As Religiões Mediúnicas e a Política/Revista Brasileira de História das Religiões/2023

A chamada temática – As Religiões Mediúnicas e a Política, em diálogo com outros números publicados na RBHR (v. 9, nº 27 – “As crenças e suas articulações com a política e a sociedade”; v. 10, nº 28 – “As religiões mediúnicas e a História”; v. 13, nº 39 – “Religião e política no mundo contemporâneo”) evidencia como problemática central as interfaces entre as religiões mediúnicas e as questões políticas.

Nesse sentido, a proposta convergiu para duas escolhas analíticas. A primeira de fundo conceitual envolveu o termo “religiões mediúnicas” que consiste no conjunto de práticas e experiências religiosas que, de acordo com o historiador Artur Isaia (2005, p. 599), apresentam em comum a crença “na reencarnação e no contato entre vivos e mortos” e, para que isso ocorra, existe a necessidade de haver a existência de um “intermediário entre ambos, o médium, julgado capaz de emprestar seu corpo para que os espíritos manifestam-se”. Assim, conforme ainda Isaia (2013, 2017), apesar dos esforços identitários, institucionais e doutrinários de dirigentes e órgãos representativos, a crença nos espíritos aproxima as diferentes experiências religiosas e são importantes para a compreensão da realidade cultural e social brasileira.

A segunda é certo silêncio sobre o posicionamento político das religiões mediúnicas, ou seja, problematizamos como seus agentes e instituições mobilizam discursos e estratégias de modo a ampliar a sua presença na esfera política, seja na defesa de seus direitos (laicidade, liberdade religiosa, culto, ensino, entre outros), seja no alinhamento partidário em contextos de pleito eleitoral, seja ainda, na compreensão de que visões políticas estão presentes entre os seus seguidores.

Entendemos que, diante da ampliação da presença religiosa no espaço público, no qual agentes religiosos participam, criticam e interferem no universo sociopolítico de suas sociedades, a análise histórica sobre as religiões mediúnicas e seus campos de luta desconstrói discursos de neutralidade política, pois são indiciários de como as religiões são interpeladas por questões e problemáticas da sociedade a que pertencem. Logo, seguimos a perspectiva de Aline Coutrot (2003), no qual as relações entre política e religião como práticas sociais permitem apreender o comportamento de homens e mulheres com referência na cultura política em longa duração.

A atual Chamada Temática da RBHR ‘As Religiões Mediúnicas e a Política’ tem em sua composição sete artigos. Os autores são de instituições de diferentes regiões do país, o que muito nos felicita pela diversidade de discussões que os leitores poderão dispor ao longo da leitura das pesquisas acadêmicas

O primeiro artigo da chamada temática, As Transmutações da Reencarnação: política, religião e reforma social na França (1820-1855), o autor Marcelo Gulão Pimentel faz um estudo de como a França na primeira metade do século XIX foi cenário de um manancial de filosofias religiosas, que se ligaram aos ideais da reforma social promovidos pela Revolução Francesa. O pesquisador busca dar conta de rebater preceitos reformistas destas novas expressões de religiosidade, que cingiram com o conceito de reencarnação. Estes foram desde a construção de discursos políticos até a elaboração de teorias religiosas. Para o estudo, Pimentel revisita uma série de fontes primárias, que tiveram contribuições de discussões acadêmicas ocorridas a posteriori. Em suas considerações, ele nos alvitra a hipótese de que a disseminação das ideias reencarnacionistas, na França, ganharam impulso por promoverem possibilidades de enfrentamento da questão da desigualdade social.

Em seguida, o artigo intitulado Antônio Gonçalves da Silva Batuíra e os “princípios sociológicos” do espiritismo em São Paulo (1890-1909) de Fausto Nogueira, com referência na história intelectual e fontes da imprensa, analisa a trajetória intelectual de Antônio Gonçalves da Silva Batuíra no processo de constituição do campo espírita paulista entre o final do século XIX e início do século XX. O texto revela a instigante perspectiva das redes de sociabilidades espíritas e as afinidades com outros grupos, como livres-pensadores, anticlericais, ocultistas, socialistas, e, advoga em torno de uma leitura peculiar de um espiritismo sociológico por parte da liderança e intelectual espírita, assim, problematiza as tentativas de uniformização identitária, doutrinária e institucional do espiritismo brasileiro.

Já Angélica Aparecida Silva de Almeida, em seu artigo O Espiritismo e as transformações sociais e políticas no século XX: Três Rios, um estudo de caso, nos evidencia as práticas espíritas em articulação com as ideias de progresso, reencarnação, igualdade social, racial e gênero e ações de intervenção nas condições de vida em alguns locais, com destaque para a cidade de Três Rios, localizada no estado do Rio de Janeiro. Para a sua análise, Almeida faz o cruzamento de fontes primárias, secundárias e, também, instrumentaliza metodologias da História Oral, no qual constata que as ações assistenciais, educacionais, culturais, de divulgação doutrinária e de cuidados com a saúde, realizadas por seguidores do espiritismo, corroboraram para a conciliação da teoria com a prática espírita ao minimizar as dificuldades materiais da população da cidade e promover o espiritismo no âmbito local.

