A constituição do campo da Educação Especial no Brasil: entre tempos, lugares e pessoas/Cadernos de História da Educação/2023
As primeiras ações do que será conhecido, posteriormente, como Educação Especial ocorreram como iniciativas isoladas e praticadas por médicos, a partir do século XVIII. Historiadores da Educação Especial costumam considerar Jean-Luc Gaspard Itard, psiquiatra francês, o pioneiro do campo, por aceitar o desafio de tentar educar Victor, o menino selvagem encontrado na floresta do Aveyron, na França. Os registros da intervenção foram preservados e demonstram as tentativas de educar a criança. No Brasil, costuma-se considerar que a Educação Especial iniciou seu percurso ainda no Império, com a inauguração do Instituto Nacional dos Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES) e do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, denominado desde o início da República, Instituto Benjamim Constant, responsável pela educação das pessoas cegas. No entanto, a História da Educação Especial no Brasil ainda carece ser explorada.
A proposta deste dossiê surgiu a partir da constituição de uma rede de pesquisadores que se organizaram com o objetivo de mapear pessoas, iniciativas, instituições e práticas da Educação Especial, estabelecidas em diferentes regiões do Brasil. O Portal Pioneiros da Educação Especial no Brasil está em fase de conclusão e foi financiado pelo CNPq.
Dessa forma, o dossiê busca contribuir para que os pesquisadores e interessados na Educação Especial tenham acesso a percursos da construção desse campo ainda pouco conhecidos na história da Educação brasileira e que podem auxiliar a esclarecer posições teóricas e práticas contemporâneas.
A estadia de Helena Antipoff na Rússia durante a Revolução, ocorrida em 1917, é o pano de fundo para os argumentos apresentados por Natalia Masolikova e Marina Sorokina, ambas pesquisadoras do Alexander Solzenitcyn Centre for Studies of Russia Abroad no primeiro artigo do dossiê. As autoras exploram os seis anos de permanência de Antipoff no país (1917-1924), quando ela se dedicou aos problemas psicológicos da época para o país, dentre eles, o estudo de crianças em condições de devastação, fome e orfandade; a aplicação de testes de inteligência em condições de cataclismo social e guerra e a comparação de habilidades intelectuais de crianças de diferentes grupos sociais. Embora tenha trabalhado como psicóloga nesse período, as autoras encontraram evidências na correspondência de Helena Antipoff, de que foi um período de grande insatisfação vivenciado por ela no ambiente social e profissional soviético. Mesmo assim, foi um período de aprendizagem sobre metodologias e técnicas, que ela aplicou no Brasil posteriormente.
No segundo artigo são apresentadas as contribuições de um psiquiatra infantil francês cuja obra, apesar de pouco conhecida, é fundamental para compreender o conceito de anormalidade que vigorou durante a primeira metade do século XX. Théodore Simon é lembrado pelo desenvolvimento dos testes de inteligência junto com Alfred Binet, mas desenvolveu outros trabalhos importantes. Carolina Bandeira de Melo e Laurent Gutierrez lembram que Simon foi considerado um dos melhores especialistas franceses na educação das crianças consideradas atrasadas na década de 1920. No ano de 1929, Simon esteve no Brasil a convite do governo do estado de Minas Gerais. Embora a educação de “crianças normais” tenha sido o tema principal desenvolvido por Théodore Simon no contexto de seus cursos e conferências em Belo Horizonte, ele também apresentou instrumentos originalmente concebidos para estabelecer um diagnóstico de deficiência mental (termo usado na época). A relação entre psicometria e Educação Especial, que se estabeleceu naquele período, persiste atualmente, tendo em vista que os testes de inteligência foram e continuam sendo usados no diagnóstico dessa deficiência. Em Belo Horizonte, Simon trabalhou com Helena Antipoff, que havia conhecido em 1911, em Paris. Portanto, o texto discute uma das bases sobre a qual o campo da Educação Especial vai se constituindo no Brasil: a definição de público, relacionada ao diagnóstico.
De autoria de Fernando Gouvêa e Adriana A. P. Borges, o terceiro artigo do dossiê trata da relação entre dois importantes intelectuais brasileiros, Anísio Teixeira e Helena Antipoff. Ambos lutaram por condições de igualdade de acesso à escola, não só pela matrícula, mas por uma escola que fosse verdadeiramente democrática e pudesse acolher as diferenças individuais. Intelectuais de pensamento e ação, os dois atuaram nos campos político e institucional, além de desenvolverem inúmeras pesquisas. Foram cotejados artigos de ambos que tratam de temas comuns, além da pesquisa em fontes como a correspondência estabelecida entre os intelectuais e a correspondência mediada por Helena Dias Carneiro, uma colaboradora de Antipoff. A análise empreendida no artigo permitiu reconhecer a importância destes intelectuais para o campo educacional, com destaque para a Educação Rural e Educação Especial.
