Ditaduras: revisitando o caso brasileiro | Revista Eletrônica Trilhas da História | 2022

Detalhe de capa de A chegada do III Reich de Richard J. Evans
Detalhe de capa de A chegada do III Reich, de Richard J. Evans

“Uns dizem que essa história aconteceu há muitos e muitos anos, num país muito longe daqui. Outros garantem que não, que aconteceu há poucos e poucos dias, bem pertinho. Tem também quem jure que está acontecendo ainda, em algum lugar. E há até quem ache que ainda vai acontecer” (Machado, 1982, p. 5). Assim se inicia a obra já clássica de Ana Maria Machado, Era uma vez um tirano (1982). Num momento de transição do regime Ditatorial brasileiro para a abertura política rumo ao estabelecimento da democracia, ainda que tutelada em muito pelos militares, o livro dedicado ao público infanto juvenil revela um conjunto de elementos sensíveis daquele contexto e, ao mesmo tempo, da fiação da memória e dos fatos ainda prementes na vida daqueles que se afrontaram com um regime ditatorial.

Assim, a ruptura de uma ordem autoritária – sem ferir a experiência da leitura deste livro poderoso – se torna possível pela ação de três crianças e é permeada pela arte. Sem dúvida, historiadores e cientistas sociais são fundamentais, mas escritores, poetas, músicos, cineastas, artistas plásticos e outros artesãos da realidade, foram decisivos na luta e contestação do regime ditatorial. Dessa maneira, “se ainda fosse abril, o que faríamos, sendo em tempo do III Reich?” (1995, p.69). A questão aberta pelo poeta Capinan fica em suspenso. Continua difícil pensar tempos e espaços onde a repressão passou a ser normalizada, nos quais a inquisição retorna como vício constituinte do capitalismo ocidental. Os valores do liberalismo ficam aposentados compulsoriamente sempre que necessário, para que prevaleça a soberana decisão de estabelecer a Ordem. Certa ordem, bom dizer, baseada em desordens subterrâneas e inúmeras ilegalidades. Terrorismo de Estado, como se diz atualmente. Leia Mais

História social do Paraguai | Revista Trilhas da História | 2021

A independencia foi proclamada em 14 de maio de 1811
A independência foi proclamada em 14 de maio de 1811 | Foto: IP

La finalidad del Centro de Investigaciones de Historia Social del Paraguay (CIHSP), con sede en Asunción, es producir y difundir otro tipo de historia, alejada de los temas recurrentes en la historiografía paraguaya tales como los grandes héroes (historia biográfi ca) y las guerras (historia bélica).

Conteste con este objetivo, convocamos a historiadores/as e investigadores/ as de la Región a participar del dossier de la Revista Eletrônica Trilhas da Historia con trabajos originales sobre Historia Social del Paraguay abarcando los periodos colonial e independiente. Leia Mais

Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade / Revista Trilhas da História / 2020

Em 2019, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, sediou o evento intitulado Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade. O evento fora construído por várias mãos, na tessitura de práticas e diálogos entre cursos de licenciatura do campus, especialmente os cursos de História, Geografia e Pedagogia, representados por docentes e discentes comprometidos / as com a educação para as relações étnico-raciais. Além dos temas candentes para o debate das relações étnico-raciais, o encontro foi bem sucedido por conseguir reunir vozes negras e indígenas protagonizando os diálogos estabelecidos nas mesas redondas, simpósios temáticos, lançamentos de livros e atividades culturais. Eventos desta natureza têm como justificativa a urgência da produção de um novo estradar da universidade, desenhando bifurcações necessárias entre a educação e a luta antirracista.

Uma busca no Google de eventos acadêmicos ocorridos em novembro de 2019 possivelmente aponte para muitos outros lugares e entidades que realizaram atividades voltadas à semana da Consciência Negra naquela conjuntura. Provavelmente também o crescimento do número de pesquisas, ações e projetos a extrapolar a efeméride, seja uma realidade e uma conquista de que nos sentimos parte e que devem ser comemoradas. No entanto, passado um ano, perscrutando um olhar retrospectivo, concluímos que estamos longe de empreender uma alteração efetiva no estado de coisas e no cenário de violência que o racismo estrutural engendra. Ao adentrarmos o ano de 2020, pudemos constatar, não sem tristeza e indignação, que os passos são ainda muito curtos, apesar de tão necessários.

Marcado pelo advento da pandemia do novo Coronavírus, o ano de 2020 escancarou o racismo estrutural e aprofundou a chaga do negacionismo. Logo nos primeiros meses da conjuntura pandêmica, o mundo assistiu ao levante estadunidense em reação ao assassinato de George Floyd, um homem negro morto por um policial branco, em 25 de maio, na cidade de Minneapolis, em mais uma das abordagens violentas das instituições policiais sobre as populações negras, mas que, naquela ocasião, fora filmada e exposta nas mídias globais. Homens e mulheres de todo o planeta assistiram ao terrível assassinato daquele cujas últimas palavras foram: “eu não consigo respirar”. O fato foi corretamente lido pela sociedade como violência racista e a repercussão se politizou, fazendo emergir dali o movimento mundial intitulado “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam). Demonstrar que a abordagem policial difere a partir de marcadores de cor, evidenciando que a sociedade é amplamente racializada, foi um objetivo trilhado pelo movimento, apesar de persistirem visões negacionistas teimando em retrucar pelas redes que “todas as vidas importam”, numa tentativa de apagamento do racismo como causa estrutural da morte de Floyd. Não é exagero dizer que a sensibilização estadunidense frente a este fato pode ter abalado o destino das eleições presidenciais dos Estados Unidos, uma vez que a resposta do líder máximo do executivo naquele momento não destoava da onda negacionista e mesmo não se distanciava de grupos de supremacia branca naquele país.

Aqui no Brasil, os primeiros sinais de que a epidemia também seria uma tragédia racializada vieram antes e foram, respectivamente, a notificação da primeira morte por Covid-19, no país, de uma empregada doméstica, e a evidente negligência do Estado contra os povos indígenas no combate à disseminação do vírus entre as comunidades. O Instituto Socioambiental apontou para essa omissão argumentando que o Estado inclusive ajudou a espalhar a doença entre os povos originários, por meio de profissionais da saúde que levaram o vírus para aldeias, como também pelo silêncio sobre garimpeiros e grileiros que aumentaram as invasões na Amazônia durante a pandemia e, ainda, pelo fato de indígenas terem de buscar o auxílio emergencial nas cidades.[1]

Em maio de 2020, uma operação policial resultou na morte de uma criança de 14 anos, dentro de sua casa, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. João Pedro era mais um garoto negro, morador do complexo de favelas do Salgueiro, e sua morte expôs a terrível tradição da abordagem policial onde se concentram os pobres e negros das periferias que, como afirmava Carolina Maria de Jesus, constituem o “quarto de despejo” da sociedade.

Pouco tempo depois, em 02 de junho, fomos surpreendidos com o desfecho de uma tragédia a ser evitada se nosso povo pudesse se libertar da sua própria história, superando as dores e desigualdades infligidas, sobretudo, nas intersecções de raça, gênero e classe. Naquele dia, na cidade de Recife, morreu o menino Miguel ao cair da altura do nono andar de um prédio. Sua morte foi definida pela ONU como decorrente do racismo sistêmico, pois Miguel era uma criança negra e estava sozinho naquele andar por conta da negligência da patroa de sua mãe. A mãe de Miguel, Mirtes Souza, mulher negra, havia saído para passear com o cachorro da patroa. Assim como a sua própria mãe, era empregada doméstica e não pode contar com o direito ao isolamento social preconizado pela Organização Mundial da Saúde – OMS.

Djamila Ribeiro, ao refletir sobre o fato, expôs sua relação inegável com um passado colonial que teima em se reproduzir. Em texto publicado em 09 de julho no Jornal A Folha de São Paulo, a filósofa afirmou que era preciso atentar para algo insistentemente invisível, “o serviço doméstico em meio à pandemia, a hierarquização de vidas. A patroa que faz as unhas, enquanto Mirtes Souza, empregada doméstica, passeia com o cachorro”. Para esta autora, Miguel “provou uma experiência comum para pessoas negras no país: ser uma presença indesejada, uma chateação preta no momento de vaidade da família branca”. Mas, como compreender que a queda e morte de uma criança é resultado de racismo? O que é preciso reconhecer por detrás do elenco de fatos imediatos daquele 02 de junho como fios invisíveis e históricos que colocam o menino Miguel, de apenas cinco anos, naquele elevador, cujos botões foram apertados pela patroa branca, primeira-dama de um município que tampouco ela residia?

Na época dos fatos foram ventiladas as noções de racismo estrutural e sistêmico em algumas reportagens e programas de repercussão que visavam explicar os acontecimentos a partir de leitura sociológica apontando que o racismo não se resume a práticas individuais, conscientes e isoladas, de aviltamento direto contra homens, mulheres e crianças lido a partir de marcadores raciais erigidos em processos de colonização eurocentrados. Um dos autores que se fez presente no debate público foi Silvio de Almeida, para quem o racismo é estrutural e também institucional, pois nossas ações e comportamentos “são inseridos em um conjunto de significados previamente estabelecidos pela estrutura social. Assim, as instituições moldam o comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como dos sentimentos e preferências”.

Apesar da repercussão destes e de outros casos, que incluiu até um movimento pela derrubada de estátuas e monumentos colonialistas ao redor do mundo, as dores da família de Floyd, de João Pedro e de Miguel, bem como os debates trazidos às superfícies das mídias e redes sociais não foram suficientes para produzir uma fissura sistêmica ou estrutural que interrompesse o ciclo histórico de violência infligida aos povos subalternizados e marcados pela negritude dos seus corpos.

Ao completarmos um ano de nosso evento, às vésperas do Dia da Consciência Negra de 2020, João Alberto Freitas, de 40 anos, foi tratado como criminoso, espancado e morto por seguranças no estacionamento de uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre. Seu crime: ser negro no Brasil. Mas, igualmente, como ocorreu com os tristes exemplos que elencamos acima, não foi dito a Beto que ele pagava com a vida por sua negritude, pois o racismo que impele as instituições a detratarem e destruírem pessoas negras só pode ser percebido pelo escancaramento do absurdo que se pensaria caso o evento ocorresse inversamente, com pessoas brancas. Só parece possível produzir alguma consciência e educação das relações étnico-raciais que superem as estruturas racistas quando o conjunto da sociedade assumir essa tarefa e, sobretudo, as pessoas brancas admitirem sua importância na luta antirracista, quando forem capazes de presumir seus privilégios invisíveis como serem tratados / as como pessoas sem previamente serem suspeitas. Grada Kilomba, em entrevista à já citada Djamila Ribeiro, alertou que “as pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas. E é exatamente essa equação, ‘sou branca e por isso sou uma pessoa’ e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo”.

Os casos de violências tão terríveis como estes ocorridos após o nosso evento tensionam nossa própria esperança. Além das mortes decorrentes do racismo estrutural, que foram em número maior do que podemos supor aqui, também os casos de preconceitos e prejuízos produzidos pela omissão no combate ao racismo, e mesmo por sua reprodução, projetam cotidianamente os brancos / as ao centro e os negros / as e indígenas às margens. Basta lembrarmos do caso da entrevista da cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, ao programa Roda Viva (TV Cultura) do último 19 de outubro, em que afirmou, sobre contratar pessoas negras a partir de políticas afirmativas, que o banco não poderia fazê-lo pois não dá para “nivelar por baixo”.

Estas dinâmicas se beneficiam do silenciamento e da normatização e mantêm engrenagens muito antigas que, a despeito da centenária resistência, dos aquilombamentos e retomadas, das emancipações individuais e das pequenas conquistas legais, asseveram o fosso social que persiste e se desnudou ainda mais com a pandemia. A doença foi pior e, de fato, mais letal para aqueles e aquelas que já são atravessados pela chaga do racismo. A publicação do GT de Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), fundamentada na perspectiva de que a OMS, “concebe o racismo como um dos determinantes sociais do processo de adoecimento e morte”. Os autores / as consideram que “os desdobramentos da pandemia da Covid-19 numa sociedade estruturada pelo racismo penaliza grupos vulneráveis, especialmente entre pessoas negras, está diretamente relacionado à policrise sanitária, social, política, econômica, moral, crise na globalização e os fluxos migratórios etc”.

Produzir mudança que salve vidas implica uma tarefa de arco revolucionário e, na educação, uma radicalidade emancipadora. Com efeito, a denúncia e o anúncio, sejam eles viralizados pelas câmeras e redes que hoje podem contribuir com a desnaturalização da violência racial, seja na reunião de pessoas dispostas a dar um passo em outra direção, isto é, na direção da luta antirracista, é o trabalho de formiguinha a que temos de nos comprometer nas nossas rotinas de trabalho, estudos, nos almoços de família, nas rodas de conversas, no chão das escolas, de forma coletiva, perene e intransigente. É neste compromisso que trazemos e apresentamos o Dossiê Relações étnicas – Racismo, Educação e Sociedade.

Como já salientamos, sua proposta nasce do Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas, mas ganha novo fôlego ao revisitarmos as experiências do ano que decorreu de lá pra cá, com a pandemia da Covid-19 e do racismo. Se alcançamos, na época, o bonito objetivo de construir um espaço pluralmente atravessado por olhares decoloniais, narrativas indígenas, vozes negras de homens e mulheres, estéticas diversas, em ações potentes e resistentes na denúncia das várias formas de opressão que marcam a nossa sociedade, como também de (re)existências a demarcar a educação como instrumento de luta e vivida / produzida pela ação humana no tempo, agora, compreendemos que o dossiê alimenta o anseio de manter vivo este espaço como marco de luta e esperança. Os textos, assim como o simpósio, também se constituem numa treliça interdisciplinar e trazem esta dimensão de enfrentamento aos muitos racismos, como os vividos nos espaços escolares, mas ainda em outros lugares da sociedade e a envolver sujeitos diversos, como negros e negras, indígenas e ciganos.

O texto Cabelo crespo, corpo negro na luta cultural por representação afirmativa da identidade negra, da historiadora e militante negra, Celia Regina Reis da Silva, apresenta densidade teórica e trabalho com as fontes na abordagem de uma temática de suma importância para o Dossiê ao estudar o corpo negro e o cabelo crespo, em vista da discriminação vivida por crianças, adolescentes e jovens, tanto no espaço escolar quanto em outros lugares da sociedade. Mas apresenta também o seu reverso, ou seja, as múltiplas manifestações culturais da juventude negra de São Paulo, especialmente das periferias, na denúncia desta situação e na apresentação, vivência e (re)existência de outras práticas que implicam a valoração das vidas negras, na sua mais ampla acepção. Ao discutir essas questões no ambiente escolar, a autora denuncia como a escola acaba por ser este lugar de segregação e racismo se não problematiza-los em suas raízes e efetivar práticas antirracistas em seu cotidiano. Desse modo, o texto é um alento para pensarmos questões fundamentais na apreensão das múltiplas formas de luta, especialmente na abordagem do corpo e do cabelo negros e na criatividade das periferias na reinvenção de outras práticas que vão de encontro à violência contra pretos e pretas.

O texto A lei 10.639 / 2003 e o Programa Nacional da Biblioteca na Escola do ano de 2013: Como a temática étnico-racial tem sido tratada pelo programa dez anos após a sua implementação, de Felipe Lima e Jaqueline Santa Bárbara, traz uma temática muito relevante para a Educação e a História, ao abordar a forma como os negros e negras vem sendo retratados na literatura infantil, especialmente como se constitui (ou se nega) a identidade negra, a partir da análise de livros disponibilizados pelo PNBE / 2013, dez anos após a Lei 10.639 / 03. Desse modo, ao entrevistar duas professoras que trabalham com o ciclo fundamental e analisar 60 livros enviados para as escolas brasileiras, os / as autores / as abordam uma discussão fundamental acerca das questões étnico-raciais e do trabalho desenvolvido em sala de aula.

O texto ‘E se fosse o contrário?’ Djonga e Fanon: um diálogo sobre racismo e alienação, de Fábio Silva Sousa e Rogério Leão Ferreira, ao trabalhar duas linguagens diferenciadas (um autor e um videoclipe), traz uma contribuição necessária para a análise do racismo e das formas de opressão que marcam a sociedade no Brasil e em outras partes do globo. Ao discutir Frantz Fanon e sua obra “Pele negra, máscaras brancas”, e o Rapper Djonga, numa linguagem explícita e até direta, por vezes, ao confrontar-se com a alienação do negro, o texto problematiza a quem favorece a identificação com o branco e nos aponta caminho para superarmos o racismo impregnado em nosso tecido social.

O texto Entre o sul e o norte de Mato Grosso: doenças, conflitos e a exclusão da liberdade (séculos XVIII e XIX), de uma das autoras desta apresentação e de Rafaely Zambianco Soares Sousa, discute temas como doenças, conflitos e a exclusão da liberdade na história dos negros e negras escravizados entre o norte e sul de Mato Grosso. Ainda que não se refira diretamente à temática das relações étnico-raciais, possibilita a compreensão de um cenário em que imperavam doenças e insalubridades no Brasil Oitocentista, em particular incidindo sobre a vida dos negros e negras, escravizados e libertos. Contrapondo-se às mazelas que marcaram mais de 350 anos de escravidão temos também, nesta história, o desejo e a busca pela liberdade, como expõe uma das fontes de 1872, em que liberdade, vida, doença e morte se entrelaçaram pelos caminhos e arredores do Cuyabá. Ao conhecermos o passado suas lições nos ensinam a necessidade do combate ao racismo no presente, em todos os lugares em que ele se estrutura, pois, comumente, a sua história é a de permanência da injustiça, da Colônia ao século XXI, mas também de muitas lutas ao longo do tempo.

