Ditaduras e golpes do Cone Sul: diferentes fontes e perspectivas históricas/Ofícios de Clio/2022

Quando falamos em ditaduras e golpes no Cone Sul estamos nos referindo a um conjunto de experiências vivenciadas, e em grande medida compartilhadas, por argentinos, brasileiros, chilenos, paraguaios e uruguaios na segunda metade do século XX. Experiências que transcendem a temporalidade do passado e estão vivas em diferentes formas no presente dessas sociedades. Portanto, falar delas é lidar constantemente com um passado aberto, um passado que influi diariamente no presente, um passado com demandas e disputas no presente. E aos historiadores e historiadoras dedicados a essas experiências cabe o desafio do equilíbrio das temporalidades. Leia Mais

Ditaduras latino-americanas no século XX: corrupção, violência e meio ambiente | Em Tempo de Histórias | 2021

A proposta fundamental deste dossiê centra-se na análise das relações entre as ditaduras latino-americanas e o meio ambiente. Essa perspectiva serviria de catalisador para as diferentes dimensões que compõem a complexa história das ditaduras militares que assolaram a América Latina na segunda metade do século XX. Tais ditaduras impuseram modelos econômicos liberais agressivos que moldaram para sempre a região em termos socioculturais.

Pois bem, o poderoso imaginário neoliberal, que acabou desenhando cidades, áreas rurais e demais territórios, produziu e continua a produzir muitas tensões nas sociedades onde está presente. Assim, o aumento da violência, corrupção, desigualdade e marginalização acaba causando grande impacto ambiental. Essa perspectiva se faz necessária em razão do progressivo interesse das sociedades latino-americanas por seu passado autoritário, tanto por parte de grupos sociais que – cada vez mais representados na política institucional – buscam valorizá-lo, quanto por setores que percebem no estudo da história recente uma fonte de significados para compreender o momento atual. A ascensão do autoritarismo na América Latina em geral, e no Brasil em particular, está sendo acompanhado por duas grandes crises ambientais: a acelerada destruição dos biomas e da biodiversidade e a pandemia gerada pelo coronavírus. Ambas estão associadas a modelos de produção e consumo que, paulatinamente, mostram-se perversos e autodestrutivos. Leia Mais

O esporte em tempos de exceção: práticas desportivas e ações políticas durante as ditaduras na América Latina no século XX / Cantareira / 2019

Sem abrir mão da interdisciplinaridade, o presente dossiê procura analisar os estudos sobre o esporte – e, de forma mais específica, sobre o futebol – existentes em tempos de exceção, durante as ditaduras na América Latina, no século XX. A história do esporte já superou a ideia de que seu campo de estudo pertencia, primordialmente, aos profissionais ligados exclusivamente à sua prática ou ao estudo delas, como os atletas e profissionais da educação física. O presente dossiê, nesse sentido, compreende o esforço de estimular e reunir trabalhos que trazem reflexões sobre a diversidade cultural de um fenômeno que, cada vez mais, requer diferentes campos de saberes para sua a compreensão. Antropólogos, sociólogos e posteriormente historiadores vêm, pelos menos desde a década de 1970, debruçando pesquisas sobre as práticas esportivas e suas ações culturais e políticas, bem como a maneira como essas ações se relacionam com o momento político vivido.

Revisitar o tema das relações entre esporte e os períodos ditatoriais durante o século XX, na América Latina, é, ao mesmo tempo, um desafio e um tema necessário. O Brasil, por exemplo, vivenciou durante 21 anos, um regime de exceção, marcado pela violência política e repressão às ações culturais, políticas, sociais e também esportivas, que impediam que a população se manifestasse e agisse livremente conforme seus desejos de expressão. Assim como diversos outros países da América Latina passaram por golpes e regimes que interromperam a experiência democrática e realizaram inúmeras ações autoritárias.

O cotidiano ditatorial tinha reflexos diretos nas ações esportivas e na vivência de clubes, atletas e torcedores desses países, impondo à eles uma nova realidade e a necessidade da criação de novas maneiras de expressão, manifestação e resistência para aqueles que discordavam da forma como o governo levava a cabo suas ações e eram, portanto, alvo de suas medidas repressivas. Nessas sociedades, marcadas pela ambivalência que nos fala Pierre Laborie, havia também aqueles que concordavam e apoiavam as práticas do governo, e tais indivíduos circulavam também no universo esportivo, fazendo ouvir suas propostas e pensamentos. Sejam dirigentes, técnicos, profissionais, atletas ou torcedores, muitos indivíduos compactuavam com a premissa ideológica do regime e, através do esporte, tinham sua voz ouvida.

Atualmente, a temática do esporte e a necessidade de discussão sobre o período de exceção que o Brasil e outros países latino-americanos vivenciaram ao longo do século XX estão presentes em diversos debates dentro e fora da academia; dessa maneira, se faz necessário abrir espaço nesse periódico acadêmico para que essas discussões tenham lugar de se realizar.

Os artigos que compõem este dossiê trouxeram à tona diversas temáticas e manifestações, que vão desde movimentos torcedores, como é o caso da Raça Rubro-Negra, do clube de Regatas do Flamengo, até ações mais diretas do governo, através de símbolos, como músicas e ações políticas mais diretas que visavam, grosso modo, conseguir o consenso através do esporte. Sendo assim, faz-se um convite aos leitores para uma imersão no mundo do futebol brasileiro em tempos de ditadura, possibilitando a percepção das continuidades e rupturas daquele momento do esporte para aquele que vivenciamos hoje, em tempos democráticos.

Encerrando esta edição e procurando percorrer um momento da história brasileira marcada por uma política de exceção, apresenta-se a entrevista com o ex-jogador de futebol Afonso Celso Garcia Reis, de codinome Afonsinho. Verifica-se, a partir de sua fala, que sua ação é um exemplo de que a repressão recaía sobre profissionais do esporte que se posicionavam um pouco mais à esquerda – ou que, pelo menos, não compactuavam abertamente com as práticas do regime. Afonsinho foi perseguido primeiramente pelo uso de uma barba considerada fora dos padrões da época, que, segundo ele, era apenas pretexto para cerceá-lo em função de seus posicionamentos políticos mais amplos e, posteriormente, tido como símbolo de luta quando da sua busca pelo fim do passe – instrumento que determinava a posse do jogador ao time de futebol para o qual atuava. Boa leitura!

Nathália Fernandes – Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Fluminense.

Aimée Schneider – Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense.


FERNANDES, Nathália; SCHNEIDER, Aimée. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.31, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul / História – Debates e Tendências / 2019

A desmemoria

“O medo seca a boca, molha as mãos e mutila. O medo de saber nos condena à ignorância; o medo de fazer nos reduz à impotência. A ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ser Sigmund Freud para saber que não existe tapete que possa ocultar a sujeira da memória”.

Eduardo Galeano.

Nas décadas de 1960 e 1970, uma série de golpes de Estado nos países do Cone Sul deu início ao ciclo de ditaduras militares – ou civil-militares – na região, atingindo países como Brasil, Uruguai, Chile e Argentina. Estas ditaduras se estruturaram a partir das diretrizes gerais da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), das orientações de estratégia da teoria da contrainsurgência norte-americana e da doutrina de guerra revolucionária francesa, instituindo, assim, a noção de “guerra interna”. Dessa forma, as Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul criaram o “inimigo interno” – chamado genericamente de “subversivo” – e adotaram amplamente uma política repressiva baseada no Terrorismo de Estado, que ultrapassou os limites da “repressão legal”, permitida pelo arcabouço jurídicoconstitucional, utilizando “métodos não convencionais” – tais como o sequestro, a detenção ilegal, a tortura, o assassinato e o desaparecimento de opositores e seus cadáveres – para aniquilar a oposição política e o protesto social, fossem estes armados ou não. Como pano de fundo, tais regimes constituíram pressuposto essencial para a readequação das respectivas economias nacionais aos novos ditames do capitalismo mundial. Leia Mais

História, cotidiano e memória social – a vida comum sob as ditaduras no século XX / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Por uma história do cotidiano dos regimes autoritários no século XX

Em língua portuguesa, os dicionários comportam pelo menos duas definições para a palavra cotidiano: primeiramente, significa o “conjunto das ações que ocorrem todos os dias”, mas é também aquilo que “não é extraordinário; comum ou banal”. Já no idioma inglês, as palavras everyday e daily aparecem como sinônimos podendo significar, de acordo com o Oxford English Dictionary, “happening or used every day”. O vocábulo daily, por sua vez, se tem uma definição muito próxima da de everyday (“one, produced, or occurring every day or every weekday”), comporta também outros sentidos. É o que verificamos, por exemplo, na expressão daily life, a qual possui acepção bastante similar ao segundo significado que a palavra cotidiano possui em português: “the activities and experiences that constitute a person’s normal existence”. Na língua espanhola, também é possível distinguir dois termos diferentes: cotidiano, para se referir ao que “ocurre con frecuencia, habitual” e cotidianidad, entendido como a “característica de lo que es normal porque pasa todos los días”. Assim, o cotidiano pode estar ligado, ao mesmo tempo, às ideias de repetição e rotina e à de normalidade.

O dossiê História, cotidiano e memória social: a vida comum sob as ditaduras no século XX, que ora apresentamos ao leitor, tem como proposta justamente a reflexão sobre o cotidiano. A rigor, uma dupla reflexão: pretende, em primeiro lugar, debater as possibilidades, os contornos e os limites do que podemos denominar uma história da vida cotidiana e sua inscrição no âmbito dos múltiplos significados que o termo pode admitir. Assim, trata-se de refletir sobre o cotidiano como objeto historiográfico a partir daquilo que ele representa em termos de repetição, de rotina, ou antes, de rotinização da vida; mas também como aquilo que pertence ao universo do ordinário, de uma “existência normal”. Ao mesmo tempo, a proposta se concentra principalmente nas possibilidades de se pensar o universo do cotidiano em um quadro de exceção; o ordinário no contexto do extraordinário. Dito de outra forma, trata-se de questionar: é possível pensar a reprodução da vida cotidiana no quadro dos diversos regimes autoritários que tiveram lugar no século XX? Como podemos elaborar uma reflexão sobre os fatos banais da vida daqueles que não se sentiram concernidos por tais regimes, os quais tinham como base o terror de Estado e a disseminação do medo? Como se davam as reivindicações de uma “existência normal” em conjunturas excepcionais, de violência política e de ditaduras?

Para as ciências sociais, para a história, em particular, tratar o cotidiano pode constituir desafiadora empreitada, na medida mesmo em que o interesse historiográfico pelo objeto reside justamente nas possibilidades de articular a reflexão a partir de ambas as dimensões: a análise das atividades do dia-a-dia como aspecto decisivo para a compreensão de determinada sociedade no tempo; bem como as perspectivas de elaborar historicamente este sentido que o vocábulo comporta do que não é extraordinário, do que é banal e comum. Michel de Certeau, em seu estudo pioneiro, A invenção do cotidiano, fala das pesquisas que desenvolveu sobre o tema como uma “interrogação sobre as operações dos usuários, supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 1998, p. 37). Dialogando, então, com o que eram as recentes pesquisas de Michel Foucault, Certeau questiona:

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?) dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU, 1998, p. 41).

Assim, Certeau descreve seu trabalho como uma tentativa de constituir certo aparato metodológico para que se possa delimitar um campo, refletindo sobre o estudo do cotidiano a partir da ideia de práticas comuns, introduzindo-as “com as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão abrindo caminho” (CERTEAU, 1998, p. 35). A delimitação do campo, no entanto e apesar da vigorosa proposta metodológica de Certeau, não é algo simples. Como bem lembrou Peter Burke, citando Norbert Elias, do ponto de vista das ciências sociais, “a noção de cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece. Elias distingue oito significados atuais do termo, desde a vida privada até o mundo das pessoas comuns”. O historiador continua, sinalizando para o fato de que

Igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança. Visto de seu interior, o cotidiano parece eterno. O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história, relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos, como a Reforma ou a Revolução Francesa, ou a tendências de longo prazo, como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo. O famoso sociólogo Max Weber criou um termo famoso que pode ser útil aqui: “rotinização” (Veralltäglichung, literalmente “cotidianização”). Um foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por outro (BURKE, 1992, p. 23).

Burke considera, portanto, o cotidiano como um objeto dentro do amplo espectro da História Social. Nesse sentido, o desafio seria justamente refletir sobre a articulação entre os grandes acontecimentos e a rotinização da vida; a estrutura e a mudança; o eterno e o repetitivo de um lado e o instante e a ruptura de outro. Assim, caberia a pergunta: existe, como campo ou como área de estudos uma História do Cotidiano? Se existe, como e de quê ela se constitui? Luis Castells nos lembra que “no existe una corriente que se englobe tras esta denominación, con la excepción de Alemania, donde el movimiento Al [1] tagsgeschichte se ha constituido como un referente de aquella historiografia” (CASTELLS, 1995, p. 11).

Na Alemanha, desde pelo menos a década de 1970, historiadores como Richard van Dülmen, Hans Medick, Alf Lüdtke ou Dorothee Wierling vêm encarando, “o desafio de fundar uma antropologia histórica”, a qual por sua vez, se distancia do estruturalismo, dando lugar à subjetividade dos atores e às suas experiências pessoais. Daí a apropriação do conceito de habitus caro a Pierre Bourdieu, que concilia determinações sociais e oportunidades de desenvolvimento individual. Isso explica também a preferência, por exemplo, por estudos que se concentram em processos locais e regionais, bairros ou até mesmo algumas famílias. É sob este aspecto que a Alltagsgeschichte alemã se aproxima e dialoga com a micro-história praticada na Itália por Giovanni Levi e Carlo Ginzburg (LE MOIGNE, 2005, p. 30).

