Os Kaingang e a colonização Alemã e Italiana no Rio Grande do Sul (Séculos XIX e XX) | Soraia Sales Dornelles

Soraia Sales Dornelles Imagem Universidade FEEVALE
Soraia Sales Dornelles | Imagem: Universidade FEEVALE

O livro é uma adaptação da dissertação de mestrado defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul por Soraia Salles Dornelles (2021). Passados dez anos, esse texto permanece relevante, enquanto continua no senso comum a ideia de que as regiões colonizadas por italianos e alemães durante o século XIX e XX eram “terras vazias” de populações, de sentidos e de histórias. O que Dornelles (2021) traz na sua pesquisa ajuda a complexificar as relações entre aqueles sujeitos que vinham buscando melhores condições em um novo continente e os que lutavam para sobreviver no território de seus antepassados. A autora busca compreender a participação e a agência dos povos originários dentro dos processos históricos que formaram o estado-nação, incluindo a complexa dinâmica interna das sociedades indígenas e como ajudaram a definir os rumos dos acontecimentos que fizeram parte.

No prefácio do livro, o orientador da dissertação e professor da UFRGS, Eduardo Neumann, afirma que “[…] a especialização das pesquisas é o que opera na definição do neologismo acadêmico que é a História Indígena” (DORNELLES, 2021, p. 15, grifo do autor). Ou seja, o processo de formação de pesquisadores que aprofundam as problemáticas dos povos indígenas vai constituindo um campo próprio, que vem crescendo desde a última década do século passado. Em tese, apresentada na Unicamp em 2017, Dornelles (2021) foi orientada parcialmente pelo professor John Monteiro, um dos expoentes da Nova História Indígena, construindo relações com a antropologia e estabelecendo aportes para entender as dinâmicas internas e externas dos grupos indígenas envolvidos nos processos históricos. Leia Mais

A ideia de História na Antiguidade Tardia | Margarida Maria Carvalho, José Glaydson Silva e Maria Aparecida Oliveira Silva

A ideia de historia na Antiguidade tardia Detalhe de capa
A ideia de história na Antiguidade tardia (Detalhe de capa)

Por ser tributária do presente e estar sujeita às características de seu próprio tempo, a História carrega consigo anseios e projetos sociais de futuro (Fontana, 1982). Como destacou Reinhart Koselleck (2006, p.306), as narrativas históricas estão situadas entre os espaços de experiências do passado e o horizonte de expectativas sobre o futuro. A produção histórica da Antiguidade Tardia, de certa forma, torna patente essas proposições, uma vez que resulta do contato entre a antiga tradição clássica com o novo horizonte social, político e religioso aberto pelo cristianismo. Como corolário, pode-se reconhecer, neste período, a coexistência (e eventual amálgama) de perspectivas cristãs e profanas sobre o tempo e a História, bem como as origens e projetos de futuro para os reinos formados sobre o território imperial romano. Oferecer uma leitura abrangente sobre a produção histórica da Antiguidade Tardia, portanto, constitui uma tarefa desafiadora e que não pode prescindir da colaboração de diversos/as estudiosos/as.

Organizado por Margarida Maria de Carvalho, Glaydson José da Silva e Maria Aparecida de Oliveira Silva, o livro A ideia de História na Antiguidade Tardia (2021) congrega dezoito capítulos lavrados por pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior, e oferece uma aproximação atual e qualificada sobre a produção histórica no período tardo-antigo. Oportuna e pioneira, a referida coletânea se une às já conhecidas publicações brasileiras sobre historiografia antiga (BRANDÃO, 2001; JOLY, 2007; RAMALHO, 2013; SILVA & SILVA, 2017; FUNARI & GARRAFONI, 2016, entre outros) de modo a oferecer um volume abrangente e dedicado, em específico, às várias formas de História produzidas na Antiguidade Tardia. Leia Mais

Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo | Patrícia Rodrigues da Silva

Entre vozes femininas
Entre vozes femininas | Detalhe de capa

Lançada em 2020, a obra Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo é organizada por Patrícia Rodrigues da Silva e faz parte da Coleção PPGH, que tem como objetivo divulgar pesquisas do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM).

Precedido por outros três títulos também lançados em 2020 pela Editora CRV, este volume 4 é o primeiro a se debruçar especificamente sobre o contexto amazonense, o fazendo, sobretudo, por meio dos relatos e das escritas femininas – dos oito artigos que compõem o livro, seis deles são escritos por mulheres. Leia Mais

Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica | Jairo Carvalho do Nascimento

Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica (2013), publicado pela Editora CRV, é de autoria do Prof. Dr., em História Social, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Jairo Carvalho do Nascimento – o historiador também possui outros livros, como: José Calasans e Canudos: a história reconstruída (2008) [resultado de sua dissertação de Mestrado Acadêmico, defendida no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH), da UFBA, sob orientação da Profª. Drª. Lina Maria Brandão Aras, em 2004] -, sendo fruto, parcial, de sua tese de doutoramento, Erotismo e relações raciais no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica, defendida em 2015, sob orientação do Prof. Dr. Milton Araújo Moura, no PPGH/FFCH/UFBA.

O exercício proposto para esta resenha crítica é questionar qual é a possível tese arquitetada no livro; e, para isso, acredito que o primeiro aspecto a ser avaliado por nós, leitor, é: o que implica, estruturalmente, o termo “relações raciais” não estar presente no título da publicação? Leia Mais

De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toleto (séculos VI-VII) – GREIN (FH)

GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toleto (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019. 292p. Resenha de: PROENÇA, Vinícios da Silva. O início das unções régias no Reino Visigodo de Toledo e a valorização do papel político de Taio de Zaragoza: uma releitura. Faces da História, Assis, v.7, n.2, p.429-434, jul./dez., 2020.

As pesquisas na área de história podem sofrer revisões ao longo do tempo, uma vez que os acontecimentos do presente instigam os historiadores a questionar o passado, permitindo que temas já estudados possam ser reinterpretados. Como ensina o historiador francês Marc Bloch “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa.” (BLOCH, 2002, p. 75). Esse é o caminho que percorreu Everton Grein, quem propôs releitura da tese de Abilio Barbero de Aguilera sobre um antigo problema historiográfico acerca do início das unções régias no Reino Visigodo de Toledo, bem como ressaltou a relevância de Taio de Zaragoza (600-683) no período pós-isidoriano como um importante elemento do florescimento cultural do século VII, algo que, na perspectiva do autor, a historiografia não se preocupou em realçar.

