Torto Arado | Itamar Vieira Junior

Torto arado conquistou, em 2018, o LeYa, maior prêmio concedido a romance inédito em língua portuguesa. Em 2020, recebeu o Jabuti de Melhor Romance e também o Prêmio Oceanos. Aclamado pela crítica especializada e consagrado pelo público, o livro escrito pelo baiano Itamar Vieira Júnior vem sendo traduzido em outros idiomas, a exemplo do búlgaro e do italiano. Nascido em Salvador, em 1979, o autor obteve, na Universidade Federal da Bahia, o título de Doutor em Estudos Étnicos e Africanos. Sua pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro confere lastro sólido à sua ficção. Transcorrida na Chapada Diamantina, a trama fala sobre um grupo de trabalhadores descendentes de escravizados, destacando suas formas de culto, suas lutas por sobrevivência, trabalho e posse da terra.

O romance centra-se na família de Zeca Chapéu Grande. Nascido José Alcino da Silva, Zeca é, além de trabalhador rural, um líder religioso, que recebe os espíritos dos “encantados” e assume as funções de cuidar das pessoas, tratando os males de seus corpos e das suas almas. Morando na Fazenda Água Negra durante muitos anos, a família de Zeca Chapéu Grande identifica-se com a terra onde vive e trabalha em regime de servidão. Contidos em um relato que não apresenta marcadores temporais precisos, os eventos transcorrem em período que se estende ao início do novo milênio. Como funcionário do INCRA, Itamar conviveu com pessoas que vertem suor nas terras alheias, em troca de moradia. Constatando que, arrastado por todo o século XX, o legado do sistema escravocrata não foi superado, e que a desigualdade social brasileira permanece no campo, como se o tempo houvesse parado na escravidão, o autor de Torto arado concebeu a figura de Zeca, riquíssima em suas ambivalências íntimas.

Referência de trabalho para todos que o rodeiam, Zeca Chapéu Grande carrega a liderança religiosa como um fardo que a mãe, Donana, recusou-se a carregar. Com Donana, o filho aprendeu a lidar com ervas que curam. No entanto, somente ao sentir a morte próxima, Zeca é capaz de aproximar-se da rebeldia materna, construindo a sua casa em ano bissexto e transgredindo, desse modo, um dos preceitos de sua religião. Obrigado a vestir-se com trajes de mulher para ceder o corpo a Santa Bárbara, um dos “encantados” surgidos nos rituais, Zeca Chapéu Grande sente o peso do desconforto e da vergonha, mas continua cumprindo a sua missão. De forma similar, ao entregar os melhores frutos de sua pequena roça aos proprietários da Fazenda Água Negra, o filho de Donana não consegue sufocar a dor. Ainda que encare a situação de servidão com o fatalismo inerente à cosmovisão vinda do Jarê – religião específica da Chapada Diamantina – Zeca é atravessado pela revolta. Essa convivência de sentimentos díspares no interior do líder religioso é, sem dúvida, um dos elementos mais interessantes do romance.

Com seus mitos e seus rituais, o Jarê terá sedimentado, ao longo dos anos, um sentimento comunitário profundo que talvez facilite a luta coletiva por bem-estar social. Em entrevista concedida à TV Senado, Itamar Vieira Júnior define o Jarê como religião sincrética, uma forma híbrida que, tendo absorvido elementos do xamanismo, do catolicismo, das religiões de matrizes africanas, tornou-se uma mitologia particular e específica da Chapada Diamantina. Guiado nas matas por Oxossi e, nas águas, por Mãe D’Água, Zeca Chapéu Grande tem, em São Sebastião, o santo de sua predileção. Reverenciando e recebendo Santa Bárbara, compreende a natureza dos partos, da vida dos animais e das ervas que o mato oferece para a recuperação das almas e dos corpos.

