Direitos humanos e políticas de memória / História – Questões & Debates / 2020

O Dossiê que temos a satisfação de apresentar ao olhar crítico dos leitores da Revista História: Questões & Debates, reafirma nossas convicções sobre as exigências que a história nos impõe em não permitir apagamentos, silenciamentos, ocultações e censuras em face de experiências traumáticas que afetaram (e afetam) o cotidiano do Brasil e da América Latina. Elaborar o traumático por meio de um trabalho de memória, como destacou Elizabeth Jelin (2002), implica colocar uma distância entre o passado e o presente. Mas esta distância implica igualmente em não recusar as interações dinâmicas e as contínuas reapropriações que marcam as temporalidades históricas. Significa, ao contrário, recordar que algo ocorreu, e ao mesmo tempo, reconhecer a vida presente e os projetos futuros. Levando em consideração as circunstâncias políticas passadas e presentes que repercutem no modo pelo qual as nossas sociedades produzem suas representações; preocupados com os processos históricos que maximizam as situações de vulnerabilidade de grupos sociais e comunidades, e atentos à lição de Jelin, nossa crença é que são cada vez mais urgentes as reflexões que congregam o binômio “direitos humanos” e “memória”. Quer nos parecer, portanto, que tal urgência está plenamente contemplada no conjunto dos artigos que compõem este Dossiê. Um Dossiê tecido por narrativas plurais; construído pelas vozes da persistência, e, sobretudo, concebido pela coragem de não tangenciar ou se omitir diante da responsabilidade de enfrentarmos um duplo desafio: educativo e político.

É imperativo destacar dois aspectos. Primeiro, o potencial crítico e analítico alicerçado sob o binômio “direitos humanos” e “memória” e em seus desdobramentos temáticos possíveis, é o que temos nos empenhado em desenvolver no âmbito de uma rede de investigadores brasileiros e de outros países que, afortunadamente, tem se ampliado nos últimos anos, justamente, a partir de interesses comuns de pesquisa e pelo intenso grau de similitudes entre seus objetos de estudo. Destarte, os debates gerados no Grupo de Pesquisas DIHPOM (Direitos Humanos e Políticas de Memória), sob coordenação da pesquisadora e professora Marion Brepohl, têm auspiciado uma série de publicações e encontros científicos que contribuem para refinar e reformular as percepções sobre o mundo no qual atuamos. Em segundo lugar, reforçamos como estatuto epistemológico de nossas práticas, a opção por uma vertente profundamente crítica tanto em relação ao uso instrumental e etnocêntrico da noção de direitos humanos; quanto aos modismos que inflacionam e despolitizam o conceito multiforme de memória. É sob tal orientação que se organizam os nove artigos oferecidos ao leitor pelo Dossiê “Direitos Humanos e Políticas de Memória”.

No artigo que abre o Dossiê, de título “Desafios para a história nas encruzilhadas da memória: entre traumas e tabus”, Marcos Napolitano enfoca as categorias de trauma e tabu vinculando-as à análise dos processos de memorização e suas conexões com o conhecimento histórico, sobretudo, na apreensão dos períodos marcados por violências extremas. O autor constrói uma reflexão em que visualiza o “trauma” como categoria recorrentemente apropriada pelo campo de saberes historiográficos; enquanto o “tabu” é identificado como uma espécie de negação produzida pelos perpetradores das violências e seus herdeiros. Ambos são mobilizados para analisar e compreender as mutações na memória hegemônica da ditadura militar brasileira.

Em seguida, Diogo Justino no artigo “Uma responsabilidade pelo que não fizemos? A memória como fundamento da responsabilidade histórica em Walter Benjamin e Reyes Mate” explora as relações entre memória e história a partir de um diálogo entre Benjamin e Reyes Mate. Justino pauta sua análise pensando os vínculos entre passado e presente, centrais na reflexão do filósofo alemão, conectando-os com a noção de memória da injustiça como fundamento de uma ideia de responsabilidade histórica em Reyes Mate. O autor conclui que a operação de pensar o presente a partir do passado, incluindo as experiências de injustiça, é como pensar sobre as responsabilidades que as gerações do futuro possuem em relação às gerações do passado.

No terceiro artigo, “La violencia dictatorial y la violencia estatal de largo plazo en el Cono Sur de América Latina: entre lo excepcional y lo habitual”, o historiador argentino Daniel Lvovich propõe uma série de perguntas e vinculações entre as modalidades mais gerais da violência estatal contra a próprias populações, e as formas de violência especificamente políticas instauradas pelos estados nos períodos ditatoriais. Para Lvovich, a violência política representa a potencialização em escala geométrica da violência cotidiana previamente existente e que atinge as comunidades nacionais, tendo como alvos involuntários os setores mais vulneráveis da população.

Magdalena Figueredo Corradi e Fabiana Larrobla Caraballo, em “Una aproximación a la metodologia de investigación de los crímenes de lesa humanidad en las dictaduras del cono sur. La experiencia del Equipo de Investigación Histórica (EIH) – Uruguay”, tratam do processo de construção de uma abordagem metodológica cujo enfoque trandisciplinar, permite às autoras trazer ao leitor o exitoso trabalho realizado durante mais de quinze anos na investigação sobre os crimes cometidos pelo estado uruguaio dentro de seu território, e no marco do Plano Condor. O empenho sistemático no âmbito do EIH tem como princípios contribuir para os processos de verdade, justiça e reparação em relação às graves violações de direitos humanos cometidas pelas últimas ditaduras do século XX no cone sul, mas também almeja gerar um campo de estudo que possa ampliar o escopo de metodologias favoráveis ao trabalho dos investigadores.