Abilio Barbero de Aguilera em seu livro intitulado La sociedad visigoda y su entorno histórico, dedicou o primeiro capítulo a compreender o pensamento político visigodo e às primeiras unções régias ocorridas no Ocidente europeu, haja vista que os visigodos foram os primeiros a realizá-las. Barbero de Aguilera defendeu a ideia de que a formação de uma teoria política no Reino Visigodo foi obra de Isidoro de Sevilha, tendo sido evidenciada no IV Concílio de Toledo em 633. Nesse sentido, Everton Grein também buscou com sua pesquisa compreender a concepção teórica da realeza cristã, como escolhiam e legitimavam os soberanos no interior dessa sociedade.

Fruto de uma tese de doutorado, o livro foi organizado em quatro capítulos. Munido de epístolas, atas conciliares, documentos jurídicos, dentre outras fontes sobre o tema, Grein demonstrou conhecer bem os manuscritos e a historiografia sobre o período. Vale ressaltar que, além do material tradicional sobre o tema, o pesquisador se valeu de poesias visigóticas, algo inovador na medida em que tais fontes, na perspectiva de Grein (2019, p. 43), foram marginalizadas pelos pesquisadores. Esse conhecimento em relação às fontes fora salientado por Luis A. García Moreno (2019), pesquisador da área, ao escrever o “Prólogo” da obra, no qual teceu elogios a Everton Grein pela finura e inteligência com que concebeu sua pesquisa.

No primeiro capítulo, o autor apontou que o reino dos godos foi construído sobre as antigas estruturas do Império Romano, tendo absorvido muitos aspectos da sua forma de organização, o que Edward Arthur Thompson (2014) constatou em sua obra Los godos en España. Na sequência, iniciou sua narrativa a partir da conversão pessoal de Recaredo ao catolicismo em 587, dando enfoque ao projeto de unificação política e religiosa intentado por Leovigildo. O referido monarca, ao associar seus filhos como consortes regni, teve de lidar com a revolta de seu filho mais velho, Hermenegildo. O pesquisador descreveu, de maneira detalhada, as implicações dessa disputa familiar para a unificação do reino e apontou como os prelados da época descreveram Leovigildo e seu filho rebelde. Ao analisar os escritos visigodos e os exteriores ao reino, observou diferenças na forma de compreender o ocorrido, sendo alguns apoiadores de Hermenegildo enquanto outros ficaram ao lado de Leovigildo.

Notou-se que, pelo menos em Hispania, os clérigos optaram por ficar do lado de Leovigildo que, embora ariano, tinha um projeto de unificação para o povo godo da península. Findadas as disputas, foi a missão de Recaredo concluir o projeto de seu pai, convertendo o reino visigodo em católico através do III Concílio de Toledo, sob a presidência de Leandro de Sevilha. Tal bispo foi descrito pelo autor como figura central na consolidação dos visigodos como herdeiros do Império Romano, tendo no III Concílio de Toledo adotado insígnias correspondentes ao período imperial, dando a conotação de que Recaredo seria o continuador de tal herança. Além disso A ideia de realeza entre os godos ganhou, portanto, a partir do III Concílio de Toledo, contornos mais nítidos daqueles que até então se apresentavam. O papel desempenhado pelo bispo Leandro de Sevilha foi determinante no processo de edificação do conceito de realeza cristã entre os godos. (GREIN, 2019, p. 81).

Everton Grein concluiu que o prelado foi o articulador da conversão dos visigodos ao catolicismo e o promotor da cristandade em Hispania. Dessa maneira, o pesquisador procurou ressaltar a relevância de Leandro de Sevilha para esse contexto, pois em alguns estudos o papel do prelado fica eclipsado por seu irmão mais novo, Isidoro. Contudo, é necessário destacar a ideia de unificação entre os godos é problemática, uma vez que esses grupos não podiam ser considerados homogêneos dado os múltiplos interesses das várias facções políticas. A ideia de que Leovigildo teria alcançado uma forma de coesão nos parece mais apropriada. Também se faz necessário destacar que, mesmo após a conversão oficial do reino visigodo ao catolicismo em 589, as práticas ditas pagãs permaneceram vivas na sociedade visigótica, não sendo apenas meros resquícios, mas parte da religiosidade popular, algo que Grein pouco explorou em sua pesquisa.

Ao final do primeiro capítulo, o autor destacou o papel de Isidoro de Sevilha e suas contribuições para a formação de uma teoria política no reino visigodo, apontando que anteriormente ao IV Concílio, o prelado já teria esboçado suas concepções através de suas Sentenças e Etimologias. Everton Grein concluiu que  De fato, a partir de inferência do pensamento de Isidoro de Sevilha – com a sacralização da instituição monárquica – verifica-se na Hispania visigoda uma espécie de necessidade de ajustamento entre Igreja e Estado, cuja expressão que melhor definiria tal necessidade seria a elaboração de uma teoria política que tomava como princípio o aspecto religioso, portanto, o caráter sagrado do poder. (GREIN, 2019, p. 97).

Já no segundo capítulo, o autor teve por objetivo versar sobre a consolidação do reino visigodo católico, bem como apresentou a praxiologia política aplicada ao século VII. Tomada de empréstimo da filosofia e sociologia, tal área de estudo visa compreender “as ações humanas, suas leis e comportamentos” (GREIN, 2019, p. 99). Dessa maneira, o pesquisador procurou analisar como determinados contextos produzem certos comportamentos. Embora o autor tenha realizado o trabalho utilizando a referida metodologia, já que a mesma centra sua análise nas ações dos indivíduos em determinadas situações, outro aporte metodológico que também poderia ter trazido resultados satisfatórios são os estudos discursivos, os quais poderiam lançar luz sobre o contexto em que tais narrativas foram produzidas, assim como sua efetividade ou não ao longo do tempo.

No tocante à consolidação da Monarquia católica, Grein destacou que, após o III Concílio de Toledo, Igreja e Estado precisaram se ajustar uma à outra, considerando-se que ambas eram as duas principais instituições de poder. Isidoro de Sevilha teve papel central nessa aproximação entre as instituições, pois contribuiu para o desenvolvimento do caráter sagrado da Monarquia. O pesquisador também salientou a importância de Bráulio de Zaragoza (590-651) no contexto analisado, por ter sido sucessor de Isidoro e ter vivido nesse período conturbado da primeira metade do século VII. Bráulio esteve presente no IV, V e VI concílios de Toledo, sendo considerado conselheiro dos monarcas Chintila, Chindasvinto e Recesvinto. Dessa maneira, o prelado esteve presente em momentos conturbados da história visigoda, período esse marcado por deposições e legitimações contraditórias.

