História oral como arte da escuta

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. Trad. Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2016. 196 p. Resenha de: MENIN, Assis Felipe. Por uma escuta sensível na história oral. História Oral, v. 20, n. 1, p. 241-244, jan./jun. 2017.

O mais recente livro de Alessandro Portelli, professor de literatura e historiador oral, traz ao leitor uma coletânea de artigos publicados em diferentes épocas de sua longa carreira de professor e pesquisador. O livro se divide em três partes, com três artigos cada. A escrita de História oral como arte da escuta é rica em detalhes históricos e memórias carregadas de sentimentos.

O livro não se destina apenas aos interessados na metodologia da história oral – historiadores e acadêmicos em geral –, mas certamente também aos interessados em histórias de homens e mulheres e em suas diferentes versões e impressões da história.

A primeira parte do livro é metodológica, diz respeito a como fazer e pensar a história oral. O autor ensina a trabalhar a oralidade, mostrando a importância de se manter uma relação “dialogal” entre historiador e narrador.

No dizer de Portelli, as fontes orais são cocriadas a partir da relação entre entrevistador e entrevistado. Por isso, as fontes orais carregam o inesperado, o inusitado e até mesmo o contraditório. Para exemplificar, ele fala sobre o momento em que, supostamente terminada a entrevista, o gravador é desligado: são frequentes os casos em que se escutam histórias tão interessantes quanto as do registro gravado ou ainda mais surpreendentes. Apesar de consciente do compromisso do entrevistador de proteção à sua privacidade, o entrevistado, mais relaxado nessa “informalidade”, se permite confidências inesperadas. O autor faz referência a episódios relativos à Segunda Guerra Mundial, a casos de assédio sexual, a histórias de mulheres durante a guerra e a práticas homoeróticas.

A história oral, além de ser dialógica, é performática, afirma o autor, já que ela não pode ser separada da linguagem e das expressões empregadas na narração. Esses aspectos exigem da história oral a arte da escuta, que ajudará o historiador a aprender mais e a ter diferentes visões do fazer história oral.

No segundo texto, Autoetnografia da prática de pesquisa, Portelli debate uma questão de metodologia a ser pensada pelo historiador: não é somente na performatividade do outro que a narração pode esconder significados, mas na do próprio historiador. A entre-vista se caracteriza pelo ato de duas pessoas olharem uma à outra. O entrevistador, portanto, não pode se manter neutro.

Portelli percebeu, em sua longa carreira de pesquisador de história oral, que o silêncio do entrevistador provoca no narrador desconfiança e, com isso, cria nele estereótipos sobre o seu próprio relato e sobre a pessoa do pesquisador.

No terceiro artigo, Portelli alerta para as especificidades e usos da memória: a memória involuntária, a memória perturbadora e a memória- -monumento. Para o autor, a memória não pode ser caracterizada como “boa” ou “má”, pois ela simplesmente é. O esquecimento faz parte da memória: esquecemos o que não nos afeta ou não possui significados. Existe, porém, um esquecimento que é caracterizado pelo “excesso de significados”. Para melhor explicar tal esquecimento, seriam necessárias memórias repletas de fantasmas que perturbam o presente. São as chamadas memórias involuntárias, que surgem de diferentes maneiras e em variadas circunstâncias. Portelli cita o caso de uma mulher ex-escravizada que, ao caminhar por verdes e floridos jardins e sentir o odor de lavanda das flores, se recorda dos momentos dramáticos e dos abusos sofridos naqueles campos. A memória perturbadora, por sua vez, é como um fantasma, insiste em aparecer mesmo quando não é querida por perto; é o que ocorre com os traumas, por exemplo. Por fim, a memória-monumento é aquela celebrada pelas instituições, que recorda de um passado considerado laudatório, mas que pode trazer dor e ressentimentos a algumas pessoas. Os três tipos de memórias estão interligados.

Na segunda parte do livro, As formas da memória pública, Portelli trabalha com um tema muito caro aos historiadores, que criticam, por um lado, a disputa e o mau uso das memórias e, por outro, incentivam uma visão interdisciplinar do fazer histórico e de múltiplos saberes, que todos podem ajudar a construir. É o que o autor defende no artigo sobre a Casa da Memória e da História de Roma, um local construído por diferentes setores da sociedade – acadêmicos, políticos, representantes da comunidade e pessoas que participaram ativamente dos acontecimentos – para lembrar o massacre das Fossas Ardeatinas1 e o fascismo, bem como suas consequências para o governo progressista de Roma na época. O espaço se transformou em local de disputas por memória, história e, consequentemente, por políticas diferentes: de um lado, o anticomunismo; de outro, os direitos humanos.