As percepções do direito internacional humanitário quanto à reparação jurídica e ao direito à memória são desenvolvidas por Melissa Martins Casagrande e Ana Carolina Contin Kosiak, no artigo “Reparação jurídica e direito à memória: o papel das sentenças condenatórias internacionais e estrangeiras sobre desaparecimentos forçados”. As autoras propõem que sentenças condenatórias referentes às violações de direitos humanos cometidas em períodos ditatoriais têm um duplo papel: prover reparação jurídica às vítimas e / ou aos seus familiares; assim como produzir meios documentais que permitam o acesso ao passado contribuindo para a consolidação do direito à memória. O recorte temático mais específico repousa na atuação transnacional da Operação Condor e as suas responsabilidades no desaparecimento forçado de opositores das ditaduras na América do Sul entre as décadas de 1960 e 1990.

No artigo seguinte, de título “Los refugiados chilenos residentes en Argentina como un ‘problema de seguridad nacional’, 1973-1983”, Maria Cecilia Azconegui estuda as repercussões do golpe pinochetista no cenário político argentino. Azconegui explora os impactos provocados pelo ingresso de milhares de refugiados chilenos no território argentino, e analisa as mudanças nas percepções e nas políticas de governo com respeito a esses refugiados. A autora sugere que, gradativamente, os chilenos passaram a ser considerados uma ameaça cuja permanência na Argentina devia ser objeto de regulação, controle, e mesmo, repressão, eliminação física ou expulsão, a despeito dos mecanismos de proteção proporcionados pelo ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

Ao relacionarem as Comissões da Verdade e a literatura no artigo “Experiências de ditadura na Argentina e no Brasil: notas sobre a reelaboração da memória a partir da literatura”, José Carlos Freire e Alexandre Fernandez Vaz discutem aspectos gerais sobre a Justiça de Transição ocupando-se do papel assumido pela CNV – Comissão Nacional da Verdade implantada no Brasil em 2011. Em perspectiva comparativa, os autores refletem sobre a CONADEP na Argentina, e trazem à luz quais as possíveis contribuições da literatura de testemunho a partir de dois relatos: K. Relato de uma busca de Bernardo Kuncinski (2011), e Mi nombre es Victoria, de Victoria Donda (2009). Os autores concluem que tanto os trabalhos das Comissões instaladas nos dois países em temporalidades distintas, como a diferença entre as duas narrativas literárias sobre desaparecimentos evidenciam a dificuldade do Brasil em elaborar o seu passado ditatorial.

Na sequência, Leandro Brunelo e Angelo Priori no artigo “Resistência democrática versus graves violações dos direitos humanos durante a ditadura militar no Paraná: a atuação dos advogados na defesa dos presos políticos” problematizam o Inquérito Policial Militar 745 (IPM 745), que, durante a ditadura militar brasileira, apurou o envolvimento dos comunistas na suposta organização do partido no estado do Paraná em 1975. Os autores contrapõem as instituições políticas que controlam e formulam leis, e os advogados de defesa das pessoas presas que denunciaram as violações dos direitos humanos. Ao ressaltarem as disputas que ocorriam em um campo específico, o jurídico, Brunelo e Priori demonstram os modos pelos quais agentes díspares na escala do poder travaram uma batalha legal e jurídica, e, por sua vez, como os advogados valiam-se do mesmo substrato burocrático-legal fomulado pelo estado para tornar menos rígidos os limites da lei e do campo jurídico.

Encerra nosso Dossiê, o artigo escrito pela historiadora Carla Cristina Nacke Conradi: “Gênero, memória e ditadura: a militância política de Lídia Lucaski no Paraná”. Neste artigo, Carla Conradi aborda a complexa relação entre gênero e ditadura, partindo de uma escrita sobre a história da ditadura civil-militar no Paraná, por meio da memória autobiográfica de uma militante paranaense. A autora retrata o retorno que Lídia Lucaski faz ao seu passado e como esse relato está entrelaçado pelas análises que Lídia, a protagonista, tece sobre sua militância política. Conradi destaca que, muito mais do que narrar sua trajetória, Lídia problematiza a relação que tem no presente com sua memória, dimensionando sua capacidade de arquivar o passado ou de fazer apropriações das experências vividas.

Este volume da Revista História: Questões & Debates conta ainda com três artigos em sua Seção Livre. “Saber histórico e desenvolvimento das competências de leitura e escrita no currículo oficial do estado de São Paulo”, de Jorge Eschriqui Vieira Pinto, pelo qual o autor argumenta como o saber histórico de sala de aula a partir do desenvolvimento de leitura e escrita pode se tornar uma importante ferramenta cidadã dos alunos. Na sequência, Diogo da Silva Roiz e Tiago Alinor Hoissa Benfica, em “Elza Nadai: a formação da papisa do ensino de História”, apresentam a trajetória intelectual de Elza Nadai, no intuito de visualizar os locais institucionais e as proposições teóricas que edificaram a área de pesquisa de ensino de História. Por fim, no artigo “Estado do conhecimento sobre história da alimentação indígena no Brasil”, Tamiris Maia Gonçalves Pereira, Sônia Maria de Magalhães e Elias Nazareno discutem as recentes abordagens desenvolvidas no âmbito da História da Alimentação, com foco específico na alimentação indígena.

Os organizadores deste Dossiê desejam agradecer a contribuição de autoras e autores na concretização de mais esta edição da Revista, e, sobretudo, a generosidade pela qual as editoras acolheram a nossa proposta.

Uma boa leitura!

Angelo Priori (Universidade Estadual de Maringá)

Marcos Gonçalves (Universidade Federal do Paraná)

Silvina Jensen (Universidad Nacional del Sur)

Organizadores


PRIORI, Angelo; GONÇALVES, Marcos; JENSEN, Silvina. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.68, n.1, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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