Mesmo com a sacralização da realeza, na prática, as usurpações continuaram a ocorrer, sendo o IV Concílio de Toledo em 633 um exemplo disso. Suintila teve seu trono tomado por Sisenando em 631 que, com apoio da Igreja e dos francos, usurpou o trono. Tal acontecimento foi sui generis não pelo fato de ser uma usurpação, algo recorrente entre os godos, mas por ter sido legitimada no IV Concílio de Toledo. O referido concílio assemelhou Sisenando ao rei bíblico Davi, colocando-o como ungido do Senhor e tentando proteger o monarca de posteriores deposições. Esse cenário instável para os monarcas foi percebido em governos subsequentes, como o caso de Chintila (636-639) o qual sucedeu Sisenando. Everton Grein apontou que, no V Concílio de Toledo em 636, o então monarca teve por preocupação salvaguardar sua família e procurou legitimar-se enquanto governante. Com esses dados, pode-se perceber, mesmo com a sacralização da figura do monarca, sua segurança nem sempre foi assegurada.

Durante todo o terceiro capítulo, o pesquisador procurou ressaltar a relevância de Taio de Zaragoza, descrevendo sua inserção no cenário visigótico do século VII, bem como sua produção literária. Everton Grein, apontou como se dava a circulação dos manuscritos nessa sociedade, e também versou sobre a viagem de Taio a Roma. Grein salientou que “com efeito, nossas fontes da época, parecem de fato apontar que o fito da viagem de Taio foi a busca das obras de Gregório Magno” (GREIN, 2019, p. 139). O autor informou que as motivações que levaram Taio a ir para Roma possuem outras interpretações. Outro ponto evidenciado por Grein é a quantidade de epístolas produzidas no século VII, bem como suas potencialidades para se compreender tal contexto histórico.

Ao final do capítulo três, o autor analisou a obra Sentenças, escrita por Taio de Zaragoza, bem como a influência que Isidoro de Sevilha, Gregório Magno e Agostinho de Hipona tiveram nas obras do prelado. Grein ainda evidenciou que Taio de Zaragoza não era um simples compilador desses autores, mas alguém com uma leitura muito apurada e uma grande capacidade de síntese. O autor também relatou uma possível mudança na visão sobre o papel do rei e da realeza cristã no período de Taio de Zaragoza. Nesse sentido, o último capítulo teve como objetivo propor uma releitura, utilizando como base o livro V das Sentenças de Taio, sobre o pensamento político visigodo e as primeiras unções régias, tendo sugerido um novo ponto de vista sobre o tema.

No último capítulo, o autor fez uma exposição pormenorizada sobre a tese de Abilio Barbero de Aguilera, apontando como o visigotista construiu sua interpretação. Grein evidenciou a relevância de Isidoro de Sevilha na concepção da realeza visigoda cristã, e resumiu a perspectiva de Barbero de Aguilera sobre a teoria política isidoriana ao escrever que  Compreendida desse modo por Abilio Barbero, a teoria política elaborada por Isidoro de Sevilha apresenta pelo menos três pontos essenciais a considerar; a) para Barbero, a doutrina política isidoriana deriva ante do aspecto teórico do que prático; b) ainda que as condições em que se produziu a teoria isidoriana fosse em virtude dos desmandos e dos crimes de Suintila, bem como a usurpação de Sisenando, o ponto fundamental da doutrina era atribuir legitimidade às ações do usurpador face a atmosfera política do reino naquele momento; c) finalmente, através da citada doutrina, Isidoro atribui à Igreja, e unicamente a ela, a auctoritas sobre a condução e a destituição do régio poder. (GREIN, 2019, p. 177).

Nesse sentido, Everton Grein argumentou que a doutrina política isidoriana teria um caráter mais teórico do que prático, tendo ressaltado as condições e as motivações de sua confecção. Outro aspecto salientado por Grein fora o fato de que, a partir do IV Concílio de Toledo, a Igreja passou a ter um papel fundamental como representante da nobreza, tendo sua influência ampliada no referido concílio. Ao final de sua obra, o pesquisador procurou demonstrar que a teoria política visigoda se iniciou no século VI com Leandro de Sevilha, tendo Bráulio e Taio de Zaragoza um papel expressivo nessa formulação ao longo do século VII. Dessa maneira, Everton Grein procurou mostrar que tal empreendimento não fora obra exclusiva de Isidoro de Sevilha.

Em relação às unções régias, diferentemente de Barbero de Aguilera que apontou para seu início no IV Concílio de Toledo em 633, Grein argumentou que tal prática teria se iniciado com Recesvinto em 653. Isso porque, ao analisar o escrito de Juliano de Toledo, Historia Wambae Regis, notou-se que o prelado fez menção ao fato de tal prática seguir um antigo costume godo. Tendemos a discordar de Grein em relação ao início das unções régias no reinado de Recesvinto. Na perspectiva de Barbero de Aguilera (1992, p. 68), é possível que as unções tenham se iniciado na época de Sisenando, haja vista que foi no IV concílio de Toledo onde se teve pela primeira vez a referência de que o rei seria um “ungido do Senhor”. Nas atas conciliares (VIVES, 1963, p. 217), podemos observar a alusão ao Salmos 105:15 onde se alerta a não tocar nos ungidos de Deus, bem como a associação de Sisenando à figura bíblica de Davi. Pode-se verificar que Sisenando adquiriu no referido concílio a aparência de um rei ungido de Deus, possuindo legitimidade para governar assim como o Davi bíblico de outrora. Dessa maneira, baseado na associação feita com a narrativa bíblica pelo concílio, tendemos a acreditar que Sisenando teria sido o primeiro monarca godo que experenciou a unção régia no Reino Visigodo.

A tese não apresentou ineditismo quanto ao tema, pois o início das unções régias no Ocidente goza de ampla bibliografia, mas teve sua inovação na proposta do pesquisador de apontar uma nova leitura sobre o início das unções régias, além do fato de ter ressaltado a relevância política de figuras como Leandro de Sevilha e Taio de Zaragoza, o que pode contribuir para o surgimento de pesquisas voltadas à compreensão do papel que esses prelados desempenharam em seus contextos.