No artigo sobre imigrantes na Itália, a sensibilidade de Portelli com os entrevistados, provenientes de países asiáticos e africanos, assim como sua persistência para encontrá-los, mostra como contornar as adversidades de um projeto. Os imigrantes são vistos como mera força de trabalho na sociedade capitalista; por isso, são indivíduos em trânsito, que não conseguirão evitar a condição de provisoriedade, conforme afirma Sayad (1998), ou de outsider, de Elias e Scotson (2000), e ser reconhecidos como cidadãos na sociedade que os recebe. Ao reconectar as canções dos imigrantes e suas memórias, Portelli consegue trazer à tona as emoções e as saudades dos que deixam a própria terra e os seus para tentar a vida em outro país, onde nem sempre são bem recebidos – como é o caso dos imigrantes atualmente na União Europeia.

Com esse propósito, o autor apresenta três entrevistas, nas quais também mostra que os imaginários sobre a Itália (ou qualquer país de destino) são compostos de representações sociais, econômicas e culturais. Ao relatar a saudade, os imigrantes se encontram em um entre-lugar: estão aqui, longe dos seus, deslocados de seu país, e, ao mesmo tempo, não fazem parte deste lugar, estão permeados por um sentimento de não lugar.

No terceiro artigo da segunda parte, Portelli trabalha a adaptação da história oral para o teatro. Não há preocupações quanto à sequência da narrativa teatral e de sua performance, pois a narrativa oral é diferente a cada vez que é contada – basta lembrar a performance da tradição oral nas sociedades africanas. É a partir desse termo (performance – pela liberdade de interpretar) que a história adquire novas conotações: quando sai do escrito e volta para a performatividade da fala, ela retorna ao seu status, e isso envolve o performer, o ator e a audiência. As adaptações teatrais reativam silêncios e traumas que em alguns casos são esquecidos ou silenciados pelas instituições; democratizam, assim, a experiência da memória, levando a mensagem a plateias que possivelmente não teriam acesso ao seu conteúdo por outro meio.

Na terceira e última parte, Portelli desenvolve questões referentes à guerra e à memória. Além das violências e traumas que a guerra causa, ela produz em quem a vive imaginários de “como seria se...”, misturados aos sentimentos de mágoa. No primeiro artigo, Portelli se debruça sobre os imaginários dos partigiani, sobre as violências e violações que sofreram das tropas fascistas na guerra de Poggio Bustone.

No segundo artigo, sobre genocídio, o autor entrevista sobreviventes da guerra sobre seus medos, fantasmas e fantasias: ao invés de descartá-los por suas incongruências e contradições, ele trabalha com essas imaginações e relatos.

Não importa o que os narradores realmente tenham feito ou vivido, mas o que eles sentiram e sentem a respeito de determinado episódio. Sentimentos de violações e injustiças se misturam e são recriados, segundo o autor. Essas histórias podem ser interpretadas pelo apagamento e pelo silenciamento dessas memórias pelo discurso oficial.

Por fim, Portelli apresenta a memória em meio a uma guerra de narrativas que envolve imaginários, emoções, racismo, fascismo, disputas. O autor desenvolve a narrativa dos fatos através das entrevistas com as pessoas que viveram na catástrofe da ocupação alemã de Hitler. Geralmente em uma guerra se avaliam as perdas materiais e humanas, quantitativamente. Portelli, com suas entrevistas, busca mostrar que há outras vítimas, certamente inocentes.

O livro de Alessandro Portelli é um aprendizado para quem trabalha com a metodologia da história oral. Como ele próprio afirma: “A história não termina quando o gravador é desligado, quando o documento é depositado, quando o livro é escrito; ela começa a viver naquele dia” (p. 43).

Referências

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.

1 Massacre que ocorreu na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, quando nazistas fuzilaram 335 civis italianos.

Assis Felipe Menin – Mestre em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected].

A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: Ética, memória e acontecimento na história oral | Alessandro Portelli

O livro “A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: ética, memória e acontecimento na história oral” proposto para análise é de autoria de Alessandro Portelli, que o dividiu em duas partes: “Oralidade, ética e metodologia” e “Acontecimentos, memórias e significados”, respectivamente.

Alessandro Portelli é um dos autores mais importantes no cenário mundial no que se refere ao tema da História Oral. Professor de literatura norte-americana na Universidade de Roma, Portelli fez inúmeros trabalhos de campo nos Estados Unidos e na Itália, resultando na publicação de obras que são referências na História Oral, entre elas “Biografia di una città. Storia e racconto: Terni, 1830-1985”, “Storie Orali. Racconto, immaginazione, dialogo” e “Ensaios de História Oral”. O autor fundou o “Circolo Gianni Bosio” – espaço para pesquisa de memória, música e culturas populares – onde desenvolve, comunica e expande seus trabalhos. Leia Mais

Ensaios de História Oral – PORTELLI (HP)

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258 p. Resenha de: CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco. História oral: questões e indicações para o debate. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 24, n. 45, 14 dez. 2011.

Acesso permitido apenas pelo link original

Ensaios de história oral – PORTELLI (HO)

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258p. Resenha de: RIBERTI, Larissa Jjacheta. História Oral, v. 13, n. 2, p. 193-195, jul.-dez. 2010.

