho doméstico nas casas de família da classe média e da burguesia, ou então a prostituição aberta e a mais sofisticada dos dias atuais, a profissão de mulata” (p.47). Discute, ainda, a suposta migração dos jovens das escolas de samba para os clubes de black soul.

O ensaio seguinte, “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica”, apresentado na Universidade da Califórnia, em 1979, nos dá mostras do papel ocupado por Lélia na internacionalização da temática racial brasileira. Ao fim do ensaio, ela aponta o candomblé como resistência negra importante surgida no final do século XVIII e destaca as Iyalorixás. Salienta também o papel das mulheres que atuavam no Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, no Rio de Janeiro, que procuravam “desmistificar a figura e a profissão de mulata, assim como o processo de exploração comercial e de folclorização sofrido pelas escolas de samba tradicionais” (p. 64).

No ensaio “O apoio brasileiro à causa da Namíbia: dificuldades e possibilidades”, Lélia ressalta o papel cumprido pela intelectualidade do Movimento Negro Unificado – MNU que, desde o início dos anos 1980, nos trouxe informações de um continente africano vivo, pulsante e em ebulição política na luta pela emancipação do colonialismo, diferentemente do que a mídia, nos estertores da ditadura civil- -militar, nos permitia conhecer.

Aparece também, pela primeira vez, a crítica à expressão “boa aparência”, utilizada pelo mundo do trabalho nos anos 1980 como um eufemismo para “não aceitamos negros”. Esse percurso crítico será retomado diversas vezes ao longo do livro.

No ensaio “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Lélia pavimenta tijolo a tijolo o caminho argumentativo desenvolvido desde sua participação no Encontro Nacional da LASA – Latin American Studies Association, em abril de 1979, para situar a mulata como profissão, não mais como caráter étnico. Esse texto, em especial, merece ser lido por toda a moçada atuante nas redes digitais e autoproclamada “referência” no debate sobre racismo e sexismo.

No ensaio “Movimento Negro Unificado: um novo estágio na mobilização política negra”, nossa pensadora singulariza o MNUCDR – Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial no contexto dos movimentos negros em geral e o relaciona à Frente Negra Brasileira (FNB) e ao Teatro Experimental do Negro (TEN). Sua narrativa sobre o MNU, patrimônio de todos nós, é emocionante, contudo, ela não se furta a criticar, de maneira contundente, dois outros patrimônios: a FNB e o TEN. Ela diz:

“No que se refere à mobilização da população negra, o TEN teve um caráter bem mais limitado do que a FNB – ela é, até hoje, o maior movimento negro de massas criado no Brasil. Tal como a FNB, o TEN não abordava a integração dos sistemas. Além disso, quando ele surgiu, em 1944, a população negra já estava comprometida com Getúlio Vargas. Por não se preocuparem com a integração dos negros no mercado de trabalho brasileiro denunciando as contradições do sistema, por assumirem uma atitude paternalista em relação aos negros, por suas lideranças serem paternalistas e autoritárias e por não conseguirem combinar o específico com o geral, esses movimentos não foram capazes de motivar a população negra como um todo e muito menos a sociedade brasileira em geral. Nesse sentido, é importante ressaltar a forte resistência da sociedade à questão racial” (p. 125).

O ensaio “A categoria político-cultural amefricanidade” é central no livro e na trajetória intelectual de Lélia. Vale citar as palavras dela:

Os termos “afro-american” (afro-americano) e “african-american” (africano-americano) nos remetem a uma primeira reflexão: a que só existiriam negros nos Estados Unidos, e não em todo o continente. E a uma outra, que aponta para a reprodução inconsciente da posição imperialista dos Estados Unidos, que afirmam ser ‘A América’. Afinal, o que dizer dos outros países da América do Sul, Central, Insular e do Norte? Por que considerar o Caribe como algo separado, se foi ali, justamente, que se iniciou a história dessa América? […] As implicações políticas e culturais da categoria de amefricanidade (Amefricanity) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: a América como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos ioruba, banto e ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria amefricanidade está intimamente ligada àquelas de pan-africanismo, negritude, afrocentricity etc.” (pp. 134-135). “

Nanny: pilar da amefricanidade” é uma elegia à liderança matrifocal. “Nanny está para a Jamaica assim como Zumbi está para o Brasil”, ela afirma.