Referências

BARBERO DE AGUILERA, Abilio. El pensamiento político visigodo y las primeras unciones regias en la Europa Medieval. In: BARBERO DE AGUILERA, Abilio. La sociedad visigoda y su entorno histórico. XXI, Siglo vinteuno de España. Madrid: Editores,1992. p. 1-77.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

GARCÍA MORENO, Luis A. Prólogo. In: GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019. p. 17-18.

GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019.

THOMPSON, Edward Arthur. Los godos en España. Madrid: Alianza editorial, 2014.

VIVES, José. (Ed.). Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Ed. Bilingue (Latim-Espanhol). Madrid: CSIC, 1963.

Vinícios da Silva Proença – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis-SP, e Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação da mesma Instituição. E-mail: [email protected].

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Índios cristãos / Almir D. Carvalho Júnior

Há muito que tardava, mas, finalmente, foi publicado, em meados do ano passado, o livro “Índios cristãos: poder, magia e religião na Amazônia colonial”, da autoria do professor Amir Diniz de Carvalho Júnior. De fato, a tese de doutoramento da qual a obra é resultado já havia sido defendida no ano de 2005, na Universidade de Campinas (UNICAMP)1. De certo modo, esta demora surpreende, se levarmos em conta a grande relevância que a pesquisa tem para a Historiografia Indígena e do Indigenismo no Brasil e, de forma mais específica, na Amazônia. Resta a esperar que o formato de livro contribua a tornar o estudo ainda mais conhecido no meio acadêmico!

O autor, professor lotado na Faculdade de História e credenciado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em Manaus, começa a apresentação de seu livro com a observação de que “toda criação é solitária”. Pode-se questionar esta afirmação, visto que Almir Diniz de Carvalho Júnior construiu seu estudo, à toda evidência, enquanto pesquisador bem conectado e inserido em uma rede com outros pesquisadores e pesquisadoras que, como ele, trabalharam e trabalham o protagonismo de indígenas na época colonial. Nesta rede, composta, em grande parte, de historiadores e antropólogos, seu orientador de tese, o já falecido John Manuel Monteiro – à memória do qual o livro é dedicado – ocupa um lugar central, além de Maria Regina Celestino de Almeida, que fez o prefácio, Marta Amoroso, Manuela Carneiro da Cunha, João Pacheco de Oliveira Filho, Ronaldo Vainfas, entre outros e outras. Todos eles e elas são prógonos conhecidos da Nova História Indígena e marcaram, como se percebe ao longo da leitura, as reflexões de Almir Diniz de Carvalho Júnior.

Como já indica o título da obra, os “índios cristãos” estão no cerne da pesquisa do autor. Não se trata, como ele deixa claro logo no início (pp. 21-29), de uma categoria supostamente compacta e genérica de subalternos, atrelados ao projeto de cunho colonial salvacionista. Ao contrário, ele se propõe a analisar sujeitos históricos que, apesar das relações e classificações assimétricas nas quais foram enquadrados, participaram da construção do universo colonial, dentro do qual conseguiram formar e ocupar espaços próprios. A partir desses espaços os índios engendraram, por meio de complexas mediações e negociações, práticas culturais, referências sociossimbólicas e balizas identitárias novas. O autor realça, sobretudo, a dimensão sociossimbólica, como o apontam os termos “poder”, “magia” e “religião”, que, por sinal, constam no subtítulo. Neste sentido, Almir Diniz de Carvalho Júnior consegue conjugar, em termos metodológicos, uma análise criteriosa das múltiplas fontes – que vão de crônicas missionárias a processos inquisitoriais – com o recurso a relevantes investigações antropológicas acerca das cosmologias indígenas.

O livro consiste – como também a tese – em três partes que, por sua vez, estão subdivididas em com um número variável de capítulos. A primeira parte (pp. 39-108) aborda, em dois capítulos, as complexas relações entre os colonizadores portugueses e os povos indígenas no espaço amazônico. No primeiro capítulo, aprofunda-se o processo de implantação e consolidação do projeto colonial e, no segundo, a instalação da rede de missões sob as orientações do padre Antônio Vieira. Em ambos os contextos, os índios não são tratados como meros figurinos, mas agentes centrais. Assim, o autor dá destaque à revolta dos Tupinambá, ocorrida na Capitania do Maranhão, em 1617-1619, logo no início da colonização, como também à reação dos índios da aldeia de Maracanã, lugar estratégico onde se situaram as importantes salinas no litoral do Grão-Pará, à prisão do principal Lopo de Souza, em 1660- 1661. Ambos os eventos apontam os impactos diretos de lideranças indígenas no processo da aplicação das políticas colonizadora e evangelizadora. Embora não tenha sido o objetivo da pesquisa, mas faltou, talvez, abordar também, paralelamente a estes aspectos etnossociais, a questão do espaço em sua dimensão geoétnica e geopolítica. Assim, teria sido interessante trabalhar a Amazônia dos séculos XVII e XVIII enquanto “fronteira”, que, conforme uma definição fornecida por Hal Langfur, seria:

aquela área geográfica remota da sociedade já estabelecida [ou em vias de se estabelecer], mas central para os povos indígenas, onde uma consolidação ainda não foi assegurada e onde ainda paira uma dúvida sobre o desfecho dos encontros culturais multiétnicos2.

