Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo | Patrícia Rodrigues da Silva

Entre vozes femininas Vozes Femininas
Entre vozes femininas | Detalhe de capa

Lançada em 2020, a obra Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo é organizada por Patrícia Rodrigues da Silva e faz parte da Coleção PPGH, que tem como objetivo divulgar pesquisas do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM).

Precedido por outros três títulos também lançados em 2020 pela Editora CRV, este volume 4 é o primeiro a se debruçar especificamente sobre o contexto amazonense, o fazendo, sobretudo, por meio dos relatos e das escritas femininas – dos oito artigos que compõem o livro, seis deles são escritos por mulheres. Leia Mais

História oral, gênero e interseccionalidade | História Oral | 2022

Interseccionalidade Patricia Hill Vozes Femininas
Interseccionalidade, livro de Patricia H. Collins e Sirma Bilge (Detalhe de capa)

O tema deste dossiê evidencia um movimento acadêmico e político na elaboração de conhecimento, voltado à escuta de vozes dissonantes em uma sociedade hegemonicamente branca, sexista e cis heteronormativa. Esse posicionamento se insere no que poderíamos denominar de “uma virada epistêmica” (Veiga, 2020), um “giro decolonial” (Ballestrin, 2013), ou ainda um “giro afetivo” (Lara; Enciso, 2013), produto e produtor de mudanças analíticas implicadas e afetadas (no sentido de afeto e de afetação) por demandas sociais e identitárias e pela entrada de “sujeitos improváveis” em uma universidade historicamente distanciada do perfil da maioria da população brasileira. As políticas públicas de ação afirmativa favoreceram o acesso de negras/os, indígenas, população LGBTQIA+, filhas e filhos da classe trabalhadora, assim como de pessoas que vivem nas mais diversas margens deste país desigual, a um espaço muitas vezes visto como um lugar inalcançável para tais populações.

Essa circulação de sujeitas/os em instituições de ensino e pesquisa, antes deles distanciadas, assim como debates intelectuais posicionados advindos dos feminismos negros e indígenas e dos chamados estudos queer, têm possibilitado e ampliado questionamentos relativos às colonialidades de saber, de ser e de gênero que orientam a ciência e atuam no apagamento ou no silenciamento de classe, gênero e raça. Como afirmou María Lugones, para que se desconstruam as relações de poder que perpassam o conhecimento científico e as próprias lutas políticas, é preciso “viajar entre mundos”, ou seja, habitar mais de um território, reconhecer os (entre)lugares de fala (Ribeiro, 2017) e compreender as diferenças subjetivas, raciais, identitárias e sociais como problemas a serem enfrentados na elaboração do conhecimento, visibilizados e postos ao debate público. Leia Mais

Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes | Antonio de Ruggiero e Leonardo de Oliveira Conedera

Antonio de Ruggiero 2 Vozes Femininas

Antonio de Ruggiero | Imagem: PUC-RS / Acervo pessoal do autor

Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes, organizado por Antonio de Ruggiero e Leonardo de Oliveira Conedera, apresenta estudos de caso de pesquisadores brasileiros sobre a temática da História da Imigração Italiana a partir de fontes orais que, ao possibilitarem uma variação de escalas entre a história individual e a grande história, permitiriam compreender a memória coletiva como a lembrança de um passado comum dentro de uma comunidade que constrói e reconstrói identidade compartilhada.

Segundo Maria Lusitana Santos (2012, p.161), a memória seria um tema popular na produção cultural de sociedades desenvolvidas. Podemos dizer que a memória ascendeu como importante fonte no final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) em virtude das tentativas de se apagar as fontes oficiais. Os testemunhos do vivido por vítimas dos campos de concentração e extermínios, por exemplo, surgem como um registro de um passado que não poderia ser esquecido, conferindo à História Oral um dos expedientes empregáveis para pesquisadores de História. Leia Mais

História oral e historiografia: questões sensíveis | Angela de Castro Gomes

Angela de Castro Gomes Vozes Femininas
Angela de Castro Gomes | Foto: Bruno Leal, 2020

Há algum tempo sabemos como os discursos da memória marcaram um “giro subjetivo” (SARLO, 2012) que continua a pautar redefinições dos modos de pensar os sentidos de fazer história no mundo contemporâneo. Um de seus rastros mais evidentes é o sinal de como a lida com o passado não é objeto exclusivo da historiografia universitária. Diante de questões interligadas como o “‘boom da memória’, a emergência da ‘história pública’ e a crescente preocupação internacional com a ‘(in)justiça histórica’”, é válido destacar a observação de que para a teoria da história manter-se relevante para historiadores/as e para a sociedade em dimensões alargadas deve considerar a “diversidade de mecanismos para lidar com o passado e a forma como tais mecanismos são incorporados, interagem com, e até constituem parcialmente contextos culturais, sociais e políticos mais amplos” (BEVERNAGE, 2020, p. 11 e 15). Leia Mais