Analisando os processos a partir dos quais a Alltagsgeschichte tomou corpo na academia da República Federal da Alemanha ao longo da década de 1970, Nicolas Le Moigne explica que, no contexto alemão daquele período, tais premissas não estavam isentas de “implicações universitárias e mesmo políticas”. Também Alf Lüdtke, um dos grandes expoentes da Alltagsgeschichte alemã, reconhece que em fins dos anos 1970, formaram-se na RFA, grupos locais, preocupados com a Geschichte von unten (História dos de baixo) e com a Geschichte vor Ort (História local). Para o historiador, tais iniciativas partiam, frequentemente, dos fortes conflitos surgidos a partir de 1968 em centros de ensino, em meios burocráticos de conformação de políticas culturais e outros espaços públicos em torno do tema de um novo ensino de História (LÜDTKE, 1995, p. 54). Assim, se na França análises de micro-história encontraram espaço propício para se desenvolver no âmbito de uma História Social que se renovava, o mesmo não se passou na Alemanha com a Alltagsgeschichte: determinados historiadores passaram a “acusar os defensores da Alltag de fazerem pouco da tradição iluminista, colocando emoções e subjetividades no coração da análise histórica” (LE MOIGNE, 2005, p. 31). Sobre a Alltagsgeschichte alemã, Lüdtke explica:

La Alltagsgeschichte no es una disciplina especial. Se trata más bien de un enfoque específico del pasado. Este punto de vista no se limita a las ‘acciones de los dirigentes y de hombres de Estado’ tal y como se hacía predominantemente en la historia política y militar de antes. Por otro lado, esta visión de las experiencias y actuaciones del pasado no se reduce tampoco a coacciones anónimas de mecanismos estructurales. En el centro se encuentra más bien la conducta diaria de los hombres: tanto los prominentes como los supuestamente anónimos son considerados como actores históricos. Se reconstruyen las formas de la práctica en las que los hombres se ‘apropiaban’ de las situaciones en las que se encontraban. Este enfoque insiste en que cada hombre y cada mujer ha ‘hecho historia’ diariamente (LÜDTKE, 1995, p. 50).

Nesse sentido, a Alltagsgeschichte, embora tributária em alguma medida desta se afasta da History from below inglesa(LÜDTKE, 1995, p. 54). O conceito remete às questões da reprodução da vida dos indivíduos anônimos ou não, de origem popular ou das elites, buscando na dinâmica entre as esferas pública e privada elementos que possam contribuir para a compreensão dos modos de pensar e agir das pessoas em seu cotidiano. Nesse sentido, a amplitude do conceito pode resultar em problemas de delimitação do objeto ou da natureza mesma da História do Cotidiano. Luis Castells chama atenção para o fato de que:

Buena parte de sus problemas a la hora de precisar lo que se entiende por historia de la vida cotidiana deriva de su imprecisión, de sus vagos contornos, así como de su escasa teorización, cuando menos desde la perspectiva de los historiadores (CASTELLS, 1995, p. 11).

Não obstante, Castells relembra também que tais problemas são inerentes ao próprio campo da História Social. O que não se pode perder de vista quando se trata deste objeto ou campo de estudos, supostamente de contornos imprecisos, é justamente suas relações com o público. Dedicando-se ao estudo dos aspectos talvez mais triviais do dia-a-dia dos atores sociais, a História do Cotidiano não pode, no entanto, ser pensada separadamente da esfera política. Ao contrário, ao centrar as atenções no quadro microssocial, os historiadores do cotidiano concebem a história como um processo multidirecional, em constante transformação, em uma tentativa de apreender em sua complexidade os comportamentos coletivos (KOSLOV, 2010).

Ainda sobre a corrente alemã, Le Moigne explica que a Alltagsgeschichte deu prioridade a três campos de pesquisa: em primeiro lugar, os “parâmetros gerais da vida humana” que tendiam a ser considerados “a-históricos” na Alemanha: a sexualidade, o nascimento, as doenças, o amor, a morte; depois, ela se ocupou dos meios desenvolvidos pelos homens para gerir seu cotidiano: o vestuário, a habitação, nutrição e o trabalho. Por fim, a História do Cotidiano voltou-se para os comportamentos e as formas de adaptação em situações excepcionais, notadamente a Guerra, a crise econômica, as privações de liberdade, as ditaduras (LE MOIGNE, 2005, p. 32).

Aplicado ao caso do nazismo, a História do Cotidiano ajudava a melhor perceber a atração que o regime exerceu sobre a sociedade e as maneiras a partir das quais as “emoções se combinaram com interesses materiais e necessidades individuais durante o processo que possiblitou que a política de destruição e perseguição nazista fosse colocada em marcha” (KOSLOV, 2010). Em 1989, Alf Lüdtke publicava na Alemanha um trabalho com uma série de estudos sobre História do Cotidiano1. Especificamente no que concernia ao período do nazismo, o autor evocava algumas vezes o sofrimento dos atores e a necessidade por parte do historiador de elaborar – social e historicamente – tal sofrimento. Não obstante, no caso do nazismo, compreender as penúrias impostas pelo regime significava igualmente refletir sobre os comportamentos que as produziram ou que, de maneira mais recorrente, ao menos coexistiram com elas. Tratava-se de compreender aquilo que o autor chamou de fascismo comum (REVEL, 1995, p. 805-808).

Não obstante, Lüdtke reconhecia as dificuldades e controvérsias que as propostas da Alltagsgeschichte poderiam suscitar especificamente quando dedicadas a refletir sobre o nazismo (LÜDTKE, 1994, p. 2). Sob este aspecto, é fundamental nos colocarmos diante das questões levantadas por Detlev J.K. Peukert também para o caso alemão:

podemos, ou mesmo devemos, falar de “vida cotidiana” em uma era que, para as vítimas de perseguição e guerra, significou um perpétuo estado de emergência? Em face da monstruosidade dos crimes do nacional-socialismo, não deveríamos ficar em silêncio sobre as rotinas diárias banais da maioria que não sente que foi afetada ou envolvida? (PEUKERT, 1987, p. 21)

Assim, se a ênfase nos estudos dos fatos da vida cotidiana sob um regime criminoso pode colocar o historiador diante de importante questão ética, o mesmo Peukert nos lista uma série de razões pelas quais o estudo de um regime autoritário – o nazismo, no caso – sob a perspectiva da História do Cotidiano pode também fornecer bases interessantes para uma historiografia crítica, na medida em que retira o seu objeto de interesse justamente das contraditórias e complexas experiências da “gente comum”.

Também Alf Lüdtke defende que

apenas um estudo detalhado dos comportamentos e das tomadas de consciência individuais pode identificar as contradições com as quais lideram indivíduos e grupos sociais sob o nazismo. Assim, pode-se entender o funcionamento do movimento de massas que esteve na origem do triunfo e da manutenção do regime nacional-socialista (KOTT; LÜDTKE, 1991, p. 153).

Mas, as reflexões em torno da vida cotidiana sob regimes autoritários no século XX não ficaram, evidentemente, restritas ao caso alemão. A historiografia sobre tais experiências vem passando por um processo de renovação desde pelo menos as décadas de 1970 e 1980 na Europa e, mais recentemente, processo similar se verifica para o caso da América Latina. Nesse sentido, o trabalho com categorias como memória, opinião, consenso, consentimento e resistência têm sido fundamentais para compreender os regimes autoritários do século XX, em suas mais diversas essências e temporalidades em ambos os continentes. No mesmo movimento, o cotidiano foi tomado como objeto, interrogando sobre a pluralidade das atitudes coletivas e sobre as formas a partir das quais se teceram as relações sociais em seus ambientes cotidianos, moldadas pelos pressupostos dos Estados autoritários que as governavam.

Assim, é importante destacar, dentre tantos outros, o estudo realizado por Sheila Fitzpatrick sobre a vida cotidiana sob o stalinismo. Nele, a autora avalia que existem inúmeras teorias sobre a forma de se escrever a história da vida cotidiana. Algumas delas consideram que o cotidiano abrange essencialmente a esfera da vida privada: a família, o lar, a educação das crianças, os lazeres, as relações de amizade e a sociabilidade. Outros voltam suas atenções para o mundo do trabalho, os comportamentos e atitudes nos locais de trabalho. Já os especialistas da vida cotidiana sob regimes autoritários se interessaram principalmente pelas diferentes formas de resistência – ativa ou passiva – elaboradas pelos cidadãos ou pela questão da resistência cotidiana, no campo ou nas cidades (FITZPATRICK, 2002, p. 13).

É o que ocorre, por exemplo, no caso do Brasil, onde apenas muito recentemente verifica-se um processo de renovação historiográfica que busca refletir sobre a ditadura como um processo de construção social [2]. No que se refere aos debates a respeito das reflexões sobre o cotidiano e, especificamente, sobre as problemáticas em torno da articulação entre uma reflexão sobre as possibilidades de uma História do cotidiano sob ditaduras, os trabalhos existentes retomam, em primeiro plano, as questões que envolvem o dia-a-dia dos grupos de resistência e oposição ao regime.

Neste caso, trabalho pioneiro foi a reflexão desenvolvida por Maria Hermínia Tavares e Luiz Weiz a respeito do cotidiano de oposição da classe média brasileira durante a ditadura e que compõe o volume 4 da coletânea História da vida privada no Brasil. Os autores estudaram especificamente setores a que chamaram “classe média intelectualizada”: “estudantes politicamente ativos, professores universitários, profissionais liberais, artistas, jornalistas, publicitários, etc” e a vasta gama de comportamentos que definiam a oposição durante a ditadura (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 327-328).

Tavares e Weiz chamam atenção, nesse sentido, para os diferentes modos de se relacionar com o espaço urbano que a clandestinidade impunha: o isolamento social em alguns casos, as dificuldades por parte das famílias de jovens militantes em “retomar uma existência cotidiana regular” e, por fim, a transformação do medo e da insegurança em “sensações básicas cotidianas e comuns a quem quer que tenha feito oposição à ditadura, marcando a fundo a vida privada dos oposicionistas” (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 328).

É importante, no entanto, considerar que não foi apenas a vida cotidiana da oposição à ditadura que sofreu profunda alteração. Tampouco as sensações de medo e insegurança ficaram restritas a tais meios. Ao contrário, a temática da violência política e a sensação de que se poderia estar sob vigilância teria caracterizado o dia-a-dia de parcelas muito mais expressivas da sociedade e não apenas daqueles que se opuseram ao regime. A própria Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que ao fim forneceu a justificativa para o golpe e para a manutenção da ditadura, ao operar a partir de noções como as de guerra permanente e guerra total, contribuía de forma expressiva para moldar a vida cotidiana sob a ditadura. O dia-a-dia do “cidadão comum” foi, dessa maneira, invadido por tais noções e estes incorporaram, sob muitos aspectos, a essência da DSN, a qual residia mesmo “no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica anti-subversiva contra o inimigo comum” (BORGES, 2007, p. 29).

Não obstante e de maneira geral, se em um primeiro momento a ideia de tomar o cotidiano sob regimes autoritários como objeto esteve vinculada às possibilidades de ampliar os estudos sobre as diversas formas de resistência, trabalhos mais recentes vêm propondo transcender este âmbito. Ainda de acordo com Fitzpatrick, tais análises buscam “dar ênfase às práticas, ou seja, às formas de comportamento e estratégias pessoais elaboradas para fazer face à condições sociais e políticas particulares” (FITZPATRICK, 2002, p. 14).

Sobre tais práticas e estratégias, talvez seja interessante ter em vista, de um ponto de vista teóricometodológico, aquilo que o historiador Andrew Stuart Bergerson observa para o caso alemão. Em seu estudo sobre alemães comuns em tempos incomuns, que toma como base as relações de vizinhança e em outros espaços cotidianos na cidade de Hildesheim, Bergerson busca compreender justamente “como pessoas comuns buscaram manter uma cultura de normalidade enquanto, não obstante, transformavam amigos e vizinhos em judeus e arianos” (BERGERSON, 2004, p. 6) [3]. Por “cultura de normalidade”, o historiador explica que não se refere a um estado natural, mas a um subproduto da cultura humana: “uma experiência gerada por uma forma específica de ser, acreditar e se comportar”. Nesse sentido, a cultura de normalidade fornece os elementos a partir dos quais as pessoas comuns se autodefinem como tais, tendo em vista ideias de impotência e insignificância, reforçando a construção de uma percepção sobre si mesmo que os aparta da História com H maiúsculo, mas que, de fato, apenas os habilita a “moldar a história” enquanto os envolve em uma autoilusão de inocência (BERGERSON, 2004, p. 6).

Sob este aspecto e como a ideia de homem comum ou de uma vida ordinária estão presentes e ligadas de certa maneira às possibilidades e questionamentos em torno da História do Cotidiano, é importante destacar que tais termos são entendidos aqui de maneira similar à proposta de Bergerson e relaciona-se, antes de tudo, à uma autoimagem ou autodefinição de si mesmos. Assim, para o autor, o termo comum [4] serve

não tanto para descrever um conjunto de pessoas que permaneceram fora dos círculos do poder público e da responsabilidade histórica. Ser comum era engajar-se em uma estratégia cultural específica de sobrevivência. Uma resposta criativa às rápidas e perturbadoras transformações históricas, essa forma de comportamento foi caracteristicamente moderna, mais que especificamente alemã, um hábito de vida diário (BERGERSON, 2004, p. 6).

