Ditaduras: revisitando o caso brasileiro | Revista Eletrônica Trilhas da História | 2022

Detalhe de capa de A chegada do III Reich de Richard J. Evans
Detalhe de capa de A chegada do III Reich, de Richard J. Evans

“Uns dizem que essa história aconteceu há muitos e muitos anos, num país muito longe daqui. Outros garantem que não, que aconteceu há poucos e poucos dias, bem pertinho. Tem também quem jure que está acontecendo ainda, em algum lugar. E há até quem ache que ainda vai acontecer” (Machado, 1982, p. 5). Assim se inicia a obra já clássica de Ana Maria Machado, Era uma vez um tirano (1982). Num momento de transição do regime Ditatorial brasileiro para a abertura política rumo ao estabelecimento da democracia, ainda que tutelada em muito pelos militares, o livro dedicado ao público infanto juvenil revela um conjunto de elementos sensíveis daquele contexto e, ao mesmo tempo, da fiação da memória e dos fatos ainda prementes na vida daqueles que se afrontaram com um regime ditatorial.

Assim, a ruptura de uma ordem autoritária – sem ferir a experiência da leitura deste livro poderoso – se torna possível pela ação de três crianças e é permeada pela arte. Sem dúvida, historiadores e cientistas sociais são fundamentais, mas escritores, poetas, músicos, cineastas, artistas plásticos e outros artesãos da realidade, foram decisivos na luta e contestação do regime ditatorial. Dessa maneira, “se ainda fosse abril, o que faríamos, sendo em tempo do III Reich?” (1995, p.69). A questão aberta pelo poeta Capinan fica em suspenso. Continua difícil pensar tempos e espaços onde a repressão passou a ser normalizada, nos quais a inquisição retorna como vício constituinte do capitalismo ocidental. Os valores do liberalismo ficam aposentados compulsoriamente sempre que necessário, para que prevaleça a soberana decisão de estabelecer a Ordem. Certa ordem, bom dizer, baseada em desordens subterrâneas e inúmeras ilegalidades. Terrorismo de Estado, como se diz atualmente.

A poesia intitulada Inquisitorial traz a metáfora do regime nazista para pensar a instauração da ditadura civil-militar em abril de 1964. Exagero poético? Anacronismo histórico? Interpretação equivocada de sistemas autoritários vigentes no século XX? Deixamos aos leitores a tarefa de julgar e avaliar melhor, principalmente com o embasamento dado pelo dossiê aqui apresentado. O que importa agora é (re) sentir a temporalidade experimentada poeticamente pelo autor em seu trabalho de 1965. Afinal, “se àquele tempo presentes e vivos, como veríamos o III Reich?” (1995, p.67).

Permanece a dificuldade de enxergar com sensibilidade tantas cenas e testemunhar a situação de apatia imposta a tantos sujeitos. Era tarefa do histór da Grécia antiga, por sinal, a função de ser testemunha para que o juízo verdadeiro fosse evidenciado. Contudo, como fazer quando o “sem juízo” predomina na sociedade? Deixa de haver heróis e vilões, ensinava o poeta, “pois só houve homens no III Reich” (1995, p.66).

Resta a resistência pela via hermenêutica. Ainda é desafiador operar uma interpretação que eticamente respeite o vácuo de sentido, que esteticamente abandone os estereótipos. Afinal, o espectro ditatorial permanece assombrando as terras brasileiras. Por uns, é invocado, por outros, exorcizado. Na ambiguidade dessa presença-ausência espectral tem-se inerentes as contradições desse passado que não passa. Pior, provavelmente continuará se movendo com relativa liberdade em nosso meio nos tempos futuros.

“Ante o III Reich, galhofamos do desencontro entre discurso e realidade” (1995, p.65). Eis uma grave questão representacional. Tentativas de enfrentá-la – porque resolvêla seria demasiada pretensão – move os autores aqui reunidos. Explorar o déficit semântico é se posicionar, assumindo, sim, os riscos. Cremos que não se pode cruzar os braços! Senão, vigorará o sincronismo enganador, cultivado pelos que desrespeitam a História.

A solidariedade com os mortos e com os vivos é que abre novos horizontes analíticos. Mas é importante distinguir: solidariedade não é empatia. A empatia está na base do ideal romântico da vivência e ainda há aqueles que sonham em reviver momentos passados. Além da obviedade de sua impossibilidade, isso geraria uma visão psicótica do passado, projetada na tela do desejo narcísico. Ainda se postularia a identificação com os “vencedores”, pois não é comum a vontade de experimentar novamente momentos de dor, senão patologicamente.

