Relações de gênero: temas, problemas e perspectivas/Canoa do Tempo/2022

O dossiê que ora apresentamos pretende fornecer um panorama dos estudos de gênero, seus principais temas, problemas e perspectivas por meio de entrevistas realizadas com as historiadoras Joana Maria Pedro (UFSC) e Solange Rocha (UFPB) e de pesquisas realizadas sobre diferentes espaços e temporalidades. Assim, as trajetórias profissionais das duas historiadoras entrevistadas, bem como os artigos elencados, nos informam sobre o surgimento e desenvolvimento deste campo específico de conhecimento – articulado às intersecções de classe, raça∕etnia, geração, sexualidade, entre outras variáveis sociais4 – para além de revelar os debates historiográficos travados em seu interior desde os anos de 1980∕1990.

Conforme mostra a entrevista realizada com Joana Maria Pedro, a teoria queer ganhou espaço acadêmico no século XXI, questionando a categoria gênero e até mesmo a ideia de binaridade que muitas vezes era reforçada. Neste sentido, a historiadora destaca a emergência do transfeminismo e das discussões sobre as “mulheridades”, refratárias à obrigatoriedade de mutilação do corpo para que pessoas se identifiquem como mulheres, questão posta também por homens trans. Ela ainda ressalta o crescimento de pesquisas sobre gênero nos países do Cone Sul, sobretudo naqueles impactados por ditaduras militares. Salienta, igualmente, os diálogos e as discussões entre a categoria de gênero e a perspectiva decolonial, extremamente profícuos para os países do Sul Global ao se oporem ao feminismo do Norte Global, colonial. Outros temas contemporâneos também são ressaltados por ela, tais como o feminismo e o antifeminismo que crescem, sobretudo, nas redes sociais.

Solange Rocha chama a atenção para os importantes diálogos entre os campos da História Social e da História Cultural, responsáveis por trazerem à tona sujeitos sociais subalternizados. Em se tratando das mulheres negras, ela aponta para a diversidade de temáticas sobre as suas vidas no período oitocentista do Brasil. Para além de temas clássicos, como trabalho, violência, religiosidades e resistências, a historiadora menciona o “olhar microscópio” sobre as mulheres negras que busca estudar outros assuntos: vestimentas, maternidade e/ou maternância, doenças, sexualidades, representações imagéticas. No entanto, Solange Rocha adverte para a necessidade de se avançar mais nas pesquisas das relações de gênero, principalmente, no período colonial da história do Brasil, mostrando experiências históricas silenciadas e subversões possíveis de mulheres negras escravizadas que possam ampliar a epistemologia feminista negra. A historiadora ainda ressalta a importância de uma produção acadêmica compromissada com a práxis, ou seja, com as lutas antirracistas, de gênero e de classe.

Acerca dos artigos apresentados, o historiador Julio Claudio da Silva, em “Interseccionalidade e luta por direitos nas trajetórias das atrizes negras, Ruth de Souza, Léa Garcia e Zezé Motta, (1940-1960)”, problematiza os protagonismos e as possibilidades de inserção dessas mulheres, de diferentes gerações, no campo das artes cênicas, acentuadamente marcado por discriminações raciais, de gênero e de classe no Pós-Abolição.

O artigo “Soraia André: a luta dentro e fora dos tatames para a (re)construção de si” aponta como os usos da metodologia da História Oral, resultam em textos acadêmicos, marcados pela escuta sensível e atenta sobre a trajetória no Tempo Presente. Orientada pelo manejo conceitual das categorias gênero, raça e classe, Cláudia Maria de Farias, analisa como as camadas de desigualdades podem alcançar corpos e vidas femininas, no caso da judoca negra Soraia André. Ao iluminar aspectos de sua trajetória, como constituição e atuação como atleta olímpica, a autora descortina seu protagonismo e afirmação como mulher negra.

“‘Sou pau pra toda obra!’ Vida e trabalho de Maria Souza”, redigido por Naia Maria Dias Guerreiro, ilumina aspectos do universo das comunidades tradicionais amazônicas, especificamente da Região da Valéria, distrito do Município de Parintins, interior do estado do Amazonas. Ancorado na metodologia da História Oral, o texto analisa o universo histórico social vivenciado pela pescadora, agricultora, curandeira, benzedeira, parteira, esposa, mãe e responsável pela festa religiosa, Maria Souza. Não obstante os marcadores das desigualdades de gênero, o artigo aponta para os protagonismos femininos identificáveis nas múltiplas práticas sociais vivenciadas pela personagem icônica do universo das mulheres das águas e das florestas Amazônicas.

Ainda sobre a vivência de mulheres na diversa região amazônica temos o artigo intitulado “Vivências das Mulheres Trabalhadoras nos Seringais (1940-1950)” de Agda Lima Brito. Utilizando da história oral, a autora mergulha no cotidiano das mulheres que trabalhavam nos seringais na década de 30. Um espaço em que as mulheres foram invisibilizadas. Algumas dessas mulheres eram imigrantes do Ceará dentre outras localidades, e outras nasceram nos seringais. A autora mostra como essas mulheres aprenderam a ter uma rotina de trabalho que envolvia os seringais, plantio, caça e pesca para a sobrevivência dentre outros.

Em “A testemunha do outro sexo: relações de gênero no relato de si e na História”, Andréa Bandeira Silva de Farias, analisa as memórias de Nida, militante que resistiu à ditadura militar, na cidade do Recife, nos anos 1960. Mesmo que rompendo com a realidade patriarcal e o anonimato do mundo privado ao longo da vida, podemos entrever como o “ato de se contar” de Nida ainda é marcado pelo protagonismo masculino, segundo mostra a historiadora, revelando as fraturas e “falhas da memória”.

Por fim, no artigo intitulado “Masculinidades populares, virilidade, poder e respeitabilidade no interior da Bahia (Feira de Santana e além, últimas décadas do século XX)” escrito por Alessandro Cerqueira Bastos, neste texto o autor busca refletir sobre as masculinidades sertanejas. Para isso utiliza como amostra alguns homens de grupos de trabalhadores em grande maioria afrodescendentes de Feira de Santana, cidade baiana no período dos anos sessenta. As fontes usadas são principalmente os processos crimes. O autor escolheu alguns conflitos que envolviam personagens emblemáticos do sertão nordestino como o vaqueiro. No decorrer do texto o autor aponta que a violência, a valorização do trabalho são alguns dos elementos dessa masculinidade, que não deve ser pensada de forma homogênea.


Nota

4 CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 10, n. 1, 2002. p. 177.


Organizadores

Júlio Cláudio da Silva – Doutor em História, Professor Adjunto na Universidade do Estado do Amazonas, no Centro de Estudos Superiores de Parintins e Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected]

Cláudia Maria de Farias – Professora do curso de graduação em História da UEA, realizando estágio pós-doutoral no PPGH-UFAM. E-mail: [email protected]

Joceneide Cunha dos Santos – Doutora em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas negras (PPGEAFIN) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER) da Universidade Federal do Sul da Bahia.


Referências desta apresentação

SILVA, Júlio Cláudio da; FARIAS, Cláudia Maria de; SANTOS, Joceneide Cunha dos. Apresentação. Canoa do Tempo. Manaus, v.14, 2022.  Acessar publicação original [DR/JF]

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