O texto O ‘Nobre educador’ da Bahia: trabalho, cidadania e sociabilidades, de Sivaldo dos Reis Santos, ao discorrer sobre a trajetória do professor negro Elias de Figueiredo Nazareth, que fora docente e diretor da Escola Normal da Bahia, contribui com novas análises podendo dar visibilidade historiográfica aos trabalhadores negros que vivenciaram momentos sociais de tensão e mudanças entre o fim do século XIX e começo do XX. Apresentando fontes da Hemeroteca Digital Brasileira como jornais, revistas e relatórios de autoridades públicas na área da educação, da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, o texto propõe uma ruptura sobre aquilo que Chimamanda Adichie chamou de “uma história única”, que comumente naturaliza um lugar específico para determinados sujeitos nas narrativas da história e que pode ser tensionada com pesquisas que desvelem a agência de homens e mulheres a se desviarem desses lugares atribuídos arbitrariamente, e não sem resistências coletivas e individuais, evidentes nestas obras.

A interpretação acerca dos Suruí / Aikewara e a Guerrilha do Araguaia: memórias de uma história em movimento, dos autores Andrey Minin Martin e Iolanda de Araújo Mendes, evidencia pesquisa empírica, especialmente na produção das fontes orais. Ao narrar as memórias da guerrilha do Araguaia, os autores dão conta de explicitar os marcos de memória impressos pela ditadura militar, assim como a reconstrução do direito moral à terra e, inclusive, à reivindicação à expansão de seus limites. Ao contribuir para a história indígena, o texto explicita a proximidade com a temática do racismo, porque também esses grupos, os povos originários, vivem na pele, no corpo, na carne, a violência que marca a nossa história, do passado ao tempo presente. Reconstituir uma história de lutas e uma reivindicação de memórias é fundamental para não deixar que estas histórias sejam silenciadas, especialmente no contexto da ditadura civil-militar.

Marcio Edovilson Arcas e Ademilson Batista Paes, em A invisibilidade / camuflagem cigana: uma análise sobre a representação dos ciganos no olhar do Gadje (não-cigano) apresentam uma reflexão basilar para a análise da representação dos ciganos na Literatura e em outras fontes trabalhadas em sala de aula. Os autores problematizam como o mito construído em torno dos ciganos desvela a inexistência da alteridade face a esses povos, prevalecendo interpretações centradas na discriminação, intolerância, racismo e violência. Diante disso, a invisibilidade dos ciganos é apontada e denunciada pelos autores, fazendo-nos entender o quanto o racismo também se estrutura na negação da diferença e no desconhecimento de outros grupos sociais.

Este Dossiê, ao sistematizar reflexões de diferentes grupos, com autorias de diferentes áreas, apontando para o quanto nos constituem enquanto um mosaico carregado de belezas, ambiguidades, contradições, pode contribuir para a humanização desses temas, mas mais que isto para a percepção de que nos constituímos das diferenças que devem ser valorizadas positivamente na acepção mais ampla da palavra, fazendo com que o antirracismo seja a tônica de nossas ações, dos nossos compromissos com a vida, com as histórias e memórias de George Floyd, João Pedro, Miguel e Beto, de Marielle Franco e de tantas outras…, na relação dialógica da teoria e práticas imbricadas e constituídas de gente em sua diversidade.

Nota

1. Sobre tais argumentos e para acompanhar o programa de observatório do instituto frente à pandemia nos povos indígenas, acesse https: / / covid19.socioambiental.org /

Maria Celma Borges

Mariana Esteves de Oliveira


BORGES, Maria Celma; OLIVEIRA, Mariana Esteves de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.10, n.19, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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A teoria da história e a história da historiografia ante os desafios contemporâneos: saber histórico, comprometimento ético e ativismos políticos / Revista Trilhas da História / 2020

O dossiê “A teoria da história e a história da historiografia ante os desafios contemporâneos: saber histórico, comprometimento ético e ativismos políticos” surgiu a partir da ação conjunta do GT Nacional de Teoria da História e História da Historiografia da Associação Nacional de História – ANPUH, do Fórum de Teoria da História e História da Historiografia – FTHHH e do grupo de pesquisa Teoria da História e História da Historiografia no Brasil (UFMS), que reúnem pesquisadores de todas as regiões do país e de diversas instituições e níveis de ensino que refletem sobre a teoria da história e a história da historiografia como aspectos substanciais da produção do conhecimento histórico. Um dos propósitos que articulam esses grupos é contribuir para o fortalecimento dessa área de pesquisa não só nos meios acadêmicos, propondo agendas e debates, mas também procurando estabelecer a importância da aproximação desses historiadores com a sociedade e as demandas do tempo presente, ampliando com isso o horizonte de legitimidade social da disciplina e daquelas áreas de pesquisa.

Portanto, esse dossiê, em grande medida, se apresenta como um retrato dessas discussões. No conjunto de textos que se segue o leitor encontrará um debate sobre os múltiplos sentidos atribuídos a pesquisa e a escrita da história, pensada como um processo contínuo de construção, reconstrução e recepção do conhecimento histórico, produzido com base em critérios epistemológicos, teóricos, metodológicos, políticos, estéticos e historiográficos, mas sem perder de vista as suas responsabilidades éticas de atuar como lugar produtor de respostas possíveis para as demandas sociais e políticas de um dado período e lugar, que é sempre o presente a partir do qual o historiador perscruta o passado, visando dentre outras coisas entendimento e orientação.

O artigo que abre a discussão intitulado Rupturas na continuidade histórica e ação política: diálogos entre Hannah Arendt e Walter Benjamin de autoria de Mariana Amaral Fogueral apresenta um debate profícuo e atual sobre a produção do conhecimento histórico a partir das leituras de Hannah Arendt e Walter Benjamin, pensando essa produção a partir dos conceitos de experiência, tradição e narrativa e estabelecendo-a como horizonte político qualificado para reivindicar a intervenção direta em questões práticas do tempo presente, oferecendo um superávit cognitivo capaz de restaurar as expectativas no potencial humano, de produzir futuros menos sombrios e obscuros que o nosso presente.

Outro texto que investe nessa atualização do sentido histórico é Pós-Modernismo e Teoria da História: o relativismo revisitado, de Manoel Gustavo de Souza Neto. Nele o autor analisa o papel da linguagem na História dialogando com dois autores tidos como pós-modernos – Hayden White e J.F.Lyotard – para questionar o sentido corrente de algumas interpretações que reduzem o pós-modernismo a equiparação direta e rasa dos estatutos epistemológicos da História e da Literatura. Com essa proposta, o autor defende a primazia deste debate para a compreensão de uma necessária conciliação entre os critérios científicos da pesquisa histórica com a dimensão poética, atualizando estes autores com base em questões que já estavam sinalizadas para a pesquisa histórica desde o historicismo.

Ainda nessa senda de debate sobre representação e epistemologia histórica, o texto Emergentismo e representância: o debate historiográfico entre White e Ricoeur, de autoria de Dagmar Manieri, apresenta um debate que atualiza o sentido de objetividade histórica ao fazer uma leitura de White que ao mesmo tempo em que rebate algumas de suas proposições, incorpora outros de seus argumentos pensando-os e relacionando-os às discussões da epistemologia da história produzida por Paul Ricoeur.

Aprofundando e diversificando essas reflexões sobre a escrita da história a partir do eixo objetividade e narrativa o texto A subjetividade neoliberal contemporânea versus histórias baseadas na alteridade: identificação narrativa, linguagem e escrita da história de autoria de João Camilo Grazziotin Portal coloca como uma questão premente reconhecer que a disciplina histórica, tradicionalmente, afastou a imaginação e a subjetividade de sua narrativa, baseada numa preocupação com a verdade. Nesse sentido, o autor defende com base num diálogo com Judith Butler e Christian Dunker que a história precisa assumir seu papel de produção de corpos e inserir artifícios imaginativos e mnemônicos a partir de novas linguagens e problemáticas, principalmente se quiser alcançar públicos mais amplos que o dos pares.

Refletindo sobre subjetividade, alteridade e escrita da história, o texto Interseccionalidade como categoria de análise na Revista Estudos Feministas (1992-2019), de autoria de Janai Lopes Harin apresenta a historicização da apropriação desta categoria nos trabalhos deste periódico tão significativo para os estudos de gênero e a teoria feminista no Brasil. Para além de uma história das apropriações e usos de uma categoria de análise histórica, o texto também apresenta uma reflexão historiográfica, sobre o lugar e a importância das revistas especializadas na produção da pesquisa histórica no Brasil.

Tendo como mote analítico as categorias imaginação, estética, narrativa e performatividade o texto Paul Gilroy e a Black Britain: a figuração-performativa da narrativa e a escrita antirracista da história, de autoria de Gabriel Gonzaga apresenta uma contextualização do pensamento do autor através de um esforço de definição do seu conceito de diáspora, para inquirir sobre a possibilidade de identificar uma historiografia antirracista em sua obra e como esta pode ser mobilizada para o enfrentamento político de tais questões no presente.

A relação entre tempo presente e produção historiográfica é colocada em primeiro plano pelo texto O que a COVID-19 tem a dizer aos historiadores? Uma breve reflexão sobre o presente e o futuro historiográfico, de autoria de Marlon Ferreira dos Reis. Nele o autor professa a importância da teoria da história e dos historiadores profissionais colocarem a crise político-ambiental, escancarada pela pandemia, como um tema central das análises históricas objetivando formas de enfrentamento das fake news, dos diversos negacionismos e do anticientificismo de uma maneira geral, o que no atual contexto de pandemia no Brasil têm atingido as ciências como um todo, colocando em cheque a legitimidade social do conhecimento científico e sua capacidade de dar respostas a crises como essa que vivemos.

Na mesma trilha de pensamento do texto anterior, mas desbravando outros espaços históricos e geográficos, o texto Pensando o papel social do historiador a partir da publicação do Manifesto de Historiadores no Chile (1998-1999) assinado por Lays Correa da Silva coloca como problema central a questão ética que evolve o trabalho nos historiadores no seu fazer historiográfico. Essa análise da experiência professada no manifesto dos historiadores chilenos contra os usos públicos do passado ditatorial do Chile que tentavam enaltecê-lo ou oferecer uma leitura laudatória tem muito a dizer numa perspectiva comparativa sobre as demandas postas aos historiadores brasileiros diante de um governo que trabalha para monumentalizar o passado, fazendo tabua rasa da violência, flertando com a morte na medida que além de elogiar a tortura e torturadores publicamente, nada faz para impedir a proliferação de uma doença que já matou mais de 60 mil pessoas e segue contando…

O texto A cultura brasileira na síntese de Fernando de Azevedo de autoria de Wilson de Sousa Gomes retoma e aprofunda uma discussão corrente na historiografia brasileira de pensar os debates acerca da interpretação do Brasil e da formação nacional por meio da análise da obra de um dos seus maiores expoentes. Esse olhar para o passado mediado pela fonte, carrega um desejo fecundo e manifesto de pensar a sociedade brasileira contemporânea por meio da compreensão da historicidade de suas mazelas.

O texto (In)Confiabilidade da Memória como Introdução à Interpretação Temporal da Lembrança: um diálogo com Aleida Assmann, de autoria de Rodrigo Tavares Godoi, propõe um diálogo crítico com a autora alemã pela via de uma hermenêutica da memória estruturada no pensamento de Henri Bergson. O diálogo com a autora é mediado por um esforço reflexivo de pensar a tensão entre experiência e historicidade. A ênfase do texto recai na reflexão da memória a partir de uma dimensão retórica que se vincula há algumas ideias de história trabalhadas pela historiografia.

Como nos faz lembrar o histórico e o título da Revista Trilhas da História: “trilhas são frestas costumeiramente abertas em lugares ditos ermos, quando buscamos construir novos caminhos ou mesmo encurtar aqueles já existentes”. Elas se desenham pelo percurso de muitos passos e na tentativa de romper com as vias oficiais que se instauram. Nesse sentido, esse conjunto de textos aqui reunidos, seguindo uma orientação proposta pelo dossiê, se propuseram a apresentar a partir de suas experiências de pesquisa trilhas possíveis que podem ser percorridas e pavimentadas por outras pesquisas no futuro.

Boa leitura a tod@s, estamos certos de que será apenas percorrendo as trilhas do conhecimento que poderemos desbravar um amanhã menos tenebroso, mais humano e sustentável.

Luiz Carlos Bento – Professor Doutor (UFMS / CPTL)

Wagner Geminiano dos Santos – Professor Doutor (Redes municipais de ensino de São J. C. Grande e Água Preta – PE)

Organizadores do dossiê


BENTO, Luiz Carlos; SANTOS, Wagner Geminiano dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.9, n.18, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Políticas públicas para a formação de professores no Brasil: história e projetos em disputa / Revista Trilhas da História / 2019

O presente dossiê, articulado às atuais demandas para as políticas públicas, objetiva promover o debate sobre as políticas de formação de professores em curso no sistema educacional brasileiro conferindo destaque para a contextualização histórica dos processos e projetos formativos.

As políticas educacionais oficializadas pela Lei nº 13.005, de julho de 2014, que aprova do Plano Nacional de Educação de 2014 a 2024, a Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que altera a LDB de 1996, promovendo a denominada reforma do Ensino Médio e a definição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), precipitam um amplo debate no sistema educacional brasileiro, sobre as políticas de formação de professores. Debates que se materializam na incidência direta por profundas mudanças na formação de professores, que precisam ser analisadas à luz da história enquanto projetos em disputa.

O artigo que abre o dossiê, “Impactos da BNCC na formação de professores de História para os Anos Iniciais” de autoria de Carollina Lima, discute a elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o que se estabeleceu na versão final para a área de História, especialmente para os anos iniciais, bem como os possíveis impactos do documento na formação de professores nos cursos de Pedagogia.

Outro texto que aborda a BNCC é de autoria de Marcelo Pires, sob título “Apontamentos para o professor de história que atua no ensino religioso, partindo da BNCC e do RCG”. O autor analisa o Referencial Curricular do Estado do Rio Grande do Sul, de 2018, norteado pela BNCC de 2017, para tanto faz uma abordagem histórica da legislação e no segundo momento discute as possibilidades teórico-metodológicas para o professor de História que ministre Ensino Religioso.

Ainda quanto ao Ensino de História e as políticas públicas, Eduardo Knack e Lidiane Friderichs, em “Considerações sobre as novas tecnologias, o ensino de história e as eleições de 2018”, abordam as novas tecnologias a partir de conceitos como tempo, espaço, supermodernidade e regimes de historicidade. A utilização das redes sociais nas eleições brasileiras, em 2018, é observada como momento que impõe a necessidade de se pensar a disseminação e uso da informação nas novas tecnologias.

Na sequência temos o texto de Tiago Benfica e Eliamar Folle, “Fincando tábua no chão: a viabilização da escola para Peixoto de Azevedo (1979-1985)”. Os autores apresentam a história da construção de uma escola em forma de mutirão, no interior do Mato Grosso, bem como o processo de institucionalização da mesma e de formação do quadro docente, e a importância desse movimento dos moradores para prover a cidade de uma unidade escolar.

O último texto desta seção, “A formação profissional no SENAI de Três Lagoas-MS à luz da teoria do capital humano: histórias de sujeição as demandas do capital”, assinado por Tarcísio Pereira e Maysa de Sá, analisa o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial-SENAI com vistas a compreender a educação profissionalizante desenvolvida por este sistema. Com foco no SENAI de Três Lagoas, os autores analisam a relação da Educação Profissional com a teoria do capital humano na formação para o mercado de trabalho.

Michelle Fernandes Lima – Professora Doutora (UNICENTRO, Campus de Irati)

Paulo Fioravante Giareta – Professor Doutor (UFMS, Campus de Três Lagoas)

Irati-PR e Três Lagoas-MS, dezembro de 2019


LIMA, Michelle Fernandes; GIARETA, Paulo Fioravante. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.9, n.17, jul. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Sobre a intolerância / Revista Trilhas da História / 2019

Abordar a intolerância, desde uma perspectiva historiográfica, é um grande desafio. E não apenas pelo seu caráter sensível. A negação da alteridade, a recusa em olhar o outro como um igual é fenômeno diverso, complexo e, também por isso, polissêmico em termos conceituais. Além disso, a questão do “outro” é algo de crucial importância para entendermos aspectos enquadrados nas mais diversas escolhas conceituais e cronológicas do campo historiográfico. Afinal, a intolerância é um fenômeno de lastro na experiência da modernidade, uma tradição arraigada nas relações humanas ou um fenômeno ainda mais hodierno?