Por fim, o que pretendemos ao propor este dossiê temático, considerando os pressupostos e as discussões em torno da chamada História do Cotidiano, foi chamar atenção para as possibilidades – e os limites – de se tomar como objeto de estudos a vida cotidiana sob regimes autoritários e / ou situações de guerra no século XX.

Nesse sentido, indagamos sobre como as vidas de pessoas não implicadas diretamente nos embates políticos em questão foram modificadas – ou não – por eles. Mais que isso, como estas pessoas perceberam, reagiram e se adaptaram a tais regimes em seus espaços de vivência cotidiana. Como segmentos sociais diversos lideram com os regimes políticos em questão, naturalizando, em níveis distintos, suas práticas e linguagem próprias? Quais comportamentos e “estratégias pessoais” utilizados diante das novas situações? Por outro, consideramos importante também pensar atores não tão “comuns” e seus espaços cotidianos: meios de comunicação, participantes de organizações armadas, ídolos musicais. Como veremos nas páginas que seguem, o conceito de cotidiano é ampliado, enriquecendo os questionamentos aqui apresentados.

Esta edição conta com quinze artigo, três resenhas e duas entrevistas. Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Perlatto “Svetlana Aleksiévitch, a Grande Utopia e o cotidiano: testemunhos e memórias do Homo Sovieticus”, analisa a obra da escritora bielorrussa a partir da reflexão da vida cotidiana dos homens e mulheres “comuns” ao longo dos anos de autoritarismo soviético. A autora contribui para pensarmos a relação entre grandes acontecimentos e a vida cotidiana do “Homo Sovieticus”. Por sua vez, Daniel Lvovich em seu texto “Vida cotidiana y dictadura militar en la Argentina: Un balance historiográfico” faz um levantamento e uma análise dos estudos que tomam como objeto a questão do cotidiano durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).

Em “Mortes no mar, dor na terra. Brasileiros atingidos pelo ataque do submarino alemão U-507 (agosto de 1942)”, o terceiro artigo de nosso dossiê, Jorge Ferreira parte do ataque de retaliação do governo nazista a navios brasileiros para trabalhar as reações das vítimas e seus familiares sobre o referido episódio a partir de cartas publicadas em jornais. Também no contexto da década 1940, mas em Portugal, Carla Ribeiro em “A educação estética da Nação e a “Campanha do Bom Gosto” de António Ferro (1940- 1949)” analisa a iniciativa cultural durante o Estado Novo e sua proposta de criar uma consciência estética entre os portugueses, assim como as marcas que essa campanha deixou na identidade do país no século XX.

Os artigos de Lorena Soler e Diogo Cunha trabalham o cotidiano e questões de sociabilidade no contexto sul-americano: em “Sociabilidad y vida cotidiana. Los rituales del festejo de amistad durante el stronismo en Paraguay”, a autora também utiliza a imprensa como caminho de análise das formas de recreação cotidianas que geravam adesões ao autoritarismo stronista, com foco na organização civil Cruzada Mundial de la Amistad, apoiada pelo regime. Já Diogo Cunha em “Sociabilidade, memórias e valores compartilhados: o cotidiano na Academia Brasileira de Letras durante a ditadura militar através da Revista da Academia Brasileira de Letras” propõe, através da análise da revista citada no título, pensar como esta instituição pode ter servido como espaço de legitimação da última ditadura em nosso país. O autor destaca a intensa sociabilidade entre os membros da ABL e representantes do regime como parte desta legitimação.

Nina Schneider também trabalha o regime brasileiro em “Propaganda ditatorial e invasão do cotidiano: a ditadura militar em perspectiva comparada”. A historiadora propõe uma reflexão sobre os impactos da propaganda governamental no cotidiano sob ditadura, assim como os limites no respeito à vida privada por parte do regime. Para a autora, diferente dos casos do varguismo e do nazismo, a última ditadura brasileira não procurou politizar e mobilizar a sociedade através da propaganda.

Os trabalhos que seguem de Marcos Napolitano e Rodrigo Patto Sá Motta têm como foco a análise da grande imprensa como ator durante a ditadura civilmilitar no Brasil. Em “A imprensa e a construção da memória do regime militar brasileiro (1965-1985)”, Napolitano parte da análise desse ator para pensar o cotidiano ditatorial. Analisando os editoriais de quatro jornais da grande mídia (O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e O Globo) no aniversário do Golpe de 1964, o autor trabalha com a hipótese de que foi a linhagem ideológica, das guinadas e revisões da memória liberal sobre o regime presente nestes editoriais, que definiu as bases da memória hegemônica de “resistência democrática” sobre o período. Já Rodrigo Motta propõe em seu trabalho “Entre a liberdade e a ordem: o jornal O Estado de São Paulo e a ditadura (1969-1973)” pensar as representações políticas divulgadas pelo citado jornal para tentar compreender suas estratégias frente à ditadura que, segundo o autor, variaram entre a adesão e a acomodação.

Retornando à Argentina em “Vida cotidiana, violencia política y represión. La Argentina de los años setenta y de la post-dictadura a partir del Archivo Marshall T. Meyer”, Sebastián Carassai parte de um arquivo pessoal para analisar as diversas experiências da sociedade do país no contexto de violência política dos anos 1970 e 1980, incluindo o pós-ditadura. Com uma interessante variedade de fontes o autor reflete sobre a partir da experiência concreta de uma comunidade judia de classe média em Buenos Aires.

No artigo que segue, Ana Maria Mauad trabalha as últimas ditaduras na América do Sul em um contexto regional, a partir da análise de imagens particulares. “Imagens que faltam, imagens que sobram: práticas visuais e cotidiano em regimes de exceção 1960-1980” vai do contexto privado das fotografias familiares e sua migração para o espaço público e propõe a discussão do papel da fotografia na elaboração da imaginação civil na contemporaneidade. Também no campo das manifestações culturais, “Entre a política e o prazer: ditadura, arte e boêmia através do filme “Garota de Ipanema” (Leon Hirszman, 1967)”, de Carlos Eduardo Pinto de Pinto, o autor usa a obra cinematográfica citada para analisar as tensões entre política e prazer no cotidiano do Rio de Janeiro no último período ditatorial, trazendo ao debate imaginários como a boemia, a arte e a despolitização na época.

Já o artigo de Cláudia Cristina da Silva Fontineles: “O cenário esportivo como arena de disputas políticas: entre a memória recitada e o apagamento de rastros” utiliza uma vasta seleção de fontes históricas para discutir que papel nas disputas entre dois grupos políticos majoritários tiveram o estádio de futebol “Albertão” e o time de futebol Tiradentes no Piauí, entre as décadas de 1970 e 1980. O artigo aponta as disputas de memórias entre as múltiplas leituras do espaço esportivo feitas por aliados como parte da euforia desenvolvimentista e por opositores pelo uso como reafirmação da presença do governo de Alberto Silva (1971-1975).

Em mais um trabalho que tem a imprensa como objeto de análise, Nataniél dal Moro utiliza o periódico Correio do Estado para abordar conflitos de classe no artigo intitulado “Conflitos entre elite e povo comum na cidade de Campo Grande (décadas de 1960-70)”. O autor destaca que as matérias produzidas pelo periódico representam um discurso próprio do mesmo, e por isso um interessante meio de análise dos conflitos cotidianos da cidade.

Finalmente, o trabalho de Gustavo Alves Alonso Ferreira: ”Os Vandrés do sertão: Música sertaneja, ufanismo e reconstruções da memória na redemocratização”, fecha a seção de artigos desse dossiê. Alonso discute a imagem de apoiadores da ditadura que carregam os artistas sertanejos. Se por um lado muitos deles de fato apoiaram a ditadura em determinado momento, como tantos outros artistas de gêneros musicais distintos, no período da redemocratização os sertanejos se engajaram no processo de transição, o que parece “esquecido” nas disputas de memória.

Essa edição conta com três resenhas. A primeira delas, feita por Maurício Santoro, intitulada “Memória familiar, identidade e ditadura”, sobre a obra A Resistência, de Julian Fuks (Companhia das Letras, 2015). Em “A casa dos horrores e seus agentes: o DOI-Codi de São Paulo e o trabalho sujo na ditadura”, Laurindo Mekie Pereira resenha o livro Na casa da vovó – Tempos da ditadura (o que vi e vivi) (Revan, 2015), de Francisco Antônio Doria. Finalmente, a obra Sinais de Fumaça na Cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil (Lamparina, 2015), de Henri Acselrad, deu origem à resenha “O Cotidiano sob a Ditadura Civil-militar: o espaço de interação entre a militância clandestina e os habitantes do subúrbio”, de Keila Auxiliadora Carvalho.

Fechando o dossiê, duas entrevistas que trazem como tema diferentes experiências autoritárias no século XX. A primeira delas realizada por Lívia Gonçalves Magalhães com a cientista política Pilar Calveiro, argentina sobrevivente de centros clandestinos de detenção durante a última ditadura civil-militar argentina. Vivendo no México desde seu exílio em 1979, Calveiro possui diversos trabalhos que procuram entender o cotidiano autoritário tanto em ditadura como em democracia. A entrevista de Janaina Martins Cordeiro foi feita com Antonio Cazorla Sánchez, espanhol e hoje professor de História Contemporânea no Canadá. Autor de uma biografia do general espanhol Francisco Franco, Cazorla é hoje um dos maiores especialistas no período do primeiro franquismo.

Esperamos que este dossiê gere novos debates e reflexões sobre o tema, que de forma alguma se esgota nas páginas que seguem.

Boa leitura!

Notas

1. Cf. a edição francesa do livro: LÜDTKE, 1994.

2. Cf., dentre outros, AARÃO REIS, 2000; GRINBERG, 2009; ROLLEMBERG e QUADRAT, 2010; MAGALHÃES, 2014; MOTTA, 2014; ALONSO, 2015; CORDEIRO, 2015.

3. Grifos no original.

4. O termo utilizado no original em inglês é ordinary.

Referências

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

BERGERSON, Andrew Stuart. Ordinary Germans in extraordinary times. The Nazi revolution in Hildesheim. Bloomington: Indiana University Press, 2004.

BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Vol. 4.

BURKE, Peter. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

CASTELLS, Luis. Introducción. In: Ayer (dossiê “La historia de la vida cotidiana”), n. 19, 1995.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.

CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015.

FITZPATRICK, Sheila. Le stalinisme au quotidien. La Russie Soviétique dans les années 30. Paris: Flammarion, 2002.

GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (Arena), 1965-1979. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

KOSLOV, Elissa Mailänder. Pour une histoire culturelle de l’Allemagne nazie. Ementa da disciplina. Disponível em: http: / / www.ehess.fr / fr / enseignement / enseignements / 2009 / ue / 1316 / . Acesso em: 02 maio 2017.

KOTT, Sandrine; LÜDTKE, Alf. De l’histoire sociale à l’Alltagsgeschichte. Entretien avec Alf Lüdtke. In: Genèses, 3, 1991.

LE MOIGNE, Nicolas. L’Alltagsgeschichte: l’anthropologie historique allemande. Notionnaire, Paris, Encyclopædia universalis, 2005.

LÜDTKE, Alf (Org.). Histoire du quotidien. Paris: Maison des sciences de l’homme, 1994.

______. De los héroes de la resistencia a los coautores. ‘Alltagsgeschichte’ en Alemania. In: Ayer (dossiê “La historia de la vida cotidiana”), n. 19, 1995.

MAGALHÃES, Lívia G. Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

PEUKERT, Detlev J. K. Inside Nazi Germany. Conformity, opposition, and racism in everyday life. Yale University Press, 1987.

REVEL, Jacques. Alf Lüdtke (Éd.). Histoire du quotidien, annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 50, n. 4, p. 805-808, 1995.

ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Vol. 1: Europa.

TAVARES, Maria Hermínia de Almeida; WEIZ, Luiz. Carro zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Vol. 4.

Janaina Martins Cordeiro – Professora Adjunta de História Contemporânea do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição, é Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ, 2015-2018) e autora de A ditadura em tempos de Milagre: comemorações, orgulho e consentimento (FGV, 2015) e Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil (FGV, 2009). E-mail: [email protected]

Lívia Gonçalves Magalhães – Professora Adjunta de História do Brasil Republicano do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição e Mestra em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional de San Martín (UNSAM, Argentina). Possui Pós-Doutorado em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES, CAPES, 2014-2016). É autora de Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (Lamparina, 2014) e Histórias do Futebol (APESP, 2010). E-mail: [email protected]


CORDEIRO, Janaina Martins; MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 2, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ditaduras e Autoritarismos / História.com / 2016

A presente edição da Revista Eletrônica História.com (REDH) traz a público um conjunto de artigos que contribuem para os debates referentes ao período da Ditadura Civil-Militar (1964 a 1985), no Brasil. O dossiê temático Ditaduras e Autoritarismos vem trazer aos leitores um conjunto de textos do campo histórico e historiográfico sobre a natureza das práticas de repressão, tortura e demais formas de violências implementadas no mencionado período.

Acreditamos que esta edição dialoga muito com o momento em que estamos vivendo. Vários grupos de manifestantes, antes do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, iam às ruas pedindo a volta da ditadura militar dentre tantas outras reivindicações. Os atos destes grupos acabaram chamando a atenção da mídia internacional. Não se acreditava que mesmo depois das atividades realizadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a publicação de seus relatórios confirmando as torturas, tais reivindicações poderiam ser possíveis.