Na sequência, um artigo que discute a interlocução entre as ideias sobre Educação Especial disseminadas no Brasil e a produção científica estrangeira. Mônica C. M. Kassar e Justino Magalhães tomam como referência a participação de Thiago Würth no I Congresso Internacional da Criança Deficiente, realizado em 1939 na cidade de Genebra, Suíça. Os autores exploram as atas oficiais do Congresso e dois relatos elaborados pelo representante brasileiro, sendo que o primeiro documento foi localizado na biblioteca da Vrije Universiteit em Amsterdam, Holanda, e os outros na biblioteca particular de Helena Antipoff, na cidade de Ibirité, Minas Gerais, Brasil. É interessante perceber como no início do século XX, os pesquisadores de diferentes nacionalidades realizavam um intercâmbio de ideias sobre a deficiência, a partir dos padrões da época. De acordo com os autores, a educação das crianças anormais se constituiu como campo de atenção da educação escolar, entendida como instrução pública.
A Educação Especial em uma perspectiva mais recente é debatida a partir de um momento absolutamente fundamental: a criação do CENESP (Centro Nacional de Educação Especial) que centralizou as ações da Educação Especial no nível federal. O objetivo do artigo foi apresentar e discutir o papel de Sarah Couto Cesar, primeira diretora-geral do Cenesp, e de Olívia da Silva Pereira, assessora do órgão, na constituição da Educação Especial brasileira. Para isso, as autoras utilizaram a metodologia da História Oral, a partir da realização de entrevistas com a própria Sarah Couto César (falecida no ano de 2021, vítima da COVID 19), Rosana Glat e Ilza Maria Ferreira Pinto. Segundo as autoras, Márcia Denise Pletsch, Getsemane de Freitas Batista e Leila Lopes de Avila, o papel pioneiro das duas personagens da Educação Especial no Brasil envolveu a formação de recursos humanos, a participação em projetos de pesquisa, a escrita de artigos, a gestão pública da Educação Especial, projetos institucionais e a elaboração de diretrizes políticas.
A educação das pessoas cegas no Brasil é tema do sexto artigo do dossiê. O ativismo de Dorina de Gouvêa Nowill é reconhecido no artigo escrito por Fernanda Luísa de Miranda Cardoso e Silvia Alicia Martínez. Depois de ter perdido a visão aos 17 anos, Dorina dedicouse à educação destas pessoas, não se limitando à sala de aula. Nos Estados Unidos, Dorina tomou conhecimento sobre a integração social da pessoa cega, o que, segundo as autoras, influenciou a construção do seu pensamento e o direcionamento de sua prática profissional. A centralidade de seu nome na História da Educação Especial no Brasil é inegável. O artigo esclarece o porquê desse lugar central. Ela assumiu diferentes frentes de trabalho, a partir de seu lugar de fala, como mulher cega.
O último artigo, de Celi Corrêa Neres, Janaina de Jesus Fernandes Belato e Nesdete Mesquita Corrêa discute a constituição dos atendimentos e serviços da Educação Especial no Mato Grosso do Sul (MS). Criado em 1977, o estado possui uma história recente que nos faz perguntar sobre como as suas instituições se organizaram para esse fim. A partir de depoimentos de duas professoras pioneiras na gestão da Educação Especial na Secretaria de Estado de Educação de MS (1980 a 1987), as autoras apontaram que os atendimentos da educação especial nesse estado se deram por meio de instituições especializadas, algumas delas criadas ainda antes da divisão do estado de Mato Grosso (MT) e criação de MS, de cunho assistencialista e com forte apelo para a formação para o trabalho. Os serviços se constituíram sob a influência de profissionais das áreas da medicina e da psicologia, como também por educadores que defendiam as pautas de pessoas com deficiências.
Destacamos neste dossiê, o papel da circulação de conhecimento sobre a Educação Especial que permitiu a constituição de um campo no Brasil. Mas, ao mesmo tempo em que recebia as influências de concepções teóricas oriundas do hemisfério norte, as personagens aqui apresentadas construíram formas singulares de aplicação do conhecimento. Dessa forma, a apropriação se converteu em transformação, não se limitando aos grandes centros urbanos, mas constituindo-se também nas periferias, criando uma rede nesse país continental, que atravessou tempos e lugares.
Este dossiê é resultado do projeto “Portal Pioneiros da Educação Especial no Brasil”, apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Organizadores
Adriana Araújo Pereira Borges – Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil). https://orcid.org/0000-0003-0493-0099 http://lattes.cnpq.br/9946652387882951 E-mail: adriana.fha@gmail.com
Fernando César Ferreira Gouvêa – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Brasil). http://orcid.org/0000-0002-3537-7559 http://lattes.cnpq.br/6186337020612168 E-mail: gouveafcf@uol.com.br
Referências desta apresentação
BORGES, Adriana Araújo Pereira; GOUVÊA, Fernando César Ferreira. Apresentação. Cadernos de História da Educação, v.22, e154, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]