Prática reconhecidamente significativa como metodologia de investigação social, a história oral tem ganhado cada vez mais espaço nos meios acadêmicos devido ao seu papel de instrumento de luta política, capaz de revelar sujeitos e discursos geralmente ocultados nas análises históricas e de outras disciplinas. Diante de processos recentes de fragmentação e desenraizamento de modos culturais, a história oral vem se constituindo como uma boa alternativa metodológica para a compreensão das problemáticas dos sujeitos, das memórias, culturas e identidades. Esta prática é, portanto, uma alternativa crítica à análise das novas questões históricas e sociais que se colocam no século XXI.

É nesse contexto que Alessandro Portelli, atualmente professor de literatura norte-americana na Universitá di Roma “La Sapienza” e também fundador do Circolo Gianni Bosio, que incentiva e promove pesquisas sobre músicas e culturas populares, organiza uma seleção de textos – nos quais a metodologia da história oral é a via principal de investigação histórica e social – e publica-os com o nome de Ensaios de história oral. Diante dessas novas questões em debate, em que é necessário considerar discursos individuais e compartilhados como instrumentos do processo de formação das identidades, Portelli fornece refl exões sobre as implicações metodológicas e políticas do conhecimento que produzimos.

A importância da obra aqui considerada se dá justamente porque os ensaios nela contidos procuram discutir, separadamente, as formas de se utilizar o discurso oral como instrumento de pesquisa e análise histórica. Para além disso, Alessandro Portelli propõe um olhar crítico em relação às entrevistas que realizou, desmistificando discursos e abrindo novas possibilidades interpretativas.

Sobre a importância do trabalho metodológico a partir da história oral, Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado ressaltam que “na história oral, existe a geração de documentos (entrevistas) que possuem uma característica singular: são resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de interpretações fundadas numa rígida separação entre sujeito/objeto de pesquisa, e a buscar caminhos alternativos de interpretação” (Ferreira; Amado, 2006, p. xiv).

A obra é iniciada com uma apresentação de Yara Aun Khoury e segue com a compilação de dez textos inéditos em língua portuguesa. Esses ensaios são o resultado de uma obra autoral que vem sendo construída desde 1970 e que revelam o olhar de Portelli sobre as relações entre memória e história. O autor também dá demonstrações de como os discursos pessoais, coletivos e ofi ciais constroem, de maneiras singulares, interpretações sobre determinada memória.

Logo no primeiro ensaio, “Sempre existe uma barreira: a arte multivocal da história oral”, o autor analisa como a relação entre história e memória toma forma na narração oral. Diz ele: “A ‘entre/vista’, afinal, é uma troca de olhares. E bem mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em diálogo” (p. 20). É dessa maneira que o autor recorre à história oral para entender como acontece a combinação entre narrativa em primeira pessoa com referentes espaciais e sociais coletivos que dão o suporte para que entendamos a construção de uma determinada memória cultural.

Sobre a formação de uma identidade coletiva, o autor escreve, por exemplo, o ensaio de número quatro, “Éramos pobres, mas… Narrar a pobreza na cultura apalachiana”, no qual examina os discursos de moradores das montanhas apalachianas do Tennessee. Neste texto, ele procura compreender como, na visão dos próprios moradores, a pobreza era uma situação que provocava um misto de raiva/vergonha e autonomia/orgulho. Encarada dentro de uma comunidade relativamente igualada pela subsistência e autonomia provocadas por uma economia não monetária, a pobreza era vista pelos moradores como um meio para a sobrevivência, já que era o motor dessas relações. Por outro lado, fora desse convívio supostamente igualitário, os moradores se sentiam ofendidos quando eram levados, por exemplo, a participar de uma economia monetária da qual não podiam fazer parte. Ao ouvir os discursos, o autor consegue entender por que, para essas pessoas, e dentro dessa comunidade, as relações de afeto eram mais importantes que as relações monetárias.

A questão das relações entre documentos individuais e realidades transindividuais é tratada no ensaio “O melhor limpa-latas da cidade: A vida e os tempos de Valtero Peppoloni, trabalhador”, no qual Portelli considera a trajetória de vida de um trabalhador de fábrica e de serviços em geral da cidade industrial do Terni, na Itália. Para o historiador, é necessário entender que a narrativa de Valtero Peppoloni recai em padrões, estruturas e motivos discursivos arcados em conjunto: “Há elementos coletivos e compartilhados nessa história que são sufi cientes para justifi car que a descrevamos como documento representativo da cultura da classe trabalhadora local” (p. 182).

Dessa forma, a obra de Alessandro Portelli tem significativa importância para os estudos de história oral. Analisando narrativas e interpretando diferentes discursos, Ensaios de história oral é uma referência importante para se compreender a memória, a oralidade, a cultura popular e os relatos de vida. É também crucial para aqueles que pretendem investigar, a partir da história oral, com um olhar crítico e preocupado com as questões metodológicas dessa prática.

Referências

FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.

Larissa Jacheta Riberti – Mestranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).