Mas, as coisas se tornaram ainda mais graves. Recentemente, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC / RJ) fez menção ao torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra em seu voto a favor do impeachment da presidenta Rousseff. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim” [1] , disse Bolsonaro. A postura do referido político se configura como uma clara “apologia a tortura”, que inclusive é condenado pela Constituição brasileira. Sem contar que sua fala é um desrespeito aos princípios de laicidade do Estado. Diz assim um dos relatos presentes no I Relatório da comissão:

Pela manhã, o próprio comandante major Carlos Alberto Brilhante Ustra foi retirar-me da cela e ali mesmo começou a torturar-me […]. Espancamentos, principalmente no rosto e na cabeça, choques elétricos nos pés e nas mãos, murros na cabeça quando eu descia as escadas encapuzada, que provocavam dores horríveis na coluna e nos calcanhares, palmatória de madeira nos pés e nas mãos. Por recomendação de um torturador que se dizia médico, não deviam ser feitos espancamentos no abdômen e choque elétricos somente nas extremidades dos pés e das mãos.[2]

Várias instituições têm aberto processos contra o mencionado deputado, como o Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda. As práticas e discursos de natureza fascista, homofóbica, racista e machista do deputado têm sido combatidos por intelectuais, movimentos sociais, comunidade LGBT, trabalhadores da cultura. Jurídica e constitucionalmente, este tipo de discurso não deveria mais ser veiculado, sobretudo, em veículos midiáticos de grande alcance, sem o devido direito de resposta.

Esperamos que os trabalhos do dossiê temático possam contribuir no esclarecimento sobre as práticas violentas implantadas pela ditadura militar brasileira. Neste sentido, o trabalho Ditadura ou ditabranda? Como este momento histórico aparece em algumas de nossas produções fílmicas de autoria de Wilson Oliveira Badaró e Everaldo José de Jesus Junior faz uma excursão pelo mundo das fontes audiovisual para pensar no período histórico. “Desta forma, pretendemos expor análises dos filmes ‘Batismo de sangue’ dirigido por Helvécio Ratton, ‘O que é isso é isso? Companheiro’ dirigido por Bruno Barreto e ‘Zuzu Angel’ por Sérgio Rezende que retratam trechos da história da ditadura militar no Brasil”, dizem.

Ary de Albuquerque Junior em A Ditadura Cilvil-Militar (1964-1985) no âmbito do Regional e do Local parte para a análise historiográfica regional e local com o intuito de “trazer uma breve discussão das relações entre a historiografia […] com as questões voltadas à Ditadura civil-militar brasileira (1964- 1985)”. Um ponto importante problematizado pelo autor é a forma como as historiografias do eixo Sul-Sudeste se construíram como portadoras da realidade histórica nacional partindo de perspectivas regionais. Neste sentido, o debate trazido nesse texto ganha relevância quando se dispõe a pensar no processo de “secundarização” do fazer historiográfico do eixo Norte-Nordeste.

Os povos indígenas foram objeto de análise no artigo de Fredson Pedro Martins, intitulado de As populações indígenas e a Ditadura Civil-Militar brasileira nas aulas de História. O autor se utilizou de várias fontes como documentos referentes “à criação do Relatório Figueiredo e do desenvolvimento da Guarda Rural Indígena (GRIN)”. A proposta de Martins foi levar os estudantes do terceiro ano do Ensino Médio a refletirem sobre o “projeto de ‘integração nacional’” dos povos indígenas. Estes sujeitos foram pouco pensados enquanto objetos de pesquisa para a compreensão da Ditadura Civil-Militar brasileira.

Historicamente, os anos 1970 foram marcados pelas pressões políticas de abertura do regime, luta pela democracia e anistia dos presos políticos. No artigo Luta por democracia no Brasil: Anistia, justiça de transição e a garantia dos direitos humanos de Denise Nunes De Sordi e Pedro do Prado Möller encontraremos uma análise aprofundada sobre este período, e acrescenta os autores que “diante das inquietações, violações e transformações nas dimensões de um regime ditatorial, tratamos as ações que legitimaram os projetos em disputa e suas intenções”.

Aproveitamos e convidamos os leitores a enveredarem pela leitura dos artigos presentes na seção Artigo Livre e nas resenhas de livros da seção Resenha. Continuamos dispostos a ser um espaço democrático e de circulação das produções científicas de estudantes de graduação e pós-graduação, assim como mestres e doutores. Nosso trabalho é permitir que estas pesquisas possam circular em espaços de sociabilidade intelectual nacionais e internacionais, como os bancos de dados de universidades estrangeiras e outros indexadores. Para nossa grata surpresa, as universidades francesas Université Bordeaux Montaigne e Université Toulouse – Jean Jaurès tomaram a iniciativa de indexar a REDH em suas bases de dados de livre acesso à comunidade nacional e internacional. Outros indexadores, por solicitação do Conselho Editorial, fizeram também a indexação da revista como LATINDEX e IBICT / SEER.

Boa leitura!

Notas

1. BARBA, Mariana Della e WENTZEL, Marina. Discurso de Bolsonaro deixa ativistas ‘estarrecidos’ e leva a OAB a pedir sua cassação. BBC, São Paulo / Suíça, 20 de abr. de 2016. Disponível em: http: / / www.bbc.com / portuguese / noticias / 2016 / 04 / 160415_ bolsonaro_ongs_oab_mdb. Acesso em: 28 de mai. de 2016.

2. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso eletrônico. Brasília: CNV, 2014, p.368. Disponível em: http: / / www.cnv.gov.br / images / pdf / relatorio / volume_1_digital.pdf. Acesso em: 28 de mai. de 2016.

Geferson Santana – Editor-Chefe. Mestrando em História e Historiografia pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e sob o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Integrante do grupo de pesquisa Memorias, Ditaduras e Contemporaneidades (UFBA / CNPq) e Grupo de Trabalho Nacional de História Política (GTNHP / ANPUH / CNPq). E-mail: [email protected]


SANTANA, Geferson. Apresentação. História.com. Cachoeira, v.3, n.5, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Ditaduras na América Latina do século XX: debates e balanços historiográficos | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2015

O ciclo de ditaduras da América Latina dos anos 1960 a 1990 vem sendo rememorado em “datas convocantes”, como os 50 anos do golpe no Brasil, em 2014, os 40 anos do golpe no Uruguai e no Chile, em 2013, e, no ano que vem, 2016, também na Argentina, suscitando-se reflexões, novas abordagens e balanços historiográficos. O dossiê “Ditaduras na América Latina do século XX: debates e balanços historiográficos” propôs abrir um espaço para discussões acerca dos regimes autoritários e recebeu contribuições de variadas origens – Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. Embora a variedade temática esteja longe de cobrir o conjunto da profícua e extensa produção recente sobre os regimes autoritários da América Latina, esse dossiê oferece uma multiplicidade considerável de objetos e perspectivas, como historiografia, história das ideias, gênero, cotidiano, memória, imprensa, literatura, cinema e movimentos sociais, assim como devemos destacar a presença de jovens pesquisadores dentre os autores.

Abrindo o dossiê, o texto de Javiera Libertad Robles, intitulado “’Las Rodriguistas’. La mujer militantes en la prensa del Frente Patriótico Manuel Roríguez (1983-1988)”, discute a presença de mulheres militantes no braço armado do Partido Comunista do Chile. O estudo é feito por meio da revista El Rodriguista, principal veículo de comunicação do grupo, a partir do qual Robles analisa a visibilidade da participação feminina na organização. Leia Mais

O colapso das ditaduras: rupturas e continuidades / Outros Tempos / 2014

Os cinquenta anos do Golpe Militar de 1964 desencadearam uma avalanche de eventos acadêmicos, publicações especializadas, programas televisivos e revisitação às memórias dos “vencedores” e dos “vencidos” em torno dos elementos explicativos do movimento que não só destituiu o presidente democraticamente eleito, João Goulart, como também instituiu um regime que perdurou no Brasil por mais de duas décadas. Esse intenso movimento de vistoria dos meandros da Ditadura Militar brasileira foi ainda intensificado pela atuação da Comissão da Verdade. Nesse frenesi explicativo, muitas foram as interpretações que se sobrepuseram. Historiadores, Cientistas Políticos, Jornalistas, entre outros “especialistas”, buscaram nas mais distintas dimensões as explicações para a brusca alteração institucional que se instalou no pós-1964. Questões como a atuação dos aparelhos repressivos, os fundamentos e crise do “milagre econômico”, a denúncia dos casos de tortura, o processo de anistia e de abertura lenta, gradual e segura, vieram a tona e romperam os limites do mundo acadêmico, passando a frequentar o cotidiano nacional. Emergem até mesmo dos agentes da repressão, em um claro processo de mea culpa, testemunhos que corroboraram as denúncias de presos e torturados nos porões da Ditadura.

Em meio a essa explosão de informações, o revisionismo historiográfico ganhou espaço. A Ditadura não é somente Militar, mas Civil-Militar. O regime só durou tanto tempo porque estava sustentado por um amplo apoio da sociedade brasileira. Diluem-se os sujeitos da História. Apagam-se as responsabilidades. Afinal, a “Ditabranda” nem durou tanto tempo assim. O fim do A.I.5 em 1979 seria, nessa perspectiva, o marco final do regime instaurado em 1964.

Os artigos que compõem o dossiê da Revista Outros Tempos, vol. 11, n. 17, O Colapso das Ditaduras: Rupturas e Continuidades, organizado pelos professores Monica Piccolo (UEMA) e Renato Lemos (UFRJ), caminham em outra direção. Em busca do entendimento do regime instaurado em 1964, e do processo que, vinte anos e um anos depois, levou à eleição indireta do primeiro governo civil desde 1960, e, finalmente, ao fim da ditadura em 1988, os sujeitos voltam à cena. As bases de apoio ao regime, identificadas. Os movimentos sociais que tiveram papel central no retorno dos militares aos quartéis, recuperados. A conceitualização do regime, problematizada. Os fundamentos da Transição, investigados. Os casos de tortura, analisados com novo corpus documental. Os alicerces do revisionismo, desnudados. As continuidades, pintadas com tintas tão fortes quanto as das rupturas. Outras realidades históricas, para que o caso brasileiro não seja considerado de forma insulada, analisadas.

O Dossiê, assim, inicia-se com as investigações acerca da atuação dos aparelhos repressivos e da Comunidade de Informações nucleada em torno do SNI. Eduardo Chaves, no artigo “Em sintonia fina: conversas entre velhos amigos da caserna” examinou a coleção de entrevistas intitulada “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história”, verificando como se deu a narrativa em relação ao golpe e a ditadura empresarial-militar iniciada em março de 1964 e como essa mesma narrativa foi sendo construída pela coleção a partir da elaboração das entrevistas marcadas pela elaboração de um parecer positivo sobre o passado recente do Brasil. Na mesma perspectiva, Mauro Teixeira, no artigo “Inês é Viva: testemunho e esquecimento durante a transição brasileira” trabalhou com as denúncias de sequestro, tortura e cárcere privado formuladas por Inês Etienne Romeu, em 1981, contra agentes dos órgãos de segurança brasileiros que a haviam capturado dez anos antes. Foram analisadas, ainda, as reações das elites militares e civis frente ao depoimento. A atuação dos órgãos repressivos também foi tema do artigo de Daniel Samways, “O Anticomunismo do Serviço Nacional de Informações na Ditadura Civil-Militar brasileira” no qual foi analisado o discurso anticomunista e de combate à subversão como uma das bases da regime ditatorial durante longos 21 anos de violência e terrorismo estatal, segunda a periodização adotada pelo autor. Combater os comunistas e sua doutrina, o comunismo, foi aqui caracterizado como uma das principais metas dos aparelhos repressivos e de informações que buscavam mapear e reprimir supostos subversivos, usando, em muitos casos, de métodos de tortura para obter informações. Neste sentido, a comunidade de informações, que tinha no Serviço Nacional de Informações seu principal órgão, buscou também reforçar uma imagem negativa do comunismo.

Ampliando geograficamente o foco de análise e debruçando-se sobre a atuação dos aparelhos repressivos na Argentina, Jorge Fernández, no trabalho “Recuerdos Imborrables: do Golpe ao Exílio, as marcas do Terrorismo de Estado nas memórias dos emigrados argentinos no Rio Grande do Sul” investigou a atuação do governo que, seguindo os preceitos da Doutrina de Segurança Nacional, implantou o Terror de Estado (TDE) deixando profundas sequelas nas subjetividades daqueles que se exilaram. Para tal aproximação foram utilizadas, como fonte privilegiada, as memórias daquele tempo na forma das narrativas (re)elaboradas por antigos emigrados e conjugadas na dinâmica do tempo presente. As relações entre História e Memória também estão presentes no artigo de Marcos Oliveira Tolentino, “Memória, Verdade e Justiça: apontamentos para uma história do movimento argentino pelos direitos humanos (1976-2004)” no qual foi investigada a trajetória do movimento argentino pelos direitos humanos que, embora exitosa, não esteve no centro da contemporânea produção acerca das memórias e da história da mais recente ditadura empresarial- militar. Consequentemente, pôde ser percebida a consolidação de uma memória do movimento que obliterou os conflitos. Pensando nisso, o autor buscou questionar o silêncio acerca da participação dos sobreviventes dos centros clandestinos de detenção na memória do movimento.