No ensaio “A negra no Brasil”, vez ou outra há trechos inteiros já lidos em textos anteriores, tornando a leitura repetitiva, contudo, é algo que faz sentido se pensarmos que se tratavam de bandeiras de luta que precisavam ser reiteradas. De mais a mais, os textos ativistas visam atingir corações e mentes, interferir em processos, mudar a direção das coisas, então é preciso dizer muitas vezes a mesma coisa para diferentes públicos. O texto da ativista assegura o registro de temas cruciais e de determinadas posições sobre esse tema e, sim, é preciso repeti-los à exaustão. Encontramos aqui também uma exegese sobre a mulata e o papel reificador do mito da democracia racial atribuído à sua figura pública.

Parte 2 – intervenções

O conjunto de textos desta seção nos leva a pensar sobre algo que Sueli Carneiro diz a respeito da própria produção textual, ou seja, a resposta política a alguma questão urgente por meio daquela reflexão escrita. Como legado do MNU, Lélia analisa a conjuntura política e coloca foco nas categorias que embasavam seu pensamento e lhe interessava destacar.

Causa estranheza a não citação de nomes do MNU, como Luiza Bairros; até a metade do livro não o encontrei uma vez sequer. Tampouco percebi a presença do nome de Sueli Carneiro. Duas contemporâneas suas e seguidoras públicas e declaradas de seu legado. Encontrei breve citação a Beatriz Nascimento e a alguns nomes que Lélia destacava como “negras anônimas”. Encontramos com certa frequência, pelo menos se comparado com as negras, citação de nome e sobrenome de mulheres brancas e indígenas.

No texto de abertura do capítulo, “Mulher negra: um retrato”, encontramos uma fotografia em terceira pessoa de um “eu-coletivo-mulher negra” que abarca reflexões pessoais sobre um destino comum desse sujeito. Notam-se também pitadas de ironia, num enfoque que nos dias atuais poderia ser chamado de “escrevivência” por seguidoras dessa ideia atribuída a Conceição Evaristo.

Em “Alô, alô, Velho Guerreiro! Aquele abraço!”, carta elogiosa dirigida ao Chacrinha, reconhecido animador de auditório dos anos 1970 e 1980, desponta uma crítica ao programa musical de televisão “Alerta Geral”, conduzido pela cantora maranhense, radicada no Rio de Janeiro, Alcione. É uma marca de Lélia, a realização de críticas internas à comunidade negra na esfera pública, não para destruir o que quer que seja, mas porque a crítica era inerente ao bom exercício de seu papel de intelectual pública.

Nos textos “Pesquisa: mulher negra” e “A esperança branca”, senti a ausência de notas de rodapé que contextualizassem as situações e, principalmente, explicitassem personagens. No primeiro texto, Lélia menciona, mas não explora, uma mesa-redonda sobre mulher negra que teve vez no encontro da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), em Salvador, em 1981, da qual participaram “duas negras e duas brancas”. Lélia não identifica quem foram as três outras mulheres na mesa.1 No segundo texto, “A esperança branca”, depreendi que o atleta brasileiro em questão é Pelé, mas isso merecia ser averiguado e apresentado em nota para ampliar os sentidos compreensivos do texto, até porque, as gerações que não acompanharam esse debate sequer têm elementos, referências, para arriscar hipóteses sobre a identidade do sujeito em tela.

