A ideia de História na Antiguidade Tardia | Margarida Maria Carvalho, José Glaydson Silva e Maria Aparecida Oliveira Silva

A ideia de historia na Antiguidade tardia Detalhe de capa
A ideia de história na Antiguidade tardia (Detalhe de capa)

Por ser tributária do presente e estar sujeita às características de seu próprio tempo, a História carrega consigo anseios e projetos sociais de futuro (Fontana, 1982). Como destacou Reinhart Koselleck (2006, p.306), as narrativas históricas estão situadas entre os espaços de experiências do passado e o horizonte de expectativas sobre o futuro. A produção histórica da Antiguidade Tardia, de certa forma, torna patente essas proposições, uma vez que resulta do contato entre a antiga tradição clássica com o novo horizonte social, político e religioso aberto pelo cristianismo. Como corolário, pode-se reconhecer, neste período, a coexistência (e eventual amálgama) de perspectivas cristãs e profanas sobre o tempo e a História, bem como as origens e projetos de futuro para os reinos formados sobre o território imperial romano. Oferecer uma leitura abrangente sobre a produção histórica da Antiguidade Tardia, portanto, constitui uma tarefa desafiadora e que não pode prescindir da colaboração de diversos/as estudiosos/as.

Organizado por Margarida Maria de Carvalho, Glaydson José da Silva e Maria Aparecida de Oliveira Silva, o livro A ideia de História na Antiguidade Tardia (2021) congrega dezoito capítulos lavrados por pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior, e oferece uma aproximação atual e qualificada sobre a produção histórica no período tardo-antigo. Oportuna e pioneira, a referida coletânea se une às já conhecidas publicações brasileiras sobre historiografia antiga (BRANDÃO, 2001; JOLY, 2007; RAMALHO, 2013; SILVA & SILVA, 2017; FUNARI & GARRAFONI, 2016, entre outros) de modo a oferecer um volume abrangente e dedicado, em específico, às várias formas de História produzidas na Antiguidade Tardia.

O prefácio (Pedro Paulo Funari, p.09-15) e o prólogo (Julio Cesar Magalhães de Oliveira, p.17-21) contextualizam as peculiaridades históricas e culturais subjacentes ao conceito de Antiguidade Tardia, bem como sua relevância para o mundo contemporâneo, colaborando para que cada capítulo possa ser melhor aproveitado, inclusive por pessoas não especializadas neste período histórico. As obras e autores analisados ao longo do tomo foram arranjados de modo a contemplar narrativas distintas produzidas em diversas localidades do Mediterrâneo Antigo e alhures entre os séculos III e VII da Era Comum.

No primeiro capítulo, Harold Drake (p.23-42) ressalta a originalidade da obra de Eusébio de Cesareia, autor da História Eclesiástica e do mais completo relato que nos chegou sobre a vida de Constantino. A documentação produzida por bispos e os relatos de martírio ajudam a compor uma história da igreja cristã que também se beneficiou dos Cânones Cronológicos, que conciliaram as histórias e cronologias dos antigos impérios àquela de Abraão e dos judeus (p.28-29). Tal empreitada, por sua vez, seria um reflexo sobre como a narrativa histórica antiga, por sua permeabilidade, não estava restrita a um único gênero textual. Ao contrário, como demonstra Érica Cristhyane Morais da Silva no segundo capítulo do livro (p.43-57), dedicado à Autobiografia de Libânio de Antioquia, a História tardo-antiga poderia, sem prejuízo, congregar referenciais biográficos, panegíricos, hagiografias e cronografias (p.46). A biografia antiga também foi o tema do capítulo sexto (p.125-142), de Maria Aparecida de Oliveira Silva, dedicado a Eunápio e suas considerações sobre a ascensão do cristianismo entre os séculos IV e V.

Os pormenores referentes ao surgimento das Histórias Abreviadas são discutidos no capítulo terceiro, de autoria de Moisés Antiqueira (p.59-90). Em meio à avaliação dos chamados bons e maus imperadores, Aurélio Vítor, destaca Antiqueira (p.70-71), repensava o Império Romano sob a dicotomia entre a romanitas e a barbárie alinhada às características de sua época. Os breviários também constituem o tema do capítulo quarto (p.91-108), de Janira Feliciano Pohlmann, dedicado à obra de Eutrópio. Para Pohlmann (p.92), este gênero textual teria como leitor principal o público associado à administração imperial do século IV e poderia ser encomendado por um governante. À maneira de Suetônio, Eutrópio também teria arrolado inúmeros governantes, do período monárquico ao imperial, com destaque para seus supostos vícios e virtudes.