A discussão conceitual sobre o regime instaurado em 1964 foi o tema central do artigo de Felipe Demier, “A ditadura bonapartista do grande capital: a questão dos regimes políticos nas interpretações históricas” que abordou as análises produzidas pelas ciências sociais brasileiras que interpretaram a ditadura militar brasileira como um regime de natureza bonapartista. Nesse sentido, o texto buscou recuperar a importância da discussão sobre os regimes políticos – em especial, do bonapartismo – para o processo de investigação historiográfica acerca do processo político brasileiro contemporâneo.

Os últimos artigos do Dossiê debruçam-se especificamente sobre o processo de transição política, não só no Brasil, como também na Espanha e em Portugal. Recuperando a importância dos movimentos das classes trabalhadoras, Marcelo Badaró em “Os trabalhadores brasileiros e a contrarrevolução democrática” analisou a trajetória das lutas coletivas e das organizações constituídas pela classe trabalhadora urbana brasileira desde o período final da ditadura militar, avaliando o papel dos trabalhadores e as estratégias empregadas pela classe dominante para remodelar a forma de dominação de classes desenhada no processo “contrarrevolução democrática”, desde a década de 1980 até o presente. Na mesma linha de investigação, as especificidades do caso espanhol e o protagonismo da classe trabalhadora na Transição são retratados por Javier Tébar Hurtado no artigo “Franquismo y Antifranquismo en el final de la Dictadura española” que se propôs a construir uma aproximação do significado histórico do Franquismo e do Antifranquismo nos anos finais da ditadura. Foi questionado o “caráter amável” da ditadura através da análise da relação entre a “resistência ordinária”, a oposição da classe trabalhadora orientada e organizada, e os instrumentos repressivos ditatoriais. Também foram investigados os legados do franquismo e destacada a importância dos arquivos para o exercício de um dos direitos de cidadania: o conhecimento do passado.

O caso português é o tema do artigo de Raquel Varela, António do Paço e Joana Alcântara, “A Revolução dos Cravos: Revolução e Democracia, um debate” no qual foi realizada uma sistematização das principais características / causas da revolução portuguesa, argumentando que as mudanças sociais estão na origem das rupturas governativas e a incapacidade de acordos institucionais prende-se à inviabilidade de conjugação de projetos políticos impossibilitados pela dinâmica do movimento social, e não o seu inverso. Numa segunda parte do artigo foi analisado o impacto do processo contrarrevolucionário – o pacto social – iniciado a partir de Novembro de 1975 e consagrado na Constituição de 1976, mantido por causa da intensa conflituosidade herdada da revolução – 10 governos em 10 anos, entre 1976 e 1985. A Transição brasileira, em perspectiva comparada com a portuguesa, é tema do artigo de Valério Arcary, “O Outro 25 de Abril e as Diretas Já” no qual os (des)caminhos dos processos de transição dos regimes ditatoriais rumo à democracia no Brasil e em Portugal foram investigados a partir do pressuposto de que os movimentos 25 de Abril em Portugal e as “Diretas Já” no Brasil foram os mais destacados expoentes da mobilização popular nos dois países. Apresentou-se como fundamento a ideia de que nos dois países, seus planos de transição controlada “pelo alto” foram subvertidos pela mobilização “por baixo”. Assim sendo, os regimes ditatoriais, em que pesem as negociações desenvolvidas ao longo do processo, foram derrotados pelas forças sociais que entraram em cena e deslocaram as relações de forças vigentes até então.

Para encerrar essa radiografia dos regimes ditadoriais e seus respectivos processos de crise, Gilberto Calil no artigo “Elio Gaspari e o elogio da transição conservadora” dialogou diretamente com uma das obras sobre a ditadura que mais espaço conquistou na grande mídia. Analisou criticamente a interpretação do jornalista Elio Gaspari que considera que os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva impulsionaram o processo de democratização, como hábeis condutores de um processo que superou desafios diversos e propiciou um avanço na transição para a democracia. Propôs, ao contrário, uma revisão crítica do projeto de abertura, da forma como se relacionou com os diferentes grupos políticos e do papel desempenhado pela repressão durante o período em foco, considerando que o projeto distensionista visava criar condições para uma transição que garantisse a consolidação e institucionalização do legado da ditadura e garantisse a impunidade aos agentes da repressão mesmo após a passagem do poder aos civis.

Esperamos que a leitura dos artigos apresentados possa não só lançar novas luzes sobre o regime ditatorial implementado no Brasil em 1964 e na Argentina em 1976 como também sobre o processos de Transição brasileiro e Ibérico. Quiça não tenhamos que esperar por mais meio século para que o revisionismo asséptico, monolítico e impessoal venha a ser definitivamente posto de lado em nome de uma História plural, ceifada por embates, repleta de sujetos e, principalmente, problematizada.

Monica Piccolo

Renato Lemos


PICCOLO, Monica; LEMOS, Renato. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 11, n. 17, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Golpes e Ditaduras / Revista Brasileira de História / 2014

O ano de 2014 transcorre sob o signo dos debates acadêmicos e políticos relacionados ao cinquentenário do Golpe de 1964. O dossiê “Golpes e Ditaduras“, contido neste número 67, traz a contribuição da Revista Brasileira de História a esse processo de reflexão. Os seis artigos contidos no dossiê, cinco deles enfocando o Brasil e um Portugal, exploram diferentes dimensões da experiência de supressão da democracia por meio da força, assim como as formas pelas quais as sociedades contemporâneas enfrentam os desafios colocados por essas circunstâncias históricas.

Em “Os ‘inimigos da pátria’: repressão e luta dos trabalhadores do Sindicato dos Químicos de São Paulo (1964-1979)”, Larissa Rosa Corrêa detalha os impactos da violência exercida sobre os trabalhadores urbanos organizados em associações de classe, tomando como caso de estudo uma das maiores organizações operárias do país, em um trabalho que enfatiza a dimensão classista do autoritarismo instalado a partir de 1964. Já o provocativo artigo de Bryan Pitts intitulado “‘O sangue da mocidade está correndo’: a classe política e seus filhos enfrentam os militares em 1968” examina as reações dos congressistas brasileiros à repressão desencadeada contra o movimento estudantil em 1968. Chamando a atenção para os vínculos de sangue e de classe entre líderes universitários e políticos profissionais, Pitts oferece novas perspectivas para a compreensão da mudança da natureza do regime a partir da promulgação do AI-5 e para o debate sobre a relação entre seus componentes civis e militares. Carla Simone Rodeghero, no artigo “Pela ‘pacificação da família brasileira’: uma breve comparação entre as anistias de 1945 e de 1979”, proporciona ao leitor uma reflexão sobre as semelhanças e as diferenças entre os dois períodos de “transição democrática” vividos pelo Brasil. Examinando como a concepção do significado da anistia desloca-se da mera “conciliação” para a de “ferramenta para a conquista de direitos”, Rodeghero agrega importantes elementos para um debate de renovada atualidade.

As dimensões culturais da busca de construção de legitimidade dos regimes ditatoriais, bem como da resistência a eles, estão no foco dos três artigos que fecham o dossiê. Em “Os usos do civismo em tempos autoritários: as comemorações e ações do Conselho Federal de Cultura (1966-1975)”, Tatyana de Amaral Maia examina um dos principais mecanismos institucionais por meio do qual o regime exercia sua política cultural, voltada a “valorizar os elementos cívicos” como parte de um processo de “regeneração” da vida social e política do país. Já Francisco Régis Lopes Ramos, em “O Calendário e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da história e hagiografia”, analisa a atualização da tradição católica de associação entre o registro da passagem do tempo e a memória do sacrifício dos mártires como parte da resistência às ditaduras latino-americanas, a partir do exemplo de como obras de caráter hagiográfico vinculadas à Teologia da Libertação trataram a vida e a morte de frei Tito de Alencar Lima. Por fim, Edwar de Alencar Castelo Branco reflete sobre a relação entre experimentalismo estético e resistência política em “PO-EX: A poética como acontecimento sob a noite que o fascismo salazarista impôs a Portugal”.

A seção de artigos avulsos contém sete trabalhos. Dois deles analisam personagens relevantes da história da ciência nos séculos XIX e XX e seus vínculos com o Brasil. Trata-se de “Evolucionismo darwinista? Contribuições de Alfred Russel Wallace à Teoria da Evolução”, de Nelson Papavero e Christian Fausto Moraes dos Santos, e de “Diplomacia e ciência no contexto da Segunda Guerra Mundial: a viagem de Arthur Compton ao Brasil em 1941”, de Olival Freire Junior e Indianara Silva. A dimensão cultural das relações entre o Brasil e o restante do mundo continua em foco no trabalho de Anaïs Fléchet e Juliette Dumont, intitulado “‘Pelo que é nosso!’ A diplomacia cultural brasileira no século XX”.

Os quatro trabalhos seguintes analisam temas e objetos diversos no campo da história social. Márcia C. O. Cury oferece uma importante contribuição para o estudo dos movimentos sociais no Cone Sul em “Ocupando espaços, construindo identidades: a importância do movimento de pobladores para a história política e social do Chile (1950-1970)”. “Cidadania por um fio: o associativismo negro no Rio de Janeiro (1888-1930)”, de Petrônio Domingues, traz novos elementos para o debate de um dos aspectos cruciais do período pós-emancipação no Brasil. Paulo Cesar Gonçalves oferece uma nova abordagem para um tema clássico da história do trabalho no Brasil em “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos”. A seção de avulsos se encerra com um trabalho focado na temática de gênero: “Imprensa e educação feminina em zona pioneira: o caso do Noroeste Paulista (1920-1940)”, de Raquel Discini de Campos.

Este número traz de volta a seção Memória, publicando a conferência “Conhecimento histórico e diálogo social”, proferida pelo ex-presidente nacional da Anpuh, Benito Bisso Schmidt, na abertura do XXVII Simpósio Nacional de História (julho de 2013, Natal, RN).

O volume encerra-se com quatro resenhas. A primeira delas relaciona-se diretamente ao dossiê temático desta edição: Claudia Wasserman analisa a coletânea O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, organizada por Francisco C. Palomanes Martinho e António C. Pinto. Fernando Teixeira da Silva apresenta aos leitores brasileiros Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho, tradução do livro do historiador holandês Marcel van der Linden. Por fim, trazemos duas resenhas dedicadas a obras sobre aspectos da história brasileira recentemente publicadas em inglês. Maria Helena P. T. Machado comenta From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830, de Walter Hawthorne; e Regina Horta Duarte analisa In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region, de Seth Garfield.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.67, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Memória, Ditaduras e Direitos / Projeto História / 2014

Os estudos e a reflexão sobre a memória social e as relações entre História e Memória constituem área relativamente recente dos estudos históricos. Como propõe Josephina Cuesta, em um balanço sobre a questão, diferentemente de outros cientistas sociais, que, desde o início do século XX, incorporaram os temas da memória ao seu repertório de discussões, seria somente a partir da década de 1960 que os historiadores passam a abordar de forma mais sistemática as questões políticas, teóricas e metodológicas postas nesse campo.

Não obstante, nas últimas três décadas, e em grande parte acompanhando as demandas sociais, a memória emerge como um campo profícuo da reflexão histórica, e a área registra uma notável expansão de estudos internacionais e também nacionais sobre as relações entre Memória e História. Indagações sobre a matéria própria da memória social, seus modos de produção e transmissão, as questões da lembrança e do esquecimento, a natureza dos testemunhos, a memória como campo de disputas e o papel da memória nas disputas sociais informam o estudos de diferentes temáticas. Pesquisas sobre a construção e a institucionalização de identidades nacionais e comunitárias, o papel das comemorações e da invenção de tradições, o papel dos símbolos e lugares de memória em diferentes situações e contextos, bem como sobre os processos de institucionalização de memórias e lutas sociais articulam-se à reflexão de campos diversos, tais como os da História Social e Cultural, da nova História Política, da História Pública e da chamada História do Presente. A expansão das fontes estudadas, festas, símbolos diversos, monumentos, calendários, artes gráficas e visuais, fotografia, pintura, publicidade e, principalmente as fontes orais, faz emergir uma pluralidade de sujeitos, questões e temas.

Para o que aqui nos interessa, vale também notar que a emergência de preocupações culturais e políticas voltadas para a discussão de memórias relativas ao passado recente é um fenômeno que ganha força na contemporaneidade em alguns países da Europa, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, bem como em vários países da América Latina, após a experiência de ditaduras recentes.

De acordo com essas informações da Anistia Internacional, desde os anos de 1970, mais de 40 comissões da verdade ou similares foram estabelecidas ao redor do mundo, a maioria delas nos últimos 20 anos. A grande parte dessas comissões, propostas sob a visão da justiça de transição e visando à luta contra a impunidade e ao estabelecimento de procedimentos de reparação a vítimas de processos de violência institucional, propugnou pelo estabelecimento de mecanismos nacionais efetivos para a documentação da verdade sobre o arbítrio e os crimes perpetrados, propondo também a socialização do conhecimento sobre razões e circunstâncias que levaram às violações de direitos humanos nas situações sob investigação.

É significativo assinalar que, com essas comissões, muitos desses países assumiram como tarefa e dever de Estado a recuperação, a preservação e a publicização da documentação sobre os períodos de violência institucionalizada. Nesses anos, particularmente na América Latina, identificaram-se movimentos de grande vitalidade na área, os quais se articularam a importantes lutas políticas contra o arbítrio e a impunidade, bem como àquelas pelo direito à verdade e à memória. Em vários desses países, as lutas tiveram / têm como dimensão importante a organização de suportes de memória da repressão e da resistência produzidos nos períodos ditatoriais, dando origem ao desenvolvimento de inúmeros projetos e à organização de instituições diversas voltadas para a ação, a pesquisa e a reflexão sobre a história desses períodos.

