A morte desvendada: percepções sobre o além do mundo antigo e medieval/Mythos – Revista de História Antiga e Medieval/2018

Eu luto pela vida: um trabalho real, que vale a pena. Não tenho nenhum desejo de morrer, mas já vivi tão perto da morte e de suas consequências que a vejo agora como algo natural. Todos nós devemos morrer um dia, mas a morte sempre virá cedo demais para o homem ou a mulher que tem uma intensa sede de viver. Cada minuto que passa tem um significado, uma profundidade maior do que qualquer outra coisa, mesmo que pareça comum e rotineiro. Cada rajada de vento, cada canto da cigarra, cada revoada de pombos é como um poema. – Marianella García Villas (El Salvador, 1980).

Caros leitores sejam bem-vindos à edição comemorativa de um ano da Revista Mythos. Nessa edição, apresentamos o dossiê “A morte desvendada: percepções sobre o além no mundo antigo e medieval”, no qual estão inseridos diversos artigos que objetivam analisar as mais variadas concepções acerca da morte e suas visões inseridas nas sociedades antigas e medievais.

A morte é um produto da sociedade. Por ser um produto social, a morte é também um produto da História, seja em virtude dos seus modos de acontecer aos indivíduos, seja em razão de sua rejeição por parte de ritos e crenças, seja por sua apropriação pelos sistemas de poderes. A História, produto da vida dos homens, é também resultado da morte deles. As transformações que ocorrem nas sociedades têm, na morte dos homens, a sua origem, uma vez que as gerações seguintes nem sempre seguem valores e costumes de seus antecessores. A História é a ciência da mudança. As sociedades atingem novos estágios de desenvolvimento porque, em parte, morrem para seus estágios anteriores1.

Contudo, é interessante ressaltar que a morte é um sistema social que se representa pelo silêncio, embora sua realidade seja eminentemente barulhenta. Trata-se de um paradoxo: a morte está presente no cotidiano de toda sociedade, como uma realidade intangível da qual não se pode escapar, mas da qual se esquiva com o calar-se. Não se fala sobre a morte. Nos adágios populares: “falar, atrai”2.

Não se fala da morte, pois a tememos; e a tememos, pois ela é:

Irreparável… Irremediável… Irreversível… Irrevogável… Impossível de cancelar ou de curar… O ponto sem retorno… O final… O derradeiro… O fim de tudo. Há um e apenas um evento ao qual se podem atribuir todos esses qualificativos na íntegra e sem exceção. Um evento que torna metafóricas todas as outras aplicações desses conceitos. O evento que lhes confere significado primordial – prístino, sem adulteração nem diluição. Esse evento é a morte. (BAUMAN, 2008, p. 44).

O medo da morte reside nas suas peculiaridades: morte significa que nada acontecerá depois, ou seja: nada que nós, seremos humanos possamos ver, ouvir, tocar, cheirar, usufruir ou lamentar. É por esse motivo que a morte permanece incompreensível para os vivos3.

A morte é a representação do “desconhecido”, o maior dentre todos os “desconhecidos”. E o destino é inefável: o que quer que tenhamos feito para nos preparar para a morte jamais será suficiente. Ela nos encontrará sempre despreparados. Mas somente os seres humanos possuem consciência da inevitabilidade da morte e apenas os seres humanos enfrentam a assombrosa empreitada de sobreviver apesar deste conhecimento4.

Ao longo da História, as sociedades humanas construíram estratégias para lidar com esse medo, sendo a mais comum a ideia que não se trata do fim, mas da passagem de um mundo para outro, uma das mais relevantes invenções culturais da História.

Os moribundos não vão deixar o único mundo que existe para se dissolver e desaparecer no submundo da não-existência, apenas se mudarão para outro mundo – onde continuarão existindo, conquanto numa forma um tanto diferente (embora confortavelmente familiar) daquela que se acostumaram a chamar de sua. A existência corporal pode acabar (ou ser meramente suspensa até o retorno, ou dia do juízo final, ou tomar uma forma apenas para assumir outra forma corpórea, como no eterno retorno por meio da reencarnação). Os corpos usados e gastos podem se desintegrar, mas o “estar no mundo” não está confinado a esta carapaça de carne e ossos aqui e agora. (BAUMAN, 2008, p. 45).

Não se pode escapar da vida após a morte. Contudo, a maneira pela qual esta vida será vivida dependerá das ações humanas antes da morte: “pode ser um pesadelo. Pode ser uma bem-aventurança”5

Cada sociedade, ao longo do tempo, construiu e reproduziu sua visão sobre a vida e, principalmente, sobre a morte. As nossas concepções sobre o destino da alma nos dias atuais são produtos de séculos de especulação religiosa e também, em certo sentido, científica. Somos herdeiros de uma construção cultural de longa duração e muitas vezes negligenciamos essas origens, quer por desconhecimento, quer por acreditarmos que estamos totalmente dissociados do passado e das sociedades antigas e medievais. Até que ponto as nossas visões sobre a vida e sobre a morte foram escolhas nossas? Até que ponto podemos falar de “nossa visão”? E até que ponto estamos conscientes destas visões?

É importante ressaltar que as civilidades antigas e medievais influenciaram diretamente a construção da cultura ocidental contemporânea da qual fazemos parte. Negar a relação com tais influências é negligenciar a nossa própria origem, é recusar os aspectos fundamentais que contribuíram para que nos tornássemos quem somos hoje.

Esperamos que os textos aqui apresentados possam contribuir para a compreensão da nossa realidade contemporânea e que possam ainda despertar o interesse de novos pesquisadores sobre este tema tão instigante. Por fim, desejamos uma ótima leitura a todos!


Notas

1 BECKER, E. A negação da morte. Rio de janeiro: Record, 2007, p. 101.

2 Op. Cit., 2007, p. 101

3 BAUMAN. Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 44.

4 Op. Cit., 2008, p. 45.

5 Op. Cit., 2008, p. 47.


Organizador

Fabrício Nascimento de Moura – Editor.


Referências desta apresentação

MOURA, Fabrício Nascimento de. Editorial. Mythos – Revista de História Antiga e Medieval, ano 2, n. 1, p. 7-9, jul. 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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