Decoding “Despacito”: an Oral History of Latin Music | Leila Cobo

Em 2021, a jornalista colombiana Leila Cobo lançou sua nova obra na qual reúne depoimentos sobre a história da Latin1 Music baseados no uso de entrevistas com artistas, produtores musicais, empresários, comunicadores sociais e compositores. Intitulado Decoding “Despacito”: an Oral History of Latin Music/La fórmula “Despacito”: los hits de la música latina contados por sus artistas, o livro conta com uma versão em inglês e outra em espanhol, e é resultado dos anos da comunicadora social dedicados à cobertura da indústria fonográfica, em especial como colunista e jornalista da seção Latin da revista Billboard. Apesar da semelhança com coletâneas organizadas por jornalistas que atuaram na indústria fonográfica, a exemplo de Everyone loves you when you’re dead (2011), de Neil Strauss, que pretendem ser uma reunião de entrevistas, Cobo apresenta uma perspectiva distinta, concentrando-se na construção de um texto que usa os depoimentos para uma biografia das canções. Em linhas gerais, trata-se de obra que apesar de se intitular como trabalho de História Oral não se destina propriamente ao ambiente acadêmico, sendo seu principal público-alvo leitores e/ou curiosos sobre a história da música, o que não significa (como veremos nesta resenha) que suas metodologias e escolhas narrativas não possam fornecer contribuições valiosas para se pensar o campo historiográfico. Leia Mais

História oral e historiografia: Questões sensíveis | Angela de Castro Gomes

Em continuidade à coleção História Oral e dimensões do público,1 foi lançada, no ano de 2020, a obra História oral e historiografia: Questões sensíveis, organizado por Angela de Castro Gomes. O livro constitui um misto de experiências de pesquisas, análises de narrativas orais sobre diversas temáticas, levantamentos de produções historiográficas das últimas quatro décadas e debates pertinentes sobre as questões sensíveis que envolvem a utilização das fontes orais. O objetivo, como apontado na introdução, foi “fazer um mapeamento […] do impacto que o uso da metodologia da História Oral produziu no campo das pesquisas acadêmicas de História, no Brasil, em especial a partir dos anos de 1980” (Gomes, 2020, p. 7).

Angela de Castro Gomes tem reconhecimento no campo da historiografia oral, sendo uma das propulsoras do campo no Brasil. Iniciou, como lembra no último capítulo do livro, a utilizar a História Oral a partir da segunda metade dos anos de 1970. A autora também foi coordenadora de diversos projetos que tinham como objeto a história política do Brasil República, a história de intelectuais, a cidadania e os direitos do trabalho, a historiografia, a memória e o ensino de história. Além disso, dirigiu o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) dos anos de 1988 até 1994, onde, hoje, é professora emérita; centro este conhecido pelos acervos e pesquisas que se utilizaram da História Oral. Leia Mais

História Oral, trabalho, trabalhadoras (es) | História Oral  | 2020

As formas de relações de trabalho e a subjetivação da ideia de trabalhadora e trabalhador têm sido pontos de intensas disputas entre diversos setores sociais nos últimos anos. A massificação da internet, das redes sociais, dos aparelhos celulares e seus aplicativos produziram novas ferramentas e uma nova linguagem para definir e significar o mundo do trabalho.

Nesse cenário, gostaríamos de destacar dois elementos: o discurso de liberdade e os significados da legislação trabalhista. Ao controle e opressão patronais sofridos pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras nas fábricas, nos canaviais e outros espaços, foi contraposto um forte discurso de liberdade. Sem patrão, com livre-iniciativa, com a possibilidade de escolher o horário de trabalho, bem como o tempo dedicado, assim se apresentam as novas formas laborais para as pessoas que se identificam e são identificadas como empreendedoras. Desde os entregadores dos aplicativos de comida em todo Brasil até as costureiras em Toritama, no Agreste de Pernambuco, a promessa da ausência de patrões e dos mecanismos de controle direto empregados pelos mesmos, significaria uma nova fase de mais liberdade e possibilidade de novos ganhos, dependendo apenas do esforço de cada trabalhador ou trabalhadora. Leia Mais

Memórias e narrativas: história oral aplicada | José Carlos S. B. Meihy e Leandro Seawright

O livro “Memórias e narrativas” dos historiadores José Carlos Meihy e Leandro Seawright é por um lado uma introdução ao campo da história oral, escrito para pesquisadores iniciantes – acadêmicos ou não – que se veem envolvidos nos desafios de estudar e trabalhar com a memória de expressão oral; mas por outro lado, ele é também uma sistematização dos conceitos, reflexões e teorias desenvolvidos pelos autores ao longo de suas trajetórias acadêmicas e de atuação, sobretudo como integrantes do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHOUSP). A generosidade do livro está justamente aí: ao apresentar a complexidade do campo da história oral, os autores explicitam seus posicionamentos frente a esse cipoal, desembaraçando os caminhos a serem percorridos pelos neófitos pesquisadores que se debruçam sobre a memória e a história.

O perfil didático do livro – reafirmado pelos boxes que destacam partes do texto ao longo de todos os capítulos – incorre por diversas vezes em um esquematismo que, embora evite simplificações, no mínimo atalha os debates e as contradições das abordagens sobre história oral. Considerando que não são objetivos dos autores desenvolver essas reflexões nem se aprofundar no estado da questão da história oral, eles apresentam os contrapontos apenas à medida que chamam atenção para riscos e erros a que o historiador oral está sujeito. É o que se verifica, por exemplo, na Leitura Complementar do primeiro capítulo, denominada “Memória de expressão oral: em busca de um estatuto”, sobre a famigerada querela entre os que “professam a manutenção da história oral como complemento e outros [que] propugnam a sua independência e autonomia” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p. 52). Os autores demarcam sua defesa por esta última definição como característica do campo da história oral e a caracterizam, para além disso, como uma metodologia que possui “procedimento procedente organizado de investigação, de comprometimento doutrinário e filosófico, orientado para a obtenção de resultados a partir de um núcleo documental específico” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p.56). Leia Mais

Alteridades em tempos de (in)certezas / Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