No Brasil, passados mais de 50 anos do Golpe de 1964, a discussão pública sobre os anos da ditadura brasileira e da transição ainda é profundamente marcada pela herança autoritária imposta pelo pacto conservador da abertura, que propõe o perdão institucional aos responsáveis pelo terror de Estado e que se manifesta na prática cotidiana e contínua da violação de direitos humanos de nossa sociedade. Apesar disso, há de se reconhecer que, no decorrer da última década, principalmente a parir da aprovação do PNDH-III, em 2009, e da Lei Geral de Acesso à Informação e da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, as questões propostas pelas articulações entre memórias da ditadura, história e cidadania ganharam força crescente no debate público em diferentes espaços da sociedade brasileira.

Desde então, assim como os demais espaços sociais, as universidades e a produção acadêmica têm sido insistentemente confrontadas e interpeladas por diferentes agentes sociais, e têm respondido a essas demandas. Nos últimos anos, nas diversas áreas das Ciências Humanas, a produção acadêmica sobre o período da ditadura cresceu vigorosamente em quantidade e qualidade. Particularmente no campo das relações entre Historia e Memória, há de se indicar que a historiografia sobre o período tem avançado significativamente, assumindo a pesquisa e a reflexão sobre uma grande diversidade de temas, questões, espaços, práticas e vozes antes inaudíveis ou invisibilizadas, e que nos aproximam muito mais de uma História Social e Política sobre o período e de suas repercussões na vida contemporânea. Há ainda que destacar a criação em várias universidades do país de Comissões da Verdade universitárias assim como o envolvimento de muitos professores nos trabalhos de pesquisa das várias comissões estaduais e na comissão nacional. Também a PUC-SP criou sua Comissão da Verdade que durante os últimos dois anos atuou articulada à outras comissões e buscou contribuir para a pesquisa e a reflexão histórica sobre aqueles anos de exceção. Este número da Projeto História articula-se tanto à discussões recentes propostas pelo Departamento de História como aos trabalhos da Comissão da Verdade da universidade.

Buscando contribuir para esse debate, este número da revista Projeto História aborda as relações entre Memória, Ditaduras e Direitos. A proposta é a que a divulgação de pesquisas e reflexões em circuitos mais amplos nos ajude a aproximar o trabalho de historiadores da importante agenda pública trazida pelas lutas em favor do direito à memória, à verdade e à justiça em nosso país. Busca também salientar a importância da reflexão histórica em um terreno no qual sentidos e significados encontram-se ativamente em disputa na sociedade brasileira na atualidade.

A revista traz a contribuição de historiadores e outros cientistas sociais que exploram diferentes ângulos da questão em relação à ditadura no Brasil e também em outros países da América do Sul e da Europa.

Os artigos de Ana Maria Sosa González e Enrique Padrós remetem às discussões sobre as ditaduras nos países do Cone Sul. O estudo de González nos propõe uma avaliação comparativa das políticas de memória implementadas recentemente no Uruguai e no Brasil, apontando seus caminhos e estratégias, bem como suas relações com políticas de afirmação dos direitos humanos nesses países. Ao discutir a atuação de historiadores e outros cientistas sociais nesse processo, aponta desafios atuais enfrentados nessa aproximação entre a academia e esses processos políticos. O artigo de Padrós, por sua vez, com base em pesquisa detalhada na documentação e em entrevistas de militantes do CLAMOR – Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, grupo que atuou com sede em São Paulo entre os anos de 1978 e 1991, aborda as situações de violação de direitos e violências perpetradas pelas ditaduras recentes em diversos países da América do Sul no contexto da atuação no Comitê e suas ações de denúncia do arbítrio e de auxílio e solidariedade aos perseguidos políticos nesses regimes no Cone Sul. O texto examina as lutas de resistência empreendidas pelo CLAMOR e pela rede de solidariedade constituída por entidades de defesa dos direitos humanos à qual o Comitê se articulava, como também aponta a dramática situação dos exilados e perseguidos políticos na região naquele período. Aqui, vale lembrar, que este precioso acervo do CLAMOR, nominado Memória do Mundo pela UNESCO , encontra-se aberto à consulta pública no CEDIC – Centro de Documentação da PUC-SP – e por sua importância para o período sugere inúmeras outras abordagens sobre as ditaduras no Cone Sul.

Como indicado anteriormente, a atuação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, entre 2012 e 2014, constitui marco importante no desenvolvimento das lutas pelo direito à memória, à verdade e à justiça no país, e seu encerramento recente coloca inúmeras questões sobre os desdobramentos desse processo na conjuntura em que vivemos. Procurador atuante na área e estudioso dos direitos humanos, Marlon Weichert apresenta, em seu artigo, um minucioso resumo do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade tornado público em dezembro de 2014. Além de descrever de forma densa e sintética os principais conteúdos, conclusões e recomendações do relatório, realiza um balanço sobre as dificuldades enfrentadas pela Comissão. O artigo também propõe uma avaliação fundamental e instigante sobre as expectativas e os desafios que a CNV não conseguiu atender, e examina as contribuições que seu relatório trouxe para o processo de justiça de transição brasileiro.

Dada a sua importância na configuração das relações de poder em nosso país, a presença e a atuação dos meios de comunicação nos processos de disputa em torno das memórias sobre a ditadura, bem como nos processos da transição, têm mobilizado fortemente a reflexão sobre os processos de constituição e a instituição de memórias sobre o período. Nesse campo, destacam-se, particularmente, as análises da imprensa como força social que atua na produção de hegemonia, articula uma compreensão da temporalidade, propõe marcos e diagnósticos do presente e que, a todo o tempo, propõe a afirmação de sentidos selecionados e a ocultação de outros. Dentro dessa perspectiva, a atuação da imprensa e os seus impactos nos processos de afirmação e transmissão de memórias da ditadura civil-militar no Brasil, a sua atuação como espaço de legitimação ou oposição aos regimes, são aqui tratadas sob diferentes ângulos e veículos.

O texto de Carla Luciana da Silva, com base na análise da revista VEJA em 1969 / 70 e 2014, problematizando a relação entre a imprensa, a memória histórica, as práticas discursivas e a produção da hegemonia, analisa como a revista atua na conformação e atualização de consensos sobre a repressão, a violência e a presença de opositores do regime, dos trabalhadores e dos movimentos sociais na cena política do país.

Percorrendo uma trajetória similar, a discussão proposta pelo artigo de Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes Sousa, que destaca a pesquisa realizada nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, tem como eixo central o Golpe de 1964. Analisando a recepção pelos dois jornais ao golpe civil militar de 1964, em momentos de sua efetivação, e depois em tempos de sua “comemoração” ou “rememoração”, nas efemérides de 2014, desenvolve argumentos sobre a reescrita do passado por aqueles jornais e desvenda seus argumentos e caminhos de justificação e legitimação daqueles eventos no presente.

Por outro lado, o artigo de Maria Izilda Santos Matos, tematizando a questão do exílio político e as ações de oposição ao regime salazarista no Brasil, problematiza como a imprensa pode se constituir em espaço de articulação e manifestação de propostas críticas e dissidentes. Em meio ao estudo da presença portuguesa em São Paulo (1920 / 70), destaca as experiências de um grupo de portugueses que, no exílio, levou à frente ações de oposição ao regime salazarista tendo como canal de expressão política o jornal Portugal Democrático.

Encerrando a seção de artigos, o texto de Marijane Lisboa, ao discutir pesquisas recentes sobre aspectos até hoje negligenciados da memória coletiva do genocídio nazista e os percursos da memória coletiva a seu respeito em situações específicas, nos situa na memória como campo de disputa móvel, que implica recordação, esquecimento e manipulação em momentos e situações históricas diversas. Destacando os desafios de se lidar com memórias sensíveis e traumáticas, propõe a reflexão crítica sobre os usos e os abusos da memória, bem como sobre a promoção de políticas de memória que sirvam à construção de sociedades democráticas.

Finalmente, na composição deste número da revista, cumpre salientar as contribuições trazidas por pesquisas em andamento sobre o período. Também abordando as relações entre imprensa e memória, tendo como material de pesquisa o jornal argentino Clarín, a pesquisadora Micaela Iturralde analisa a posição editorial e as estratégias discursivas desse periódico frente às violações dos direitos humanos, e indaga sobre tratamento dado pelo jornal às questões da violência política e aos “desaparecidos” durante a ditadura militar na Argentina (1975-1983).

Problematizando as políticas de segurança e as ações dos agentes do Estado, a questão da violência institucional e da violação dos direitos humanos também é discutida por Tiago Santos Salgado, em sua pesquisa sobre a Venezuela em períodos mais recentes.

Ao final, o texto de Viviane Tessitore relata a pesquisa sobre a história do projeto Brasil: nunca mais, que mapeou a repressão política durante a ditadura militar no Brasil, a partir dos processos contra presos políticos no início da década de 1980, e que se desenvolve no interior do projeto Brasil: Nunca Mais Digital, o qual, trazido a público recentemente, viabilizou a consulta virtual àquele valioso acervo sobre a repressão durante a ditadura no Brasil.

Heloisa de Faria Cruz


CRUZ, Heloisa de Faria. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 50, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Ditaduras e Democracias (décadas de1960-1980) / Tempo e Argumento / 2013

Em poucos meses fará 50 anos da deposição do presidente João Goulart e do início de um período que marcou a história do tempo presente no Brasil. Esta data suscitará uma nova rodada de discussões a esse respeito: novos estudos serão divulgados e novas memórias entrarão no campo de disputas. Os debates em torno dos trabalhos da Comissão da Verdade e da exumação do corpo do presidente deposto são sinal de um passado ainda presente e aberto a múltiplas interpretações. A Revista Tempo & Argumento espera, com a publicação do dossiê Ditaduras e Democracias (1960-1980), trazer novos elementos para o debate sobre este conturbado momento da nossa história.

O dossiê inicia com o artigo Ditaduras Civil-Militares no Cone Sul e a Doutrina de Segurança Nacional – algumas considerações sobre a Historiografia, de autoria do professor Dr. Ricardo Antonio Souza Mendes. Neste artigo, são analisadas as primeiras obras sobre a Doutrina de Segurança Nacional, elaboradas entre os anos de 1979 e 1982, e que são um primeiro esforço no sentindo de entender o conjunto de ideias que norteou os governos autoritários que tomaram o poder na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguai. O artigo Ditadura, Democracia e Esquecimento: 1964 – o acontecimento recalcado e a ascensão da Folha como canal da democracia, de autoria da professora Dr.a Sônia Maria Meneses, investiga como o jornal Folha de São Paulo conseguiu construir sua identidade vinculada às expectativas de democracia e ao mesmo tempo formulou um bem sucedido projeto de “reconstrução” da memória sobre os governos militares. A sua análise enfatiza como o golpe de 1964 é narrado pelo jornal entre 1978 e 1980, período de abertura política, e como se constitui o processo de lembrar e esquecer na construção de uma nova identidade política. Utilizando também como documento de análise o jornal Folha de São Paulo, o professor Dr. Reinaldo Lindolfo Lohn, no artigo Um longo presente: o papel da imprensa no processo de redemocratização – a Folha de São Paulo em 1974, discute como foi construída pela grande imprensa uma narrativa política no qual se estabeleceu a proeminência de setores e agentes políticos e sociais e o papel das eleições no processo de democratização brasileira a partir de 1974. No artigo O direito à memória: a história oral de mulheres que lutaram contra a ditadura militar (1964-84), a doutoranda Marta Gouveia de Oliveira Rovai analisa os relatos de mulheres que lutaram contra a ditadura militar brasileira a fim de identificar as múltiplas formas de ações na luta contra o autoritarismo. O artigo “Somos guardiões da memória…”: uma coleção homenageia os “vitoriosos” de 31 de março de 1964, do doutorando Eduardo dos Santos Chaves (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), analisará a coleção “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história”. Esta coleção comporta um conjunto de entrevistas de membros das Forças Armadas brasileiras sobre a tomada do poder pelos militares. O autor examina o significado dessa coleção de entrevistas como resultado da disputa pela memória sobre a ditadura brasileira, bem como uma homenagem do Exército àqueles que eles consideram “salvadores da pátria”. O artigo A internet, um novo espaço de disputa pela memória da Ditadura Militar no Brasil, escrito pela doutora Maria Gabriela da Silva Martins da Cunha Marinho e pela mestranda Sonale Diane Pastro de Oliveira, a partir da análise de dois sítios eletrônicos, discute as disputas pela memória sobre o período da Ditadura Militar no Brasil e como a Internet se tem transformado em espaço de divulgação de distintas posições políticas. O artigo Civismo e cidadania num regime de exceção: as políticas de formação do cidadão na ditadura civil-militar, de autoria da doutora Tatyana de Amaral Maia, é dedicado a analisar a atuação do Conselho Federal de Cultura no Ministério da Educação e Cultura durante a ditadura civil-militar (1964-1985) e as políticas culturais e educacionais que foram postos em prática a fim de formar um cidadão considerado ideal. Para este estudo, a autora analisou os Cadernos de Estudos Brasileiros, o Atlas Cultural do Brasil e a obra O cidadão e o civismo: educação moral e cívica, suas finalidades. No artigo “En todas las dictaduras siempre hay espacios de resistencia frente a la opresión”: A atuação dos movimentos pela anistia e o controle e vigilância do regime civil-militar (1975-1983), a mestranda Pâmela Almeida Resende analisa, a partir do estudo do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) e do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), como se dava a vigilância e o controle de parte da comunidade de informações e segurança aos movimentos que lutavam pela anistia e pela redemocratização. Para este estudo foram utilizados os documentos produzidos pelo do DEOPS / SP e SNI.

