Feminismos e literaturas | Literatura, História e Memória | 2021

Fragmented Feminisms Imagem Sem autoria identificada FEminismos
Fragmented Feminisms | Imagem: Sem autoria identificada

Quando elaboramos a chamada deste dossiê para a Revista de Literatura, História e Memória, decidimos propor o tema “Feminismos e literaturas” porque ambas as organizadoras estávamos envolvidas e muito entusiasmadas com nossas atuais pesquisas que se vinculam, de distintas formas, às diferentes vertentes das teorias feministas, aplicadas a distintos objetos de estudo. Ambas vínhamos de pesquisas que se relacionavam com outras áreas, mas há algum tempo vínhamos nos sentindo convocadas a direcionar nossos estudos às teorias feministas por variados motivos, sendo um dos mais potentes a procura por parte de nossos alunos e, especialmente, nossas alunas por estudar questões relacionadas a essa área que parecia ter pouco espaço de discussão nas instituições das quais fazíamos parte.

A resposta que obtivemos à chamada deste dossiê parece indicar que os estudos relacionados aos feminismos – neste caso, aqueles que têm como objeto de estudo textos literários – condiz à busca de nossas alunas e nossos alunos. Isso porque tivemos a grata surpresa de receber sessenta e oito submissões para compor um dossiê de quinze artigos, o que parece indicar que há grande produção sobre o tema e, talvez, pouco espaço para sua divulgação.

Denominamos este dossiê “Feminismos e literaturas”, no plural. Conforme mencionamos na chamada publicada, entendemos literatura não apenas a prosa e a poesia (ficcional ou não ficcional), mas também outras formas literárias diversas, tais como a literatura oral e a música popular. Compreendemos feminismos, também no plural, porque consideramos que estes conformam um movimento social histórico e um campo de conhecimento cuja construção é feita a partir de diferentes perspectivas políticas e epistemológicas – que dão lugar muitas vezes às adjetivações como, por exemplo, feminismo negro, decolonial ou marxista. Uma heterogeneidade e multiplicidade teórico-crítica que não esteve isenta de tensões e disputas no interior do próprio campo feminista, e nos leva hoje a um grande assentamento da necessidade de se pensar o feminismo não apenas a partir de uma categoria “gênero”, que universaliza experiências, mas no cruzamento e sobreposição de gênero com outras categorias, como as de raça, classe e sexualidade, ou ainda com relação aos modernos aparatos coloniais.

Do ponto de vista dos trabalhos reunidos no dossiê, é interessante salientar que, ainda que a seleção tenha sido feita a cegas, são todos de autoria de pesquisadoras. Não é nosso objetivo analisar nesta apresentação a questão da autoria, mas este nos parece um dado significativo, no sentido de que parece ser uma indicação de que as mulheres estejam deixando o lugar histórico de objeto de estudo para ocupar o de investigadoras. Também parece apontar que temas associados às mulheres são de interesse de mulheres. A prevalência da autoria feminina em estudos que mobilizam as teorias feministas também nos parece corroborar com uma impressão que temos ao participar de outros espaços (de ensino, pesquisa ou extensão): a de que o interesse pelos feminismos ainda é um interesse predominantemente feminino nos meios acadêmicos.

Quanto aos objetos e perspectivas de estudo dos trabalhos reunidos neste dossiê temático, gostaríamos de começar pontuando que apesar do conceito plural que se buscou apontar na chamada para as “literaturas” que poderiam ser alvo de estudo nos trabalhos a serem reunidos aqui, os artigos recebidos se debruçam sobre a literatura escrita em diversos meios de publicação. O único trabalho recebido e que entra para o dossiê que foge a esta regra é o artigo Per-manhecer selvagem: Mulher Esqueleto, Ykamiabas e Ginga, que trata sobre a representação de personagens mulheres em histórias de tradição oral, propondo-se a considerar o gênero na arte de contar histórias.