A segunda parte (pp. 111-257), mais extensa, pois composta de quatro capítulos, versa tanto sobre os métodos aplicados pelos padres para doutrinar os índios quanto sobre as estratégias usadas pelos últimos ao se reconstituírem como “grupos étnicos autônomos”, incorporando, neste processo, padrões culturais barroco-cristãos. Desta feita, o terceiro capítulo, retoma o tema da centralidade dos grupos Tupinambá no contexto da colonização e evangelização; por sinal, um tópico muito defendido pelo autor. Neste contexto, é oportuno apontar pesquisas mais recentes que tendem a frisar a complexa mobilidade de grupos indígenas de troncos etnolinguísticos não tupi no vale amazônica em torno da chegada dos portugueses. Assim, a tese do pesquisador Pablo Ibáñez Bonillo chama a atenção a “sistemas regionais multiétnicos”, em razão das presenças (no plural) de falantes de idiomas aruaque e caribe, principalmente, no estuário e no curso inferior do rio Amazonas, relativizando, de certa forma, a suposta predominância tupinambá3. O quarto capítulo aprofunda o projeto de “conversão”, levado a cabo, sobretudo, pelos jesuítas, conforme diretrizes exatas e, também, pragmáticas. Neste contexto, o autor lança mão de duas fontes fundamentais acerca da presença e atuação inaciana na Amazônia: a crônica do padre luxemburguês João Felipe Bettendorff, redigido na última década do século XVII, e os tratados do padre português João Daniel, escritos no terceiro quartel do século seguinte. É com base nesta documentação que Almir Diniz de Carvalho Júnior delineia, de forma nítida e envolvente, a peculiaridade das práticas de missionação na colônia setentrional da América portuguesa. A análise teria ficado mais completa com a inclusão da rica correspondência interna dos inacianos, arquivada no Archivum Romanum Societatis Iesu em Roma4. O fato de esta ter sido escrita, em grande parte, em latim dificulta, infelizmente, o acesso de muitos autores às informações nela contidas. Estas fontes são interessantes, pois, em geral, não reproduzem o estilo marcadamente edificante e moralizante das crônicas, tratando de questões polêmicas ou de dificuldades experimentadas com mais franqueza. O quinto capítulo, que constitui, por assim dizer, o miolo da obra, é diretamente dedicado aos “índios cristãos”. Estes são descritos e analisados como sujeitos inseridos no universo colonial do qual são partícipes – mas, salvaguardando seus interesses –, enquanto principais, pilotos e remeiros, artesãos de diferentes ofícios e, também, guerreiros. Atenta-se igualmente aos “meninos” e às “mulheres” indígenas, o que não é de se admirar, pois ambos os grupos recebem destaque nas crônicas pelo fato de seus integrantes terem sido percebidos pelos missionários como mais acessíveis aos objetivos e pretensões de seu projeto salvacionista. Este capítulo demonstra, de forma “plástica”, o que o autor entende por “índios cristãos”, conceito que, com já mencionamos, foi elucidado no início do livro. Neste contexto, merece menção que refere, por diversas vezes, ao termo de “índios coloniais”, formulado, há quarenta e cinco anos, por Karen Spalding em relação à colonização hispânica5. Embora não cite o nome desta historiadora, Almir Diniz de Carvalho Júnior segue, mesmo em outras circunstâncias e com base em outras experiências, a pista lançada por ela. Enfim, o sexto capítulo, que já constitui uma transição para a terceira parte, apresenta os mesmos “índios cristãos” enquanto praticantes de diversos rituais considerados heterodoxos, resultantes do contato entre suas tradições e cosmovisões xamânicas – ou, como detalha o autor, tupinambá – com os dogmas ensinados e as liturgias encenadas no âmbito das missões.

Finalmente, a terceira parte (pp. 261-320) enfoca, em dois capítulos, os índios cristãos e as “heresias” geradas por eles nas suas interações com o universo católico ibero-barroco, tanto em sua dimensão disciplinadora/institucional como inspiradora/vivencial. Neste sentido, o sétimo capítulo familiariza o leitor com a organização e o funcionamento do Tribunal da Inquisição de Lisboa, que atuava na Amazônia desde meados do século XVII mediante um sistema de captação de denúncias6. Para compreender esta instituição e seu agenciamento na colônia, o autor coloca uma tônica especial na elucidação tanto da concepção erudita quanto da mentalidade popular acerca da magia e feitiçaria na cultura portuguesa da época. Faltou, talvez, neste capítulo um maior aprofundamento da percepção desses fenômenos por parte das autoridades locais e dos moradores do Grão-Pará, visto que o universo de crenças e práticas heterodoxas trazido da Europa se reconfigurou, também por iniciativa dos próprios “brancos”, no contato com as religiosidades indígenas. Implicitamente, isso fica evidente no oitavo, e último, capítulo que aborda casos concretos, bem apresentados e analisados, que envolvem “feiticeiros” e, sobretudo, “feiticeiras” indígenas. Comparando a interpretação inquisitorial, tal como ela transparece nas fontes, com as lógicas próprias do universo simbólico xamânico, estabelecidas por pesquisas de cunho antropológico, Almir Diniz de Carvalho Júnior conclui que as heresias eram “formas autônomas de novas práticas culturais”, engendradas não tanto numa postura de resistência, mas, antes, para fornecer sentido ao mundo ao qual foram forçados a inserir-se. Como já antes, na apresentação dos diferentes grupos de índios cristãos, também neste último capítulo, o autor permite, mediante o aprofundamento de diversos casos e personagens de feiticeiros e feiticeiras, mergulhar no universo ameríndio colonial. Com efeito, o emprego de uma linguagem clara e envolvente parece dar vida às índias Sabina, Suzana e Ludovina que, mesmo taxadas como “feiticeiras” ou “bruxas”, circularam amplamente pela sociedade colonial de seu tempo. Neste contexto, convém lembrar que – e a farta documentação inquisitorial o demonstra – os desvios morais e doutrinais dos “brancos” estiveram muito mais na mira dos oficiais da Inquisição do que os dos índios, mamelucos, cafuzos ou negros, mesmo quando esses eram cristãos. Para aprofundar este aspecto, teria sido interessante dialogar com as pesquisas recentes do historiador Yllan de Mattos, cujos trabalhos, aliás, enfocam a atuação inquisitorial na Amazônia colonial7.

Dito tudo isso, fica óbvio o quanto o livro de Almir Diniz de Carvalho Júnior se destaca por dar visibilidade aos indígenas e suas múltiplas (re)ações dentro das conjunturas e conjecturas que marcaram o processo de colonização do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Este processo, em muitos aspectos, diferiu das dinâmicas colônias aplicadas na colônia-irmã mais ao sul, o Estado do Brasil, sendo que a evidência da peculiaridade da colônia amazônica, com seu grande contingente de povos indígenas – seja nas missões, seja nos sertões – constitui outro aspecto significativo da obra a ser retido.

