A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: Ética, memória e acontecimento na história oral | Alessandro Portelli

O livro “A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: ética, memória e acontecimento na história oral” proposto para análise é de autoria de Alessandro Portelli, que o dividiu em duas partes: “Oralidade, ética e metodologia” e “Acontecimentos, memórias e significados”, respectivamente.

Alessandro Portelli é um dos autores mais importantes no cenário mundial no que se refere ao tema da História Oral. Professor de literatura norte-americana na Universidade de Roma, Portelli fez inúmeros trabalhos de campo nos Estados Unidos e na Itália, resultando na publicação de obras que são referências na História Oral, entre elas “Biografia di una città. Storia e racconto: Terni, 1830-1985”, “Storie Orali. Racconto, immaginazione, dialogo” e “Ensaios de História Oral”. O autor fundou o “Circolo Gianni Bosio” – espaço para pesquisa de memória, música e culturas populares – onde desenvolve, comunica e expande seus trabalhos.

Há algumas décadas, Portelli discute questões teóricas, metodológicas e práticas da oralidade a partir de uma visão multidisciplinar, interligando aspectos da Antropologia, História, Linguística e outras ciências nessa metodologia do conhecimento científico. Nessa perspectiva, procura atenuar o preconceito com as fontes orais nas ciências humanas, que, tradicionalmente, padronizaram por muito tempo as fontes escritas como detentoras do status de credibilidade na produção do conhecimento científico. Em suas palavras:

Na verdade, a comunicação escrita e a comunicação oral não se excluem mutuamente. Elas têm características comuns, possuem funções específicas e requerem diferentes instrumentos de interpretação. A subvalorização ou a sobrevalorização das fontes orais acaba por não fazer jus ao valor especifico que podem ter, transformando-as em mero suporte das tradicionais fontes ou, em alternativa, numa espécie de cura para todos os males” (PORTELLI, 2013, p.21).

Infere-se desse pensamento que, no atual espectro da academia, não se pode permanecer com a valorização unilateral nem das fontes escritas como também das fontes orais e, em contrapartida, a força que a oralidade adquiriu também não deve ser compreendida como uma “cura” para as insuficiências ou complemento de outras fontes. Assim: “Com efeito, a oralidade e a escrita não existem separadamente: se muitas fontes escritas são baseadas na oralidade, a oralidade moderna está saturada de escrita” (idem, ibidem, p.32).

Essa relação entre a oralidade e a escrita revela questões fundamentais no entendimento da história, do seu método e da sua narrativa. Entender a recente aproximação dessa relação e a trajetória de sobreposição, cesuras e usos entre a oralidade e a escrita são fundamentais para perceber o deslocamento do olhar histórico e da mudança da historiografia atual, pois “é do próprio interior dessa fratura, dessa descontinuidade, que nasceu uma nova consciência historiográfica baseada em uma problematização possível da memória pela história e da história pela memória” (DOSSE, 2004, p.177).

Nessa perspectiva, na primeira parte da obra, “Oralidade, ética e metodologia”, Alessandro Portelli aborda aspectos metodológicos, éticos e epistemológicos da História Oral, subdivindo-a em três momentos. O primeiro capítulo intitula-se “O que torna a História Oral diferente”, o segundo “Um trabalho de relação. Observações sobre a História Oral” e o terceiro “A tentar aprender algo: reflexões sobre a História Oral”. Desse modo, é nessa primeira parte que delimita-se o entendimento do que é História Oral e suas várias facetas na realização, tratamento e interpretação das entrevistas.

Alessandro Portelli, na sua análise, enfatiza que a História Oral é uma prática e uma metodologia singular, sugerindo elementos que a tornam “diferente” ao discutir a oralidade, a narratividade, a credibilidade e a parcialidade das fontes orais. Isto é, desde a gravação até a transcrição, deve-se compreendê-la como um processo de um “trabalho de relação” entre entrevistador e entrevistado, em que os dois estão inseridos na produção da fonte, pois “o testemunho oral é apenas uma fonte potencial, que existe na medida somente em que o investigador toma a decisão de dar início a uma entrevista” (2013, p.34). Assim, consubstanciando com essa consideração, o “testemunho oral” é a fonte que “fala e com a qual o pesquisador dialoga e que expressa muito mais do que uma simples informação: a sensibilidade de quem é entrevistado, o que propicia uma perspectiva diferente de penetrar no âmago das questões tratadas” (JUCÁ, 2014, p.29).

Alguns estudiosos da metodologia da História Oral dialogam com Portelli, defendendo que a História Oral não é uma simples técnica ou uma prática, e sim uma metodologia que envolve ética, técnicas, procedimentos, prática, sensibilidade e uma responsabilidade social, cujo resultado é a produção de um conhecimento transdisciplinar. (AMADO; FERREIRA, 2001).