Na sequência do dossiê encontram-se quatro artigos que se debruçam sobre universidades brasileiras durante o período dos governos militares no Brasil. O artigo Os movimentos docentes brasileiro e português na virada dos anos 1970-80, da doutora Libania Nacif Xavier, analisa as ações e manifestações docentes ocorridas no Brasil e em Portugal, nos anos 1970-80, período marcado pelo declínio dos regimes autoritários e pela ascensão de movimentos de contestação política aos poderes constituídos. O artigo A UFPA e os Anos de Chumbo: A administração do reitor Silveira Neto em tempo de ditadura (1960-1969), de autoria da doutora Joana Fontes Oliveira (Universidade Federal do Pará), analisa os impactos do AI-5 e da repressão a estudantes, professores e servidores públicos durante o mandato do reitor José da Silveira Neto. O doutor Pedro Ernesto Fagundes apresenta, no artigo Universidade e repressão política: o acesso aos documentos da Assessoria Especial de Segurança e Informação da Universidade Federal do Espírito Santo (AESI / UFES), os problemas de acesso aos documentos produzidos pela Assessoria Especial de Segurança e Informação da Universidade Federal do Espírito Santo, que era vinculada ao Ministério da Educação e coordenado pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), e que entre os anos de 1971 e 1983 tinha como função monitorar as atividades da comunidade universitária. No artigo intitulado A constituição da Faculdade de Educação / UFRGS em tempos de ditadura civil-militar (1970-1985), a doutora Doris Bittencourt Almeida procura compreender como, no presente, os sujeitos professores rememoram o tempo vivido naquela instituição, mais especificamente sobre as implicações da ditadura civil-militar na constituição e no cotidiano da Faculdade da Educação, nos anos 1970 e início dos anos 1980. Para fechar este dossiê, temos o artigo Estudantes no Pontal Mineiro e ditadura militar na década de 1960, do doutor Sauloéber Tarsio de Souza e da mestranda Isaura Melo Franco, os quais, a partir de quatro coleções de jornais do município de Ituiutaba, que circularam na década de 1960, e de entrevistas a ex-líderes estudantis, analisam as ações e as práticas do movimento estudantil no Pontal do Triângulo Mineiro durante a ditadura militar.

A sessão de artigos da Revista Tempo & Argumento conta com três artigos que versam sobre diferentes temas. O artigo da doutoranda Amanda Palomo Alves, intitulado Angola: musicalidade, política e anticolonialismo (1950-1980), analisa como a música popular urbana auxiliou na construção de uma consciência nacionalista, contribuindo para a resistência e a luta anticolonial. O artigo As divisões políticas da primeira elite castrense da ditadura chilena (1973-1978): grupos políticos, alternativas institucionais e formação profissional, do doutorando Tiago Francisco Monteiro, discute a composição, a atuação política e os anseios institucionais dos grupos de militares que ocuparam os principais cargos da ditadura chilena, imposta ao país após o golpe militar de 11 / 09 / 1973, com enfoque na formação profissional dos oficiais que denominados de “primeira elite castrense”, e enfatizando as suas relações com grupos civis e com as escolas militares estadunidenses. A mestranda Ana Karine Braggio e o doutor Alexandre Felipe Fiuza, no artigo Acervo da DOPS / PR: uma possibilidade de fonte diferenciada para a história da educação, propõem um novo olhar para os acervos das extintas Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), com vistas ao estudo da História da Educação.

Este volume também traz duas resenhas. A resenha Por uma história da loucura no sul do país, da acadêmica do curso de história da UDESC, Tassila Sant’Anna Espindola, analisa o livro Loucos nem sempre mansos, de autoria da professora Dr.a Viviane Borges. Resultado da dissertação de mestrado que descortina o mundo da Colônia Itapuã, centro agrícola de reabilitação localizado no município de Viamão, no estado do Rio Grande do Sul. Silvania Rubert, no texto que intitula Para além da “guerra suja”, resenha o livro Memórias de uma Guerra Suja, que traz os depoimentos de Cláudio Guerra, o qual atuou no DOI-CODI (órgão de inteligência e repressão subordinado ao Exército brasileiro durante o regime militar), aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros.

Para finalizar este volume da revista, trazemos a entrevista com o Dr. Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na entrevista, feita em 2013 durante a Anpuh, em Natal, pelos professores do PPGH / UDESC, Rafael Hagemayer, Reinaldo Lindolfo Lohn e Silvia Maria de Fávero Arend, são discutidos temas como suas pesquisas sobre a ditadura militar no Brasil, a atuação da Comissão da Verdade e as possibilidades de pesquisa sobre o período a partir de novas questões que se colocam no tempo presente.

Luciana Rossato

Maria Teresa Santos Cunha

Editoras- Chefe


CUNHA, Maria Teresa Santos; ROSSATO, Luciana. Editorial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.5, n.10, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul / Anos 90 / 2012

O Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul, que integra o presente número da Revista Anos 90, confirma o crescimento e a excelência das pesquisas que, sobre essa temática, vêm sendo realizadas nos países do Cone Sul. Nesse sentido, o avanço da produção historiográfica é inegável. Tal fato decorre, por um lado, de uma certa mirada simultânea na valorização da História Recente regional; por outro, pelo contexto de mudanças políticas na região, fato que não é alheio à revalorização do passado imediato. Nesse sentido, há, no presente, o interesse social pelo resgate da experiência histórica de uma geração que viveu singularmente aquele período autoritário, bem como uma agenda de demandas sobre questões inconclusas (abertura de arquivos repressivos; papel da justiça; reparações; formação de comissões da verdade etc.). Tais demandas redimensionam as contribuições que os historiadores e profissionais de outras áreas geram a partir das suas pesquisas e dos seus trabalhos de divulgação, permitindo, ainda, a socialização de um conhecimento que possibilita à sociedade maior aproximação a um passado ainda pouco conhecido e interditado por controversas políticas de esquecimento.

Deve-se salientar, também, que uma perspectiva de conjunto sobre o Cone Sul – independentemente dos traços singulares que, evidentemente, emolduram as experiências locais e nacionais – possibilita desenvolver uma percepção dos elementos comuns, paralelos, semelhantes e, em diversos casos, conectados. O atual panorama político dos países da região tem estimulado o debate sobre leis de anistia, acessibilidade dos arquivos repressivos, comissões de verdade e justiça de transição, papel das testemunhas, herança das experiências traumáticas e formas de reparação, bem como avanços e recuos do Poder Judiciário diante dos crimes do terrorismo de Estado. Portanto, não só a academia tem se mostrado receptiva a esta dinâmica efervescente em relação à história recente, como outros protagonistas têm incidido no debate, caso de partidos políticos, associações de direitos humanos, mídia, forças armadas etc., gerando um vigoroso processo de interação que é retroalimentado pela simultaneidade de iniciativas tão diversas, mas que coincidem em um redimensionamento e valorização do passado recente.

O conjunto de quatorze artigos e uma resenha que compõem o Dossiê (resultado de exigente processo seletivo que envolveu mais de trinta e cinco artigos recebidos) reflete as problemáticas anteriormente citadas, incluindo aspectos vinculados aos antecedentes e às transições posteriores, enfatizando diversos subtemas correlatos: fontes e arquivos; fundamentação doutrinária; conexão repressiva; discussões teóricas; papel da memória; efeitos traumáticos etc.

O Dossiê inicia com a apresentação de um consistente artigo do professor Bruno Groppo, pesquisador do Centre d’Histoire Sociale du XXe Siècle (Université de Paris I). Intititulado Reflexões sobre os conceitos de responsabilidade e culpa na obra de Karl Jaspers e sobre sua aplicabilidade à ditadura de 1976-1983 na Argentina, o texto analisa a tentativa do filósofo alemão de propor, em 1946, portanto, no contexto do julgamento e da divulgação massiva dos crimes cometidos pelo nazismo, uma avaliação à sociedade alemã, sobre a sua atitude, participação ou omissão diante daquela experiência. A análise de Groppo resgata a proposição de Jaspers, de estabelecer um debate centrado nos conceitos de responsabilidade e culpa. Ignorada no seu tempo, a problemática ética levantada pelo filósofo alemão, entretanto, acabou sendo recolocada pelos filhos da geração do silêncio. Diante dos significativos efeitos que, finalmente, produziram tais ideias de Jaspers, Groppo utiliza esse antecedente para aferir se contribui para dar maior inteligibilidade ao tenso embate entre esquecimento e memória existente na história argentina relacionado à ditadura de 1976-1983.

O artigo La dictadura del Proceso de reorganización nacional y la represión al movimiento obrero, de autoria do professor da UBA, Pablo Pozzi, centra-se em um dos objetivos mais estratégicos – e ainda pouco conhecido – da ditadura de segurança nacional argentina, a repressão contra o movimento operário, condição fundamental para seu disciplinamento e para a reprodução do capital. Com o objetivo de abrir a economia e torná-la competitiva, procurou-se acabar com o ativismo sindical. A infiltração, a delação e a colaboração orgânica entre setores empresariais e forças repressivas foram fundamentais para atingir aqueles objetivos. Pozzi expõe os mecanismos de enquadramento específicos implementados pela ditadura, caso dos sequestros e desaparecimentos ocorridos em empresas como a Ford e a Mercedes Benz, entre outras. A partir da explicitação da análise da documentação produzida pela Dirección de Investigaciones Políticas de la Policía de la Provincia de Buenos Aires, o autor destaca, ainda, a utilização de leis que permitiram garantir algum grau de legitimidade, bem como a imposição de uma reestruturação sindical que permitiu cooptar quadros dirigentes, tirando autonomia e capacidade reivindicativa ao movimento e isolando, assim, os setores mais organizados do denominado sindicalismo combativo.

O Golpe civil-militar de 64: algumas possibilidades sobre seu significado, artigo do cientista político e professor da Universidade Católica de Pelotas, Renato Della Vecchia, apresenta um panorama das condições que geraram a interrupção da democracia brasileira em 1964. Partindo de certas interpretações clássicas sobre o significado histórico do golpe, entre as quais as realizadas por Paul Singer, Maria Victória Benevides, Angelina Cheibub Figueiredo, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, Della Vecchia avalia o desenrolar do processo histórico que configura a queda do Governo Goulart, a partir da premissa do necessário diálogo do político com o econômico, como chave explicativa para compreender as expectativas então existentes em relação ao sentido e significado de tão frágil democracia, e do autoritarismo em gestação.

A atuação parapolicial é o tema desenvolvido por Ana Belén Zapata, da Universidad Nacional del Sur (Bahía Blanca), em Violencia parapolicial en Bahía Blanca, 1974-1976. Delgados límites entre lo institucional y lo ilegal en la lucha contra la “subversión apátrida”. Ancorada nos documentos existentes no Arquivo da Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA), o trabalho analisa aspectos da violência implementada por grupos parapoliciais na cidade de Bahía Blanca (provincia de Buenos Aires), entre os anos de 1974 e 1976. Trata-se do período de amadurecimento e fermentação dos fatores que levaram ao golpe de Estado que impôs a ditadura identificada com o Proceso de Reorganización Nacional. Centrado na violência de extrema direita naquela cidade, o artigo indaga a respeito das motivações e caracterização dos crimes promovidos na fase terminal da tensa democracia argentina, o grau de conhecimento e envolvimento da própria DIPBA (órgão estatal) e a forma como os protagonistas do sistema político encararam e interpretaram essas ações ilegais e parapoliciais na denominada “luta antissubversiva” instalada previamente ao próprio golpe de Estado.

O texto de Débora Carina D’Antonio – Los presos políticos del penal de Rawson: un tratamiento para la desubjetivación Argentina (1970- 1980) – foca, de uma perspectiva de gênero, a realidade de um centro de detenção onde foi aplicada uma tecnologia de disciplinamiento, sob o marco de práticas evidentemente ilegais e inconstitucionais. Segundo a autora, no interior da prisão de Rawson, foi imposta uma lógica desmasculinizadora que extrapolou o objetivo explícito da ditadura de quebrar os presos de uma perspectiva ideológica e política. O artigo, ao introduzir o tema da violência sexual, perfila-se como instrumento de resgate de traumas ainda pouco explicitados que confirmam a existência de faces repressivas ainda pouco conhecidas dentro do inesgotável universo constitutivo do terrorismo de Estado. Mesmo assim, onde a atuação da justiça é perceptível, coletivos de vítimas que sofreram essa violência vêm ocupando espaço público e colocando o problema como temática necessária de pesquisa ou experiência de vida que exige reparações e responsabilizações. É da natureza dessa dimensão tão complexa, portanto, que trata a reflexão de D’Antonio.

A professora Paula Vera Canelo, pesquisadora do Conicet e da Universidad Nacional de San Martín, questiona no seu artigo Los desarrollistas de la ‘dictadura liberal’. La experiencia del Ministerio de Planeamiento durante el Proceso de Reorganización Nacional en la Argentina, a caracterização da ditadura argentina (1976-1983), certa compreensão generalizada que associa a ditadura argentina (1976-1983) como sendo homogeneamente liberal. Após historiziçar a experiência de planejamento no país e apontar uma linha de continuidade desde o governo Frondizi até o golpe do Proceso de Reorganización Nacional, Canelo, discordando daquele senso comum, avalia a pugna interna entre o entorno do Ministro de Economia, Martínez de Hoz (aperturista, privatista e desindustrializador), e um conjunto civil-militar que, através do Ministério do Planejamento e desempenhando funções no complexo militar industrial e em empresas estatais, defendia o planejamento e a intervenção estatal na economia, a partir de uma interpretação da Doutrina de Segurança Nacional, que justificava uma “industrialização defensiva” e que se estabelece no interior do aprofundamento da relação do binômio “desenvolvimento-modernização”. O artigo estuda a origem e formação doutrinária desse grupo, sua inserção no projeto ditatorial, o embate com correntes opostas e seu declive final.