Os catorze demais trabalhos que compõem o dossiê têm como objeto a literatura escrita, inclusive com maior propensão ao gênero romance. Além disso, o estudo da literatura de autoria feminina é absolutamente prevalente, sendo essas tendências extensíveis ao conjunto dos trabalhos recebidos pela chamada. Dos recolhidos para o dossiê, apenas dois trabalhos se voltam a obras elaboradas por autores homens. Um deles, ‘O Cortiço’: representações LGBT e não-heteronormativas, trata sobre o romance de Aluísio Azevedo, já canônico da literatura brasileira, a partir de uma perspectiva de gênero, centrando a análise em determinadas personagens. É de destaque a perspectiva do olhar masculino (male gaze) que o artigo mobiliza para examinar a construção das personagens que focaliza. Também o artigo A resistência da mulher negra em ‘Torto Arado’, de Itamar Vieira Jr. se dedica a uma obra de autoria de um homem, igualmente um romance brasileiro, mas contemporâneo. Neste caso, a autora observa as personagens mulheres do romance sob a perspectiva da condição da mulher negra na sociedade e sobre o papel dela no feminismo.

A literatura brasileira é também outra das tendências do dossiê, estando a maioria dos trabalhos dedicados a obras de autoras brasileiras. Contamos inclusive com um artigo que nos dá um interessante panorama: Feminismos e literatura das mulheres: configurações possíveis e considerações sobre o contexto brasileiro, faz uma análise do que seria literatura feminina, a literatura de mulheres e a literatura feminista, questionando a crítica que se costuma fazer à arte engajada como de menor valor e observando, ainda, como esse tema se relaciona mais especificamente à literatura brasileira.

Além disso, contamos com diversos artigos que estudam obras específicas, valendo-se do diálogo com estudos, teorias e discussões feministas. Metaficção historiográfica e gênero: uma leitura de ‘Carta à rainha louca’, de Maria Valéria Rezende relaciona a discussão sobre a metaficção historiográfica com a perspectiva feminista ao examinar uma visão feminina do Brasil do século XVIII através da protagonista-escritora do romance estudado. Já em Figurações da violência em ‘A Confissão de leontina’, de Lygia Fagundes Telles o tema da prostituição é focalizado numa discussão sobre a representação literária da condição da mulher pobre na sociedade patriarcal. Voltado, por sua vez, à questão da violência simbólica em dois romances contemporâneos, o artigo As camadas de invisibilidade feminina nos romances ‘A noite das mulheres cantoras’ e ‘A vida invisível de Eurídice Gusmão’ apresenta uma comparação da representação da invisibilidade feminina na obra da autora brasileira, Martha Batalha, e na da autora portuguesa, Lídia Jorge. Destaca-se neste trabalho a análise desenvolvida em dois eixos, um primeiro centrado na representação de mulheres brancas de classe média e um segundo, que se volta a como (não) estão representadas as mulheres negras da classe trabalhadora nessas narrativas.

A condição e a perspectiva da mulher negra na sociedade perpassa realmente o dossiê, sendo para nós um aspecto de grande destaque o fato de que cinco dos quinze artigos estão dedicados ao estudo e à discussão da obra de autoras negras.

Em Subjetivação e re(construção) de identidade da mulher afro-americana em ‘Eu sei por que o pássaro canta na gaiola’, de Maya Angelou: do silenciamento à escrevivência estuda-se o romance autobiográfico de Maya Angelou, autora norte-americana, analisando trechos da obra em um diálogo com teorias do Feminismo Negro, dos Estudos Culturais, da Diápora Negra e da História dos Estados Unidos.