Como se um eterno retorno daquilo que os humanos estariam fadados a ser, a intolerância pode ser observada em diversas práticas e representações da experiência humana. Contudo, enquanto historiadores e historiadoras, acreditamos que a intolerância não deve ser interpretada apenas a partir do prisma da rejeição como forma inata de (não) sociabilização entre os diferentes ou iguais. Mais que isso, é um fenômeno de implicação social (religiosa, política e econômica) construído em seus determinados tempos e espaços. Seja como forma de negação da razão humana ampliada ao “outro”, ou mesmo como uma estratégia industrial pensada para silenciar e exterminar os indivíduos diferentes e indesejados, a intolerância é um sinal presente nas complexas relações que marcam experiências históricas e expressões do tempo presente.

Desdobramento do Ciclo de Palestras realizado pelo curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campus Três Lagoas), este dossiê tem como objetivo fomentar a discussão em torno da intolerância na história e apresentar algumas abordagens possíveis.

Em “A história da população negra no Brasil e os Direitos Humanos: Uma conversa necessária em tempos de intolerância”, Delton Aparecido Felipe aborda as lutas históricas dessa população no país. Questão umbilicalmente intrincada na construção de uma identidade nacional, por sua vez exclusivista e excludente por definição, o artigo problematiza questões como direitos, Direitos Humanos e a realidade histórica dos negros, fornecendo também uma grande contribuição para o entendimento da questão Republicana no Brasil.

Em “(In)tolerância e religiões afro-brasileiras: uma análise do jornal O Diário do Norte do Paraná (Maringá-PR, século XXI)”. Vanda Fortuna Serafim e Giovane Marrafon Gonzaga oferecem uma análise que põe luz à questões recentes da intolerância racial e religiosa. A partir dessa análise, compreendemos com mais propriedade o caráter histórico e atual do racismo no Brasil, a sua dimensão religiosa, e também a necessidade de compreender a intolerância como traço constituinte de uma nacionalidade, imaginada para ser excludente.

Wellington do Rosário de Oliveira em “No lodaçal dos vícios: mulheres meretrizes e o discurso jornalístico do Correio do Paraná (1932-1937)” parte também da análise de um periódico paranaense para estudar a prostituição nas ruas de Curitiba, em um contexto de higienização e modernização urbana, na década de 1930.

O dossiê conta também com dois artigos que tratam especialmente da ditadura civil-militar no Brasil. Com enfoques diferenciados, é possível observar a relação complexa entre Estado e Sociedade nas formas de repressão e negação da política como espaço de mediação, diálogo e representação. “A Ditadura Militar no Brasil e a narrativa histórica: Esquadrão da Morte na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo”, de Aline de Jesus Nascimento, focaliza a experiência de grupos de extermínio construídos em paralelo às estruturas do estamento ditatorial. Além disso, as complexas questões envolvidas nas relações entre memória e história são levantadas.

Em “Ditadura militar, propaganda e otimismo no Brasil dos anos 1970”, David Antonio de Castro Netto aborda as propagandas como forma de construção de consensos e enquadramentos sociais, observando como a propaganda foi utilizada como forma de desmobilização, assim como estratégia de negação do “outro” para além da violência e do exterminismo.

Trabalhando com um recorte cronológico que reflete o processo de transição democrática no Brasil, o artigo “Lésbicas e o combate às discriminações nas páginas do boletim ChanaComChana” de Paul Silveira-Barbosa e Gabriela Coutinho Sales, traz uma importante análise sobre a lesbofobia, a heteronormatividade, assim como as formas de resistência em um contexto democrático, todavia marcado por formas diversas dos legados autoritários.

A intolerância é, sem dúvida, um elo que une os textos deste dossiê temático, que trata de objetos que são, a princípio, desconexos. Agradecemos às autoras e aos autores, assim como desejamos a todos uma boa leitura!

Seções: Artigos livres, ensaio e resenha

Este número conta ainda com artigos livres, ensaio e fontes. Na primeira modalidade temos o texto Clayton Ferreira e Ferreira Borges “A historiografia francesa do século XIX nas páginas da Revue Historique (1876-1914)” que analisa quantitativamente e qualitativamente a produção historiográfica publicada no periódico francês Revue Historique, no periódico entre os anos de 1876-1914. O debate historiográfico também é abordado por Daniel da Silva Klein em “Tropologia em Hayden White: apontamentos historiográficos”. Onde o autor dialoga com os elementos centrais da tese de Hayden White, pensando sua recepção critica na historiografia e apontando caminhos possíveis para sua superação.

Na sequência o artigo “Os 50 anos da Assembleia de Deus no Brasil em pauta: múltiplos olhares na imprensa sobre as comemorações na cidade do Rio de Janeiro (1961)” de Augusto Diehl Guedes, na perspectiva da história das religiões, desenvolve análise de fontes da grande imprensa e da mídia confessional que cobriram o evento do cinquentenário da Assembleia de Deus no Brasil, em 1961. A imprensa também é a fonte utilizada por Jorge Tibilletti de Lara para discutir “As impressões da primeira grande epidemia de dengue do Brasil entre os jornais O Globo, O Fluminense e Jornal do Brasil (1986)” que aborda os debates em diversos grupos da sociedade, como médicos, sanitaristas, movimento popular e governos acerca da doença que aparece pela primeira vez como epidemia no Brasil.

A seção Artigos Livres traz por fim a contribuição de Carlos Prado para a compreensão de um debate que permeia os movimentos de esquerda desde a segunda década do século XX, sobre o caráter das revoluções em países periféricos, no texto: “A revolução chinesa e o problema das revoluções nos países ditos coloniais ou semicoloniais (1924-1927)”.

O texto da graduanda da Universidade Estadual de Maringá, Giovana Eloá Mantovani Mulza, na seção “Ensaio de graduação”, se soma ao debate da intolerância na História, foco do dossiê apresentado acima. Em “De la Demonomanie des Sorciers: a caça às bruxas na concepção de Jean Bodin” a autora discute a intolerância religiosa na França do século XVI, a partir da obra De la Demonomanie des Sorciers de Jean Bodin surgida em 1580.

Na mesma seara das intolerâncias a seção “Fontes” apresenta entrevista “Sobre a alteridade, a intolerância e a história: uma entrevista com Karl Schurster” realizada pelos organizadores do dossiê Rafael Athaides e Odilon Caldeira Neto. Por fim, esta seção traz a contribuição da graduanda na UFMS / CPTL, Núbia Sotini Santos, intitulada “Operários itinerantes: algumas considerações sobre as fichas funcionais da Noroeste do Brasil” que apresenta fontes de pesquisa sob a guarda do Núcleo de Documentação Histórica Honório de Souza Carneiro.

Odilon Caldeira Neto – Professor Doutor. Universidade Federal de Santa Maria

Rafael Athaides – Professor Doutor. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Santa Maria- RS e Três Lagoas-MS, junho de 2019


CALDEIRA NETO, Odilon; ATHAIDES, Rafael. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, n.16, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Fragmentos da História: Portugal e Brasil (séculos XVI-XX) / Revista Trilhas da História / 2018

O dossiê temático intitulado Fragmentos da História: Portugal e Brasil (séculos XVI-XX), coordenado pelas signatárias, é o mais recente resultado de um conjunto de iniciativas que ambas têm levado a efeito, desde 2012, no sentido de aprofundarem os laços de cooperação universitária entre a Universidade Estadual de Londrina e a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Deste modo, este número de Trilhas da História conta com textos de jovens investigadores mestrandos, doutorandos ou recém-doutores portugueses e brasileiros, que escreveram textos em português de Portugal (aceitando ou não o acordo ortográfico) e português do Brasil, em total respeito pela diversidade.

Nos Fragmentos da História: Portugal e Brasil (séculos XVI-XX) o leitor pode encontrar, independentemente do diálogo entre vários assuntos, seis grandes temas, ou seja: a corte, a cidade, os comportamentos desviantes, o trabalho e a industrialização, as relações entre história e literatura e a história da alimentação. Os artigos apresentam uma enorme diversidade temática e cronológica, resultante das unidades curriculares lecionadas e dos interesses dos formandos, uma vez que se abordam matérias como a cortesania e os servidores da Casa Real, os guias turísticos, a literatura e a história, as cidades e os seus patrimónios, as políticas agrícolas e industriais, a alimentação, a cultura material e a prostituição. Vejamos com mais cuidado as diversas contribuições, tendo como critério de apresentação a cronologia dos textos.

Marcus Vinicius Reis, doutorando sanduiche na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob a orientação de Isabel Drumond Braga, enveredou pelo mundo das crenças mágicas em “Circulação de crenças e saberes mágico-religiosos no mundo luso-africano do século XVI: os processos inquisitoriais de Catarina de Faria e Mónica Fernandes”, optando pela micro-história e analisando dois estudos de caso, cujo palco geografico incluiu espaços ligados pelo Atlântico.

Igualmente na ótica da micro-história, temos o texto de Isabel Drumond Braga, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no qual prepassa imigração, comércio, cultura material e protestantismo, denominado “Um Bufarinheiro Francês na Lisboa Quinhentista: Trabalho, Pobreza e Luteranismo”. A autora utilizou um processo do Santo Ofício cuja particularidade mais relevante consiste na inclusão de um inventário de bens, um dos raros documentos deste género nos processos da Inquisição do século XVI.

Carolina Rufino, mestranda na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em “A literatura de cortesania como lugar de memória: os casos de Castiglione e Rodrigues Lobo” levou a efeito um trabalho de prospeção e de análise do carácter memorialístico da literatura de cortesania, comparando duas obras diversas e produzidas com quase um século de intervalo, Il Libro del Cortegiano (1528) e a Corte na Aldeia (1619). A autora inquiriu as obras como lugares de memória, uma vez que estas retrataram os comportamentos dos cortesãos em termos ideais, matéria bastante relevante na Europa Moderna.

Julia Castiglione, doutoranda na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, estudou “Os guias de Roma no século XVII: entre a abordagem ritual e estética da cidade”, desenvolvendo uma abordgem pela qual entendeu que os guias do século XVII desempenharam um esforço para o entendimento de uma Roma moderna que passou de um sistema de referência histórico-religioso para um sistema histórico-cultural, partindo da ideia de “função do autor”, de Michel Foucault.

Com “Tanoeiros e luveiros na Época Moderna: trabalho, sociabilidade e cultura material”, João Furtado Martins, doutorando na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob a orientação de Isabel Drumond Braga, procedeu à divulgação de resultados parciais da sua investigação em curso. Tratou-se de utilizar fontes inquisitoriais, designadamente processos, para estudar as atividades laborais, a posse de bens, os conflitos e as sociabilidades de diversos grupos sócio- profissionais, no caso, tanoeiros e luveiros, dois ofícios correntes, um da madeira e outro do couro, durante os séculos XVII e XVIII.

Alex Farvezani da Luz, então doutorando sanduiche na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob a orientação de Isabel Drumond Braga, agora já doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no texto “O fomento manufatureiro em Portugal e os efeitos da política econômica pombalina (século XVIII)”, dedica-se ao estudo do fomento manufatureiro no Portugal setecentista durante o reinado de D. José I e da administração do Marquês de Pombal, fixando-se na Real Fábrica das Sedas.

Em “As cidades brasileiras do século XIX: Rio de Janeiro e Franca”, Maria Renata da Cruz Duran propôs uma visita a dois espaços urbanos lendo-os como património histórico, a partir dos olhares dos viajantes estrangeiros, sob a fundamentação teórica de que o património histórico pode ser entendido como um bem destinado ao usufruto de uma comunidade e se constituiu pela acumulação contínua de objetos com um passado comum.

Por seu lado, o graduado em História pela Unisantos, David Francisco de Moura Penteado apresenta um extrato de seu trabalho de conclusão de curso, defendido em 2016. No presente artigo, “O Auxiliador da Indústria Nacional: um periódico ao serviço do Estado Brasileiro? (1833-1896)”, o jornal, bem como a indústria brasileira, entram em cena dando lugar a um, embora inicial, já consistente trabalho no incipiente terreno do estudo da indústria e da agricultura brasileiras.

O graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina, Júnior César Pereira, defende o objeto de estudos do trabalho de conclusão de curso em “Manuel Inácio da Silva Alvarenga: trajetória de um homem de letras (1749-1814)”, no qual a biografia é colocada à prova no escrutínio de um percurso formativo.

O resultado dos primeiros estudos do igualmente graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina, João Gabriel Côrrea, intitulado “A Singularidade do romance O adolescente no conjunto literário de Fiódor Dostoiévski de 1861 a 1881” debate o único romance de formação do autor russo no panorama literário europeu do período.

João Pedro Gomes, doutorando na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com uma tese sobre doçaria portuguesa, orientada por Maria José Azevedo Santos e Isabel Drumond Braga, enveredou pelo texto que intitulou “‘jantares por preços certos’: a publicidade dos serviços alimentares da Empreza Culinária (1896-1899)”. Trata-se do estudo das estratégias de comunicação de uma empresa com sede em Lisboa cuja publicidade permite conhecer a natureza e a logística da venda de refeições “take-away” / ”delivery” muito próxima dos modelos atuais e que se apresenta como um tipo de serviço original à época.

Francisco Pardal, mestrando na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob a orientação de Isabel Drumond Braga, foi seduzido pela História da Alimentação, analisando as ofertas culinárias e hoteleiras do Alentejo em “Sabores ao Sul do Tejo: alimentos e pratos típicos do Alentejo e do Algarve no Guia de Portugal (1927)”. Partiu do referido Guia de Portugal, uma obra muito relevante em termos de divulgação do país aos turistas, ajudando a difundir a ideia de “portugalidade”, pensado e parcialmente concretizado por Raul Proença, na década de 1920, e continuado por outros vultos da cultura portuguesa, nas décadas seguintes.

A História da Alimentação conquistou igualmente a atenção e o interesse de Fábio Banza Guerreiro, mestrando na mesma faculdade sob a orientação de Manuela Santos Silva e Isabel Drumond Braga, que escolheu esta área do saber numa outra cronologia, escrevendo “Uma cozinha portuguesa, com certeza: a Culinária Portuguesa, de António Maria de Oliveira Bello”. A investigação dedicou-se à compreensão do surgimento da cozinha regional através da análise do receituário Culinária Portuguesa (1936), o primeiro livro que tentou abarcar toda a cozinha portuguesa, com distinções entre pratos nacionais e regionais, de forma consistente.

A prostituição e as matérias conexas foram objeto de manifesto interesse para Raquel Caçote Raposo, mestranda na Universidade de Lisboa, autora de “O ‘negócio’: marketing e prostituição feminina em Lisboa no início do século XX”. A autora estudou as transformações dos locais de exercício da prostituição em Lisboa, desde o final de Oitocentos, passando pelas estratégias de divulgação do negócio, nos alvores do século XX, a partir de autores coevos e de vários periódicos. O foco principal do artigo foi ensaiar os motivos que levaram à adoção de estratégias para atrair clientes, procurando concluir a que estamentos sociais se destinavam.

Como se comprovará com a leitura de Fragmentos da História: Portugal e Brasil (séculos XVI-XX), os leitores poderão desfrutar de uma panóplia de temas e cronologias. Na maioria dos casos, estamos perante autores a dar os primeiros passos na investigação. Assim, a oportunidade oferecida pretende ser um estímulo à continuação do trabalho.

Seções: Artigos livres, ensaio e resenha

Este número conta ainda com artigos livres, ensaio e resenha. Na primeira modalidade temos o texto de Ana Coelho, sob o título Novas possibilidades de leitura sociológica: o Principado de Augusto sob os conceitos de Simmel e Weber. A autora analisa a legitimação política do principado de Otávio Augusto, primeiro imperador de Roma e o responsável pela fundação desse novo sistema político no Mundo Antigo.

Na sequencia o artigo Centralizar o Império e civilizar os sertões: o “Brasil profundo” no discurso político de Paulino José Soares de Sousa, de Alan Cardoso, aborda a relação entre centralidade política, o mundo rural e o projeto civilizatório no Império brasileiro guiado pela dicotomia entre litoral e sertão. O Império também é abordado pelo artigo de Ana Sousa Sá – Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro: um diplomata a serviço do Império, um historiador a serviço da nação –, mas a partir de uma discussão historiográfica que busca compreender as ideias e propostas do historiador Varnhagen no século XIX.

O artigo As intervenções sindicais no contexto do Golpe de 1964, de Alejandra Estevez, avança no tempo histórico e traz um tema caro para a história brasileira contemporânea: a intervenção do Ministério do Trabalho no movimento sindical, nos dois primeiros anos da ditadura civil-militar. Ainda o tema da ditadura, ou do processo de “transição sem ruptura”, é abordado por Cássio Guilherme em A transição rejeitada: PMDB e PFL na eleição de 1989, que discute o protagonismo dos dois maiores partidos brasileiros nas primeiras eleições diretas pós-ditadura.

Na seção “Ensaio de graduação” temos o texto de coautoria dos estudantes da UFSC Luiz Florentino e Hudson Silva, sob o título Os reflexos da imprensa na Reforma Protestante e seus efeitos sobre a crítica popular europeia ao clero, que aborda o surgimento da imprensa no século XV enquanto um fato que marcou a Modernidade.