Os textos “Racismo por omissão” e “A cidadania e a questão ética” criticam fortemente o Partido dos Trabalhadores. O segundo, além da crítica ao PT, aborda o PDT de Brizola e coteja a perspectiva racial presente nos dois partidos. Os problemas de desconsideração do racismo como fator estruturante da sociedade brasileira permanecem no PT de hoje. Exemplo elucidativo foi a disputa interna à indicação do nome do partido para concorrer às eleições municipais de 2020. Em Salvador, Vilma Reis, nome referendado pelo Movimento Negro local foi desprezada e descartada pelos coronéis do partido na Bahia, que optaram por uma mulher negra integrante da Polícia Militar, na melhor versão: “já que vocês querem uma mulher negra, que seja aquela que compõe conosco”. Criticável e não solidária também foi a atitude do pré-candidato Juca Ferreira (ex-ministro da cultura), que instado pelo Movimento Negro a retirar sua candidatura em apoio a Vilma Reis, disse algo assim numa entrevista coletiva: a “questão branco x negro estava superada e sua candidatura era capaz de representar todo o setor progressista”.

No ensaio de página e meia “Odara Dudu: beleza negra”, encontramos síntese antecipada e portentosa de toda a discussão contemporânea do tema mulher negra e estética, travada nas redes sociais.

No texto “Discurso na Constituinte”, um dos mais completos da obra, Lélia menciona um livro escrito “por três grandes companheiras brancas”, chamado O lugar do negro na força de trabalho. Reitero que senti muita falta, ao longo dos textos, de menção às “grandes companheiras negras”, suas contemporâneas, e de suas respectivas produções intelectuais.

De volta à essência do texto, extraí esse excerto:

Mas de qualquer forma nos unimos àqueles constituintes, àqueles efetivamente representantes do povo brasileiro, que se unem a nós, que são sensíveis às nossas propostas, às nossas denúncias, às nossas reivindicações, porque, repito, não é com a mulher negra na prostituição; não é com o homem negro sendo preso todos os dias por uma polícia que o considera, antes de mais nada, um suspeito; não é com a discriminação no mercado de trabalho; não é com a apresentação distorcida e insignificante da imagem do negro nos meios de comunicação; não é com teorias e práticas pedagógicas que esquecem, que omitem a história da África e das populações negras e indígenas no nosso país, não é com isso que se vai constituir uma nação. Construir-se-á, isso sim, uma África do Sul muito bem-estruturada, mais bem-estruturada do que a própria África do Sul, porque, sem assumir legalmente o apartheid através de um discurso teatral da democracia racial, ela mantém um tipo de apartheid. Isto nós negros deste país, que lutamos, nós cidadãos deste país, pela nossa cidadania neste país, nós negros, mulheres, trabalhadores, não vamos permitir isso e por isso estamos aqui. Se quiserem estruturar uma África do Sul, que o façam, mas não pensem em construir conosco uma nação, esse projeto de nação não é nosso. O nosso projeto de nação está presente em nossas instituições negras, está presente, por exemplo, em uma umbanda que recebe de braços abertos católicos, espíritas, budistas, etc. O nosso projeto é efetivamente de democracia, de sociedade justa, com todos os segmentos que a acompanham e igualitária com relação a todos os segmentos (palmas) (p. 252).

Todas as vezes em que me deparo com esses achados, aos quais poderíamos não ter acesso caso pesquisadoras tenazes como Flávia Rios e Márcia Lima não os trouxessem para o grande público, penso em Luiza Bairros, essa que agora também é nossa ancestre. Como se sabe, ela deixou poucas publicações, contudo, sua oratória poderosamente transformadora está abrigada em discursos e entrevistas nos registros taquigráficos do Senado Brasileiro. Vale a pena investigá-los e trazê-los a público.

No texto “As amefricanas do Brasil”, de 1988, Lélia cita Diva Moreira e a Casa Dandara, de Belo Horizonte, organização que desapareceria nos anos 2000, alude à Comissão de Mulheres Negras do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, mas não referencia o Tribunal Winnie Mandela, atividade de lançamento do Geledés – Instituto da Mulher Negra, uma organização que inspiraria o surgimento de várias outras organizações de mulheres negras em todo o país. Ainda nesse texto, Lélia opõe o feminismo ao mulherismo de Alice Walker.

