Ditaduras e golpes do Cone Sul: diferentes fontes e perspectivas históricas/Ofícios de Clio/2022

Quando falamos em ditaduras e golpes no Cone Sul estamos nos referindo a um conjunto de experiências vivenciadas, e em grande medida compartilhadas, por argentinos, brasileiros, chilenos, paraguaios e uruguaios na segunda metade do século XX. Experiências que transcendem a temporalidade do passado e estão vivas em diferentes formas no presente dessas sociedades. Portanto, falar delas é lidar constantemente com um passado aberto, um passado que influi diariamente no presente, um passado com demandas e disputas no presente. E aos historiadores e historiadoras dedicados a essas experiências cabe o desafio do equilíbrio das temporalidades.

Falar em ditaduras e golpes no Cone Sul também é, para uma historiografia mais recente, compreender as proximidades, especificidades e as nuances dessas experiências, com o objetivo de questionar e superar as narrativas uniformizadoras. Nesse sentido, ao mesmo tempo que há um esforço de compreender as conexões e aproximações entre as ditaduras militares no Cone Sul, também é rica a produção que visa analisar as especificidades nacionais e locais das vivências, existências e resistências sob arbítrio, repressão e controle ditatorial.

Numa mesma direção de esforço, os olhares das pesquisas históricas sobre essas ditaduras também estão direcionados para diferentes atores e personagens. As esquerdas e as resistências, que sempre estiveram em destaque na historiografia, ganham novos olhares e abordagens, ao mesmo tempo que, nas últimas décadas, as direitas têm sido um objeto de estudo crescente, bem como as diferentes formas como os diversos atores e setores sociais se relacionaram com as ditaduras e golpes no Cone Sul. A partir dessa renovação dos objetos de pesquisa, e estimulados pela abertura dos arquivos e acervos históricos ao final do século XX e início do século XXI, os historiadores e historiadoras também se voltaram para o estudo dos Estados ditatoriais, buscando, entre outras coisas, compreender as suas diversas esferas e os atores ali inseridos.

Nesse emaranhado de atores e relações, as ditaduras no Cone Sul, os golpes e os grupos organizados em cada um desses países se constituíram como ricos objetos de análise para compreendermos o passado e a história do presente da região e suas sociedades. Mais do que isso, a intensificação das pesquisas com o intuito de avançar as análises para além das fronteiras nacionais também vem permitindo observar experiências e aspectos transnacionais correlacionados e compartilhados por essas sociedades sul-americanas, em um mesmo período histórico e um mesmo espaço geográfico.

O Brasil, o primeiro a romper com a democracia, em 1964, se configurou como um polo disseminador de diferentes estratégias repressivas, permitindo que se tornasse uma espécie de “laboratório” exportador de modelos e técnicas no intuito de “combater a subversão” (FERNANDES, 2009). Inserido nisso, a polarização ocidente versus oriente, com o fortalecimento e o crescimento das direitas, se apropriou de uma tradição anticomunista presente nas elites e classes médias da América Latina desde o início do século XX. E, nesse sentido, o anticomunismo foi o medo mobilizador e esteve presente na conceituação desse período. Um dos elementos utilizados no Brasil e demais países do Cone Sul para operacionalizar as preocupações do Estado em relação ao chamado “perigo vermelho” foi a Doutrina de Segurança Nacional, materializando conceitos flexíveis como subversão, desenvolvimento, fronteiras ideológicas e inimigos.

A Operação Condor, oficializada entre 1974 e 1975, segundo relatório do Departamento dos Estado Unidos, somente formalizou uma recorrente relação entre os sistemas repressivos dos países do Cone Sul (BRASIL, 2014). Nessa conjuntura, o Brasil já pressionava o Uruguai, em função de sua condição estratégica e por ter sido o principal destino escolhido para o exílio de brasileiros, a encontrar meios de vigiar esses exilados, tratados como “inimigos internos”. A ditadura Argentina se estabeleceu em 1976, enquanto no Uruguai em 1973, contudo, as conexões repressivas já estavam consolidadas antes disso, em função da pressão brasileira para o controle dos exilados, mas também, como destaca Jorge Fernandez (2011, p. 224), em função da “atuação da repressão na linha de fronteira, [que] tinha uma dinâmica peculiar”, que já faziam o controle do espaço em regime de colaboração.

Os artigos e pesquisas que compõem o Dossiê Ditaduras e Golpes no Cone Sul: diferentes fontes e perspectivas históricas apresentam, em grande medida, a inserção das pesquisas historiográficas no entrelace das temporalidades do passado e presente; nas relações entre diferentes experiências nacionais e, ao mesmo tempo, as especificidades locais; na diversidade de vivências, atores, personagens e posições; e, principalmente, na multiplicidade de temas e abordagens que constroem a grande colcha de retalhos que constituí a(s) história(s) das ditaduras e os golpes na Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e, em especial, Brasil.