A história imediata nos ajuda a pensar algumas razões do estado atual das coisas. Tenho pesquisado, desde dezembro de 2019, o fenômeno da emergência e organização de policiais organizados em um movimento antifascismo, acompanhando debates públicos e realizando entrevistas com os sujeitos envolvidos. Para executar essa tarefa é preciso uma postura sensível aos anseios desses profissionais da segurança pública (policiais militares, civis e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes penitenciários, peritos, etc.), expressos nos seus posicionamentos públicos sobre os rumos das polícias e das políticas de segurança pública no Brasil e sobre o avanço de estruturas políticas que favorecem a disseminação de práticas fascistas. Refletir sobre o tempo presente e sobre as dinâmicas que contribuíram para a configuração política do presente, disso que Wendy Brown (2019) chamou de Frankenstein gerido pelo neoliberalismo, é uma tarefa que demanda uma escuta sensível, um olhar sensível, uma atenção com o mundo. Escutar o outro em tempos dissonantes e incertos como o nosso, demanda um trabalho de reconfiguração das nossas certezas e de nossas incertezas epistemológicas.

É exatamente este o convite dos organizadores do livro Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis, Miram Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore, na introdução à coletânea. Os autores são, respectivamente, coordenadora e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) e são pesquisadores de temas caros ao tempo presente: sindicalismo industrial, políticas públicas para a juventude, teatro e arte no período da ditadura civil-militar. A organização do livro se deu pela participação dos autores na comissão local do XII Encontro Regional Sudeste de História Oral – Alteridade em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis, em Belo Horizonte, no ano de 2017, ocasião em que foram responsáveis pelo planejamento da programação das mesas redondas, conferências e atividades ao longo do evento.

A coletânea é a reunião dessas falas pronunciadas por pesquisadores, de formação múltipla, nos auditórios da UFMG, mas também em outros espaços públicos, como o Museu de Arte da Pampulha e a Casa de Referência da Mulher Tina Martins. A história oral e, especialmente, o problema da escuta sensível, nos são apresentados de modos distintos nesse livro: reflexão sobre acervos, memória e identidade, alteridade e espaço urbano, a entrevista como prática social e coletiva, as estratégias de organização individuais e coletivas, o oral e o audiovisual na construção de sentidos, a urgência da participação da história e das(os) historiadoras (es) no debate público, a publicização de experiências de vidas que demandam cuidado e atenção e a reflexão sobre percursos biográficos ligados à própria história da pesquisa em história oral.

Na introdução, o livro é dividido em três grandes conjuntos de textos: alteridade como marcador das possibilidades da entrevista de história oral; “problematizações de identidades de minorias políticas”; e “escutas sensíveis diante das diferenças”. Ana Maria Mauad abre o primeiro grupo de texto com um artigo que analisa a questão indígena na obra fotográfica de Claudia Andujar, analisando seu trabalho a partir da categoria de fotografia pública, associando-a com “uma dimensão crítica e (…) dialética” (p. 25). O engajamento público de Andujar na causa indígena se deu, também, pelo movimento de inclusão da comunidade Yanomami como parte desse público e também como partícipe da narrativa pública sobre os sentidos das imagens. A confiança é a base dessa relação pública com a questão indígena, assim como a relação entrevistador-entrevistado.

O segundo texto, de Mario Brum, aprofunda o problema da relação entre fatos e representações, abordado por Alessandro Portelli, ao analisar as representações sociais e as identidades em torno da construção da favela da Cidade Alta (e seus entornos) na cidade do Rio de Janeiro. O estigma dos “removidos” da região central para a Cidade Alta, marcou “toda a trajetória posterior do conjunto” habitacional, seja a partir do silenciamento, seja pela diferenciação social com outra categoria, a dos “inseridos”. Em seguida, Luciana Kine e Emilene Souza apresentam reflexões metodológicas para lidar com narrativas de vida ligadas a “tópicos sensíveis”, em especial jovens vivendo com HIV/aids. A multiplicidade das experiências de vida que giram em torno de “temas delicados”, remonta à ideia de calidoscópio narrativos e conduz a uma reflexão ética sobre a relação entrevistado-entrevistador e a condução partilhada do processo de narrar e da elaboração do produto final da pesquisa. No caso, as autoras exploraram uma metodologia de embaralhamento das histórias, “estratégia ética, estética e política” que possibilitou a discussão de “experiências do cotidiano” (p. 50) e criou uma alternativa para superar os limites do sigilo, e do constrangimento. Os diálogos possibilitados por essa metodologia reafirmam um posicionamento epistemológico da “pesquisa como prática social [e] ação coletiva” (p. 54).

Abrindo o segundo conjunto de textos, Valéria Barbosa de Magalhães e Luiz Morando, apresentam, respectivamente, duas reflexões sobre migração e sociabilidade da comunidade LGBT(QIA) em espaços e situações distintas. O primeiro texto apresenta pouca reflexão propriamente dita em relação às entrevistas, mas propõe uma indagação fundamental sobre a relação entre sexualidade e migrações em contextos políticos conturbados, como a eleição de um governo autoritário no Brasil. Magalhães apresenta, muito atenta aos anseios e às experiências de migrantes brasileiros LGBT na Flórida (EUA) na última década, a mudança das “estratégias de legalização no exterior” e a apreensão que o cenário político produziu nas expectativas de vidas desses sujeitos. Seu trabalho desloca o objeto da pesquisa sobre imigração e sexualidade do campo dos problemas de saúde e da exploração sexual, interrogando outros modos pelos quais a imigração relaciona-se com a sexualidade para além do negativo.