Parte 3 – Diálogos

Na última seção do livro, “Diálogos”, finalmente Luiza Bairros (sem o sobrenome) é mencionada como parte de resposta a uma pergunta ridícula da entrevista “Mito feminino na revolução malê”:

AFROBRASIL: “Você, que desenvolveu um excelente trabalho no MNU, o que acha do papel da negra nesses movimentos? Ela tem ajudado de alguma maneira?

LÉLIA GONZALEZ: Tem sim, tranquilamente. Você vê que temos figuras como Luíza (MNU-BA), Zelita e outras companheiras que trabalham firme […] Um dado interessante é que no Brasil temos hoje em dia três grupos de mulheres negras organizadas: o da Bahia, com as mulheres do MNU, o Nzinga, do Rio de Janeiro, e o Coletivo de Mulheres Negras, de São Paulo. Todos esses grupos são do MNU, e não do movimento de mulheres; nós crescemos enquanto militantes do movimento negro. A consciência racial em nós despertou primeiro do que a consciência sexual. Lutamos com os homens contra a opressão, que nos é comum (p. 308).

Mesmo naquele momento histórico (final dos anos 1980), essa questão da autonomia política das mulheres negras já era pautada por grupos de mulheres negras. Esse discurso de Lélia disputa posição em favor de sua organização, o MNU, dirigida por homens que tinham essa perspectiva de “lutamos com os homens contra a opressão, que nos é comum”. Outro detalhe interessante dessa argumentação é a confusão (deliberada ou não) entre MNU – Movimento Negro Unificado, organização à qual ela pertencia, que naquele parágrafo substitui metonimicamente o MN – Movimento Negro. O MNU estava (e está) contido no Movimento Negro ao qual Lélia se refere em outros momentos do livro como “Movimentos Negros”, adiantando-se a algo que adotaríamos a partir dos anos 2000.

Na “Entrevista ao Pasquim”, Lélia, conhecida por sua criatividade, coragem e ousadia, escorrega violentamente quando responde a uma pergunta sobre manipulação política das mulheres com o trocadilho infeliz “somos mulheres direitas, não de direita” (p. 316). O efeito do malabarismo verbal foi horrível e infame, algo quase impensável numa boca tão politizada.

A entrevista como um todo tem posicionamentos equivocados, sobre o aborto, por exemplo. É justo dizer que em algum texto do livro ela repensa e reconfigura seu discurso na questão descriminalização versus legalização do aborto.

MARA TERESA: Tem uma questão pela qual muitas feministas estão lutando atualmente, é a questão do aborto. Como você se coloca nesse assunto?

LÉLIA GONZALEZ: O aborto é uma questão apenas do planejamento familiar; o aborto representa uma das últimas instâncias em termos de contracepção. O caso do aborto, evidentemente, está ligado aos setores mais carentes, que não estão devidamente informados sobre os métodos contraceptivos e coisa e tal. Me parece mais importante a questão do planejamento familiar do que a questão do aborto; eu abro aspas para a expressão “planejamento familiar” porque ela está articulada com o problema do controle da natalidade, controle esse que é uma ideologia do primeiro mundo que é difundida nos países pobres.

JAGUAR: Se houvesse “planejamento familiar”, nós não estaríamos falando agora com a Lélia Gonzalez, a décima sétima de uma família pobre, negra…

LÉLIA GONZALEZ: Exatamente. Eu acho um dado importantíssimo que, em vez de lutar pela legalização do aborto, se deveria lutar pela sua descriminalização. Uma coisa que podia criminalizar é o racismo, por exemplo (p. 323).