Começamos com o artigo de Darlise Gonçalves de Gonçalves – aluna do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) – que evidencia o esforço historiográfico de compreender a vivência de agentes sociais fora dos centros urbanos na ditadura civil-militar brasileira. A partir da análise da Operação Limpeza na cidade de Jaguarão (RS), no ano de 1964, a autora busca discutir e apresentar as particularidades da resistência em espaços transfronteiriços. Nessa mesma direção das vivências locais, Caio Vinicius Silva Teixeira, mestre pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) realiza em seu trabalho uma análise das representações sobre a ditadura civil-militar construídas pela elite política da cidade de Campo Maior (PI), buscando observar, no período entre 1964 e 1978, como seus membros influenciaram outras esferas e grupos locais e se tornaram agentes legitimadores do regime.

Por sua vez, o artigo de autoria de Matheus Bomfim e Silva, graduando da Universidade Federal do Ceará (UFC), propõe uma reflexão sobre o campo cultural e o meio artístico sob a ditadura brasileira, em específico, os artistas “cafonas”, ou do brega, Waldick Soriano, Fernando Mendes, Paulo Sérgio e Odair José. Em seu trabalho, podemos observar que esses artistas, embora considerados não engajados, são uma importante fonte para entendermos o Brasil na ditadura civil-militar e a expressão dos mais pobres que sofreram com a desigualdade da época.

Três artigos buscam construir análises transnacionais e comparativas: primeiramente, a pesquisa de Laura do Nascimento de Morais, aluna da Universidade de Brasília (UnB), que realiza um estudo comparativo entre duas diferentes organizações da esquerda armada, a brasileira Ação Libertadora Nacional e o chileno Movimiento de Izquierda Revolucionaria, buscando compreender como o projeto do socialismo foi posto nas duas diferentes sociedades e conjunturas; posteriormente, o trabalho de Laura Bittencourt Alves – graduanda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – que, a partir da perspectiva comparada, observou as similaridades e diferenças do processo de transição ao final das ditaduras do Brasil e Argentina, assim como as disputas de memória decorrentes; e, por fim, o artigo da doutoranda pela UnB, Tamara Claudia Coimbra Pastro, em que apresenta a potencialidade da análise histórica-comparativa sobre a Justiça de Transição e a redemocratização no Cone Sul, em especial, na Argentina, Brasil e Uruguai, a qual possibilita o estabelecimento de novos marcos teóricos para as especificidades das experiências na região.

O anticomunismo também compõe o dossiê, com a pesquisa do recém doutor da Universidade Federal Fluminense (UFF), José Airton de Farias, que destaca como esse sentimento foi tomado como fundamento da ruptura institucional e direcionado ao movimento de organizações judaicas em defesa da democracia e pela flexibilização da ditadura, alimentado pelo antissemitismo. Em um outro cenário, Isadora Dutra de Freitas, doutoranda pela PUC-RS, traz um olhar sobre a propaganda oficial nos cinejornais da Agência Nacional, explorando o processo das representações do Estado brasileiro na ditadura civil-militar, entre os anos de 1964 e 1979.

Ao final do dossiê, o artigo do aluno de doutorado da UFRGS, Leonardo Fetter da Silva, sob um olhar das políticas e a defesa dos direitos humanos no Brasil, analisa e relaciona duas instâncias: o controle e a ineficiência dos canais institucionais de denúncia de crimes e violações, bem como a vigilância dos movimentos sociais de direitos humanos na ditadura.

Esses artigos reunidos no dossiê demonstram uma multiplicidade de temas e enfoques sobre a ditadura civil-militar brasileira e as demais no Cone Sul. Também evidenciam, em sua diversidade, a qualidade de debates e pesquisas que estão sendo realizados por historiadores e historiadoras em diferentes níveis de formação. Tais estudos não só significam avanços historiográficos sobre o tema e suas especificidades, mas contribuem socialmente no preenchimento das lacunas ainda abertas, numa melhor compreensão das experiências vividas e na elucidação dos questionamentos do presente.

Por fim, para finalizar a apresentação do nosso dossiê, gostaríamos de registrar uma pequena homenagem ao professor e historiador Enrique Serra Padrós. Ele nos deixou diferentes legados, por suas produções acadêmicas em torno das experiências das ditaduras do Cone Sul e por sua trajetória militante, sempre em consonância com a defesa dos direitos humanos, da democracia e por justiça. Ele foi referência para gerações de historiadores e historiadoras e continuará sendo para as futuras. Seu legado está presente neste dossiê.


Referências

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Departamento de Estado dos EUA. Operação Condor e a ditadura no Brasil. Disponível em: https://issuu.com/cnv_brasil/docs/19760300_summary_of_argentine_law_a. Acesso em: 20 set. 2022.

FERNANDES, Ananda Simões. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a Ditadura Civil-Militar Brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre, UFRGS. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/17527. Acesso em: 21 set. 2022.

FERNANDEZ, Jorge Christian. Anclaos en Brasil: a presença argentina no Rio Grande do Sul (1966-1989). Tese (Doutorado em História). Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011, p. 224. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/71934. Acesso em: 17 set. 2022.


Organizadores

Camila de Almeida Silva – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista CAPES/DS. Mestra em História pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

Leonardo Fetter da Silva – Doutorando e Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

SILVA, Camila de Almeida; SILVA Leonardo Fetter da. Apresentação. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 7, n.12, p. 14- 18, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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