Já Morando, apresenta uma reflexão sobre identidade e diferença, analisando representações identitárias de homens gays em relação à memória e à suas experiências em espaços de sociabilidade LGBT em Belo Horizonte, entre 1960 e 1980. O texto faz uma divisão analítica de duas formas imbricadas de lidar com essa memória, percebidas pelo pesquisador em suas entrevistas: a romantização do passado e o ceticismo em relação à experiência dos clubes noturnos da capital mineira. O gozo e a descrença apresentaram-se como faces do mesmo problema: o prazer e o desconforto de lembrar as vivências do passado. Se o estabelecimento da diferença e da identidade implica em distanciamentos temporais, tricotar – “fazer um tricô”, ou seja, estabelecer um diálogo – figura como uma alternativa para o isolamento social de gerações mais novas em relação à vivência de gerações anteriores.

O historiador Amilcar Araújo Pereira, apresenta um belo estudo sobre a luta e a formação dos movimentos negros no Brasil, organizados durante a ditadura militar. Surgida a partir de reuniões em bairros, universidades, ou grupos de teatro, no Nordeste e no Sudeste, a militância negra brasileira se caracterizou pela pluralidade de perspectiva, pelas diferenças regionais, geracionais e ideológicas. Apesar dessas diferenças, Amílcar Pereira, buscou demonstrar a importância das redes estabelecidas pelos militantes, que criaram conexões e espaços de experiência compartilhadas por diferentes grupos. A proposição no final da década de 1970, de organização do movimento por rede, teve como norte o fortalecimento e o estímulo de formação de lideranças. Já o artigo de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e Roberto Carlos da Silva Borges aborda o problema do audiovisual como parte do projeto de construção narrativa sobre o passado e o imaginário da cultura negra, contribuindo para uma educação antirracista no Brasil. Os autores estão interessados em investigar o “estatuto de testemunho” em torno da produção audiovisual sobre e da cultura negra, no sentido de problematizar o “funcionamento da memória” que funda “imaginários individuais e coletivos” (p. 106). Os vídeos analisados, produzidos em diferentes instâncias, representam formas heterogêneas de “contraponto à ideologia da branquitude” que sustenta as relações étnico-raciais no Brasil (p. 118).

Finalmente, o terceiro grupo de artigos apresenta diferentes abordagens metodológicas da pesquisa com a alteridade. As demandas dos policiais militares contidas no acervo “Tropas em Protesto”, que reúne narrativas de policiais, tendo como ponto de partida o movimento das praças das polícias desde 1997, ficaram silenciadas na década de 2010, especialmente após o arquivamento da PEC 21/2005, que previa a desmilitarização das polícias estaduais. Juniele Almeida argumenta a necessidade urgente de retomar o debate público em torno da desmilitarização das polícias. As “tensões históricas”, que esse debate faz emergir, correspondem à ideia de pertencimento à corporação e, ao mesmo tempo, aos movimentos contestatórios da estrutura militarizada das polícias brasileiras. Até hoje, essas tensões podem ser representadas a partir de três grandes dimensões que norteiam a urgência da redefinição do papel da polícia em um estado democrático: “o discurso institucional militarista, os problemas em segurança pública [da sociedade brasileira] e as questões trabalhistas dos servidores públicos” da segurança (p. 122).

A historiadora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, com sua sensibilidade ímpar, tece uma reflexão muito provocativa sobre um conjunto de memórias de mulheres que nos ensinam novas “formas de entrevistar e de registrar narrativas” (p. 141) e nos impulsionam para uma nova concepção de conhecimento histórico, compromissado com uma “escuta atenta” (p. 151). Em atenção às vidas que pedem cuidado e reparação, a autora propõe uma postura de amorosidade do pesquisador diante da “intolerância” e dos silenciamentos que atravessam as vidas de mulheres. A história oral como espaço de reinvenção da existência, como espaço de audiência – e não de análise – segue sendo uma possibilidade de compromisso ético do pesquisador, uma “escuta atenta” – e não promessa de remissão – capaz de intermediar outras possibilidades de construção de um mundo mais humano.

Rodrigo Patto Sá Motta nos brinda com uma reflexão sobre o uso de fontes orais em suas pesquisas sobre as universidades durante a ditadura e as surpresas advindas desse processo, contribuindo, inclusive, para incorporação do conceito de acomodação para leitura dos arranjos sócio-políticos no período (p. 158). A emoção do pesquisador ao entrevistar intelectuais importantes para o campo das ciências no Brasil, em especial na área de Ciências Humanas, e a emoção dos indivíduos ao receber informações pessoais por parte do pesquisador, contribuíram para mudanças dos sentidos da pesquisa. Proporcionando o redimensionamento dos problemas de pesquisa a partir do confronto entre diferentes documentos, por um lado, e a reapropriação e ressignificação dos objetivos da pesquisa por parte dos sujeitos entrevistados. O conceito de acomodação, como lembra Motta, não se pretendeu um modelo perfeito, mas visou apresentar uma explicação aos eventos da ditadura a partir de evidências que emergiram na pesquisa em história oral, aprofundando o debate e nos convidando para possibilidade de transformação, criando e mobilizando outros jogos que não o das acomodações (p. 162-163).

Encerrando o volume, o pesquisador Ricardo Santhiago apresenta uma reflexão sobre a trajetória biobibliográfica de Ecléa Bosi e sua contribuição para a formação do campo da história oral no Brasil. A trajetória intelectual de Bosi nos convida a uma reflexão sobre “a capacidade humana e humanizadora do exercício da escuta” como prática de formação dos jovens pesquisadores (p. 175). Os conselhos, as indicações e as sugestões de Ecléa Bosi emergem como elementos metodológicos. Ao invés da rigidez das normas, a atenção, a afetividade, a criatividade, a sensibilidade. A partir das reflexões iniciais em sua tese de doutorado, o autor argumenta a importância seminal do trabalho de Bosi para o campo da história oral brasileira, de onde se desabrocharam diferentes frutos, com pesquisas atentas “à memória, à linguagem”, a partir da “empatia, curiosidade e pluralismo” (p. 177).