Por fim, a resposta a outra pergunta, desta feita sobre o ato de violência cometido contra meninas e adolescentes de diversos lugares de África, por meio da extirpação do clitóris, é temerária e indefensável:

MARA TERESA: Lélia, em certos lugares da África tem-se o costume de se praticar a extirpação do clitóris, para a mulher não ter desejo sexual, e o hábito de costurarem a vagina. Como é que isso é encarado pelo movimento negro?

LÉLIA GONZALEZ: O movimento negro não encara essa questão, nós estamos mais voltados para as mulheres negras no Brasil. Mas com relação à questão da África, eu gostaria de te responder como antropóloga, como alguém que já viu as mulheres africanas respondendo às mulheres do primeiro mundo. É importante a gente constatar o seguinte, a história da clitoridectomia está relacionada à história da circuncisão. A questão da clitoridectomia teve origem entre os dogons, que são um grupo que vive numa área que tem uma divindade andrógina. Então, quando as crianças nascem, eles dizem que tem de tirar do homem aquilo que é feminino, o prepúcio; e tem de tirar da mulher aquilo que é masculino, o clitóris. Com a chegada do islã na África houve um reforço dessa história da clitoridectomia. Essa interpretação de que se extrai o clitóris da mulher para ela não gozar é história ocidental. São diferentes culturas que nós não podemos reduzir a nossa perspectiva, nós temos que entender quais são os valores que eles têm lá. Tem uma coisa também, essa história de que o prazer só se sente na genitália é um papo de ocidental, o prazer não se restringe ao orgasmo (pp. 323-324).

Só consigo dizer que a extirpação do clitóris e a costura da vagina que será rompida por um pênis ou por uma mulher mais velha com um objeto, são violências absurdas que geram dor, sofrimento e efeitos destruidores imensuráveis no corpo, na psique e na sexualidade das mulheres submetidas a essas práticas, portanto, são condenáveis sob todos os aspectos.

Na “Entrevista ao jornal do MNU” vemos que embora Lélia se preocupasse com a produção de um discurso sobre os temas de sua agenda política, descuidava-se da linguagem utilizada para fazê-lo.

Concluindo essa longa resenha, senti falta de um texto reflexivo sobre o período de atuação de Lélia como assessora parlamentar de Benedita da Silva e também sobre sua experiência na cocriação da Escola de Samba Quilombo. É provável que não tenha tido tempo de escrever.

Lélia, em seus paradoxos, também deve ter inspirado lideranças que a sucederam, como Sueli Carneiro e Luiza Bairros, a construírem outros modelos de liderança, com ênfases diferentes daquelas de Lélia.

A companheira que tive nos anos 1990, ex-militante do MNU, conviveu um pouco com Lélia dentro da organização e me contava, consternada, sobre o último encontro que tivera com ela, numa reunião do grupo de mulheres do MNU. Lélia, adoentada, estava envolvida com o estudo de cristais, da força-motriz das pedras e, naquela oportunidade, exortava as mulheres negras mais jovens a se cuidarem porque o racismo e a “vida de negro” [num país hierarquicamente racializado] nos matam muito cedo, pouco a pouco.

Acrescento que perdemos Lélia Gonzalez, Luiza Bairros e Makota Valdina com menos de 70 anos de idade. A gente morre cedo. Fica o alerta.


Nota

1 33a Reunião da SBPC (Salvador, 8 a 15 de julho de 1981). Mesa “A mulher negra”. Data 10/07/1981. Coordenação: Lélia Gonzalez (MNU). Demais integrantes da mesa: Helena Teodoro Lopes (Fundação Leopoldo Senghor), esta a outra negra; Teresa Cristina Nascimento Araújo Costa (Instituto Cultural Brasil-África-ICBA); e Lúcia Helena Garcia de Oliveira (ICBA). Como coordenadora, Lélia teria formado a mesa.


Resenhista

Cidinha da Silva – Escritora e editora.


Referências desta Resenha

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2020. Resenha de: SILVA, Cidinha da. A Lélia Gonzalez que emerge deste livro. Afro-Ásia, n. 64, p. 711-725, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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