Por fim, Helena Silva resenha a obra de Tania Regina de Luca A Ilustração (1884-1892): circulação de textos e imagens, entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro, tema que dialoga diretamente com o dossiê publicado neste número e organizado por pesquisadoras do Brasil e de Portugal. Silva destaca na obra de Luca a intensa relação estabelecida entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro a partir do entendimento da difusão cultural do polo irradiador que era a França no século XIX.

Isabel Drumond Braga

Maria Renata da Cruz Duran

Lisboa, novembro de 2018


BRAGA, Isabel Drumond; DURAN, Maria Renata da Cruz. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, n.15, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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História Social do Trabalho / Revista Trilhas da História / 2018

Em seu mais recente livro, “O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital” (lançado pela Boitempo em 2018), o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes faz a genuína pergunta a respeito de quem seja a classe trabalhadora hoje, enfrentando o que considera dois mitos. Ele discorda, inicialmente, de que a classe trabalhadora seja a mesma daquela que emergiu no bojo da Revolução Industrial e se desenvolveu no século XX. Na sequência, Antunes invalida a ideia propagada de que tais mudanças do operariado, embora muito significativas, sejam sinônimos da perda da centralidade e da sua potência transformadora. Para ele, o trabalho se mantém como força propulsora do ser social e a classe trabalhadora “não se restringe somente aos trabalhadores manuais diretos, mas incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende a sua força de trabalho como mercadoria” (2018, p. 88). Na sua 14ª edição, a Revista Trilhas da História, com o dossiê História Social do Trabalho, assevera essa concepção, porque apresenta o trabalho como fio condutor da história, ao passo que evidencia a diversidade com que ele se expressa na contemporaneidade.

Não se trata de um debate importante e exclusivo ao campo intelectual. Na recente greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, colocamos à prova a fluidez das concepções e a fragilidade das perspectivas pós-modernas ao experimentarmos o caos econômico gerado pela paralisação de um setor da produção material, a distribuição de mercadorias, com consequências sociais e políticas imediatas que, ao mesmo tempo, perturbaram as idiossincrasias de classe, pelo caráter policlassista do movimento e dos seus apoiadores, fazendo-nos perguntar o mesmo que Ricardo Antunes. Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje e quais suas potencialidades históricas? Em plena organização do dossiê, naquele momento, em meio ao recebimento de um número considerável de textos, comemoramos a latência e atualidade do debate e vislumbramos seu largo alcance, entendendo que a contribuição historiográfica seja primordial para o seu fortalecimento, ainda que, sendo portadores de poucas repostas, lançamos luz às novas perguntas. Manter a centralidade do trabalho se revela, aqui, como essência inovadora para os questionamentos e para reinvenções que atendam a já velha necessidade de superação da exploração do trabalho, e do próprio capital.

Adotando uma ordem cronológica às temporalidades dos objetos presentes nos artigos, o dossiê possui seis textos e tem início com o trabalho de Camila Menegardo Mendes Jogas, “Mutualismo e fronteira racial: Sociedades de trabalhadores negros e Conselho de Estado no Rio de Janeiro do século XIX”. O referido texto inaugura esta edição com o exemplar da ampliação das abordagens dos estudiosos do trabalho, uma vez que apresenta as interfaces dos critérios raciais no tocante aos processos de legalização das sociedades mutualistas de trabalhadores no século XIX.

Em seguida, compõe o dossiê um ensaio de graduação intitulado “Pela educação e pelo trabalho: anarquistas e o ensino racionalista na Primeira República brasileira” de Israel de Silva Miranda, trazendo ao debate a educação anarquista e o uso de opúsculos como meios de comunicação utilizados pelos militantes no contexto das duas primeiras décadas do século XX. Não obstante o apresentarmos nesta sequência, o texto está situado na sessão dos ensaios de graduação.

O texto “A ‘campanha contra o desperdício’ nas páginas da Revista do Serviço Público: trabalhadores e administração pública no Estado Novo (1937- 1945)”, de Fernanda Lima Rabelo, apresenta o processo de disciplinarização de trabalhadores do serviço público na política varguista, operada no bojo do discurso de modernidade e de eficiência, tendo como fonte a Revista do Serviço Público.

Outro ensaio de graduação presente no dossiê é de Michele Pires Lima, intitulado “Mulheres de Trottoir: Trabalhadoras do sexo nos jornais de Manaus (1967-1970)” que nos revela, a partir da análise do jornal “A Crítica”, a articulação do discurso moralista e higienizador que acompanhou os novos arranjos de ocupação urbana na Manaus do final dos anos 1960. Assim como o texto de Israel Miranda, este ensaio se enquadrou no dossiê, mas está localizado na sessão de ensaios de graduação.

No quinto texto a compor o dossiê, “Trabalho como fundamento de cidadania e aprendizado político: O operariado português no propulsar da Revolução dos Cravos (1968-1974)”, Pamela Peres Cabreira revela a dinamicidade do operariado português no contexto do Estado Novo e anterior à revolução dos Cravos, lançando mão de reflexões thompsonianas e das ocorrências de greves e paralisações no período para contrapor-se à ideia de que a classe trabalhadora portuguesa esteve passiva durante o regime autoritário.

Maria Celma Borges e Vitor Wagner Neto de Oliveira encerram a sessão do Dossiê História Social do Trabalho com o artigo “E.P. Thompson e a História Social: contribuições para o estudo da questão agrária no Pontal do Paranapanema -SP”, propondo um diálogo entre os conceitos teóricos discutidos pelo historiador britânico, como “consciência de classe” e ”experiência”, com as lutas de trabalhadores sem-terra já no início do presente século, utilizando-se de entrevistas orais.

A sessão de artigos livres é composta por cinco textos. O primeiro, de Bruna Morrana, “‘Costumes em Comum’, de Edward Thompson: perspectivas de abordagem”, dialoga com o dossiê, embora não trate especificamente de conceitos relativos ao trabalho e trabalhadores. A autora aponta os debates teóricos que compõem esta obra de Thompson e destaca a contribuição do historiador. Em seguida, o artigo de Daniel Caires, “A respeito de maneiras de falar e ver o Maranhão: paradigmas em disputa e seus reflexos na historiografia” apresenta as disputas de narrativas e identidades regionais, bem como os embates paradigmáticos sobre a prática historiográfica maranhense. Em “Chiquinha Gonzaga e o teatro musical brasileiro no século XIX”, Mona Bento analisa aspectos importantes das obras produzidas pela musicista, relacionando seu projeto de constituição da música popular brasileira ao contexto oitocentista, por meio da análise da opereta A corte na roça. Na sequência, o artigo de Cledivaldo Donzelli e Alessandra Nadai, “Local de memória e ensino superior: as possibilidades educacionais” demonstra a necessária a aproximação acadêmica com os espaços de memória a partir da análise de resultados de oficinas pedagógicas em um museu da cidade de Penápolis / SP, bem como de narrativas resultantes das experiências de estágios dos alunos do Curso de Pedagogia, tocantes aos temas e espaços de memória. A sessão de artigos livres se encerra com o texto “Possibilidades para o Professor de História quando atua no Ensino Religioso”. Nele, Marcelo Pires apresenta o cenário da educação pública brasileira destacando a situação do professor de História que atua no Ensino Religioso e a partir da experiência do estado do Rio Grande do Sul. Para isso, lança mão de documentos oficiais do estado, bem como de decisões jurídicas do STF que expressam as disputas ideológicas presentes nas decisões que permitiram a disciplina de forma confessional.

Na sessão de ensaios de graduação, apresentamos mais quatro textos. Em “Miguel Hidalgo: um homem e seus significados” Rebeca Capozzi analisa dois murais pintados por artistas mexicanos que retratam a figura de Miguel Hidalgo: Mural Independencia (1937) de Jose Clemente Orozco, e o Retábulo de la Independência (1960-1961) de Juan O’Gorman. No segundo ensaio, “O sonho por uma República: considerações acerca do movimento separatista da Província da Bahia”, Luan Silveira aponta aspectos da Sabinada, movimento separatista ocorrido em Salvador entre 1837 e 1838. Em sequência, no texto “Um olhar peculiar para a natureza: os Guarani e suas crenças”, Renata Silva aborda algumas concepções do povo Guarani em relação à natureza, por meio do documentário “Flor Brilhante e as cicatrizes da pedra” (2010), de Jade Rainho. A sessão de ensaios de graduação ainda possui o texto de Matheus Silva, “Do início da República até os anos 30: como traçar o perfil do ensino de História?”, em que apresenta um comparativo de narrativas da história ensinada, no período entre 1889 e 1930.

Esta edição da Revista Trilhas da História conta ainda com a resenha de Carlile Lanzieri e Francieli Marinato, da obra de Gilberto Crispino, “Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana”. Buenos Aires: Centro de Investigaciones Filosóficas, 2017, 50p (Prólogo, tradução e notas por Natalia Jakubecki)

Desejamos, a todos e todas, uma boa leitura.

Mariana Esteves de Oliveira – UFMS / CPTL

Paulo Pinheiro Machado – UFSC


OLIVEIRA, Mariana Esteves de; MACHADO, Paulo Pinheiro. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.7, n.14, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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(Des) Caminhos do Ensino de História no Brasil / Revista Trilhas da História / 2017

Os enfrentamentos para professores e professoras de História dos ensinos fundamental, médio e superior têm se configurado como amplos e polêmicos. Em um panorama em que cada avanço parece trazer consigo retrocessos, este dossiê busca pensar quais são alguns dos “(Des)Caminhos do Ensino de História no Brasil”, passando por reflexões acerca de políticas públicas e manuais didáticos, por temas como o Nazismo e Segunda Guerra Mundial diante do saber escolar, por experiências bem sucedidas de programas governamentais e a formação histórica voltada para a Educação do Campo.

O dossiê inicia-se com o artigo de Osvaldo Rodrigues Júnior sobre a reforma do Ensino Médio a partir da lei n°13.415, texto que busca discutir seus impactos para o ensino de História e aponta para a constituição de uma “nova” (e atual) crise do código disciplinar da História no Brasil.

O segundo artigo, de Giseli Origuela Umbelino, busca pensar os livros didáticos a partir de alguns elementos da coleção Nova História Crítica, de Mario Schmidt. A autora analisa impactos e repercussão da coleção entre docentes, jornalistas e no meio acaêmico.

O terceiro artigo, de autoria de Carlos Eduardo Miranda, traz à tona um importante tema curricular: o nazismo. O autor reflete sobre a representação do tema em livros didáticos, bem como sua relação com o universo acadêmico, indicando, por fim, sua importância para a discussão de temas como xenofobia, racismo, intolerância e participação política no espaço escolar.

O quarto artigo, de Jorge Paglarini e Lincoln D´Avila Ferreira, discute o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) a partir das experiências dos autores como coordenador do programa e supervisor na escola, respectivamente. A discussão se pauta nas experiências das ações desenvolvidas na escola e seus alcances diante do que são objetivos gerais do Pibid.

O quinto artigo, contribuição de Mariana Esteves de Oliveira, adentra o espaço da Educação do Campo para refletir sobre o ensino de História a partir do entendimento, por meio de entrevistas, das perspectivas teóricas e influências historiográficas que professores e professoras de História de onze escolas de assentamentos trazem consigo.

Encerrando o dossiê, a contribuição coletiva de Tânia Zimmermann, Mônica Suminani e Márcia Maria de Medeiros, discute um tema caro à História: a Segunda Guerra Mundial. Tomando como ponto de partida o mangá “Gen Pés Descalços” as autoras problematizam a questão da bomba atômica lançada sobre a cidade de Hiroshima, debatendo os impactos nas práticas e experiências de pessoas que sobreviveram ao episódio da bomba.

Nosso objetivo com esse Dossiê é problematizar alguns dos desafios enfrentados pelo ensino de história no Brasil, desafios que atravessam legislações, instrumentos de ensino, programas voltados para a docência e os próprios temas do ensino de história. Cientes da importância desse debate e das recentes críticas e perseguições por alas conservadoras da sociedade ao ensino de história e outras disciplinas das humanidades, acreditamos que os artigos integrantes do Dossiê buscam trilhar novos caminhos teóricos e políticos para uma disciplina constantemente ameaçada pelos que temem a transformação.

A seção de Artigos Livres conta com as contribuições de Flavio Rafael Mendes Campos e Thaís Fleck Olegário. O primeiro discute o episódio do chamado “Dia D” no contexto da Segunda Guerra Mundial. Já a autora Thaís Olegário debate importantes regimes ditatoriais vigentes no Cone Sul (Brasil, Uruguai, Argentina e Chile) no tocante à Doutrina de Segurança Nacional.

Na seção Ensaios de Graduação Pedro Henrique Duarte da Costa propõe uma breve reflexão em torno do movimento Escola sem Partido e seus desdobramentos a partir da oposição religiosa às discussões de gênero na escola. Janai Harin Lopes problematiza a escola e o Ensino de História, como lugares de reafirmação, mas também de desconstrução de expectativas de gênero.

Thiago Henrique Sampaio resenha o livro “Tenho algo a dizer: memórias da UNESP na ditadura civil militar (1964-1985)” organizado por Maria R. do Valle, Clodoaldo M. Cardoso, Antonio Celso Ferreira e Anna Maria M. Corrêa.

Esta edição da Revista Trilhas da História se encerra com a tradução do artigo de Alessandro Portelli intitulado “Um trabalho de relação: observações sobre a história oral”, feita por Lila Cristina Xavier Luz.

Cintia Lima Crescêncio

Leandro Hecko

Três Lagoas-MS, primavera de 2017.


CRESCÊNCIO, Cintia Lima; HECKO, Leandro. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.7, n.13, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Brasil e América Latina nas Trilhas da Revolução Russa / Revista Trilhas da História / 2017

A primeira revolução proletária vitoriosa da história impactou de formas variadas a política, a cultura e as sociedades das Américas. Diversos partidos comunistas foram fundados e revoluções ocorreram após 1917 e, indubitavelmente, a utopia entrou no coração e mente de diversos operários, intelectuais, artistas e militantes também do outro lado do Atlântico.

Passados 100 anos a Revolução Russa tem gerado debates diversos entre os movimentos dos trabalhadores e na academia, especialmente na área de História. O Curso de História da UFMS Campus de Três Lagoas soma-se a essa efeméride com o lançamento deste dossiê e, desde já, convida os leitores à participarem da XVII Semana acadêmica que traz o tema “Centenário da Revolução que abalou o mundo: história e historiografia”, com conferências, mesas, comunicações de pesquisa e minicursos. O evento ocorrerá entre os dias 30 de outubro e 01 de novembro de 2017.

O campo editorial também aproveita o centenário para reeditar clássicos da história da Revolução Russa, bem como publicar trabalhos recentes e novas abordagens. As revistas científicas da área de Ciências Humanas têm lançado dossiês nesta perspectiva, contribuindo para o debate ao publicizar pesquisas recentes de temas inéditos e revisões historiográficas. A revista do Curso de História da UFMS / CPTL segue essa “trilha” com o dossiê “Brasil e América Latina nas trilhas da Revolução Russa” ao reunir artigos historiográficos ou que tematizam as experiências políticas e culturais na Rússia e na América Latina pós-Revolução de 1917, e que dialogam com os acontecimentos russos e seus desdobramentos.

O dossiê inicia com o texto de Wanderson Melo, “O processo da Revolução Russa de Fevereiro de 1917: protagonismo dos trabalhadores, estouro revolucionário e dualidade de poderes”, que caracteriza a Revolução de fevereiro de 1917 como um movimento abrupto e espontâneo dos trabalhadores, resultando na dualidade de poderes.

Alexandre Costa, em “As práticas da edição e a Revolução Russa: as representações da URSS nas páginas da revista Inteligência: mensário da opinião mundial 1935-1939”, discute as representações da Revolução no periódico brasileiro de direita, revista Inteligência da cidade de São Paulo. A análise dos textos e caricaturas publicados na revista permite ao autor compreender as posições dos editores quanto à política interna brasileira.

O artigo de Luis Genaro, “Distopia permanente: projeto da modernidade, condição pós-moderna e o novo tempo do mundo”, traz um debate teórico acerca da modernidade, pós-modernidade e o “novo tempo do mundo”, tendo como marcos as revoluções burguesa, industrial e proletária. O autor destaca a atualidade das lutas sociais herdeiras de processos revolucionários do século XX.

Em “A Revolução Russa e o movimento operário brasileiro: confusão ou adesão consciente?” Carlos Prado analisa as repercussões da Revolução Russa no movimento operário brasileiro e a posição assumida pelos militantes libertárias diante da revolução bolchevique, tendo como fontes de informação os jornais operários e da grande imprensa brasileira.

Fabiane Muzardo, no artigo “A (re)construção da cultura nacional mexicana no período pós-revolucionário: a sobrevivência da cultura ancestral em ‘Ídolos tras los altares’”, estuda a produção cultural mexicana nas décadas de 1920 e 1930, pós-Revolução Mexicana, caracterizada por uma fusão de diversos elementos da cultura indígena e popular, bem como pela cultura do período colonial e contemporâneo. A primeira fase da Revolução Mexicana (1910 a 1920) antecede a Revolução Russa e, de certa forma, é o marco inicial das grandes revoluções sociais do século XX. Todavia, os ideais da Terceira Internacional (e mesmo da Quarta Internacional ainda nos seus rascunhos, com a presença física de Trotsky no México) chegaram ao país latino-americano nas décadas posteriores e também influenciaram intelectuais e artistas que produziam uma arte revolucionária na estética e no conteúdo.