Os focos do romance incidem principalmente sobre duas filhas de Zeca. Na mala da avó Donana, Bibiana e Belonísia encontram uma faca com cabo de marfim. Fascinadas pela beleza do instrumento e pelo brilho da sua lâmina, as irmãs provocam um acidente. Ambas se ferem, mas apenas uma delas tem a língua decepada. Passando a apresentar dificuldade de fala, a menina prefere emudecer. Desenvolvendo profunda captação de tudo que a cerca, a parte silenciada depende da outra, para estabelecer uma comunicação com o mundo. A aliança entre as irmãs será, todavia, rompida com o tempo. Ao se tornarem mulheres, Bibiana e Belonísia disputam a atenção do primo Severo e distanciam-se. Além disso, embora compartilhem do mesmo contexto violento e opressor, as filhas mais velhas de Salu e de Zeca Chapéu Grande assumem atitudes diversas, em relação à opressão. Bibiana rebela-se e resolve deixar o meio rural, esperando achar, na cidade, uma via de libertação. Atada à terra que abriga a sua avó – e imersa no caldo de cultura que recebeu dos ancestrais – Belonísia não aceita o afastamento da irmã e a consequente quebra do pacto entre elas.

Na tensão existente entre ligação à terra e tentação de migrar, repercute um aspecto que soa alto na literatura brasileira, pelo menos desde Os Sertões (1902). Euclides da Cunha viu, no apego do sertanejo a seu meio, uma força fatídica que o levava a remigrar, aprisionando-o.1 Respondendo a essa visão fatalista, Graciliano Ramos situou, nos momentos finais de Vidas secas, um casal de sertanejos movendo-se para a cidade desconhecida, em busca de uma condição humana.2 Itamar Vieira Júnior retoma e revigora o debate. De alguma maneira, a fuga de Bibiana assemelha-se à do casal acossado pela seca, pelo soldado amarelo e pela exploração. Por outro lado, Torto arado traz nova perspectiva. Obtendo informação, diploma de professora, consciência da sua condição de quilombola, Bibiana compreende que as relações de trabalho no meio urbano também são injustas. Assim, ela remigra – não para repetir o ciclo observado por Euclides – mas, para fazer com que a sua gente passe a clamar por direitos e também para tentar recompor o pacto com a irmã. No ínterim, Belonísia, mergulhada em revolta, não sucumbe. Longe das letras e das leis, recorre a recursos de defesa usados por suas ancestrais. São dois modos de responder ao quadro opressor que, no romance, abarca fortemente questões de gênero. Vivendo em um sistema patriarcal, as mulheres são levadas a buscar estratégias para sobreviver e manter a integridade interior.

Geógrafo, estudioso de antropologia, Itamar Vieira Júnior elegeu a literatura como meio mais eficaz de chegar à alteridade. Apostando na empatia e na ficção como vias de acesso ao universo do outro, o romancista entrega a tarefa de narrar a três vozes femininas. Às vozes de Bibiana e de Belonísia, acrescenta-se a de Santa Rita Pescadeira, uma “encantada”. Trabalhando com quilombolas durante mais de 15 anos, o autor declara ter percebido que, até por força da migração dos homens para trabalhar, a preservação da cultura é, geralmente, deixada com as mulheres.

O romance divide-se em três partes que se comunicam: “Fio de corte”. “Torto arado”. “Rio de sangue”. Mais do que estabelecer a cronologia da trama, os três momentos aludem a núcleos de força que impelem as vozes ao ato de narrar. A faca que Donana roubara na Fazenda Caxangá – e que fora usada para matar o marido que violentara a sua filha Carmelita – constitui um primeiro sinal de resistência pela violência. No centro do “Fio de corte”, situa-se a faca, instrumento que, cortando a língua de uma das irmãs, simbolicamente comenta a aparição de diferenças necessárias à complementariedade das suas opções e das suas ações mais decisivas. Uma das meninas destina-se à aquisição da consciência social; outra fica próxima da natureza e da cosmovisão inerente ao Jarê. No desfecho, quando o pacto é refeito, cada uma das irmãs doa, à outra, porções do específico poder que adquiriu. Violada década após década, a rotina da comunidade quilombola concentra-se na imagem do “Torto arado”, instrumento que, ao abrir a terra de modo inadequado, também a esteriliza. Por último, a trama caminha para o “Rio de sangue”. Regressando para a Fazenda Água Negra, Bibiana e Severo, agora casados, lutam pelo reconhecimento dos direitos da comunidade de quilombolas. No entanto, Severo é assassinado e o processo que buscava os culpados por sua morte é encerrado de modo abrupto e grotesco. Belonísia, que absorve da irmã o hábito da leitura, transfere a Bibiana a capacidade de lutar com a faca; assim como, no passado, Donana lutara contra a ferocidade do marido. Bibiana e Belonísia passam a receber o espírito da “encantada” Santa Rita Pescadeira. Resultando no incêndio da casa grande, o pacto entre as três narradoras resulta também na morte de seu novo proprietário, Salomão. Ele levara a opressão ao extremo, ao negar, aos mortos da comunidade de negros quilombolas, o direito de repousar na terra onde repousavam os seus ancestrais.