Quanto à agência e ao protagonismo dos índios, o autor, ao examiná-los sob um prisma multifacetário, supera a visão binômica que, durante muito tempo, viu o índio, em primeiro lugar, como indivíduo oprimido e vitimado. A (re)leitura criteriosa feita nas entrelinhas das fontes coloniais deixou evidente o quanto os documentos, embora redigidos com um olhar unilateral – pois sempre imbuído do ensejo do respectivo autor de comprovar o suposto sucesso do projeto da colonização ou missionação – falam necessariamente do índio e trazem, assim, à tona suas práticas culturais heterodoxas e suas negociações ambíguas. Em última análise, estas agências “imprevistas” forçaram os missionários a abrir mão de suas pretendias ortodoxias para, num patamar ortoprático, poder se comunicar, mesmo incompletamente, com seus catecúmenos e neófitos indígenas8.

Enfim, vale ressaltar que a pesquisa Almir Diniz de Carvalho Júnior é uma contribuição fundamental para a Historiografia acerca da Amazônia Colonial, que, nos últimos anos, conheceu um crescimento significativo, sobretudo devido à consolidação dos Programas de Pós-Graduação em História em diversas universidades da região. A leitura da obra é, assim, imprescindível não só para aqueles e aquelas que pesquisam, academicamente, as agências indígenas na fase colonial, mas também para todos e todas que procuram entender mais a fundo o devir das populações e culturas tradicionais da Amazônia que, de uma forma ou outra, descendem e/ou emanam dos sujeitos analisados por Almir Diniz de Carvalho Júnior.

Notas

1 O título da tese foi “Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769)”. O autor jádivulgou antes, o resultado de sua pesquisa de doutoramento sob forma de artigo científico: CARVALHOJÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos no cotidiano das colônias do Norte (séculos XVII e XVIII). Revista deHistória. São Paulo, 2013, vol. 168, fasc. 1, pp. 69-99.

2 LANGFUR, Hal. The Forbidden Lands: Colonial Identity, Frontier Violence, and the Persistence of Brazil’s Eastern Indians, 1750-1830. Stanford: Stanford University Press, 2006, p. 5. Tradução do inglês pelo autor da resenha.

3 BONILLO, Pablo Ibáñez. La conquista portuguesa del estuario amazónico: identidad, guerra, frontera. Tese de doutorado, História e Estudos Humanísticos: Europa, América, Arte e Línguas, Departamento de Geografia, História e Filosofia, Universidad Pablo de Olavide, Sevilha, 2015, pp. 120-147. Em co-tutela com a University of Saint Andrews, Reino Unido.

4 No Archivum Romanum Societatis Iesu, os documentos referentes à Missão e, a partir de 1727, Vice-Província do Maranhão encontram-se, principalmente, nos códices Bras. 3/II, 9 e 25-28.

5 SPALDING, Karen. The Colonial Indian: Past and Future Research Perspectives. Latin American Research Review. Pittsburgh, 1972, v. 7, n. 1, pp. 47-76.

6 Neste sentido, os “Cadernos do Promotor”, arquivados no Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa, e muito citado Almir Diniz de Carvalho Júnior, são importantes.

7 MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e o funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino, 1750-1774. Jundiaí: Paco Editorial, 2012; MATTOS, Yllan de & MUNIZ, Pollyanna Mendonça (Orgs.). Inquisição e justiça eclesiástica. Junidaí: Paco Editorial, 2013.

8 Quanto à alteração da ortodoxia em “ortoprática” no processo de missionação, ver GASBARRO, Nicola. Missões: a civilização cristã em ação. In: MONTERO, Paula (Org.). Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, pp. 71-77.

Karl Heinz Arenz – Professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA).


CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos: Poder, magia e religião na Amazônia colonial. Coritiba: Editora CRV, 2017, 355p. Resenha de: ARENZ, Karl Heinz. Canoa do Tempo, Manaus, v.10, n.1, p.216-221, 2018. Acessar publicação original. [IF]

 

A Etnomatemática no Contexto do Ensino Inclusivo – RODRIGUES (Bo)

RODRIGUES, T. D. A Etnomatemática no Contexto do Ensino Inclusivo. Curitiba: Editora CRV, 2010. Resenha de: SANTOS, Evelaine Cruz dos. BOLEMA, Rio Claro, v. 26, n. 42B, p. 747-753, abr. 2012

Temos direito de ser iguais quando a diferença não inferioriza e direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

Boaventura Souza Santos (201[2])

O livro de Thiago Donda Rodrigues é fruto de sua dissertação de mestrado em Educação Matemática, defendida em 2008, e intitulada A Etnomatemática no Contexto do Ensino Inclusivo: Possibilidades e Desafios. O texto é constituído por uma introdução e três capítulos; havendo, ainda, um apêndice com a textualização de uma entrevista concedida por uma professora.

Na introdução, o pesquisador expõe sua trajetória como professor e também comenta sobre as leis cujas brechas dão espaço para que os alunos que necessitam de inclusão não sejam inseridos nas salas de aulas comuns. Trata, ainda, do movimento de inserção de alunos com deficiências em salas/escolas comuns em nível mundial e, então, explicita o objetivo de sua pesquisa, que foi observar, descrever e analisar como professores de uma escola inclusiva lidam com os alunos, na disciplina Matemática, de modo a corroborar o processo de inclusão. A pergunta principal do trabalho foi Como os professores relacionam as ticas de matema e a disciplina Matemática no processo de inclusão numa escola inclusiva?1 O primeiro capítulo, intitulado Experiência, inicia-se com um breve histórico da criação do projeto CIEJA e seus objetivos. O Projeto CIEJA (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos – São Paulo) foi escolhido como campo de trabalho, dada a opção do autor de buscar uma escola que apresentasse alunos com as mais variadas deficiências2.

O CIEJA foi criado em 2003, como resultado das discussões e avaliações do CEMES (Centro Municipal de Ensino Supletivo) iniciadas em 2001.

[…] A criação desse projeto teve como objetivo promover uma ação educativa considerando as características dos jovens e adultos, contemplando novas formas de Educação e implantando um modelo de educação básica em paralelo com a educação profissional.