Alejandro Parras, por meio de sua pesquisa sobre o espiritismo na Argentina, detalha em artigo Tensiones entre espiritistas y poder politico durante el periodo Peronista en Argentina (1946-1955) as relações de tensão entre as práticas espíritas e o Estado Argentino. Nesse sentido, o autor destaca que o interesse do casal Juan Domingo Perón e Eva Perón por Médiuns e Videntes permitiu tanto a visibilidade de práticas espíritas quanto conflitos e perseguições com a Igreja católica e com a política sanitária peronista. Assim, é possível referenciar diferentes grupos espíritas e projetos identitários, no qual o Peronismo seria marcado, para os espíritas, pela ambivalência da conquista do espaço público, bem como da restrição das práticas mediúnicas pelas autoridades médicas e estatais.

Em seu artigo Umbandista vota em umbandista: disputas entre umbandistas e católicos no campo religioso brasileiro (1950-1962), Joana Bahia e Farlen de Jesus Nogueira investigam, a partir das fontes de jornais e revistas, as disputas entre lideranças umbandistas e segmentos da intelectualidade católica diante das mudanças do quadro religioso entre os anos de 1950- 1962. Sendo assim, os autores advogam a análise da luta política dos umbandistas como fundamental para a garantia da liberdade de crença e a problematização em torno do conceito de laicidade, ao trazer a expectativa sobre o voto a partir da frase: umbandista vota em umbandista.

A seguir, podemos acompanhar, mediante a leitura do artigo Os preconceitos e as diferentes formas de deslegitimações das religiões mediúnicas: as permanências em narrativas jurídicas do oitocentos e do século XXI, escrito por Adriana Gomes, como as religiões mediúnicas passaram por um severo processo de criminalização ao longo da Primeira República, juridicamente estabelecida em três artigos do Código Penal de 1890, com destaque para o artigo 157. Mostrando como o debate sobre os preconceitos relacionados aos praticantes de religiões mediúnicas se perpetuam na sociedade brasileira, a autora discute as razões, características e intenções de ações judiciais contra religiões de matriz africana no século XXI.

Sinuê Neckel Miguel, por sua vez, em seu trabalho de pesquisa Espiritismo, ecologia e política: uma aproximação inicial, nos convida a examinar como as questões ecológicas têm sido absorvidas e compartilhadas na comunidade espírita. Baseando-se em artigos do periódico Reformador, além de obras escritas por André Trigueiro e Carlos Villarraga, conhecidos articulistas espíritas, o autor demonstra como, somente na década de 1980, os problemas relacionados à ecologia e meio ambiente passaram a fazer parte, lentamente, dos temas e preocupações dos espíritas, mediada sempre pela disposição de seus líderes e organizações em interditar a política como esfera de discussão e debate.

Acreditamos que esta chamada temática As Religiões Mediúnicas e a Política, seja pelas temáticas e por suas diversidades metodológicas, reafirma o lugar das religiões mediúnicas como objeto das ciências humanas e em perspectiva interdisciplinar. E, portanto, congrega a proposta de problematizar o significado do político no contexto das Religiões Mediúnicas.

O volume finda com artigos livre e resenha. Boa leitura!


Referências

COUTROT, Aline. Religião e política. In: RÉMOND (org.). Por uma história política. Tradução de Dora Rocha. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.331-363.

ISAIA, Artur Cesar. O catolicismo pré-conciliar brasileiro e as religiões mediúnicas: a recorrência ao saber médico-psiquiátrico. Revista de História das Ideias, Coimba, nº 26, p. 599- 622, 2005.

ISAIA, Artur Cesar. Apresentação do Simpósio Temático Religiões Mediúnicas e AfroBrasileiras no âmbito da pesquisa histórica. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH, 27, Natal-RN, 2013. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/simposio/view?ID_SIMPOSIO=1060. Acesso em 13 mar. 2023.

ISAIA, Artur Cesar. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 10, n. 28, p. 05-06, 2 maio 2017. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/36932. Acesso em: 13 mar. 2023.


Organizadores

Adriana Gomes – Pós- Doutora em História Social (UFRJ); Doutora em História Política (UERJ); Docente do Programa de Pós-Graduação (UNIVERSO). E-mail: [email protected]

Marcos Moreira Marques – UERJ.

Renan Santos Mattos – UFFS-Campus Erechim.


Referências desta apresentação

GOMES, Adriana; MARQUES, Marcos Moreira; MATTOS, Renan Santos. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 15, n. 45, p. 5-8, jan./abr. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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