O dossiê se encerra com o artigo “Mariátegui e a resposta socialista à crise do mundo burguês”, de Ricardo Streich. Uma abordagem instigante da perspectiva socialista adotada pelo peruano Mariátegui no início do século XX, e a leitura que este faz da crise do liberalismo pós-Primeira Guerra, e o constructo teórico desse teórico militante a partir de Bergson, Croce, Einstein e Freud.

Na seção “artigos livres” Noemia Oliveira analisa a atuação do clero na revolta popular no povoado de Fagundes, Paraíba, na década de 1870, iniciada pelo questionamento à mudança no sistema de medida. O artigo “Um missionário subversivo: o Padre Ibiapina na Revolta do Quebra-Quilos” discute o movimento no contexto das mudanças políticas da segunda metade do século XIX.

Em “ensaios de graduação” temos dois textos de graduandos do curso de História da UFMS / CPTL que discutem a história indígena nos séculos XIX e XX, com foco na região do alto rio Paraná: Lucas Moreira, em “Nimuendajú, Ribeiro, Freundt: Contribuições para mapeamento etnográfico Ofaié na primeira metade do século XX”, e Vanessa Serra, “Os Cayapó e a história agrária e indígena no sul de Mato Grosso: entre roças, estradas e aldeamentos; entre encontros e desencontros (século XIX)”.

Na seção “resenhas”, Eduardo Dianna apresenta a obra organizada por Rodrigo Patto Sá Motta, Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai (2015).

Por fim, em “fontes” temos a apresentação que Daniel Caires faz do relato de viagem da família Segall em direção ao Brasil, em 1911, fonte sob a guarda do Arquivo Lasar Segall.

Fábio da Silva Sousa Vitor

Wagner Neto de Oliveira

Três Lagoas-MS, inverno de 2017


SOUSA, Fábio da Silva; OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.6, n.12, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Terra, Memória e Poder / Revista Trilhas da História / 2016

A Revista Trilhas da História chega ao seu sexto volume contribuindo com a socialização do conhecimento cientifico e como periódico democrático, capaz de proporcionar o diálogo da História com outras disciplinas humanas.

A organização do Dossiê Terra, Memória e Poder é fruto de trabalhos livres e confeccionados, também, para o IX Ciclo de Palestras “Terra, Memória e Poder”, realizado em 2016, no campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O Ciclo de Palestras teve como intuito proporcionar trocas de saberes entre comunidade interna e externa à universidade, explicitando o diálogo no fazer de práticas de ensino, pesquisa e extensão que contribuam para a compreensão das Ciências Humanas como fruto da ação humana no tempo e instrumento de transformação do meio em que vivemos. O tema “Terra, Memória e Poder” aponta para aos desafios de uma discussão em que, na tessitura de outras histórias, seja possível contemplar reflexões que ultrapassem os muros da academia chegando ao chão da terra e às memórias como constructo da história, assim como às tramas do poder em suas várias facetas, apontando para outros caminhos.

Assim, Gilmar Arruda, conferencista de abertura do IX Ciclo de Palestras, em seu artigo “Memórias e paisagens soterradas na transformação da natureza em terra” retrata a transformação da natureza em terra, englobando a participação de sujeitos sociais neste processo em que denotam a formação de uma memória coletiva. O autor também aborda as paisagens e memórias presentes que necessitam do aval público para aparecerem.

Cássia Queiroz da Silva, também participante do IX Ciclo de Palestras, nos apresenta a resistência de mulheres e homens pobres e livres em Sant’Anna do Paranahyba no século XIX. As fontes utilizadas pela autora são narrativas literárias, correspondências oficiais, livros de Coletoria e inventários referentes ao sul da província de Mato Grosso, no século XIX.

“Os Processos Crimes Como Fonte Histórica: Possibilidades e Usos Na Construção da História do Sul da Província de Mato Grosso” é o artigo de Rejane Trindade Rodrigues, também palestrante no IX Ciclo de Palestras. A autora defende os processos crime como fonte histórica capaz de analisar o Sul de Mato Grosso oitocentista. Para tanto, ela discorre sobre um vasto campo historiográfico que lhe proporciona fundamentação para firmar suas perspectivas, sobretudo quando afirma que os processos crime são fundamentais para compreender o cotidiano e o poder que envolve escravizados, libertos e pobre livres em Sant’Anna do Paranahyba.

Em “Colonização pela ‘pata da vaca’: apontamentos sobre ocupação, migração e precarização da mão de obra rural na Zona da Mata Rondoniense”, Carlos Alexandre Barros Trubiliano e Kamonni de São Paulo examinam o processo de latifundiarização da terra e a precarização da mão de obra rural, sobretudo na Zona da Mata Rondoniense, no Estado de Rondônia. No texto, os autores analisam alguns programas do Estado, como a imigração estimulada por programas de assentamento; o Poloamazônia e o Plano de Desenvolvimento Nacional, que visavam o estimulo econômico para a diversificação da balança comercial regional.

Luiz Carlos Bento, palestrante do IX Ciclo de Palestras, em “História, memória e poder na história da historiografia brasileira” busca evidenciar como a questão nacional e os debates sobre a educação no país fundem-se no pensamento de Manoel Bomfim. O autor defende que os textos, substancialmente os ensaios históricos de Bomfim da década de 1920, dialogam criticamente com o projeto de escrita da história do Brasil produzido pelos institutos, colocando-se como uma antítese dessa cultura historiográfica.

Em “Energia elétrica, memória e poder: substratos para um debate necessário”, Andrey Minin Martin, palestrante no IX Ciclo, aborda o Complexo Hidroelétrico do Urubupungá e salienta que o setor hidroelétrico é rico em memórias, sobretudo quando se considerada o emaranhado de sujeitos, agentes e interventores, no público e privado, que formulam essas memórias, que também podem ser apropriadas e reelaboradas para a manutenção do poder.

Em “Perspectivas históricas: Adam Schaff e a pós-modernidade”, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva tem como intuito discutir dois conceitos basilares na construção do conhecimento histórico: verdade e subjetividade. Para tanto, o autor se utiliza das ideias defendidas por Adam Schaff para abarcar as discussões da cientificidade da história e o subjetivismo relativista dos presentistas, e o pósmodernismo como é compreendido por Perry Anderson.

A construção do Mal no medievo é abordada por Caio Alexandre Toledo de Faria na seção “ensaio de graduação”, no qual faz uma retomada das origens do Mal na Antiguidade Clássica e Oriental. Além disso, a forma como a Igreja impunha o medo para controlar as pessoas, sobretudo pelo imaginário coletivo, também é abordado no ensaio.

A resenha de Luan Gabriel Silveira Venturini convida o leitor a perceber a história de alguns movimentos de esquerda na luta armada contra a ditadura civil-militar brasileira. A entrevista com o historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, realizada pela equipe do PET-História, encerra este número.

Esperamos que este novo número da Revista agrade aos leitores e leitoras e que possam aproveitar os debates oferecidos pelos autores e autoras, evidenciando este periódico como espaço de discussões historiográficas.

Lembramos, por fim, que a revista está aberta ao recebimento de trabalhos em fluxo contínuo.

Boa leitura!

Eduardo Matheus de Souza Dianna

José Walter Cracco Junior

Vitor Wagner Neto de Oliveira

Três Lagoas-MS, outono de 2017


DIANNA, Eduardo Matheus de Souza; CRACCO JUNIOR, José Walter; OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.6, n.11, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História: identidades, diversidades e alteridades / Revista Trilhas da História / 2015

A presente edição da revista Trilhas da História é, em parte, resultado da XVI Semana de História e II Jornada de História Antiga e Medieval, trazendo algumas colaborações de autores que participaram do evento, ocorrido em agosto de 2015.

Neste sentido, a pluralística de temas e temporalidades na divisão dos artigos é evidente ao observarmos textos que discutem no seio da Antiguidade Tardia a imagem dos cristãos e sua identidade entre si e os outros, uma abordagem sobre propaganda no Brasil na segunda metade do século XX, um olhar sobre o ensino de História e a constituição de sujeitos leitores, uma exímia reflexão acerca dos temas da ruralidade e festa na Grécia Clássica e, por fim, uma problematização sobre a questão do trabalho docente entre dominação e resistência.

Em continuidade, como resultado do evento, há o Ensaio de Graduação do acadêmico Fernando Lucas Garcia de Souza, que discute de forma interdisciplinar a questão da tatuagem no município de Três Lagoas, evocando importantes questões culturais acerca dessa arte de desenhos corporais.

Na última parte da edição, seguem os artigos de fluxo contínuo, discutindo o espaço do distrito industrial de Jupiá junto a ideia problematizada de progresso e o artigo que busca mostrar a percepção da divisão do estado do Mato Grosso através do periódico Folha de São Paulo.

Cabe, ao lançamento desta edição, evidenciar a importância que a Revista Trilhas da História soma aos meios de divulgação de conhecimento científico no estado do Mato Grosso do Sul e sua perseverança ao continuar existindo mesmo diante dos entraves classificatórios que são colocados aos periódicos no Brasil frente as suas formas de avaliação. Por isso, a revista Trilhas da História agradece aos seus colaboradores pelo interesse e disposição em contribuir com a divulgação de suas pesquisas nesta casa.

Leandro Hecko

Caio Vinicius dos Santos

Organizadores da Edição

Setembro de 2015


HECKO, Leandro; SANTOS, Caio Vinicius dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.5, n.9, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História, memória e representações / Revista Trilhas da História / 2014

No Dossiê “História, Memória e Representações”, a Revista Trilhas traz um debate que contempla questões norteadoras da produção do conhecimento histórico, como a discussão das representações missionárias no continente africano; as representações da igreja dos pobres no Brasil; o significado das práticas religiosas populares; a memória da Umbanda; a memória de migrantes paranaenses e paulistas e o sonho da terra prometida; a cultura escolar e suas relações com o meio social; a memória dolorosa das enchentes, entre outros temas que se entrelaçam. Contribui, dessa maneira, para dar continuidade às ações da Revista, qual seja, propiciar espaços para que pesquisas de fôlego sejam publicadas e, assim, as trilhas possam ser percorridas na escrita da História e em sua reflexão.

No texto “O conceito de representações da Nova História Política: uma análise dos estudos de missionários na África Meridional de fins do século XIX e início do XX”, Yuri Wicher Damasceno trabalha o conceito de representações a partir da perspectiva da história política. O autor aborda o papel das missões e dos missionários em Uganda, destacando que o objetivo era levar “os ideais imperialistas” na “busca de uma regeneração da África”, ou seja, o desejo de “civilizá-la” nos moldes dos projetos colonialistas. Para essa reflexão, Damasceno destaca a ação da Church Missionary Society e suas práticas imperialistas, inspiradas na visão da Europa como o “centro civilizador” e o continente africano como o lugar da “barbárie”. O autor contribui para mostrar os limites desta interpretação e a necessidade de apreendermos as suas arbitrariedades.

O texto “Festa de Nossa Senhora Imaculada Conceição, padroeira de Dourados (1920-1960): conservadorismo e mudança de práticas culturais”, de Tiago Alinor Hoissa Benfica, analisa certas práticas religiosas populares, a exemplo da festa religiosa, por meio de fontes bibliográficas, periódicos e entrevistas. Observa o autor que sendo as festas espaços de convivência, solidariedade, trocas de saberes, elas se tornam instrumentos de poder e de controle da Igreja Católica, utilizados como forma de conter o avanço do protestantismo na localidade. Discorre ainda sobre a figura do festeiro e o seu papel na organização da festa, observando o status que isto lhe delegava. Mas chama a atenção a afirmativa de Hoissa de que a memória da festa, apreendida por meio de entrevistas, esconde os momentos de tensão vividos em seu interior, a exemplo das brigas e dos crimes que também eram comuns em Dourados, Mato Grosso do Sul, nas primeiras décadas do século XX.

Bruno Dias Santos, ao abordar o tema “Da Igreja Romana à Igreja dos pobres: crítica e utopia nas missivas de frei Betto (1969-1973)” propícia uma leitura das práticas e representações vividas por esse agente pastoral em meio ao cenário da Ditatura Militar e do nascimento da Teologia da Libertação nos anos 1970. Agente central no processo de denúncia das arbitrariedades do regime de exceção e, ao mesmo tempo, sujeito histórico das mudanças no interior da Igreja Católica, em especial, na opção pelos pobres, frei Betto tornara-se um dos ícones de luta de parte desta instituição. Porém, ao mesmo tempo, sentiria na pele, no corpo e no sangue, o peso desta postura.

O artigo “Salvos por Cacique Tartaruga: Memória, História e Mito na umbanda de Campo Grande- MS”, de Saulo Conde Fernandes, contempla o debate da religiosidade, por meio da memória dos pais e mães de santo em Mato Grosso do Sul. Associando a História Oral e a Antropologia, Fernandes destaca o diálogo entre ambas e apresenta histórias de vida que dão vida à memória e às representações da umbanda. Na discussão da incorporação do Cacique Tartaruga, um “caboclo de umbanda”, guia espiritual na cidade de Campo Grande, MS, o autor tece ainda uma etnografia dos terreiros chamando a atenção para a diversidade da religiosidade afro-brasileira nesses lugares. Estabelece uma crítica ao mito fundador da Umbanda, observando a amplitude de interpretações em torno de sua origem. Propõe, então, a teoria do rizoma como mais eficiente para a compreensão das religiões afro-brasileiras, já que, no seu entender, as várias linhas se entrelaçam e não há um continuum na história.

No artigo “A problemática dos sujeitos: o movimento migratório proveniente do estado do Paraná e São Paulo para Ivinhema-MT (1960-1970)”, de Nelson de Lima Júnior, também encontramos a reflexão da memória e das representações. Isso é possível a partir das lembranças tecidas e narradas pelos migrantes paranaenses e paulistas de sua terra natal e daquilo que se sonhara conquistar por uma vida inteira: a terra de trabalho como morada da vida. Mesmo em vista de todas as dificuldades em meio aos projetos de assentamento e às frustrações derivadas das ações governamentais para sufocar os movimentos sociais de sem terras em seus estados de origem, é possível encontrar na fala dos entrevistados, como narra Nelson, o sonho da conquista da terra, ou seja, aquilo que lhes conduzira à caminhada e lhes dera força para se deparar com as intempéries da vida.

Marilsa de Paula Casagrande, ao abordar “A Cultura e a Cultura Escolar”, discute, a partir de alguns referenciais teóricos que define como básicos, a apreensão do significado da cultura e da cultura escolar para a escola. Este debate é fundamental, pois, como é perceptível nas preocupações da autora, não são elucubrações teóricas sem uma preocupação com o “chão da escola”, ao contrário, já que Casagrande entende “a escola como representação da nossa visão de mundo”. Desse modo, as mudanças ou permanências vividas no ambiente escolar evidenciam o modo como o novo ou o velho se manifestam. Daí ser preciso apreender continuidades e rupturas desse lugar de produção do saber e de reprodução, muitas vezes, das práticas autoritárias da sociedade, se não nos dermos conta dessa dimensão.

No Ensaio de Graduação “Espectros da Catástrofe Entre o Trauma e a Solidariedade: Representações Iconográficas da Enchente de 1974 em Tubarão (SC)”, de Elias Theodoro Mateus, encontramos um diálogo profícuo entre as fotografias, como fontes históricas, e os referenciais teóricos, a fim de apresentar, em paralelo com os estudos da psicanálise que enfatizam as dimensões de “solidariedade e trauma”, a construção da memória da enchente em meio à tragédia vivida pela população de Tubarão nos anos 1970. O autor enuncia, por meio das imagens, o quanto fora impactante esse acontecimento para a memória dos moradores, (re)definindo modos de vida e de compreensão do lugar.

A Resenha de Laura Sanches da obra de Mercedes de la Garza, “El legado escrito de los mayas”, faz uma importante referência acerca do legado pré-colombiano, trazendo análises de escritos na língua maia, produzidos no período colonial. Nas palavras de Sanches, “Este libro es de consulta básica para quien desee conocer la trayectoria histórica maya desde el Clásico hasta fines de la Colonia, y para quienes investigan y enseñan temáticas relacionadas a las religiones y literaturas precolombinas, la historia de la Conquista de América, la evangelización y la resistencia”.

Por fim, na seção Fontes apresentamos a entrevista do Professor Dr. Eudes Fernando Leite (UFGD), historiador mato-grossense, realizada pelo Grupo PET – História Conexões de Saberes e estruturada por Vitor Oliveira (UFMS / CPTL). Na entrevista Leite explicita a sua concepção de história narrando a sua trajetória de ensino e pesquisa na área. A proposta do grupo PET consiste em desenvolver uma série de entrevistas com historiadores que trabalham ou trabalharam a história regional, (MT / MS). Objetiva-se, com este material, sondar em que pé está a historiografia regional, quais os trilhos e as trilhas percorridos, bem como as novas possibilidades de investigação da história, o que propicia um prato cheio de experiências para contribuir nos rumos da pesquisa regional e para além de Mato Grosso do Sul.