O desfecho do romance parece sugerir que, no Brasil contemporâneo, consciência social e força continuam imprescindíveis para compor as estratégias de sobrevivência e de afirmação de territorialidades culturais. Agradando ao leitor que tende a aderir afetivamente às duas irmãs, os eventos que encerram a trama dão conta da tragédia brasileira. Afinal, tendo experimentado políticas direcionadas à diminuição do seu mal-estar social, o Brasil não as concretizou com suficiência e sustentabilidade impeditivas do confronto violento figurado como um “Rio de sangue”.

Em seu núcleo ficcional – aliança entre uma irmã emudecida e a outra, que lhe empresta voz – o romance Torto arado reencena e, simultaneamente, põe em tensão um traço importante do moderno projeto cultural brasileiro. Trata-se da intenção de vocalizar demandas e desejos vindos dos setores silenciados numa sociedade tragicamente desigual. Maximamente enfatizada nos anos 1930, a proposta foi posta em xeque desde as últimas décadas do século passado, quando novas vozes irromperam no espaço público, reclamando seus direitos. A autoimagem do intelectual brasileiro pareceu ter sofrido, desde então, um ponto de clivagem. Segundo Ismail Xavier, o cineasta baiano Glauber Rocha já trouxera, no filme Terra em transe (1967), “a reflexão sobre o fracasso”. No centro da reflexão, Xavier aponta o reconhecimento de uma “alteridade que não correspondia à imagem do povo solicitada pela teoria da revolução”. Dez anos depois, Clarice Lispector apresentou, em A hora da estrela, a figura de um escritor angustiado e relutante ante a tarefa de inventar uma nordestina destinada a perecer no Rio de Janeiro. Seguindo essa via, a ficção nacional mais recente tem sido pródiga em tramas protagonizadas por escritores da classe média, muitos deles imersos em crises que contemplam considerações acerca do esvaziamento de seu papel social. O romance de Itamar Vieira Júnior toma distância em relação a essas tramas. Renunciando a mimetizar a fala do morador da Chapada Diamantina, o autor de Torto arado transporta, para a linguagem do seu romance, uma poesia sugerida por cadências, marcando, com as luzes de uma específica oralidade, o seu estilo pessoal. Há nítida confiança nessa poesia como meio adequado para levar o leitor a escutar mundos diferentes do seu. Como propôs Machado de Assis, em 1873, o escritor mergulha em traços locais e neles apreende tensões humanas que extrapolam fronteiras. Reconhecendo esses traços e o seu vasto alcance expressivo, o júri do Prêmio LeYa, observou que, tendo o seu “ponto de partida em uma realidade concreta, a narrativa encontra um plano alegórico que ganha contornos universais”.


Notas

1 Observando que “os homens não se afeiçoam às calamidades naturais que os rodeiam”, Euclides da Cunha sinaliza que o sertanejo constitui uma exceção à regra: “A seca é um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos […] Acaba-se o flagelo, ei-lo de volta. Vence-o a saudade do sertão. Remigra”. Euclides da Cunha, Os Sertões in Silviano Santiago (org.), Intérpretes do Brasil, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, v.1, p. 287.

2 A comparação é realizada com mais minúcias em Mirella Márcia Longo Vieira Lima, Cenas de amor em romances do século XX, Salvador: Quarteto, 2017, pp. 129-156.


Resenhista

Mirella Márcia Longo Vieira Lima – Universidade Federal da Bahia. https://orcid.org/0000-0003-4186-0720


Referências desta Resenha

VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019. Resenha de: LIMA, Mirella Márcia Longo Vieira. Algumas palavras sobre Torto Arado. Afro-Ásia, n. 64, p. 734-739, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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