Gostaria de ressaltar que há uma dissonância no ritmo de leitura do livro, pois cada capítulo corresponde a uma dimensão da pluralidade da pesquisa em história oral. Levando em consideração os itinerários formativos das(os) pesquisadoras(es), essa dissonância longe de significar um problema, torna-se potência para o contato do leitor com uma gama de leitura polissêmica sobre as possibilidades de escutar o outro de modo sensível sem abandonar o rigor metodológico. Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore nos brindam com um livro plural que retoma o antigo problema da relação pesquisador-entrevistado, apresentando contribuições proveitosas e polêmicas para a pesquisa em história oral (que por sua vez, é preciso dizer, não é metodologia, campo ou área exclusivos de historiadores).

A multiplicidade de abordagens e perspectivas dos artigos do livro, que se configura como um desafio para toda coletânea, funciona como uma postura necessária diante do desafio de se produzir conhecimento sobre o tempo presente. Mais do que mera alegoria, essa multiplicidade é, ao mesmo tempo, unidade em diferença e múltiplo nas identidades. As bases epistemológicas para imaginar outras formas de relação de poder, implicam em diálogos mais profundos e em escutas mais sinceras entre diferentes áreas do conhecimento. O livro em questão é resultado de um refinado trabalho de seleção e de enfrentamento de questões políticas e epistemológicas desse tempo imediato. De tudo ficam algumas questões: Estamos preparados para escutar o outro? Até que ponto conseguimos realizar a escuta do diferente? Em tempos de monstruosidades políticas típicas do fascismo, ou do que Traverso (2019, p. 19) chama de pós-fascismo – enfatizando as continuidades e transformações históricas do fenômeno – até quando teremos forças e disposição para ouvir quem não admite escutar? Como restabelecer o diálogo – em que a arte da escuta (PORTELLI, 2016) é o centro dessa relação – em um mundo que nasceu e da implosão das noções do “comum” e da “democracia”, das próprias “ruínas do neoliberalismo” (BROWN, 2019)?

Referências

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016. (Coleção Ideias).

TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Translation David Broder. New York/London: Verso., 2019.

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Doutor em História Social (UFRJ). É professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Betim. Atualmente, faz residência pós-doutoral na UFF, investigando o debate público promovido por e em torno dos policiais antifascismo. E-mail: [email protected].


HERMETO, Miriam; AMATO, Gabriel; DELLAMORE, Carolina (Org). Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2019. 180p. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aquiar. A escuta do outro em tempos dissonantes. Canoa do Tempo, Manaus, v.12, n.1, p.457-463, 2020. Acessar publicação original. [IF].

História Oral e Patrimônio Cultural: potencialidades e transformações | Letícia B. Bauer e Viviane Trindade Borges

Quando ouvimos o patrimônio cultural, quais vozes são possíveis? As historiadoras Leticia Bauer e Viviane Trindade Borges, organizadoras desta publicação, contribuem nos debates recentes desenvolvidos no campo do patrimônio e da história oral no Brasil, com a seleção de diferentes percepções sobre o tema, ampliando as possibilidades teórico metodológicas de análise do patrimônio cultural a partir do trabalho com fontes orais, e das discussões sobre a história oral na problematização do patrimônio cultural. Este trabalho está inserido na coleção “História oral e dimensões do público”, da Editora Letra e Voz, que é dirigida por Juniele Rabêlo de Almeida, divulgando pesquisas voltadas para o uso das fontes orais e a relação com seus públicos, trazendo outras perspectivas sobre a história oral a partir de temas como migrações, mídia e os movimentos sociais.

Para além de ouvir a potencialidade das vozes nas narrativas sobre o patrimônio, as organizadoras buscam divulgar ações que possibilitem a transformação com a participação cidadã na construção de suas memórias. Esse intuito se relaciona com as trajetórias acadêmicas destas historiadoras, que privilegiaram em suas pesquisas e na sua atuação profissional as experiências com patrimônios não convencionais de maneira colaborativa, em consonância com as discussões desenvolvidas pela História Pública. Leia Mais

A ditadura aconteceu aqui – a História Oral e as memórias do regime militar brasileiro | Carolina Dellamore, Gabriel Amato, Natália Batista

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O livro A ditadura aconteceu aqui – a História Oral e as memórias do regime militar brasileiro (2017) é uma coletânea de artigos organizada por Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natália Batista. Os organizadores são pesquisadores com doutorados vinculados ao Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais (PPGH-UFMG) e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da mesma universidade (FAFICH-UFMG), coordenados pelos professores Rodrigo Patto Sá Motta e Miriam Hermeto. O grupo se concentra em pesquisas que têm como mote a história do estado de Minas Gerais, do tempo presente e do regime civil-militar brasileiro.

A obra foi lançada no XII Encontro Regional Sudeste de História Oral, ocorrido na UFMG entre 26 a 28 de setembro de 2017. Alguns conferencistas convidados para o evento escreveram capítulos, sendo a maioria dos pesquisadores que publicaram suas reflexões no livro ligados à instituições universitárias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro que encontram representação na seção sudeste da Associação Brasileira de História Oral (ABHO). A História Oral aparece em sua face múltipla: praticada a partir de inflexões teóricas e metodológicas diversas e tendo como eixo de preocupação a relação entre a memória social e a História. Leia Mais

História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos – ROVAL (RTA)

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos. São Paulo: Letra e Voz, 2017. Resenha de: MOUSINHO, Amanda Arrais. Uma história oral narrada por vozes femininas na luta contra as hierarquias de gênero. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.630-634, jan./abr., 2019.