Já em As mulheres dos becos: a representação feminina em ‘Becos da Memória’, de Conceição Evaristo é a representação das personagens femininas no romance de Evaristo que se analisa, com foco na desconstrução que essa representação realiza dos estereótipos historicamente propagados na literatura com relação à mulher negra e especialmente à mulata. Corroborando a importância que Conceição Evaristo possui no atual cenário literário brasileiro, o dossiê conta também com o trabalho A obra de Conceição Evaristo e o feminismo descolonial, em que a autora, explicitando a sua perspectiva enquanto mulher educadora negra, igualmente irá se voltar ao tema do silenciamento, apagamento, objetificação e estereotipação das mulheres negras na Literatura Brasileira, partindo neste caso de um diálogo entre os ensaios e a produção literária de Conceição Evaristo e a perspectiva de María Lugones quanto à construção de um feminismo descolonial.

E é ainda enquanto pensadora que Evaristo se mostra importante no trabalho Audre Lorde: contribuições para uma epistemologia da crítica feminista à literatura lésbica negra que busca no diálogo entre o pensamento de Audre Lorde, autora norte-americana, e o de outras autoras discutir a contribuição da literatura lésbica para a construção de uma epistemologia da crítica feminista.

Já o artigo Uma leitura das traduções cubana e argentina de ‘Quarto de despejo’ sob a perspectiva da crítica feminista decolonial traz à baila a obra da importantíssima autora brasileira negra, Carolina Maria de Jesus, mas desta vez sob a perspectiva dos estudos da tradução. O trabalho compara as traduções de Quarto de despejo realizadas nos anos de 1960 na Argentina e em Cuba, sob a perspectiva, notadamente, dos Estudos Decoloniais.

A presença dos Estudos Decoloniais é outro aspecto que gostaríamos de destacar quanto aos artigos reunidos neste dossiê. Em especial, mostraram-se compartilhadas entre os trabalhos as reflexões de María Lugones no importante texto “Rumo a um feminismo descolonial”. Além de estar presente em alguns dos que já apresentamos, esta perspectiva marca ainda outros dois artigos do dossiê. Em Eu e a pilha de mulheres mortas: ressignificação de identidades femininas em ‘Mulheres empilhadas’, de Patrícia Melo se dialoga com as teorias de cunho decolonial para discutir, a partir das estratégias narrativas na obra literária de outra autora brasileira, Patrícia Melo, como as categorias “mulher” e “violência” se vinculam a um sistema moderno colonial de gênero. Já em Descolonizando corpos e subjetividades: representações femininas em ‘Amores insólitos de nuestra historia’ (2011), único trabalho reunido no dossiê dedicado a uma autora hispano-americana, a argentina María Rosa Lojo, discute-se, também em diálogo com a perspectiva decolonial, como a representação literária reelabora a história de personagens subalternizadas e silenciadas no discurso histórico hegemônico.

Por fim, o dossiê conta com um trabalho mais diacrônico, Tempos de mulheres: utopias e distopias feministas na literatura e história, que, pensando a relação literatura, história do feminismo e teoria da história, se dedica a obras de Emília de Freitas, Charlotte Perkins Gilman, Margaret Atwood e Octavia Butler, buscando observar como a distopia e a utopia são desenvolvidas por essas escritoras, advindas de diferentes épocas e países.

Acreditamos, então, que este dossiê pôde tanto reunir uma heterogeneidade de perspectivas sob as quais se vem trabalhando a relação entre literaturas e feminismos, como jogar luz sobre certas tendências às quais essa relação vem dando lugar atualmente nos estudos literários no Brasil. Esperamos que a realização de um dossiê temático com esta perspectiva seja motivo para a proliferação da realização e circulação de trabalhos como os que foram reunidos aqui, de forma a comprovar que os estudos acadêmicos não estão alienados das preeminentes necessidades sociais, como o é a discussão sobre gênero, raça e sexualidade na atualidade.


Organizadores

Andreia dos Santos Menezes – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Larissa Fostinone Locoselli – Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).


Referências desta apresentação

MENEZES, Andreia dos Santos; LOCOSELLI, Larissa Fostinone. Apresentação. Literatura, História e Memória. Cascavel, v. 17, n. 30, p.04-08, 2021. Acessar publicação original [DR]

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