Maria Celma Borges

Caio Vinicius dos Santos

Verão de 2014


BORGES, Maria Celma; SANTOS, Caio Vinicius dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.4, n.7, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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História, ensino e fontes / Revista Trilhas da História / 2014

Apresentar este Dossiê é um prazer, pois traz questões fundamentais para repensarmos interfaces entre a História, o Ensino e as Fontes. Os temas abordados nos artigos, ensaio de graduação e na seção fontes evidenciam o quanto é profícuo este debate e quão necessárias são as abordagens aqui apresentadas, uma vez que contribuem para a divulgação de estudos e pesquisas, bem como favorecem a reflexão epistemológica.

Na esteira dos números anteriores, a Revista Trilhas inova por dar continuidade a um diálogo entre questões que se entrelaçam e são basilares para a produção do conhecimento histórico, já que apontam as diferentes concepções e perspectivas teórico-metodológicas em cada artigo apresentado. Neste sentido, é importante apresentar brevemente os textos que dão conta de enunciar este cenário da produção acadêmica, assim como a maturidade e a diversidade de temas.

O texto “A narrativa da fada Brasiléia como Instrumento Pedagógico nas aulas de História do Brasil nos anos 1940”, das autoras Andréa Giordianna Araujo da Silva, Lilian Bárbara Cavalcanti Cardoso e Roseane Maria de Amorim, apresenta a história do ensino de História, tendo como fonte central o livro “A fada Brasiléia”, visto como recurso para a crítica ao processo civilizador que se desejava instaurar na construção da disciplina de História no ensino primário dos anos 1940. Esta abordagem favorece a percepção da dinâmica do campo da História e do ensino de História. Povos indígenas e negros, como afirmam as autoras, praticamente desapareceram desta narrativa e nas poucas situações em que são apresentados figuram como “vítimas” ou “coitados”. Na contramão desta interpretação as autoras possibilitam olhar para outras histórias em que povos originários e negros são agentes centrais.

O artigo “Ensinar e aprender história de Santa Catarina: o uso da Revista Histórica Catarina em sala de aula como recurso fonte da aprendizagem histórica significativa”, de Tânia Cordova, analisa a Revista “História Catarina” como fonte para apreender a história de Santa Catarina. Entendida como um recurso ao trabalho docente, a autora ressalta a necessidade de que o ensino de História opere com novas ferramentas numa relação de ensino-aprendizagem e interação professor-aluno. Assim, a Revista é apresentada como instrumento fundamental para a escrita da História que privilegie a diversidade étnica, com ênfase na cultura indígena, africana e afrodescendente. A autora também observa a contribuição desta fonte para o estudo dos saberes local e regional e a sua relação com a macro-história.

Outro artigo a abordar o ensino de História intitula-se “Os parâmetros curriculares nacionais de História e os saberes do docente: reflexões sobre a produção do conhecimento histórico”, de autoria de Jaqueline Aparecida Martins Zarbato. Neste texto, a autora discute o significado dos PCNs e de que modo conceitos como memória, identidade e nação são tomados como elementos centrais para a construção do conhecimento histórico. Nesta perspectiva, a autora aborda a relação entre História e currículo para pensar os PCNs e o seu lugar no cotidiano escolar. Por meio de relatos de professoras evidencia a concepção destas agentes sociais na construção do ensino de História. “Velhos problemas”, a partir de “novos olhares”, vêm à tona propiciando a compreensão da dinamicidade nas diferentes concepções da disciplina História.

No texto “História & Representação: um olhar conquistador no cinema”, Pepita de Souza Afiune discute o cinema e a sua relação com o ensino de História, apontando para o quanto os filmes criam estereótipos que precisam ser problematizados pelo professor e o aluno, a fim de que esta ferramenta didática tão fundamental para a produção da história possa ser utilizada em sua plenitude, contribuindo para o senso crítico e para a humanização da relação docente e discente. Aliado à base teórica, o texto se fundamenta em pesquisas de campo realizadas com estudantes e mestres em escolas de redes privada e pública de Anápolis, Goiás.

O artigo “A Universidade Pública em Três Lagoas-MS e as titubeações do campo histórico”, de Tiago Alinor Hoissa Benfica, traz uma importante contribuição para a análise da constituição da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em seus anos iniciais. O campo da História como disciplina no sul de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, é privilegiado, possibilitando o entendimento das artimanhas do poder vigente quando da implantação da Universidade e o desejo de constituir um “projeto do estado Nacional”, a fim de integrar o estado “ao corpo da nação”. Objetivava-se ainda, com a implantação da Universidade, “trazer a cultura” para os três-lagoenses. Somando-se a esta discussão, Benfica contribui para o conhecimento de parte importante da história do curso de História em Três Lagoas.

O artigo “Evasão na licenciatura: estudo de caso”, de Camila Carvalho e de Vitor Wagner Neto de Oliveira possibilita entendermos parte significativa dos motivos que fizeram com que os acadêmicos tenham abandonado a Licenciatura em História, no curso de Três Lagoas, no período de 2009 a 2013. Por meio de questionários aplicados aos alunos evadidos, os autores observam que este é um fenômeno que não se limita ao curso de História e nem mesmo às Licenciaturas em Mato Grosso do Sul, já que são múltiplos os fatores, entre eles o descrédito do querer ser professor, somando-se à carga de atividades atribuída no curso, entre outras situações. Na construção do texto, os autores, por meio de dados quantitativos, mostram que não existe uma única resposta para a evasão, mas afirmam ser necessário problematizá-la, já que se trata de uma questão latente em todo o cenário nacional, em especial no que diz respeito às Licenciaturas.

O artigo “Algumas perspectivas do Cavaleiro Medieval na obra de Georges Duby”, de Leandro Hecko, num bom exercício de análise das fontes, dá a sua contribuição para a abordagem e escrita da História, ao apontar para o longo processo de constituição da figura do cavaleiro como herói em algumas obras de Georges Duby. Em sua discussão, o autor destaca o binômio cavaleiro / guerreiro na construção de suas personagens imersas na história medieval, mas finaliza ressaltando que o cavaleiro medieval foi uma “mescla de tudo o que representou a Idade Média”. Daí a sua importância como objeto da história e a sua contribuição para o trabalho com as fontes, no caso, com a produção historiográfica deste renomado medievalista.

Jhonatan Uilly e Paulo Fernando de Souza Campos, no artigo “Pérolas Negras: a participação de mulheres negras na Revolução Constitucionalista de 1932”, a partir de análise de jornais paulistas, enfatizam o papel das mulheres negras e suas formas de organização no cenário da guerra paulista, em especial a formação de um corpo de combatentes feminino e negro. Os autores, ao estudar a ação das mulheres negras voluntárias na Legião Negra, como enfermeiras, entre outras atividades, também evidenciam o peso do racismo no interior da elite paulista, numa tentativa de invisibilizar estas mulheres naquele momento histórico.

O texto “„O povo tem mil olhos e mil ouvidos para ver e para ouvir‟: O comício de 18 de março de 1942 em Curitiba sob a ótica da Análise do Discurso”, de Márcio José Pereira, ao ter como fonte central uma crônica publicada na Gazeta do Povo, em Curitiba-PR, utilizando-se da Análise do Discurso (AD), possibilita-nos ver o peso das palavras na referência aos alemães residentes no Brasil e às suas ações em pleno cenário da Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, construía-se, por meio da crônica, uma imagem negativa dos indivíduos de origem alemã e daqueles que pudessem se assemelhar aos germânicos. Desta maneira, ao defender a depredação de prédios ocorrida dias anteriores em Curitiba, à publicação da crônica, o discurso do jornalista Rodrigo de Freitas está alinhavado, conforme o autor, ao da grande política do Estado Novo e encontraria terreno fértil para proliferar, mas, ao ser desconstruído por Márcio Pereira, revela também as potencialidades da escrita da História e a inversão do arbítrio.

O artigo “Maternidade e feminismo: notas sobre uma relação plural”, de Georgiane Vásquez, apresenta a construção da figura materna e da mulher ao longo do século XX. O texto é elaborado de modo a demonstrar a dinamicidade do debate envolvendo maternidade e feminismo e a percepção de que a história das mulheres e de seus movimentos possibilita-nos fazer uma história mais plural, ao sugerir que os espaços de luta, seja na dimensão dos valores ou da conquista de direitos, são delineados por práticas e representações sociais. Ao abordar o discurso religioso e o médico sobre as mulheres o texto faz o leitor atentar para várias expressões do feminismo na sociedade, com seus limites e suas ânsias.

O Ensaio de Graduação “Em lugar de pena, taco de sinuca; em lugar de uísque, garrafa de cerveja: a contracultura na poesia marginal no Brasil no período da ditadura civil-militar por meio da obra 26 poetas hoje (1976)”, de Alexandre Vinicius Gonçalves do Nascimento, é uma análise da poesia marginal no Brasil no cenário da ditadura civilmilitar. Tendo a poesia marginal como fonte, o autor tece as formas de resistência forjadas nos anos de chumbo em meio ao movimento de contracultura. Pelo deboche, ironia e humor, conforme Nascimento, a poesia marginal questionou a ordem vigente, fundamentada na repressão e no arbítrio. Escrita em guardanapos, pedaços de papeis, em paredes, mimeografada, esta poesia ocupava as margens e ao mesmo tempo denunciava o interior. A antologia “26 poetas hoje”, de Heloisa Buarque de Holanda, publicada em 1976, é a fonte primordial para a análise, deslindando a criatividade de quem viveu e produziu marginalmente a poesia naquele momento histórico.

Na resenha sobre a obra de Thiago Moratelli, “Os trabalhadores da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil: experiências operárias em um sistema de trabalho de grande empreitada (São Paulo e Mato Grosso, 1905-1914)”, Caio Vinicius dos Santos adentra o mundo do desenvolvimento industrial e da expansão do “progresso” pelo interior brasileiro das primeiras décadas do século XX. No texto, nos deparamos com o contar das margens de uma sociedade comandada pelo seu centro elitizado, mas também nos confrontamos com o seu reverso, ao encontrar, nas linhas do texto, conforme Santos, a tonicidade e o desejo de dar vozes aos sujeitos marginalizados, silenciados pela história dos grandes nomes.

O livro “Cristianismos. Questões e debates metodológicos”, de André Leonard Cheviratese, resenhado por Juliana B. Cavalcanti, traz um debate acerca da memória coletiva, dos testemunhos bíblicos e da imagem iconográfica da mãe e o filho personificados nas páginas da Bíblia. A resenha apresenta uma construção importante para a análise do diálogo entre a memória e os sujeitos da história, tendo respaldo em suas coletividades, parábolas, entre vários outros exemplos.

Na seção fontes, apresentamos o texto de Daniel Rincon Caires, intitulado “Aquarelas de Joaquino Cândido Guillobel produzidas no Maranhão entre 1820 e 1822” que trata das pinturas do português Cândido Guillobel, feitas no Maranhão de 1820. Caires indica a dissertação de mestrado de Eneida Maria Mercadante Sela para um aprofundamento na biografia de Cândido Guillobel. Nas imagens apresentadas de Guillobel, as personagens são retratadas de modo a se observar cada detalhe, indo desde o ambiente, passando pelas vestimentas e chegando a estrutura corporal, ao mostrar hábitos e costumes do fim da colônia pelo olhar português. A leitura deste texto é primordial para a compreensão da importância das pinturas como fontes históricas.

Maria Celma Borges Bruno

Cezar Bio Augusto

Inverno de 2014


BORGES, Maria Celma; AUGUSTO, Bruno Cezar Bio. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.3, n.6, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Política e movimentos sociais / Revista Trilhas da História / 2013

A composição deste número é sugestiva para pensarmos a dinâmica da história, da política e de seus movimentos e agentes sociais. Os artigos apresentam contribuições substanciais para a compreensão dos discursos políticos produzidos desde o Brasil Império à Primeira República. Traz a discussão da vida na estiva, das políticas de colonização; das lutas dos mutilados pelo sisal na Bahia dos anos 1980 e das práticas de resistência das mulheres no contexto da Constituinte de 1988.

Os Ensaios, com propriedade, apresentam resultados de pesquisas na graduação, evidenciando como é profícuo o diálogo entre o ensino e a pesquisa na formação do professor. Os textos enfocam desde os lugares da “fala franca” na Antiguidade; de festas e de lazer na capital fluminense da Primeira República ao fazer artístico da Tropicália da década de 1970. A Resenha instiga o leitor ao conhecimento de parte da cultura do continente africano. A seção Fontes nos brinda com a história de um trabalhador da cana de Porto Rico.

É um prazer apresentar este número, pela sua riqueza, pela diversidade de temas e de contribuições que se entrelaçam, a partir de várias instituições de muitos lugares do país. A seguir apresentaremos cada uma das contribuições buscando instigar os leitores a acessar os textos integrais, carregados de vida e partilhados de forma generosa pelos autores.

O artigo “As relações Brasil e Uruguai através dos discursos do Visconde do Rio Branco proferidos em 1855”, de Jaqueline Schmitt da Silva, enfoca os discursos e as ações de Visconde do Rio Branco no quadro de conflitos entre Brasil e Uruguai, contribuindo para a discussão da história política e dos caminhos tomados pela política externa brasileira naquele momento histórico.

Erika Arantes, ao utilizar-se da documentação policial, entre outras fontes, em “A Vida na Estiva – O cotidiano dos trabalhadores do porto do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX”, conta a história dos trabalhadores do porto em sua dura rotina de desemprego e de violência policial. O enredo evidencia o drama do viver nas ruas e nelas dormir a procura de trabalho ou por não ter conseguido emprego para aquele dia, o que implicava vivenciar constantes repressões policiais, particularmente pela tarja da “vadiagem”. A rotina do trabalho e o modo de vida na zona portuária carioca do início da República desvelam as políticas de controle e o papel da polícia na tentativa de disciplinarização da classe trabalhadora. Mas, mais que isto, desvelam ainda os limites da administração pública e privada para este controle.

O artigo “A conciliação entre capital e trabalho em Evaristo de Moraes e Jorge Street via sindicato operário”, de Pedro Paulo Lima Barbosa, aborda dois autores que, segundo Moraes, mesmo em muitas ocasiões estando em lados opostos no debate do movimento operário da Primeira República, muito contribuíram para o abrandamento do conflito entre capital e trabalho. Isto se deu ao incentivarem a criação de sindicatos para “barganharem” junto à burguesia e ao Estado, evitando conflitos e a aproximação com alas “mais radicais”.

O texto “O movimento dos trabalhadores mutilados da região sisaleira da Bahia”, de Cassiano Ferreira Nascimento, apresenta um “movimento reivindicatório” da década de 1980, envolvendo trabalhadores rurais que sofreram mutilação e não conseguiram a aposentadoria por invalidez. O autor reconstrói histórias de lutas por meio de memórias dolorosas, ao contarem a experiência da amputação. A dor torna-se símbolo da resistência em um dos muitos movimentos que efervesceram por todo o país nos anos 1980. Os relatos demonstram o desespero diante da deformação e da falta de horizontes quanto a um novo trabalho. A mutilação é sentida como um marco de memória semelhante ao tempo da conquista da aposentadoria, pois a partir dela “viveriam em condições mais dignas”.

O artigo “„Lobby do Batom‟: uma mobilização por direitos das mulheres”, de Kerley Cristina Braz Amâncio, explicita a organização das mulheres, por meio do movimento político “Mulher e Constituinte”, empreendido pelo CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher) na luta pelo reconhecimento e inclusão de seus direitos na Constituição de 1988. Utilizando jornais da época e documentos produzidos por estas mulheres no movimento que ficara conhecido como “Lobby do Batom”, a autora, com propriedade, demonstra os lugares ocupados por essas ações de resistência que foram muito além da questão de gênero, pois redimensionaram o lugar das mulheres na classe trabalhadora.

O texto “Políticas de colonização no extremo oeste catarinense e seus reflexos na formação da sociedade regional”, de Paulo Ricardo Bavaresco, Douglas Orestes Franzen e Tiones Ediel Franzen, observa a condição de fronteira dos projetos de colonização alemã do alto Vale do Rio Uruguai, municípios de Mondaí e Itapiringa; da região de fronteira entre Brasil e Argentina, em Dionísio Cerqueira, e do município de São Miguel do Oeste. No estudo desses três espaços é possível entender que projetos de colonização implicam varias facetas como jogos de interesses, migrações, conflitos entre estados pela posse da terra e discursos civilizatórios. A abordagem traz para a cena da história a formação do espaço e do povo da fronteira oeste de Santa Catarina.

O Ensaio de Graduação “Transformações da „fala franca‟ no mundo antigo”, de Kauana Candido, parte da análise de Michel Foucault e de sua produção, em especial a parresia (a fala franca). Em seguida discute a política no contexto da Antiguidade grega e romana e as suas relações com a contemporaneidade, momento em que indaga: “o que é falar francamente”? As redes sociais e as ruas em movimentos ocorridos em 2013 possibilitaram discernir entre os “bajuladores” e os “parresistas”? Estas são questões que possibilitam o diálogo entre os diferentes tempos.