“História oral e história das mulheres: Rompendo silenciamentos” é um livro composto por estudos baseados nas vidas de mulheres de diferentes origens territoriais, sociais, culturais e políticas e suas relações com os homens, com o propósito de refletir sobre essas experiências femininas diante das mais diversas práticas culturais que perpassam o cotidiano. Segundo a organizadora da obra, Marta Gouveia de Oliveira Rovai, essas mulheres detêm a possibilidade de se manifestar, por intermédio da história oral, contra toda forma de opressão, indiferença e esquecimento com o objetivo de publicizar e enfrentar dores na luta contra o silenciamento.

O livro tem início com uma entrevista realizada com Rachel Soihet no intuito de contar a trajetória da estudiosa de gênero e história das mulheres. Realizada por Natália de Santanna Guerellus, a entrevista descreve o percurso pessoal e profissional de Rachel e narra como o fato de as mulheres ocuparem espaços separados nas festas e comporem rodas de conversa cujos temas eram casa e filhos – enquanto homens debatiam temas como política e negócios – acabou por despertar seu interesse sobre o estudo da divisão de papéis entre homens e mulheres.

Mais adiante, a pesquisadora tenta compreender de que forma a segregação e a opressão sofridas pelas mulheres prejudicavam suas potencialidades intelectuais e profissionais, e também defende a complementariedade dos estudos de gênero e da história das mulheres. A entrevistada se denomina feminista ao buscar direitos para as mulheres de modo a constituir uma sociedade igualitária com a qual contribui em termos intelectuais, por exemplo, fazendo uso da história oral para trazer à tona temas que não foram explorados nas décadas anteriores e resgatar, através de memórias, uma história até então não registrada.

O restante do livro é dividido em três partes, sendo cada parte composta por dois capítulos. A primeira parte, “Narrativa de militância feminina: Desvelando relações hierarquizadas de gênero”, debate a relação entre gênero, feminismo e ditadura buscando compreender de que forma as relações de gênero afetam a narrativa e a trajetórias de mulheres que participaram de algum tipo de militância. No primeiro capítulo, “Viver o gênero na clandestinidade”, Joana Maria Pedro aborda a experiência de mulheres militantes que vivenciaram a clandestinidade. A autora faz uso da história oral para entrevistar mulheres que, após se conectarem às organizações políticas, tiveram que utilizar a clandestinidade como recurso para fugir da repressão no período da ditadura no Brasil. Durante as entrevistas, as memórias foram utilizadas como fonte e, por mais que algumas mulheres tenham exercido protagonismo político ao desempenhar cargos de destaque, o que chama a atenção é o fato de algumas das mulheres entrevistadas se colocarem à sombra de seus parceiros ao desqualificarem a própria militância, o que reforça a hierarquia de gênero vigente e minimiza a atuação feminina nos espaços públicos e políticos que são tidos como naturalmente masculinos. Segundo Joana Pedro, essa autodesqualificação da mulher militante reitera que a memória é gendrada e, por consequência, a forma como histórias são narradas e rememoradas também o são, o que acaba por fazer com que o reconhecimento das mulheres na condição de sujeitos históricos e protagonistas seja atravessado por relações de gênero.

No segundo capítulo, intitulado “Ditadura civil-militar e relações de gênero: Uma análise das experiências de mulheres na guerrilha urbana no eixo Brasília-Goiânia”, Eloísa Pereira Barroso e Clerismar Aparecido Longo entrevistam mulheres que militaram na organização de guerrilheiras urbanas que se apresentou como resposta à repressão ditatorial. Nesse caso, a entrevista oral visou entender a condição gendrada da mulher nesse movimento, abarcando hierarquias e estratégias de poder, bem como compreender como os discursos dos sujeitos envolvidos em projetos políticos de esquerda estão condicionados a configurações de gênero.

Já a segunda parte do livro, “Experiências desviantes: a ousadia de ser mulher em contextos autoritários”, tem início com o capítulo “O herói e a deslocada: História oral, gênero, ditadura, emoções”. Escrito por Ana Maria Veiga, o estudo explora a vida de Valdir Alves e Elaine Borges: jornalistas que exerceram a profissão durante a censura da ditadura civil-militar. A autora frisa que apesar de ambos os sujeitos terem tido formação profissional semelhante, o gênero feminino e masculino – opostos e hierarquizados – foram definitivos na construção de uma experiência divergente separada por um abismo do binarismo, de forma que Valdir ficou conhecido como herói e mito, enquanto Elaine não ganhou o mesmo título, mas sim o de “incendiária do cenário político” (2017, p. 92), que poderia prejudicar a imagem dos jornalistas por gostar de criar confusão. E é por isso que Ana Maria Veiga nomeia Elaine como “deslocada”, pelo fato de a jornalista ter se destacado em um meio profissional predominantemente masculino e fugir do suposto papel tradicional da mulher.

No segundo capítulo, “Médica, resistente e condessa: A história da militante potiguar Laly Carneiro Meignan”, a autora Maria Cláudia Badan Ribeiro narra a vida da primeira mulher potiguar a ser presa por motivos políticos devido à sua militância ir de encontro com o coronelismo, as oligarquias rurais e a ala conservadora do Rio Grande do Norte. Laly, uma mulher nordestina, médica, militante, exilada e professora consagrada no exterior, faz parte de uma resistência construída coletivamente que utilizava como instrumento principal a educação popular.