A solidariedade hermenêutica amplia os quadros temporais do presente, pois reinsere a ação investigativa sob o índice da justiça. “Por isso pergunto: em todos os tribunais passados, que lado ocuparíamos”, escreveu o poeta (1995, p.69). Se o reconhecimento público da grande falha da justiça brasileira no trato da memória ditatorial existe, ressalte-se que não havendo heróis e vilões, há, sim, crimes imprescritíveis praticados sorrateiramente. O conteúdo desse dossiê apresenta, ainda para o amanhã, seus reflexos. Pois acreditamos que a neutralidade é um desvio inviável e nocivo. A reflexão acarreta a decisão: “operário ou proprietário da Mercedes Benz, o que farias no III Reich ?” (1995, p.68). A provocação do poeta se articula a proposição de Ana Maria Machado, qual seja, a sublimação da realidade pela arte, pela subjetividade, pelo engenho humano e pela capacidade dos serres humanos em se organizar e produzir o novo, como apontou outrora a filósofa Hannah Arendt.

O dossiê se apresenta com uma organização de dois blocos de artigos que se aproximam, apesar das especificidades evidentes de cada um. O primeiro bloco reúne artigos com uma temática que envolve elementos que poderíamos considerar endógenos ao regime, e a segunda elementos exógenos. Em outras palavras, um bloco com olhar para elementos estruturais e internos da Ditadura, e o segundo bloco analisando aspectos externos ao regime, ora experiências singulares ou de efeitos/resistências aos fatos históricos específicos da repressão, tortura e perseguição políticas daquele momento.

O primeiro conjunto de artigos se inicia com o trabalho de João Vitor Hugo Menezes do Nascimento e intitulado “A ação da burguesia multinacional e associada e sua influência sobre a Lei de Segurança Nacional e a hegemonia esguiana no Superior Tribunal Militar (STM)”. O trabalho analisa documentação original e explorando as relações entre o capital nacional e internacional e a doutrina da Escola Superior de Guerra (ESG), espécie de aparelho do regime militar responsável pela ideologia e sua propagação estrutural. O trabalho seguinte explora outro elemento fundamental na estruturação do regime: a questão migratória. No trabalho “Política migratória durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985): reflexos da doutrina da segurança nacional”, Pedro Carlos de Araújo Oliveira analisa a política migratória brasileira à luz dos elementos de configuração da chamada doutrina de segurança nacional. Por fim, este bloco se encerra com o trabalho de Caroline Rios Costa, “Onde a gente entra? A segunda geração e os processos de anistia e justiça de transição no Brasil”. O artigo trata de um aspecto fundamental e que merece maior atenção por parte da historiografia ao se debruçar sobre os descendentes de perseguidos políticos do Regime ditatorial e seus embates no interior da justiça brasileira.

Já o segundo bloco, se inicia com o artigo “A revolta dos universitários na ditadura civil-militar em Curitiba: Resistências e acomodações (1968)” de Luiz Gabriel da Silva. Analisando a trajetória de integrantes do movimento estudantil em 1968, o trabalho articula as trajetórias individuais com os elementos estruturantes do movimento estudantil e sua luta contra o regime. Na sequência, Eduardo Gusmão de Quadros desvela o contexto do Estado de Goiás, com destaque para a trama política e seus desdobramentos locais em trabalho intitulado “O tempo do golpe e o golpe do tempo: um estudo de caso sobre Goiás”. Fechando o dossiê a discussão é apresentada por Avelino Pedro Nunes Bento da Silva em: “Para além de uma ‘justiça pró-trabalhador’: a Justiça do Trabalho, os trabalhadores e a ditadura civil-militar na Amazônia brasileira (Manaus e Itacoatiara-AM, década de 1970)”, no qual analisa um aparato estatal, a Justiça do Trabalho, no contexto amazônico. Vale ressaltar o lugar de destaque da Amazônia no discurso e na ideologia do regime militar, portanto, o trabalho é mais que relevante para o debate em torno dos temas do trabalho, da justiça e do regime.

Agradecemos imensamente aos que enviaram seus textos para compor esta edição e agradecemos aos leitores. Esperamos que os trabalhos aqui apresentados semeiem novas reflexões, críticas e debates. Afinal, como aponta Ana Maria Machado, apesar daquele país ter se livrado de seu tirano as pessoas “dizem que [ele] vive percorrendo outras terras, procurando um canto para outra vez tiranizar. Por isso, é bom ter olho vivo, e não deixar ele tomar conta da nossa. Mesmo porque pode ser até que agora ele esteja mais esperto” (p. 26).

Uma ótima leitura!

Referências

CAPINAN, José Carlos. Inquisitorial (1965). 2 ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

MACHADO, Ana Maria. Era uma vez um tirano. 12ª ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982.


Organizadores

Aruanã Antonio dos Passos – Doutor em História (UFG). Docente do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Câmpus Pato Branco. E-mail: [email protected]

http://orcid.org/0000-0003-0483

Eduardo Gusmão de Quadros – Doutor em História pela Universidade de Brasília (2005). Professor da Pós-graduação Pontifícia Universidade Católica de Goiás e da Pós-graduação da Universidade Estadual de Goiás (PROMEP). E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-0645-6901

Rodrigo Tavares Godói – UNIR


Referências desta apresentação

PASSOS, Aruanã Antonio dos; QUADROS, Eduardo Gusmão de; GODÓI, Rodrigo Tavares. Apresentação. Revista Eletrônica Trilhas da História. Três Lagoas, v. 11, n. 22, p. 8-12, 2022. Acessar publicação original [DR]

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