Alejandro Paredes, pesquisador do Conicet e da Universidad Nacional de Cuyo (Mendoza) centra seu artigo, La organización de los refugiados políticos chilenos en Mendoza y la huelga de hambre de Julio de 1976, na conexão repressiva regional chileno-argentina, destacando o caso dos refugiados políticos chilenos, em Mendoza (Argentina), entre 1976 e 1983. Após o golpe no Chile, milhares de perseguidos políticos chilenos e de outras nacionalidades fugiram do Chile, da Unidade Popular, atravessando a duras penas a cordilheira dos Andes, a procura de “terra amiga”. A implantação da ditadura na Argentina, em 1976, aprofundaria o clima de hostilidade contra esses exilados, inclusive dentro do marco da Operação Condor. A partir do dimensionamento de uma greve de fome promovida em 1976, Paredes resgata uma história de resistência e solidariedade, em condições extremadas. A mesma teve como protagonistas diretos, além de milhares de refugiados chilenos, a organização cristã Comitê Ecumênico de Ação Social (CEAS), amparada e financiada pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela ACNUR.

Jorge Fernández, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e pesquisador das relações repressivas argentino-brasileiras no contexto das ditaduras de segurança nacional, no texto O Brasil e a Contra-ofensiva Montonera, 1978-1980, perscruta a forma como a Operação Retorno, conhecida como Contraofensiva Montonera, permitiu a coordenação de esforços entre as ditaduras do Brasil e da Argentina tentando impedir que o território do primeiro fosse utilizado como caminho ou plataforma para a passagem dos militantes que, após avaliação feita pela sua direção no exílio, haviam recebido ordens de retomar a luta armada no seu país. A pesquisa de Fernández, assentada em documentos repressivos, mapeia rotas e locais de passagem dos quadros montoneros. Da mesma forma, identifica a informação que circulava entre as forças de segurança de ambas ditaduras e avalia o grau de infiltração que sofria a organização armada. Finalmente, contribui no problemático resgate dos acontecimentos que produziram o desaparecimento de cidadãos argentinos no Brasil, bem como os coloca dentro da perspectiva da coordenação regional da Operação Condor.

Também relacionado com o tema da conexão repressiva regional, o artigo da doutoranda Melisa Slatman, denominado Actividades extraterritoriales represivas de la Armada Argentina durante la última dictadura de Seguridad Nacional (1976-1981), realça o protagonismo da Marinha argentina. A partir de um conjunto de apreciações refl exivas sobre a essência da já citada Operação Condor, o texto defende a necessidade de aprofundar o debate sobre a mesma, a efeitos de aprimorar sua conceituação. Dessa forma, marca distância, de uma perspectiva problematizadora à luz de pesquisas empíricas mais recentes, dos primeiros trabalhos de investigação e sua ênfase em uma certa linearidade de atuação dos protagonistas envolvidos. Tomando como objeto de estudo as atividades repressivas extraterritoriais da Marinha durante a última ditadura de segurança nacional na Argentina, Slatman investiga a inserção das mesmas no marco institucional do Estado Terrorista. A seguir, analisa a constituição e autonomização, na estrutura orgânica da Marinha, do Grupo de Tareas 3.3, responsável pela administração de um dos maiores centros clandestinos de detenção do país: a Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). Finalmente, o estudo analisa a evolução das atividades repressivas extraterritoriais desse Grupo de Tareas, dentro do marco multifacêtico da coordenação regional existente.

No artigo A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus, a doutora pela Universidade de São Paulo, Janaína Almeida Teles, oferece um panorama reflexivo sobre a interdição do passado recente, estabelecendo uma narrativa sobre a formação da memória social a partir destes momentos “fundacionais”, que diluíram e esvaziaram os limites de transição pactuada que marca o cenário pós-ditadura no Brasil. Partindo da constatação de que a transição brasileira para a democracia ocorreu sem rupturas evidentes, o que tem possibilitado a persistência de legado ditatorial, até hoje, a autora considera que a reconstituição factual e a avaliação crítica acerca do período autoritário têm sido permeadas por zonas de silêncio e interdições. Para tanto, escolhe como objeto de análise eventos que, segundo ela, são fundamentais na formação da memória sobre a repressão da ditadura brasileira: a publicação do projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus. Em relação ao primeiro, além de resgatar a história da sua produção do seu contexto, realiza-se, a partir dele, a avaliação do seu impacto no conjunto da sociedade e a comparação com o Nunca Mais argentino – bem como com o impacto que este gerou no seu país. Quanto à Vala de Perus, o texto é muito rico quanto à análise das dificuldades, dos entraves e das limitações colocadas pelo poder público. Merece registro, ainda, além de outras fontes pertinentes, o rico conjunto de entrevistas com protagonistas diretamente envolvidos nos eventos citados.

Priscila Brandão, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, e Isabel Leite, doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro, resgatam no artigo Nunca foram heróis! A disputa pela imposição de significados em torno do emprego da violência na ditadura brasileira, por meio de uma leitura do Projeto ORVIL, o processo de criação, execução e divulgação desse controvertido documento. O texto lembra que algumas das afirmações ali contidas têm sido constantemente replicadas no site TERNUMA, com cuja lógica narrativa mantém sintonia. O projeto, esboçado desde o final da ditadura, pretendia contrapor-se à narrativa de uma história recente da ditadura produzida pela esquerda sobrevivente acerca da tortura – principalmente a partir da Anistia – e divulgada através de entrevistas, bibliografia memorialística e, sobretudo, do relatório Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. As perguntas das autoras miram na percepção que de se tinha um determinado grupo de militares, marcadamente ultraconservadores e perfilados no centro do processo do golpe de Estado, na implementação dos mecanismos repressivos e nas estratégias utilizadas para contar e rememorar esse passado.

Em Do luto à luta: um estudo sobre a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, o cientista político, Carlos Gallo, analisa a luta da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP), cuja atuação no tempo tem mantido coerência na defesa e exigência dos seguintes eixos reivindicativos: a responsabilização do Estado pelos crimes praticados contra os direitos humanos; a apuração das circunstâncias das mortes e desaparecimentos; a responsabilização dos culpados; e o resgate dos fatos e a preservação da memória relacionada aos mesmos. Incansável, a Comissão tem sido referência no esforço pelo combate ao esquecimento induzido e à impunidade resultante da ação estatal, bem como da omissão de importantes setores da sociedade. Como grupo de pressão, a organização, que carrega as bandeiras históricas do Nunca mais e as exigências de “Verdade, Memória e Justiça”, tem ocupado espaço crucial no questionamento das posições do Estado quanto à abertura dos arquivos repressivos, à interpretação sobre a Lei da Anistia, à condenação do Brasil na CIDH / OEA e à demora pela nomeação da Comissão da Verdade. Nesse sentido, o artigo de Gallo analisa o surgimento das demandas dos familiares, a sua organização após a ditadura, o conteúdo das demandas, a forma como a questão dos mortos e desaparecidos foi trabalhada ao longo dos anos e, por fim, os limites às demandas dos familiares durante a sua trajetória.

O artigo Te seguiremos buscando… Derecho a la identidad y prácticas judiciales durante el Terrorismo de Estado en Argentina resulta de um trabalho coletivo multidisciplinar que objetiva um dos temas mais candentes, mobilizadores e singulares da experiência argentina de segurança nacional e do terrorismo de Estado: o sequestro de crianças e a apropriação da sua identidade. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no Archivo General de los Tribunales de Córdoba (Argentina), orientada à divulgação, sistematização e análise das adoções tramitadas nos juizados civis e de menores da cidade de Córdoba durante 1975 e 1983. A pesquisa, baseada em fontes judiciais, resgatou a lógica da tramitação dessas adoções, permitindo avaliar a vinculação do poder judiciário com esse crime. Os autores concluem que a falta de exigências legais existentes na época favoreceram tais “adoções” e que o plano sistemático de apropriação ilegal de crianças desenvolvido pela ditadura se apoiou em mecanismos e dispositivos que facilitaram a inscrição de crianças como filhos próprios e que funcionavam como regra no interior dos processos judiciais.

No artigo de Maricel Alejandra López, Moral y don en las reparaciones económicas a las víctimas del terrorismo de estado en Argentina, a autora propõe pensar o tema das reparações a partir da teoria do “don”, elaborada por Marcel Mauss. Tal teoria é vista como instrumento que a autora considera válido para superar um debate tensionado pelos valores, pelas ações e pelos compromissos que as vítimas e os sobreviventes remarcam sempre como algo político e ético. López lembra que a reparação econômica às vítimas da ditadura é uma das políticas estatais que o Estado estabeleceu em relação aos crimes cometidos pela ditadura contra os direitos humanos. Mas na lógica das vítimas, a vida, a morte e os direitos humanos são parte das “coisas que não têm preço”, embora estejam inseridas em um mundo onde o econômico é sempre relevante. Para muitas das vítimas e dos sobreviventes, toda reparação é algo que não pode ser aceito, pois, supostamente, contradiz valores, coerências e ações. Para López, analisar tais reparações à luz da Teoria do “don”, de Marcel Mauss, pode tornar possível a aceitação do fato da reparação. A base do esquema é o tripé “dar, receber, devolver”, em que o “don” é percebido como ato de reconhecimento social, enquanto que o “receber” representa uma carga redimida pelo “devolver”.

Por fim, o Dossiê encerra-se com a resenha sobre a obra de Caroline Silveira Bauer, Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória, resultado da tese de doutorado defendida no PPG-História da UFRGS, em 2011, e vencedora do Prêmio Teses da FLACSO / CLACSO, em 2012.

Diante de tudo o que foi exposto, agradecemos a todos os autores que encaminharam seus artigos para avaliação, bem como aos pareceristas que muito contribuíram para a qualidade deste Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul que ora apresentamos.

Boa leitura.

Enrique Serra Padrós – Professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.


PADRÓS, Enrique Serra. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Estado e Sociedade Civil: Ditaduras na América Latina / Estudos Ibero-Americanos / 2012

O presente Dossiê apresenta uma síntese das reflexões resultantes do diálogo estabelecido entre historiadores do Uruguai, da Argentina e do Brasil, e suas respectivas pesquisas desenvolvidas em torno do tema das Ditaduras latino-americanas e suas interfaces com o Estado e a Sociedade Civil. O diálogo desde então estabelecido entre eles proporcionou várias reflexões, das quais buscou-se uma síntese no conjunto de artigos que formam este Dossiê.

Pretendeu-se apresentar perspectivas diversas sobre alguns regimes ditatoriais que vigoraram na América Latina no século passado. Essa abertura à diversidade de interpretações que marca as pesquisas sobre o tema é percebida não apenas como decorrência da amplitude e heterogeneidade características do campo de investigações, mas sobretudo como um compromisso fundamental com o conhecimento.

O elemento central em todas as variadas análises aqui apresentadas é a abordagem histórica das relações estabelecidas entre Estado e sociedade civil naqueles contextos autoritários. Trata-se de questão chave para compreensões mais profundas dos modos pelos quais aqueles regimes foram estabelecidos, eventualmente transformados e por fim substituídos. As ditaduras passam assim a ser vistas como produtos sociais complexos, moldados por conflitos de interesses individuais e coletivos, disputas por poder, relações de forças dinâmicas, tradições autoritárias mais ou menos arraigadas, dentre outros fatores igualmente importantes.

Tal é o fio condutor a unir os diferentes artigos que compõem o dossiê ora apresentado. Nos textos, toma-se como objeto de análise determinados aspectos dos regimes ditatoriais instaurados no Uruguai, na Argentina e no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Um balanço das mais recentes análises da historiografia uruguaia sobre o regime autoritário que vigorou naquele país entre 1973 e 1985 é apresentado por Jaime Gabriel Yaffé Espósito (Universidad de la República, Uruguai). Também abordando o caso uruguaio, Enrique Serra Padrós (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Ananda Simões Fernandes (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul) debruçam-se sobre o tema do governo Bordaberry, avaliando o papel de setores militares em relação ao golpe de 1973. Miguel Ángel Taroncher (Universidad Nacional de Mar Del Plata, Argentina) examina a questão da opinião pública no contexto do golpe de 1966, na Argentina. Uma leitura comparativa das alianças entre civis e militares que resultaram nos golpes de Estado no Brasil e na Argentina é apresentada por Hernán Ramiro Ramírez (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil). Ainda em relação a Brasil e Argentina, mas privilegiando as relações entre imprensa e ideologia, Helder Volmar Gordim da Silveira (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil) propõe algumas reflexões sobre o modo como o diário argentino Clarín noticiou a crise política que envolveu o golpe de 1964 no Brasil. Tratando da mesma conjuntura, Jaime Valim Mansan (Ddo do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil) apresenta uma análise da atuação da Comissão Especial de Investigação Sumária instalada em maio de 1964, com objetivos repressivos, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Helder Gordim Silveira – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Miguel Ángel Taroncher – Universidad Nacional del Mar Del Plata

Organizadores


SILVEIRA, Helder Gordim; TARONCHER, Miguel Ángel. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 38, n. 1, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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