O Ensaio intitulado “‟E dançaram a noite toda, até a manhã…‟: Um estudo sobre o funcionamento das sociedades recreativas, carnavalescas e clubes na capital fluminense (1908-1913)”, de Igor Estevam Santos de Oliveira, faz uma análise bibliográfica e de fontes do Arquivo Nacional que permitem levantar um número expressivo de associações desta natureza nos subúrbios do Rio de Janeiro do início do século XX. O texto apresenta várias questões envolvendo estas organizações, e apreende os laços de amizade e de solidariedade mútua que poderiam facilitar a constituição de uma identidade comum entre os seus membros.

“Um verme passeia na lua cheia‟: performance e cenicidade audiovisual em Ney Matogrosso na construção de um fazer artístico na década de 1970”, de Robson Pereira da Silva, conta a trajetória artística de Ney Matogrosso, com ênfase para a sua inserção no movimento Tropicalista e ainda para a indústria cultural da década de 1970. O ensaio contribui para a compreensão dos movimentos artísticos que nasceram nesse período da ditadura militar e alicerçam a crítica ao regime, expondo ainda a transgressão corpórea e visual.

A Resenha de Júnio Viana Gomes do romance Hibisco Roxo, de autoria de Chimamanda Ngozi Adichie, apresenta a história de uma família nigeriana e os conflitos vividos na intimidade do lar, mas também no processo de colonização da Nigéria. Segundo Júnio Gomes, mais do que a narrativa da história de uma família bem sucedida, Adichie quer mostrar outras histórias e outros olhares sobre o continente e a cultura africana, com seus embates, contradições e a sua beleza.

Na Seção Fontes, temos o texto “Fonte para a história dos trabalhadores da cana – MINTZ, Sidney. Worker in the cane: a Puerto Rican life history”, de autoria de Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga e Pedro Henrique Falcão Sette. O romance conta a história de vida de um trabalhador da cana, “Don Taso”, que vive em Porto Rico, em meados do século XX, e sente no corpo o domínio econômico e político dos EUA, ao vivenciar a ocupação americana de seu país, após a Guerra hispano-americana de 1898. A abordagem, segundo os autores, é antropológica e etnológica, pois Taso, de quarenta anos, uma esposa e onze filhos, é um excelente informante. Amparado em gravações e anotações realizadas na convivência com Taso, Mintz apresenta uma história em que a sua preocupação é a de “compreender a presença estrangeira e as mudanças no modo de vida dos portorriquenhos”. Mintz destaca que a vida política de Taso explicita suas posições claramente contrárias ao patronato. Esta é uma análise reveladora das possibilidades da literatura como fonte para a história.

Uma boa leitura a todos!!!

Maria Celma Borges

Primavera de 2013


BORGES, Maria Celma. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.3, n.5, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos, Oralidades e Intolerâncias / Revista Trilhas da História / 2013

A Revista Trilhas da História chega ao quarto número mantendo ininterruptamente a periodicidade semestral. A quantidade e a qualidade dos textos recebidos, e a diversidade de instituições de pesquisa de que se originam os autores, demonstram o acerto do quadro docente e discente do Curso de História do CPTL / UFMS em lançar o periódico no segundo semestre de 2011, mesmo diante das adversidades do trabalho em uma instituição federal periférica.

A Revista agora está indexada na base Latindex, o que permite vislumbrar a inscrição no sistema de avaliação de periódicos Qualis / CAPES. As trilhas percorridas até aqui reforçam os objetivos iniciais da Revista de ser um espaço aberto às contribuições de pesquisadores experientes no ofício da História e áreas afins que contribuem na seção “artigos”, como também lugar em que alunos da graduação possam apresentar os caminhos iniciais de suas pesquisas na seção “ensaios”, se expondo para a crítica, algo necessário para o ensino-aprendizagem na graduação.

Os artigos e ensaios deste quarto número, inscritos no dossiê “Deslocamentos, Oralidades e Intolerâncias”, abrangem um longo período histórico, do século XVI à atualidade, bem como diversos problemas de pesquisa: gênero, religiosidade, história indígena, cotidiano, microhistória, história das ideias, economia, cultura, e fontes para a História.

O artigo de Wallas Lima e Edson Silva “Intolerância e sexualidade: a Inquisição em Pernambuco Colonial (1593-1595)” analisa o tema da sexualidade a partir de relatos de homens e mulheres acusados de sodomia e fornicação na capitania de Pernambuco. A análise dos autores coloca em evidência as relações da Igreja e a população colonial.

Em “Hierarquias, fortunas e artigos importados em Belém (1840-1870)”, as autoras Mábia Sales e Leila Mourão apresentam uma análise instigante que transita entre a economia e a cultura, a vida pública e a privada, o micro e o macro. A partir dos inventários do Centro de Memórias da Amazônia, as autoras analisam a circulação de mercadorias e de cultura, entre a Europa e o Pará, e a composição da riqueza de parte da elite da cidade portuária de Belém no XIX.

O texto de André Rego “Deslocamentos espaciais de índios nas aldeias e vilas indígenas da Bahia do século XIX” aborda o deslocamento de núcleos indígenas pressionados pela configuração fundiária e a demanda pela mão de obra. O estudo demonstra que a forma da relação com as comunidades indígenas no Império seguia os preceitos do que regia a legislação da Colônia.

No artigo “Capoeira, do crime à legalização: uma história de resistência da cultura popular” os autores Albert Cordeiro e Nazaré Carvalho apresentam uma história da capoeira no Brasil, com base na pesquisa bibliográfica. A narrativa histórica compreende a manifestação da capoeira na Bahia, no Rio de Janeiro e no Pará, desde a colônia ao início do século XX, quando a prática é legalizada pelo Estado.

Priscilla Silveira em “„Doces memórias…‟: produção de doces na Usina Oiteirinhos em Sergipe durante a trajetória de Dona Baby (1954-1968)”, destaca as doces delícias da culinária pernambucana e sergipana por meio de um estudo da oralidade. Trata-se de uma história da alimentação, da tradição alimentar, a partir da história de vida de uma personagem nordestina.

No artigo “A presença batista em Mato Grosso” Ademar Silva narra uma história da Igreja Batista em Mato Grosso, especialmente a migração de batistas para o sul do estado, em vinculação com São Paulo, entre as décadas de 1910 e 1940. Importa ao autor, também, compreender a imposição da moral religiosa batista às mulheres.

Em “De volta para o princípio: ensaio sobre o resgatar identitário” o geógrafo Júlio Ribeiro apresenta uma discussão teórica da identidade do ser socioespacial. No interior de uma tradição teórica testada de longa data, o autor trava embate com as certezas da mundialização e do capital, colocando a questão da identidade / neo(des)identidade no lugar de polêmica que o conceito requer.

Diovana Thiago propõe uma reflexão sobre o saber científico nas ciências humanas, com destaque para a História. A autora concentra-se na crítica ao método tomado como formatador e limitador do exercício do pensamento, especialmente para a ciência História, e na necessidade de o discurso do historiador se abrir para além da área, para fora do domínio acadêmico.

O artigo de Rubens Correa “Parâmetros teóricos e políticoinstitucionais das independências no mundo hispano-americano” apresenta a história da historiografia do processo de independência dos estados hispanoamericanos. O autor aponta para as abordagens da Nova História Política que compreendem os movimentos de independência a partir das dinâmicas políticas internas às colônias, na relação com a metrópole.

A seção dos graduandos, “ensaios”, inicia com o texto de Iara Silva, “Cristianização da Nova Terra: os jesuítas e a catequese na Colônia”. A autora parte de documentos reproduzidos no todo ou em partes pela historiografia, para estudar a catequização dos povos originários e colonos por parte da Companhia de Jesus, na América Portuguesa.

Rogério de Paula em “Breves considerações sobre a agropecuária e o mercado interno de víveres na América Portuguesa (séculos XVII e XVIII)” apresenta um ensaio de história econômica conjugado à história demográfica, com o objetivo de compreender o comércio de víveres e a produção de gêneros de subsistência na colônia.

No ensaio “Estudos migratórios: as fontes orais e a busca de uma epistemologia histórica”, Nelson de Lima Junior discute a metodologia da história oral e a sua contribuição para o estudo da migração.

A seção “resenhas” traz a apresentação construída pela graduanda Rejane Rodrigues da obra de Elciene Azevedo “O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo”, da Editora da UNICAMP. O livro contribui para se entender o processo que envolve a luta abolicionista em São Paulo nas últimas décadas do século XIX.

Na sequência, o graduando Charles Asssi apresenta a coletânea de textos organizada por Mirian Claudia Lourenção Simonetti “Assentamentos rurais e cidadania: a construção de novos espaços de vida”, das Editoras Cultura Acadêmica e Oficina Universitária. Trata-se de obra coletiva que traz estudos acerca dos movimentos sociais, da reforma agrária e de assentamentos rurais, na perspectiva da Geografia, da História, da Sociologia, da Economia e da Agronomia.

O professor Geraldo Menezes Neto, da Rede de Educação de BelémPA, destaca o livro de Mark Curran “Retrato do Brasil em cordel”, publicado pela Ateliê Editorial. O livro é um estudo fora do âmbito acadêmico que contribui para se entender a história desta manifestação literária popular.

Por fim, a seção “fontes” traz o texto da graduanda Mariely Sousa intitulado “Gregório de Matos: uma análise da Bahia e da América Portuguesa por meio de suas poesias”. A autora compreende a literatura como fonte para a História, para tanto discorre sobre a obra de Gregório de Matos, contextualizando-a na América Portuguesa, especificamente na Bahia de fins do século XVII.

Vitor Oliveira

Inverno de 2013.


OLIVEIRA, Vitor. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, n.4, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Regiões e Identidades / Revista Trilhas da História / 2012

O artigo “Vias de transporte em regiões de fronteira: possibilidades técnicas, interesses econômicos e imperativos políticos”, do Prof. Paulo Roberto Cimó Queiroz, tece uma discussão fundamental para iniciarmos o Dossiê sobre as “Regiões e Identidades”. De forma generosa, o autor discute como se configuraram as redes de transporte em regiões de fronteira, tendo como eixo de abordagem o extremo oeste. Ao inspirar-se em Lucien Febvre (1949), redefine o conceito de fronteiras humanizando este espaço / lugar, visto como “lugar de encontro e conflito de alteridades”. Agradecemos esta contribuição para que possamos continuar caminhando pelas trilhas da história.

O artigo “Em nome da civilização: o Mato Grosso no olhar dos viajantes”, de Carlos Alexandre Barros Trubiliano, é instigante para a discussão de Mato Grosso na perspectiva dos viajantes de fins do século XIX e início do XX. O autor desnuda uma leitura comum nesse período: a de Mato Grosso como região de “ambiente hostil”, de “barbárie” e de “atraso”. Os povos originários aparecem como “selvagens”, ocupando lugares que deveriam ser destinados à “civilização”. Problematizando cada um desses conceitos, a leitura é enriquecedora, carregada de vida e preocupada em evidenciar o quanto o peso da “civilização” influiu nas imagens sobre Mato Grosso.

O artigo “Disciplinarização e biopolítica na Província de Mato Grosso do século XIX”, de Patrícia Figueiredo Aguiar, nos brinda com uma reflexão importante para entendermos a década de 1830 na Província de Mato Grosso, particularmente na discussão dos códigos criminais e do modo como foram interpretados, pela autora, como tecnologias do poder para “disciplinar” os “indesejáveis”. A análise se detém no entendimento da história do Brasil Imperial e de uma Província distante da capital, mas próxima no desejo de “civilizar-se”. A “administração de condutas” e o “controle do território” era uma preocupação premente do poder imperial por toda a Regência. O texto, então, nos propicia o aprofundamento desta discussão.

O artigo “A Eucaliptização da Microrregião de Três Lagoas”, de Mieceslau Kudlavicz, traz a reflexão para o tempo presente e aborda as transformações que vem ocorrendo no modo de vida e de trabalho de milhares de trabalhadores nos meios urbano e rural dos municípios desta região, oriundas das atividades envolvendo a produção do papel e celulose, em detrimento da produção camponesa. Em nome do “progresso”, a região vem sendo ocupada por extensas áreas de monocultura de eucalipto, em lugares que poderiam ser destinados para o plantio de alimentos por meio da reforma agrária. Kudlavicz evidencia, de forma clara, a dissonância desta lógica perversa do capital que inclui bem poucos e exclui uma parte significativa da população.

O artigo “Nas fronteiras do oeste do Paraná: Conflitos Agrários e Mercado de Terras (1843 / 1960)”, de Leandro de Araújo Crestane e Erneldo Schallenberger, problematiza os conflitos agrários e o mercado de terras no oeste do Paraná. No estudo de caso da Gleba Santa Cruz, os autores evidenciam a luta dos posseiros e colonos, ao se depararem com as ações das Companhias colonizadoras, observando-se ainda o embate entre elas e o Estado do Paraná. A partir de entrevistas, essas lutas vão sendo enunciadas e demonstram sua radicalidade, a exemplo da luta armada, num momento em que várias regiões do Paraná fervilhavam de conflitos agrários. O levante à margem do Piquiri é evidência dessa história.

O texto “Bosque Marechal Cândido Rondon (Londrina – PR): patrimônio e identidade”, de Fernanda Frozoni, é revelador da história das identidades desenhadas pelos sujeitos na ocupação dos espaços urbanos. A utilização desses espaços desnuda o lugar que é ocupado na memória dos transeuntes, ou seja, o lugar se define a partir da práxis, do modo de vida e de trabalho daqueles que ali estão presentes. O espaço pode ser reapropriado, comercializado, abandonado pelas políticas públicas, mas é também fundamentalmente vivido pelos homens, mulheres e crianças em suas práticas cotidianas. A abordagem apresentada pela autora possibilita que uma parte da história de Londrina, no Paraná, seja recontada não pela perspectiva da lógica do espaço como mercadoria, mas como fruto da ação humana.

O artigo “Autoridade na contemporaneidade: do conceito à acepção”, de Maridulce Ferreira Lustosa, contribui para a reflexão das identidades ao propor uma discussão da autoridade e dos vínculos afetivos que a constituem, envolvendo as relações humanas. Ao buscar o conceito de autoridade, a partir de autores como Sennet (2001), Arendt (2007), Weber (2001), entre outros, a autora contribui para o debate desta temática que envolve fundamentalmente as relações de poder, construídas historicamente a partir das relações sociais, sendo apresentadas pela autora com perspectivas teóricas diversas. “Conceitos, crises e imagens” de autoridade são abordados para explicitar a dinamicidade da discussão do conceito de autoridade.

O artigo “Hades na Ilíada: a formatação da morte no épico homérico”, de Leandro Mendonça Barbosa, encerra esta seção nos remetendo à história antiga. Ele se aproxima da temática das Regiões por possibilitar pensarmos na versatilidade desse conceito, na medida em que o autor analisa as regiões do “inframundo” ou “mundo dos mortos”, a partir da representação de Hades, o “deus do submundo”, na Ilíada. Vale observar que esta versatilidade foi conquistada no alargamento das concepções de espaço pela história do imaginário. Também a questão da identidade é contemplada, pois remete aos lugares do imaginário e ao modo como as pessoas se identificavam ou mesmo negavam as divindades. O autor destaca a carência de estudos sobre Hades, observando que a própria literatura grega vivencia esta ausência.

O ensaio de graduação “As desventuras de um renascentista entre os Tupinambás: a visão do viajante Hans Staden sobre as terras e os povos do Brasil”, de Rafael Pereira da Silva, faz um estudo sobre a colonização da América portuguesa, logo em seu início, a partir da interpretação da obra “Viagem ao Brasil”, do alemão Hans Staden. Conforme o autor, no olhar dos viajantes apresenta-se uma construção sobre a “descoberta” dessa “nova terra”. Este texto é instigante, pois não se furta a trabalhar os escritos de Hans Staden como fontes históricas, vestígios para que possamos tecer as nossas próprias abordagens, na esteira do saber de outros pesquisadores.

O ensaio de graduação “Identidade no contexto migratório: Um estudo das narrativas epistolares”, de Marciana Santiago de Oliveira, faz uma reflexão sobre as cartas do Boletim VAI VEM, as quais descrevem a construção da identidade de muitos migrantes para a região noroeste paulista na busca de melhores condições de trabalho e de vida. Ao explorar essas cartas, como fontes históricas, a autora constrói uma narrativa entrelaçada à história social do trabalho, numa abordagem “vista de baixo”. É esse vai vem que nos permite enxergar a trajetória de sujeitos marcados pela vida de trabalho, pela construção de uma identidade de migrantes e pela materialização de suas lutas por meio do Boletim. O ensaio permite ainda visualizar a importância da Arquivologia para a pesquisa histórica.

A resenha “Multidões em cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo”, de Maurílio Dantielly Calonga, traz uma análise do regime de Getúlio Vargas e de Juan Domingos Perón, por meio das propagandas políticas, tecendo a intensidade que essas propagandas tiveram e como contribuíram para a ascensão de Vargas e Perón ao poder. O autor aponta e caracteriza as diferenças históricas entre o Brasil e Argentina nesse período, e a propaganda como instrumento de coerção, sendo monopólio dos governos para conquistar o apoio da sociedade.