Portanto, segundo Portelli, a aparência de que a História Oral foi feita para deixar os outros falar no lugar do historiador é abandonada pelo autor, que adverte ocorrer, na verdade, o contrário, pois o historiador não é um intermediário, e sim um “protagonista presente”. “Junto ao eu do informante está o eu do historiador: uma relação que é acentuada pelo facto de ambos serem narradores. O informante é, em certa medida, historiador; e o historiador é, em certa medida, parte da fonte” (PORTELLI, op.cit., p.38).

Nesse sentido, nesse primeiro momento da obra, o autor lança questões ligadas à linguagem, pontuação, velocidade do discurso, significados dos acontecimentos e à subjetividade. Questões que são analisadas de forma inovadora. Em muitos momentos, percebe-se que estas análises servem como um manual da História Oral, orientando como deve ser a atitude do entrevistador diante do testemunho, como deve se portar, fazer as perguntas, gravar e transcrever, como podemos perceber:

Se a entrevista tem dois autores, isto deve emergir no momento da publicação. Grande parte das recolhas escritas ou audiovisuais de testemunhos orais são organizadas de modo a dar a impressão que se trata de um fluxo ininterrupto de narração espontânea e a fazer desaparecer as perguntas e as intervenções do investigador. (idem, ibidem, p.35).

Nota-se que Portelli, ao trazer questões novas para a História Oral”, não as situa apenas no quadro teórico, sugere exemplos e modelos para a atuação do investigador, devendo este assumir a subjetividade das fontes orais como um “dado constitutivo”.

Na História Oral, “quem fala” ainda é o historiador, o controle do discurso não é do entrevistado, ou seja, a História Oral não é uma história onde a classe ou grupo fala por si, sozinha, como se pensou que ela seria uma história das classes subalternas, a oportunidade desses “excluídos” construírem suas histórias. Pode-se afirmar que ela é uma condição necessária, mas não suficiente para que se faça este modelo de história.

Nesse entremeio, cabe lembrar que, apesar desse contexto de valorização da História Oral e, principalmente, da ascensão da História Cultural, Sandra Jatahy Pesavento afirma que “a história cultural veio valorizar o – e dar reforço ao – papel do historiador” (PESAVENTO, 2008, p.12). Ou seja, o historiador atua como contraparte central na construção do objeto, na interpretação e na preocupação com a narrativa, embora diante de um maior contato com o testemunho e com o empírico.

Nesse contexto, a imparcialidade do narrador que permaneceu no discurso das ciências humanas do século XIX e início do XX deve ser trocada pela parcialidade das fontes e do narrador, entendendo parcialidade “como incompletude mas também como tomada de posição”.

Além dessas questões, Alessandro Portelli chama a atenção para a ética do investigador nos trabalhos de campos, ressaltando a importância da responsabilidade, da conduta e do uso de boas maneiras, pois é necessário que saiba lidar com as diferenças, com as igualdades que exige a relação entre as partes.

A segunda parte do livro, “Acontecimentos, memórias e significados”, é dividida em dois momentos: “Memória e acontecimento. A morte de Luigi Trastulli” e “Memória e identidade. Uma reflexão a partir da Itália pós-fascista”, respectivamente. Nesses dois capítulos, Portelli tem como objeto situar o leitor em acontecimentos na Itália após a Segunda Guerra Mundial e como estes foram (re)significados a partir da memória coletiva com outros acontecimentos – ocorridos ou imaginados.

Dessa forma, o quarto capítulo trata de um acontecimento da morte de um operário, Luigi Trastulli, fato que foi reelaborado, transformado e interpretado de várias maneiras na memória coletiva. Nesse sentido, Portelli procura reconstruir como as pessoas recordam um acontecimento e como elas viveram o acontecimento, sendo, portanto, dialogando com Walter Benjamin, o “acontecimento vivido” e o “acontecimento recordado” diferentes entre si.

Contudo, recordar equivocadamente datas e fatos não constituem falhas da memória para Portelli, pois, “em vez de resultar numa fraqueza, resulta numa força: erros, invenções e mitos guiam-nos através e para lá dos factos, permitindo-nos descobrir os seus significados” (op. cit., p.103). Ou seja, as fontes erradas podem servir para o investigador para perceber como o entrevistado associa o que viveu a outros acontecimentos, ao colocar seus desejos no vivido e expor sua subjetividade.

Esse processo se assemelha ao que François Dosse afirma, ao dialogar com Georges Duby, que o acontecimento só se torna importante a partir dos seus “sinais”, principalmente pela influência do momento em que o fato foi preservado, embutido na consciência coletiva, pois “as metamorfoses dessa memória tornam-se então objeto de história da mesma maneira que a efetividade do acontecimento em seus estreitos limites temporais” (DOSSE, op. cit., p.178). A reverberação e as mudanças que a memória têm ao longo do tempo, portanto, são fundamentais para o entendimento do pesquisador.