Na terceira e última parte do livro, “O privado como dimensão pública: Rompendo territórios”, as autoras exploram temas que abarcam a naturalização das funções sociais das mulheres em uma sociedade patriarcal. No primeiro capítulo, “Ser mãe ou não ser: Afinal, qual é a questão? A história oral desvendando o mito do amor materno”, Marcela Boni Evangelista entrevista dois grupos de mulheres que vivenciaram a experiência da maternidade na adversidade. Primeiramente, a autora conversou com mulheres-mães de jovens envolvidos com atos infracionais que foram privados de liberdade; e em um segundo momento, Marcela conversou com mulheres que passaram pela experiência do aborto induzido, o que evidencia a maternidade enquanto uma escolha. Em ambas as situações, a história oral serviu como instrumento para dar voz a essas mulheres a fim de problematizar a ideia do mito do amor materno, bem como a imposição da obrigatoriedade da maternidade para que a mulher alcance a plenitude. Nesses dois casos, a história oral aproxima o leitor das realidades obscurecidas pelas quais passam essas mulheres diante de uma função social a elas atrelada e que é há muito tempo naturalizada.

No capítulo final, “Romper o silenciamento: Narrativas femininas sobre violência de gênero e desvitimização”, Marta Gouveia de Oliveira Rovai e Naira de Assis Castelo Branco relatam casos de mulheres piauienses, moradoras da Parnaíba, que sofreram violência de gênero no período de 1995 a 2014. Segundo as autoras, ouvir as vítimas de violência simboliza o incentivo a uma reflexão acerca das relações entre domínio público e privado e a tentativa de desconstruir a ideia de que a violação dos direitos no espaço privado é um assunto conjugal. Entretanto, é primordial ressaltar que, apesar da violência sofrida, as mulheres não podem ser reduzidas ao papel de vítima, logo, o papel da história oral, nesse caso, é justamente o de fazer com que esses testemunhos atinjam a esfera pública a fim de criar medidas protetivas e desnaturalizar violências e hierarquias de gênero.

No decorrer dos capítulos desse livro, o que se percebe é a necessidade de assegurar às mulheres o direito de contar suas próprias experiências de modo que suas histórias não sejam reduzidas a uma narrativa terceirizada contada sob a ótica masculina. Em vista disso, a história oral funciona como instrumento metodológico ao dialogar diretamente com essas mulheres e permitir que suas experiências sejam publicizadas sem a mediação de instituições atravessadas por uma cultura permeada por práticas e discursos androcêntricos.

Amanda Arrais Mousinho Mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP – BRASIL E-mail: [email protected].

História oral como arte da escuta

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. Trad. Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2016. 196 p. Resenha de: MENIN, Assis Felipe. Por uma escuta sensível na história oral. História Oral, v. 20, n. 1, p. 241-244, jan./jun. 2017.

O mais recente livro de Alessandro Portelli, professor de literatura e historiador oral, traz ao leitor uma coletânea de artigos publicados em diferentes épocas de sua longa carreira de professor e pesquisador. O livro se divide em três partes, com três artigos cada. A escrita de História oral como arte da escuta é rica em detalhes históricos e memórias carregadas de sentimentos.

O livro não se destina apenas aos interessados na metodologia da história oral – historiadores e acadêmicos em geral –, mas certamente também aos interessados em histórias de homens e mulheres e em suas diferentes versões e impressões da história.

A primeira parte do livro é metodológica, diz respeito a como fazer e pensar a história oral. O autor ensina a trabalhar a oralidade, mostrando a importância de se manter uma relação “dialogal” entre historiador e narrador.

No dizer de Portelli, as fontes orais são cocriadas a partir da relação entre entrevistador e entrevistado. Por isso, as fontes orais carregam o inesperado, o inusitado e até mesmo o contraditório. Para exemplificar, ele fala sobre o momento em que, supostamente terminada a entrevista, o gravador é desligado: são frequentes os casos em que se escutam histórias tão interessantes quanto as do registro gravado ou ainda mais surpreendentes. Apesar de consciente do compromisso do entrevistador de proteção à sua privacidade, o entrevistado, mais relaxado nessa “informalidade”, se permite confidências inesperadas. O autor faz referência a episódios relativos à Segunda Guerra Mundial, a casos de assédio sexual, a histórias de mulheres durante a guerra e a práticas homoeróticas.

A história oral, além de ser dialógica, é performática, afirma o autor, já que ela não pode ser separada da linguagem e das expressões empregadas na narração. Esses aspectos exigem da história oral a arte da escuta, que ajudará o historiador a aprender mais e a ter diferentes visões do fazer história oral.

No segundo texto, Autoetnografia da prática de pesquisa, Portelli debate uma questão de metodologia a ser pensada pelo historiador: não é somente na performatividade do outro que a narração pode esconder significados, mas na do próprio historiador. A entre-vista se caracteriza pelo ato de duas pessoas olharem uma à outra. O entrevistador, portanto, não pode se manter neutro.

Portelli percebeu, em sua longa carreira de pesquisador de história oral, que o silêncio do entrevistador provoca no narrador desconfiança e, com isso, cria nele estereótipos sobre o seu próprio relato e sobre a pessoa do pesquisador.