A resenha “Nas margens da boiadeira: territorialidades, espacialidades, técnicas e produções no noroeste paulista”, de Natália Scarabeli Zancanari, apresenta um estudo importante, estabelecido a partir de fontes documentais e fontes orais, envolvendo a região do noroeste paulista, sob o viés econômico e geográfico. A obra problematiza ainda a vivência no campo com a dinâmica da relação agro mercantil da pecuária no século XIX e XX, bem como a associação do desenvolvimento e progresso a partir da relação do rural e o urbano e o desenvolvimento da economia mercantil por meio da pecuária.

No trabalho com as fontes, Wesley de Paula David faz um estudo dos costumes, a partir de E. P. Thompson e do diálogo com a literatura por meio da obra Inocência, de Visconde de Taunay, considerando essa obra tanto uma fonte histórica quanto uma fonte literária. Utiliza de outros teóricos para entender qual a relação a história estabelece com a literatura. A interpretação da obra, a partir do diálogo entre teoria e a fonte, bem como o diálogo entre a obra literária e o olhar de historiador na interpretação do texto como prática social, favorece ao entendimento de hábitos vividos no sertão do sul de Mato Grosso. Finalizando a abordagem, o autor visualiza o sertão com costumes constituídos por saberes de gente comum.

Os textos apresentados nesse Dossiê evidenciam o quanto é necessário continuarmos a tecer as trilhas da história, esperando que elas possam ser sempre ampliadas com a participação discente, docente e da comunidade mais ampla, de inúmeros lugares, particularmente no alargamento de problemas de pesquisa e na humanização de saberes.

Maria Celma Borges

Rodrigo Ferreira Ornellas

Primavera de 2012


BORGES, Maria Celma; ORNELLAS, Rodrigo Ferreira. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, n.3, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e Religiosidade / Revista Trilhas da História / 2012

A Revista Trilhas da História, do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Três Lagoas, chega a seu segundo número com a felicidade de contar com colaboradores que endossam e contribuem sobremaneira com a maior vocação desse periódico, a saber, constituir-se cada vez mais em veículo do saber acadêmico sério, democrático e representante de um conhecimento histórico na sua melhor relação com outras disciplinas humanas.

O presente dossiê “Cultura e Religiosidade” foi pensado a partir do “II Simpósio Internacional de História e XIV Semana de História da UFMS / CPTL, Cultura e Religiosidade: abordagens e métodos”, em 2011, e dá continuidade aquela temática e seus escopos, ou seja, cuidar de dois conceitos tão ricos à historiografia como às ciências humanas que a auxiliam e a enriquecem. Por isso, como o leitor poderá averiguar aqui, assistimos a feliz contribuição de abordagens sociológicas, antropológicas e históricas nas suas mais diversas abordagens, assim como de seus respectivos especialistas. Igualmente pudemos contemplar temporalidades múltiplas, espacialidades específicas, fontes e objetos singulares, sem perder de vista a dupla temática que une a todos, “Cultura e Religiosidade”, as quais, por sua vez, estão em estreita consonância, se tivermos por parâmetro as abordagens multidisciplinares a respeito da cultura, entendida agora, mais por sua universalidade do que, por exemplo, por sua tradicional e estanque dualidade “erudita”, “popular”.

Como já se disse, a cultura popular é aquela que contempla e oferece às mais diversas camadas sociais, um denominador comum cultural; por fim, que populariza algumas expressões, visões de mundo, formuladas tanto por uma camada mais erudita como aquela proveniente das tradições ditas folclóricas, orais, mais ligadas à memória, as suas modificações e retificações mais dinâmicas, caracterizada ainda por uma licença criadora e sensível as instabilidades do vivido e do experimentado, da policromada visão de mundo apresentada pelas práticas e pelos conceberes cotidianos. Daí que a religiosidade, no âmbito da relação homem / sagrado, é uma das mais ricas expressões dessa cultura popular.

A religião, ou sua melhor expressão no âmbito dessa cultura, a religiosidade, liberta os conceberes e os sentimentos humanos das amarras do canônico, erigi-se em um fenômeno humano privilegiado que liga o homem ao simbólico, as sensibilidades, aos ideários e sentimentos mais profundos daquela universal visão de mundo humana que são os arquétipos, o denominador comum que nos liga, ainda que modificado espaço-temporalmente por tradições socioculturais específicas sobre o qual recai a essência do existir e da experiência humana.

Por isso, a religiosidade só pode falar do sagrado enquanto cuide do humano e o entenda inserido em uma cultura específica, embora extrapole seus próprios limites em razão desse duplo denominador comum: aquele que abole ou relativiza a dualidade erudito / popular e aquele que une as diversas tradições socioculturais, quando se busca a universalidade e a essencialidade do ser e existir humano, presente sobretudo nas abordagens de longa duração, das emoções que, não obstante, inferindo mesmo na razão, prezam mais pelas permanências que pelas transformações.

Portanto, apresentamos aqui artigos que endossam e testemunham a importância e a amplitude do que vimos expondo. Textos que cuidam das vicissitudes do cristianismo antigo em sua confrontação ou conformação com espaços e tradições culturais a princípio a ele não tão consoantes, como as cidades e territórios povoados por outras tradições socioculturais e religiosas (Gilvan Ventura da Silva); que cuidam do cristianismo medieval, sobretudo a partir da visão da religiosidade por escritos oriundos da tradição erudita (Everton Grein). Trabalhos mais estreitamente ligados a uma abordagem antropológica da religião, como a construção do estereótipo da feiticeira a partir de uma visão tanto da Igreja, quanto da cultura popular, de onde se destaca, ademais, o papel da mulher na História (Helen Ulhoa Pimentel); ou das práticas religiosas afro-brasileiras no seu embate com a cultura cristã, fundamentada numa visão católica, a qual sempre procedeu em um sentido de “demonização” das religiosidades fundadas numa visão animista e politeísta do sagrado, estigmatizando essas práticas não só no campo do espiritual, mas na e pela sociedade tradicional, a exemplo da macumba, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (Roberta Soares Machado; Mario Teixeira de Sá Junior); ou aquele que trata de uma abordagem mais sociológica, das influências na visa social a partir do aparecimento de novas denominações religiosas, as igrejas neopentencostais, e seu influxo na vida social e psicológica dos novos adeptos (Claudia Neves; Denice Barboza de Souza; Patricia Vicente Dutra).

A contribuição a esse número fica ainda por conta dos ensaios de graduação apresentando temas como: a cultura camponesa, com ênfase para o modo de vida do camponês em confronto com o do latifundiário (Wagner José da Rosa), a religiosidade popular colonial e as dimensões do sagrado e o profano (Marcos Sanches da Costa) e a história da 2ª. estação ferroviária de Londrina – PR, vista como portal de ferro, expressão de um estilo urbanístico e ao mesmo tempo lugar de cultura (Priscilla Perrud Silva). Tem-se ainda a resenha de um livro que contempla a temática da história, gênero e sexualidade (Tânia Regina Zimmermann).

Encerrando os trabalhos tem-se como fonte a Entrevista realizada por Lourival dos Santos com Vicente Paula da Silva, devoto de Nossa Senhora Aparecida. A partir da transcriação, o autor nos apresenta um exercício de análise e tratamento da fonte oral, interpretada como testemunho das visões e práticas da religião católica popular brasileira.

De modo especial desejo lembrar da professora Maria Celma Borges (UFMS / CPTL) que, embora não tendo seu nome constando diretamente nesse número, foi a sua mais calorosa e laboriosa promotora, como o foi para o número anterior, e já tem sido para os próximos.

Queremos assim, expressar nossos agradecimentos a todos os colaboradores desse Dossiê, professores, pós-graduando, alunos de graduação; àqueles que doaram um pouco de si, que nos presentearam com aquilo que deve lhes ser mais rico e laborioso, ou seja, o trabalho escrito, fruto moroso e amadurecido de leituras, reflexões, discussões e que expõe aquilo que vivemos nas relações mais particulares conosco mesmo em nossos gabinetes para colaborar com a vida acadêmica e com a sociedade humana de uma forma mais geral.

Ronaldo Amaral

Inverno de 2012


AMARAL, Ronaldo. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, n.2, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e Poder / Revista Trilhas da História / 2011

A organização do Dossiê Cultura e Poder, apresentado como o primeiro número da Revista Trilhas da História, resulta da seleção de textos produzidos para o VI Ciclo de Palestras “A História em Movimento: Cultura e Poder na Antiguidade e no Tempo Presente”, ocorrido em 2010, no campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Resulta também de trabalhos desenvolvidos no Curso, em 2011. Já no contexto do Ciclo tínhamos por objetivo discutir a história antiga e no tempo presente, buscando culturas, poderes e saberes em objetos, sujeitos e tempos distintos.

Se o objetivo, neste momento, é a abertura de trilhas na história, nada melhor que iniciarmos com o texto “Homossexualidade na Bíblia Hebraica ou uma Historiografia Bicha?”, de Fernando Cândido da Silva, ao problematizar, de forma provocativa, esta temática da cultura e poder, mostrando a sua relevância na construção de outras histórias, não apologéticas, nem muito menos neutras, mas reveladoras da potencialidade que o tema enuncia.

O texto “As transformações das imagens de Dioniso (séculos VI e V a.c): o caso da Tirania”, de Leandro Mendonça Barbosa, contribui semelhante ao anterior, para refletirmos sobre a importância dos estudos da antiguidade. Ao trabalhar, com maestria, as transformações da imagem de Dioniso, por meio da análise dos vasos fabricados nos séculos relacionados e de pesquisadores que tratam da temática, o autor discorre sobre a utilização deste deus pelos governos liderados pela tirania, observando como as divindades campestres tornaram-se presentes no meio urbano.

O texto “O Batalhão Sagrado de Tebas: militarismo e homoafetividade na Grécia Antiga”, de Fortunato Pastore, dando continuidade aos estudos da antiguidade, objetiva, conforme o autor, contribuir para a compreensão da “capacidade militar do Batalhão Sagrado de Tebas, unindo fatores e interpretações que, geralmente, se apresentam separadas ou com frágil vinculação”. O cerne está na discussão da relação entre a capacidade militar e a homoafetividade na Grécia Antiga, partindo da análise de Epaminondas, apresentado como o principal representante do Batalhão Sagrado de Tebas, e um dos responsáveis pelas inúmeras vitórias desse corpo militar.

Adentrando as reflexões do presente – ou de um presente mais próximo – a discussão de Isabel Camilo de Camargo, em “A ocupação de Paranaíba no século XIX e a gênese do latifúndio na região”, traz o debate do século XIX para este tempo, ao enunciar o processo de ocupação da terra no sul de Mato Grosso, e enfatizar a gênese da grande propriedade em Paranaíba, com o olhar para os sujeitos envolvidos. Sua discussão inova por propor um debate para além da história dos pioneiros, ao enfocar as pessoas comuns como agentes da história e problematizar a questão da escravidão, tão importante por adentrar na “periferia” da escrita da história e se dispor a discutir abordagens consagradas na historiografia regional.

O artigo “Dinâmica econômica e organização territorial da Mesorregião Leste de Mato Grosso do Sul”, de Patrícia Helena Minali e Edima Aranha Silva, ambas geógrafas, contribui para a história e a compreensão das relações de poder, ao enfocarem a “ferocidade das ações” e as mudanças na dinâmica territorial da Mesorregião Leste de Mato Grosso do Sul, particularmente com o aumento ostensivo do plantio de eucaliptos, visando atender aos interesses do capital. As figuras apresentadas pelas autoras (mapas, tabelas), em especial as que se referem ao modelo celulose-papel, possibilitam entender o peso do poder da empresa Votorantim na ocupação de espaços em redes geográficas pelo globo terrestre, internacionalizando o trabalho e, consequentemente, a exploração do meio-ambiente, do trabalhador e da sociedade como um todo.

Os artigos “Sob a Insígnia do Trabalho: Notas Sobre a Potencialidade Transitivo-Fundacional da Sociedade”, de Júlio Cezar Ribeiro, e “Um exercício historiográfico sobre o tema trabalho: um breve ensaio”, de Juliano Alves da Silva, discutem a importância do trabalho como categoria analítica e expressão da ação humana, a partir de abordagens que propõem tanto o debate teórico, particularmente o primeiro, quanto a reflexão das experiências do cotidiano dos sujeitos no presente, a exemplo da classe trabalhadora nas indústrias de Aparecida do Taboado-MS, realizada por Silva. A questão do poder norteia as abordagens, pois é impossível discutir o trabalho sem relacioná-lo ao poder.

O texto “Edificando a diferença: mecanismos de Biopoder durante a construção da Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira”, de Tiago de Jesus Vieira, aponta para os mecanismos de poder utilizados pela empresa responsável na construção da hidrelétrica de Ilha Solteira e, mais que a usina, pela edificação da cidade e a estratificação dos sujeitos. Utilizando o jornal “O Barrageiro”, e fontes da CESP, entre outras, inspirado em Michel Foucault, discorre sobre os meandros de poder e os interesses implícitos nas práticas da empresa.

O ensaio de Graduação “A ditadura econômica e a política autoritária: subversão dos militantes católicos do IAJES na região do Alto Paraná”, de Marcelo Fernandes Brentan, principiando pela análise das formas repressivas de Getúlio Vargas aos anos da ditadura militar, tal como sobre os projetos econômicos desses contextos, busca analisar as pastorais sociais e parte da igreja católica na região do Alto Paraná, com o olhar para a relação entre a igreja e a política. A sua preocupação está em problematizar o papel do IAJES (Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor), nos anos de 1960 e 1990, entendendo-o como propulsor de novos movimentos sociais.

Outro ensaio de Graduação, que traz uma temática profundamente relevante sobre a cultura e poder, é o de Larissa Fernanda Garcia Botacci, em “A construção social do sexo: alguns aspectos a considerar sobre a terceira idade”. Partindo do estudo sobre os sentidos da sexualidade dos idosos, a autora busca “descortinar alguns significados e implicações do comportamento sexual no processo de envelhecimento”. A sua abordagem é instigante para repensarmos o lugar ocupado pelo idoso em nossa sociedade. Ao desvendar preconceitos possibilita que possamos avançar no debate.

O terceiro ensaio de Graduação, “A luta pela terra em Andradina-SP: os posseiros da Fazenda Primavera”, de Hélio Carlos Alexandre, apresenta uma discussão fundamental para pensarmos a cultura e o poder na história do Brasil. Ao trabalhar a questão agrária na fazenda Primavera e a luta dos posseiros até o assentamento Primavera, o autor nos faz enxergar os homens e mulheres que há décadas construíram suas histórias, alicerçando ações em memórias de luta. Ao analisar esses sujeitos, o autor, por ser parte dessa história, em meio a ela vai se enredando, mostrando a trama que envolve milhares de famílias brasileiras, historicamente relegadas ao peso do latifúndio, do poder econômico e político que impera em nossa sociedade.

Somando-se aos Artigos e Ensaios temos ainda duas Resenhas. A primeira de Charles Assi, graduando em História, na UFMS de Três Lagoas, e da autora desta apresentação. A obra resenhada, “Nervos da terra – Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP”, do antropólogo Danilo Paiva Ramos, conta histórias e memórias da luta pela terra, a partir do estudo das narrativas das “histórias de assombração”, contadas pelos assentados, entrelaçando luta e política. Uma abordagem instigadora do diálogo entre a História e a Antropologia.

A segunda Resenha, escrita pelo graduando em História, do CPTL / UFMS, Dante Duran Previatti de Souza, apresenta o livro: O mundo se despedaça, de Chinua Achebe. Uma obra que retrata a cultura e a ancestralidade Ibó, da qual Achebe é descendente. Conforme Souza, a abordagem deste autor imprime à obra “um caráter histórico, além do literário”. A seleção desta Resenha, produzida por um acadêmico do segundo semestre do Curso, expressa a esperança de que os graduandos continuem a produzir textos de qualidade, passíveis de serem publicados e horizontes para as novas pesquisas.

Temos ainda uma parte muito especial: as Fontes. Esta seção traz o texto “A utilização de processos-crime em busca de novos sujeitos: perspectivas e desafios”, de Joycimeire Carlos Lélis e Rejane Trindrade Rodrigues, ambas graduandas de História, da UFMS. Na apresentação da fonte, as autoras escolheram um fragmento de um processo criminal, instaurado em Sant’Ana do Paranaíba, em 1881, que versa sobre uma história de amor e de violência. Fazendo um exercício teórico-metodológico, observam os caminhos e descaminhos na interpretação de fontes desta natureza.

As trilhas da história fazem com que sujeitos e tramas se entrelacem, em lugares e tempos diversos: na antiguidade e no presente; na graduação e pós-graduação. Produções advindas de outras áreas, como a Geografia e a Antropologia, contribuem para a confecção de saberes que vão além das especificidades das disciplinas, por possibilitarem um diálogo rico e constante, num exercício interdisciplinar. Que nossas trilhas permaneçam assim, entrelaçando áreas e conhecimentos (de doutores, doutorandos, mestres, mestrandos, graduados e graduandos…) em caminhos que somente se efetivam no desafio da escrita e no sabor da pesquisa.

Maria Celma Borges

Primavera de 2011.


BORGES, Maria Celma. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, n.1, jun. / nov., 2011. Acessar publicação original [DR]

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