Alessandro Portelli ainda mostra como a morte de Luigi Trastulli foi mostrada sob diferentes óticas por fontes escritas e pelas fontes orais, ressaltando as adaptações que o acontecimento sofre nos dois exemplos, tanto pelos jornais e fontes oficiais escritas, como também através das memórias de companheiros do operário.

Assim, o ato de recordar se mistura com acontecimentos posteriores à morte em busca de uma afirmação do movimento operário, quando houve grandes despedimentos das fábricas e, consequentemente, manifestações, mesmo que estas tenham acontecido quatro anos após a morte de Luigi Trastulli.

Esse descolamento revela como a memória é fluida e manipulada por quem a recorda, porém não diminui sua importância, mas, segundo Portelli, estão sujeitas a mecanismos gerais de funcionamento. E, na sua opinião, “saberíamos muito menos sobre o sentido deste acontecimento se as fontes orais o tivessem referido de modo exato e “verídico”. Mais do que o acontecimento enquanto tal, aqui o facto histórico mais relevante é a própria memória” (op. cit., p.157).

O motivo das diferenças entre acontecimento e memória não pode ser atribuído a falha da memória pelo tempo transcorrido ou a idade avançada dos narradores, mas sim por “produtos gerados pelo funcionamento ativo da memória coletiva, de processos coerentes que organizam tendências de fundo que até já se encontravam nas fontes escritas coevas aos factos” (op. cit., p.157).

No último capítulo, “Memória e identidade. Uma reflexão a partir da Itália-pós-facista” Portelli faz uma reflexão sobre a identidade dos italianos após os anos fascistas através da memória do movimento da Resistência em 1943-1944 e os acontecimentos da Itália no pós-guerra. Desse modo, o autor analisa como a resistência ao passado fascista deu origem ao renascimento italiano e os posteriores conflitos políticos na Guerra Fria e no início do século XXI.

É imprescindível, nesse sentido, perceber a sensibilidade que o autor possui em ligar fatos separados por décadas com a própria conjuntura atual da Itália, mostrando uma erudição e um “capital específico” (PESAVENTO, 2003), ou seja, uma bagagem que possibilita construir seus argumentos com uma linguagem acessível, principalmente por estar analisando a identidade dos italianos no intervalo de meio século. Essa capacidade torna-se um dos grandes méritos do autor, através da qual ele reutiliza os argumentos construídos no início da sua reflexão no momento em que aborda casos práticos de formação, da apropriação e do distanciamento da identidade da Itália.

O que Alessandro Portelli intenta, no conjunto da sua obra, é discorrer sobre a História Oral, mas suas contribuições alcançam um patamar importante para qualquer leitor imerso no mundo das ciências humanas. Na medida em que fala das fontes para a prática da pesquisa, o autor trata também de aspectos importantes para a História, Antropologia e Linguística, reforçando a ideia de que ele concorda que a História Oral está para além da História e já era praticada, de uma maneira ou outra, por outros campos de estudos.

Em suma, os textos presentes na obra definem o que é a História Oral, esclarecendo os conceitos e os problemas evocados junto a esta prática que vem ganhando espaço na produção do conhecimento. Através de uma linguagem simples e concisa, sempre acompanhada de exemplos, o olhar da História Oral sobre os objetos e as fontes utilizadas na academia torna-se simples na análise de Alessandro Portelli, embora não abdique das discussões teóricas e desafios que este campo de pesquisa sucinta.

Referências

AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. (Orgs.). Usos & abusos da história oral. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

DOSSE, François. A oposição História/Memória. In:__________. História e Ciências Sociais. Bauru: Edusc, 2004. p.169-191.

JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Introdução In:____________. Seminário da Prainha: indícios da memória individual e da memória coletiva. Fortaleza: EDUECE, 2014. p. 21-76.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

________________________. História Cultural: caminhos de um desafio contemporâneo. In: PESAVENTO, Sandra J.; SANTOS, Nádia M. W. dos.; ROSSINI, Miriam de S. (Orgs.). Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. Porto Alegre: Asterisco, 2008. p.11-18.

PORTELLI, Alessandro. A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: ética, memória e acontecimento na história oral. Lisboa: Edições Unipop, 2013.

Caio Lucas Morais Pinheiro – Mestrando em História no Programa de Pós-graduação em História e Culturas da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Sociedade de Estudos em Esporte (SEE) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Atua na área de História do Esporte através de trabalhos sobre a História do Futebol Cearense, concentrando-se em temas ligados ao amadorismo, profissionalização e o surgimento das torcidas organizadas no Ceará.


PORTELLI, Alessandro. A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: Ética, memória e acontecimento na história oral. Lisboa: Edições Unipop, 2013. Resenha de: PINHEIRO, Caio Lucas Morais. O “Eu do informante e o eu do historiador”: acontecimentos, desafios e possibilidades da história oral. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.2, n.2, p. 184-191, jan./jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.