O encontro entre a formação clássica, a paideia, e o cristianismo na obra de Gregório de Nazianzo foi apresentada no quinto capítulo (109-124), de autoria de Margarida Maria de Carvalho, com destaque para a visão providencialista adotada na História produzida pelo nazianzeno. A defesa da romanidade frente ao emergente mundo cristão, por sua vez, é o tema do sétimo capítulo (p.143-160), de Viviana Boch, sobre os escritos de Quinto Aurélio Símaco. Em resposta à obra de Símaco, o proselitismo dos poemas de Prudêncio constitui o tema do oitavo capítulo (p.161-204), de autoria de Ana Teresa Marques Gonçalves. Analisada por Bruna Campos Gonçalves no décimo capítulo (p.231-247), a obra de Vegécio, voltada sobretudo a assuntos militares, atesta a concomitância da lealdade dos soldados ao Imperador Romano e à divindade cristã. A proposta de Justiniano de congregar a empreitada imperial romana ao cristianismo, almejando à construção de um Imperium Romanum Christianum, se reflete nos escritos de Procópio de Cesareia, um dos mais importantes historiadores da Antiguidade Tardia (CAMERON, 2005, p.IX): sua contribuição histórica é avaliada por Kelly Mamedes e Marcus Cruz, no décimo quinto capítulo do livro (p.373- 403). Cada qual à sua maneira, tais estudos demonstram as contradições, convergências e convivências entre a consolidação da cristandade no Império Romano frente à antiga tradição clássica e suas cosmologias.

As propostas providencialistas e eclesiásticas da historiografia tardoantiga, representadas pelas obras de Jerônimo de Estridão, Sócrates de Constantinopla e Sozomeno, são examinadas de maneira pormenorizada nos capítulos nono (Gómez Azo, p.204-229), décimo-primeiro (Figueiredo, p.249- 270) e décimo-segundo (Ventura da Silva, p.271-287). Como bem destacou Gilvan Ventura da Silva: embora a história eclesiástica seja uma criação cristã (p.275), a obra de Sozomeno não representaria apenas uma apologia à cristandade, mas também uma aproximação em relação às contendas políticas e religiosas de sua própria época (p.281). Congregando narrativas diversas (memórias biográficas, hagiográficas e dizeres populares), os escritos monásticos de Paládio constituem o tema do décimo terceiro capítulo (p.289-309), assinado por Sílvia Siqueira.

O providencialismo de Gregório de Tours, outrora considerado pai da História da França, bem como a fortuna posterior de sua obra, com ênfase nos usos políticos e identitários de seus escritos, são contextualizados por Glaydson José da Silva e Alberto Dantas, autores do décimo quarto capítulo (p.311-350) da coletânea. Marcada pela confluência entre História e poesia, os complexos escritos de Agatias de Mirina (Século VI da Era Comum) são avaliados por Lyvia Vasconcelos Baptista, no décimo sexto capítulo da publicação (p.351-372). Para a estudiosa, ademais, o século VII teria se caracterizado, também, pelo paulatino enfraquecimento das narrativas classicistas, que voltariam apenas entre os séculos VIII e IX da Era Comum (p.357). Os capítulos de Renan Frighetto (p.405-422) e Dominique Santos (p.423-438), de modo respectivo, encerram o tomo com estudos dedicados às narrativas de Isidoro de Sevilha (e sua História influenciada pela Providência Divina) e à obra do irlandês Muirchú Moccu Machteni, com ênfase em seus escritos sobre a Vita Sancti Patricii.

Em linhas gerais, pode-se reconhecer que o livro apresenta a Antiguidade Tardia como um período cuja efervescente produção historiográfica ora reconfigurou antigos modelos narrativos transmitidos pela tradição clássica, ora recorreu a narrativas inovadoras para se referir ao passado. A obra em questão, no entanto, mostra-se valiosa não somente dentro do próprio campo de estudos sobre História e historiografia da Antiguidade Tardia, mas também no atual contexto mundial, em que embates entre grupos divergentes tornam-se frequentes e integram o cotidiano de milhares de indivíduos mundo afora. Como aponta Pedro Paulo Funari no prefácio da obra, a relevância de A ideia de História na Antiguidade Tardia encontra-se, também, na plausível possibilidade de suas reflexões e teorias sobre o passado contribuírem para uma transformação positiva do presente e do futuro, sobretudo no que se refere à convivência pacífica com o diferente.

Referências

BRANDÃO, Jacyntho Lins. A História de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

CAMERON, Averil. Procopius and the Sixth Century. London: Routledge, 2005

FONTANA, Josep. Historia. Análisis del pasado y proyecto social. Barcelona: Crítica, 1982.

FUNARI, Pedro Paulo Abreu; GARRAFFONI, Renata Senna. Historiografia. Salúsio, Tito Lívio e Tácito. Coleção Bibliotheca Latina. Campinas: Editora da Unicamp, 2016.

JOLY, Fábio Duarte (Organizador). História e retórica. Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Editora Alameda, 2007.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora Contraponto (PUC Rio), 2006.

RAMALHO, Jefferson. Eusébio e Constantino. O início de uma igreja imperialista. São Paulo: Editora Fonte, 2013.

SILVA, Glaydson José; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira (Organizadores). A ideia de História na Antiguidade Clássica. São Paulo: Editora Alameda, 2017.


Resenhista

Giovanna Mauro – Graduação em História – Unicamp. Università di Padova. E-mail: [email protected]

Filipe N. Silva – Professor Colaborador, IFCH/Unicamp. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CARVALHO, Margarida Maria; SILVA, Glaydson José; SILVA, Maria Aparecida Oliveira (Orgs.). A ideia de História na Antiguidade Tardia. Curitiba: Editora CRV, 2021. Resenha de: MAURO, Giovanna; SILVA, Filipe N. Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da Antiguidade. Campinas, n. 37/38, p.113-118, 2021/2022. Acessar publicação original [DR]

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