O CIEJA foi criado para ser um espaço de convívio, lazer e cultura, e um local onde se discute sobre o mundo do trabalho e cidadania, e também como alternativa de inclusão de jovens e adultos no mundo sócio-escolar. (RODRIGUES, 2010, p. 20) O CIEJA oferece o ensino fundamental por meio da modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos), permitindo o acesso a pessoas com mais de 14 anos. Posteriormente, houve uma ampliação para todos os alunos, com o objetivo de uma escola para todos. Em 2007, estavam matriculados 1308 alunos, sendo 66 com algum tipo de deficiência ou distúrbios genéticos. A escola oferece os dois ciclos do ensino fundamental, compostos por módulos de um ano cada, e cada módulo corresponde a duas séries do ensino fundamental regular. Nos módulos 1 e 2 os professores dão aulas de todas as disciplinas, já nos módulos 3 e 4 há divisão de professores. Da flexibilização dos horários resultou uma configuração das atividades em seis períodos, cada um com duração de duas horas e quinze minutos. Durante o período de aulas não existem intervalos, os alunos comem o lanche oferecido pela escola na própria sala de aula, enquanto fazem as atividades. O espaço físico escolar é adaptado para alunos com deficiências, tendo, por exemplo, rampas, corrimões, portas com larguras adequadas, móveis e telefones públicos adaptados e computadores com softwares próprios para estudantes com deficiência visual, entre outros3.

O foco da pesquisa é o professor, mas também se discute o funcionamento de uma escola que tem como objetivo a inclusão. Foram observados quatro professores: uma professora do primeiro ciclo formada em Pedagogia e três do segundo ciclo, que lecionam Matemática.

Após a apresentação da pesquisa e de seus participantes, todo o conteúdo do caderno de campo é exposto. São descritos sete dias escolares. Em 2006, o autor esteve durante três dias na escola, em 2007, quatro dias4.

Trazer o caderno de campo na íntegra é um diferencial deste trabalho, já que abre a possibilidade de futuras análises por outros pesquisadores, fortalecendo a fecundidade teórica dentro desta área de estudos.

Na descrição do primeiro dia escolar o autor observou cartazes nos murais da escola, e conversou com uma professora de matemática chamada Ana. A partir do relato de sua conversa com esta professora observa-se que, apesar da escola ter investido na estrutura física, não investiu na formação do professor que irá lidar com os alunos portadores de deficiências e de necessidades educacionais especiais. Esses professores têm dificuldades para o trabalho, buscando uma formação com outros professores da escola, mais experientes (p. 23).

A professora Ana disse ao pesquisador que sua maior dificuldade é fazer a ligação entre matemática e vida, e que, para isso, tenta fazer relação com outras disciplinas (p. 24). Interessante observar que, apesar da professora não ter preparação para trabalhar com alunos com deficiências, ela relata que sua maior dificuldade é relativa ao ensino de conteúdos.

O trecho a seguir indica que, apesar de a professora perceber que muitos conteúdos não têm sentido para os alunos, ela acaba se rendendo à questão de cumprimento do currículo: […] Ana já cogitou a possibilidade de não trabalhar toda a matemática prevista no currículo escolar, optando por trabalhar só o que fosse significativo para o aluno e que ele pudesse relacionar com sua vida, mas acabou por continuar seguindo o planejamento e o currículo, pois os alunos iriam para o colegial e precisariam desses conteúdos no futuro. (RODRIGUES, 2010, p. 24).

Segundo o autor, […] Os professores, com o objetivo de trabalhar o que foi programado, não conseguem oferecer aos alunos o tempo de que eles necessitam para aprender, fazendo, então, com que os alunos que têm maiores dificuldades sejam postos de lado, fazendo atividades diferentes das trabalhadas pela turma. (RODRIGUES, 2010, p. 96).

Ao narrar o caso da aluna Tatiane, que nasceu com microcefalia5, o autor apresenta diversas situações de uma pessoa com deficiência e como a escola fez para trabalhar com ela. Essa descrição é um dos pontos ricos do livro. Outro ponto a ser destacado por sua relevância é a apresentação e discussão do caso do aluno Pedro, que perdeu a visão (p. 27), a partir do qual percebemos como o próprio indivíduo, por vezes, não sabe lidar com a situação em que se encontra.

Também, em sala de aula, os professores ainda precisam aprender como lidar com esses alunos e com toda a classe. Observemos parte do relato da aula da professora Antonia: […] enquanto os alunos copiavam da lousa, Antonia ditou o conteúdo que uma das alunas deficientes visuais está aprendendo. A professora ensinou para ela como se escrevem os símbolos da Matemática e os números em Braille. Geralmente, os alunos deficientes visuais fazem atividades paralelas aos outros; porém, quando possível, também participam das aulas com os outros; basicamente quando não é necessário copiar da lousa e resolver as atividades no caderno. (RODRIGUES, 2010, p. 34).

Segundo o autor, a decisão de deixar alunos de lado nas atividades, ou julgar que apenas a convivência com os outros já é o bastante, muitas vezes são equívocos causados pela desinformação de alguns professores que, devido ao preconceito, julgam que esses alunos não são capazes de entender o que está sendo falado, ou que não é necessário que eles efetivamente aprendam algo, bastando-lhes conviver com outras pessoas do ambiente escolar. Em muitos casos os professores buscam formas de trabalhar paralelamente por não saberem como lidar com as diferenças.

No entanto, de acordo com Rodrigues, somente a socialização não implica inclusão: é necessário que os alunos com deficiência tenham educação de qualidade e que os professores consigam trabalhar com todos os alunos.

Outra questão que evidencio relaciona-se ao tempo para cada módulo. Vejamos: Segundo Antonia, há alguns alunos que irão para o próximo módulo; existem outros que pediram para ficar mais um ano e outros reprovarão por não terem condições de acompanhar o módulo III. Uma das alunas disse que fez a vida inteira contas na calculadora, mas que agora não consegue passar para o papel, ‘no lápis é difícil’ (RODRIGUES, 2010, p. 36).

A pergunta é: poucos são os alunos que conseguem aprovação nos módulos (p. 36), então, por que fazer cada série em seis meses? Há que se pensar um pouco mais sobre o tempo para a aprendizagem.

Finalizando minhas considerações sobre esse capítulo, observo que algumas descrições do caderno de campo são vagas ou deixam dúvidas quanto às situações registradas. É, por exemplo, o caso da aluna Arlete, que já havia cursado o ensino médio, portanto não se justifica o fato de Arlete estar, novamente, cursando o Ensino Fundamental (p. 43).

O segundo capítulo, intitulado Analisando a experiência, é redigido em duas colunas, trazendo excertos do caderno de campo (na primeira coluna) e o que a Etnomatemática e a Educação Inclusiva dizem sobre a situação relatada (segunda coluna). Penso que esse tipo de registro em duas colunas pode reforçar a falsa dicotomia entre teoria e prática e, neste caso, a elaboração textual pareceu-me um tanto fragmentada, isto é, em alguns casos não foi possível detectar a relação entre a primeira e a segunda colunas6. Apesar de na segunda coluna o pesquisador trazer alguns comentários sobre a situação relatada na primeira coluna, faltou um diálogo maior entre essas duas partes, além de carecer de uma análise mais ampla das situações apontadas, já que o título do capítulo implica a análise das experiências. No entanto, essa análise mais ampla e o diálogo entre teoria e prática são deixados para o último capítulo.

Intitulado Conclusões e Considerações finais, o último capítulo vem apresentado no formato de duas colunas, com uma análise/confronto dos dados em relação às ideias da Etnomatemática, das teorias sobre inclusão e das legislações vigentes; além de tecer alguns caminhos possíveis para a Educação Inclusiva a partir dessa pesquisa.

O autor relata que, no trabalho de campo, deparou-se com práticas inclusivas e não-inclusivas e, segundo ele: A construção de uma escola inclusiva requer tempo para que as mudanças ocorram, as transformações são gradativas e algumas podem demorar mais que outras para serem feitas.

Por isso, mesmo em escolas que têm como objetivo principal a inclusão, pode-se constatar práticas que não são inclusivas ou que não estão em conformidade com os conceitos da Educação Inclusiva. Essas práticas destoadas devem-se ao fato de que a Educação Inclusiva não é um modelo acabado que só nos cabe implantar no sistema de ensino, mas sim um novo olhar à Educação (RODRIGUES, 2010, p. 85).

As práticas inclusivas detectadas no CIEJA foram: […] o respeito pelas diferentes formas de cultura, a percepção dos saberes dos educandos, o esclarecimento e discussão dos direitos e deveres dos alunos, o desenvolvimento de formas de trabalhar com todos simultaneamente, a percepção das diferenças e sua devida valorização (RODRIGUES, 2010, p. 86).

Mas, também foram encontradas algumas práticas remanescentes da integração, apesar de atribuírem a elas o nome de práticas inclusivas (por exemplo, quando a professora trabalhou com a aluna Tatiane individualmente enquanto os outros alunos realizavam outra atividade). As práticas de integração visam preparar o aluno com deficiência para se enquadrar em um padrão de normalidade imposto. Já a Educação Inclusiva […] não tem como pretensão tornar os diferentes iguais, normalizando-os, assim como não pretende estigmatizar os diferentes fazendo-os inferiores ou superiores por suas diferenças ou poupando-os das atividades escolares também em função de suas diferenças (RODRIGUES, 2010, p. 88).

Ressalta o autor que a imposição de um padrão de normalidade, de cultura, de sociedade ou de saber, nega as diferenças (p. 90). Ao apresentar as práticas de integração ocorridas na escola, salienta o que é proposto pela Educação Inclusiva, fazendo um confronto entre práticas de integração e práticas de inclusão. Por exemplo, quando a professora Antonia diz que para os alunos irem para a próxima série precisam ser preparados e devem adquirir algum tipo de conhecimento, ela, na verdade, está querendo moldá-los segundo um padrão/ nível de saberes (p. 89). No entanto “A Educação Inclusiva não determina níveis de aprendizado para serem alcançados pelos alunos […]; [ela] explora as potencialidades objetivando transgredir os limites de cada um […] (RODRIGUES, 2010, p. 89).

Rodrigues aponta que a inclusão não deve ser pensada apenas pela escola, sendo necessário “[…] a conscientização da sociedade em geral, no sentido de esclarecer os direitos de todos e acabar com a exclusão” (p. 94).

Entendo que o último capítulo seja de extrema valia para professores e educadores, por apresentar as diferenças entre práticas de integração e/ou nãoinclusivas e as práticas de inclusão, além de discutir equívocos usualmente cometidos em salas de aula e apresentar diversos caminhos para a Educação Inclusiva, o que pode contribuir para a reflexão de professores e educadores e suscitar desejos, esperanças e motivação para o exercício de novas práticas educacionais.

Notas

1 O pesquisador Pedro Paulo Scandiuzzi entende que, segundo D’Ambrosio, etnomatemática é o aprendizado e o acúmulo [ticas] de habilidades e criatividade para entender e explicar [matema] os fatos e os fenômenos mediante experiências resultantes do contato com seu ambiente [etno]. As ticas de matema são geradas em diferentes etnos com seus éthos, são organizadas intelectual e socialmente acumuladas, memorizadas e difundidas no próprio espaço e tempo, mas, também, entre ambientes remotos em espaço-tempo.

2 O autor relata as seguintes deficiências: física, visual, auditiva, mental, e, também, microcefalia e distúrbios genéticos.

3 Para uma melhor apresentação da estrutura física e material da escola o livro poderia conter fotografias, como ocorre na dissertação da qual o livro resultou.

4 Não foi justificado o porquê desses dias na escola. Observa-se, quando da explicitação dos dias específicos das visitas, que o pesquisador não ficou em quintas ou sextas-feiras. O autor também não relata mudanças ocorridas na escola, entre o ano de 2006 e 2007, o que poderia enriquecer a descrição do ambiente escolar e das aulas de que participou em 2007.

5 A microcefalia é provocada por uma insuficiência no desenvolvimento do crânio e do encéfalo, que causa redução no tamanho do crânio e do cérebro.

6 Por exemplo, à pág. 61, na primeira coluna, o autor traz um histórico da vida da aluna Tatiane, que nasceu com microcefalia e tem deficiência mental, o que implica limitações físicas e mentais. Tal registro induz a pensar sobre os traumas que o aluno traz para a escola em função de sua história de vida, sobre como as famílias às vezes não sabem lidar com crianças que nascem com problemas de saúde, sobre o fato de a aluna saber falar, mas não falar por vergonha de sua voz e das dificuldades que tem para fazê-lo. No entanto, na segunda coluna, o autor comenta sobre os objetivos da educação, de métodos pedagógicos e da postura educacional da Etnomatemática, descuidando de aspectos significativos, como os que relatei anteriormente.

Referências

LOPEZ, I. Em busca da cidadania global. Entrevista com Boaventura de Souza Santos. 201[2]. Disponível em:<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/ boaventura_e.html>. Acesso em: 5 jan. 2012.

Evelaine Cruz dos Santos – Doutoranda em Educação Matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista/UNESP, Rio Claro, SP, Brasil. Professora de Matemática da Escola Waldorf São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]  

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