No terceiro artigo, Portelli alerta para as especificidades e usos da memória: a memória involuntária, a memória perturbadora e a memória- -monumento. Para o autor, a memória não pode ser caracterizada como “boa” ou “má”, pois ela simplesmente é. O esquecimento faz parte da memória: esquecemos o que não nos afeta ou não possui significados. Existe, porém, um esquecimento que é caracterizado pelo “excesso de significados”. Para melhor explicar tal esquecimento, seriam necessárias memórias repletas de fantasmas que perturbam o presente. São as chamadas memórias involuntárias, que surgem de diferentes maneiras e em variadas circunstâncias. Portelli cita o caso de uma mulher ex-escravizada que, ao caminhar por verdes e floridos jardins e sentir o odor de lavanda das flores, se recorda dos momentos dramáticos e dos abusos sofridos naqueles campos. A memória perturbadora, por sua vez, é como um fantasma, insiste em aparecer mesmo quando não é querida por perto; é o que ocorre com os traumas, por exemplo. Por fim, a memória-monumento é aquela celebrada pelas instituições, que recorda de um passado considerado laudatório, mas que pode trazer dor e ressentimentos a algumas pessoas. Os três tipos de memórias estão interligados.

Na segunda parte do livro, As formas da memória pública, Portelli trabalha com um tema muito caro aos historiadores, que criticam, por um lado, a disputa e o mau uso das memórias e, por outro, incentivam uma visão interdisciplinar do fazer histórico e de múltiplos saberes, que todos podem ajudar a construir. É o que o autor defende no artigo sobre a Casa da Memória e da História de Roma, um local construído por diferentes setores da sociedade – acadêmicos, políticos, representantes da comunidade e pessoas que participaram ativamente dos acontecimentos – para lembrar o massacre das Fossas Ardeatinas1 e o fascismo, bem como suas consequências para o governo progressista de Roma na época. O espaço se transformou em local de disputas por memória, história e, consequentemente, por políticas diferentes: de um lado, o anticomunismo; de outro, os direitos humanos.

No artigo sobre imigrantes na Itália, a sensibilidade de Portelli com os entrevistados, provenientes de países asiáticos e africanos, assim como sua persistência para encontrá-los, mostra como contornar as adversidades de um projeto. Os imigrantes são vistos como mera força de trabalho na sociedade capitalista; por isso, são indivíduos em trânsito, que não conseguirão evitar a condição de provisoriedade, conforme afirma Sayad (1998), ou de outsider, de Elias e Scotson (2000), e ser reconhecidos como cidadãos na sociedade que os recebe. Ao reconectar as canções dos imigrantes e suas memórias, Portelli consegue trazer à tona as emoções e as saudades dos que deixam a própria terra e os seus para tentar a vida em outro país, onde nem sempre são bem recebidos – como é o caso dos imigrantes atualmente na União Europeia.

Com esse propósito, o autor apresenta três entrevistas, nas quais também mostra que os imaginários sobre a Itália (ou qualquer país de destino) são compostos de representações sociais, econômicas e culturais. Ao relatar a saudade, os imigrantes se encontram em um entre-lugar: estão aqui, longe dos seus, deslocados de seu país, e, ao mesmo tempo, não fazem parte deste lugar, estão permeados por um sentimento de não lugar.

No terceiro artigo da segunda parte, Portelli trabalha a adaptação da história oral para o teatro. Não há preocupações quanto à sequência da narrativa teatral e de sua performance, pois a narrativa oral é diferente a cada vez que é contada – basta lembrar a performance da tradição oral nas sociedades africanas. É a partir desse termo (performance – pela liberdade de interpretar) que a história adquire novas conotações: quando sai do escrito e volta para a performatividade da fala, ela retorna ao seu status, e isso envolve o performer, o ator e a audiência. As adaptações teatrais reativam silêncios e traumas que em alguns casos são esquecidos ou silenciados pelas instituições; democratizam, assim, a experiência da memória, levando a mensagem a plateias que possivelmente não teriam acesso ao seu conteúdo por outro meio.

Na terceira e última parte, Portelli desenvolve questões referentes à guerra e à memória. Além das violências e traumas que a guerra causa, ela produz em quem a vive imaginários de “como seria se...”, misturados aos sentimentos de mágoa. No primeiro artigo, Portelli se debruça sobre os imaginários dos partigiani, sobre as violências e violações que sofreram das tropas fascistas na guerra de Poggio Bustone.

No segundo artigo, sobre genocídio, o autor entrevista sobreviventes da guerra sobre seus medos, fantasmas e fantasias: ao invés de descartá-los por suas incongruências e contradições, ele trabalha com essas imaginações e relatos.

Não importa o que os narradores realmente tenham feito ou vivido, mas o que eles sentiram e sentem a respeito de determinado episódio. Sentimentos de violações e injustiças se misturam e são recriados, segundo o autor. Essas histórias podem ser interpretadas pelo apagamento e pelo silenciamento dessas memórias pelo discurso oficial.

Por fim, Portelli apresenta a memória em meio a uma guerra de narrativas que envolve imaginários, emoções, racismo, fascismo, disputas. O autor desenvolve a narrativa dos fatos através das entrevistas com as pessoas que viveram na catástrofe da ocupação alemã de Hitler. Geralmente em uma guerra se avaliam as perdas materiais e humanas, quantitativamente. Portelli, com suas entrevistas, busca mostrar que há outras vítimas, certamente inocentes.

O livro de Alessandro Portelli é um aprendizado para quem trabalha com a metodologia da história oral. Como ele próprio afirma: “A história não termina quando o gravador é desligado, quando o documento é depositado, quando o livro é escrito; ela começa a viver naquele dia” (p. 43).

Referências

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.

1 Massacre que ocorreu na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, quando nazistas fuzilaram 335 civis italianos.

Assis Felipe Menin – Mestre em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected].

História oral e práticas educacionais – RODEGHERO (HO)

RODEGHERO, Carla Simone; GRINBERG, Lúcia; FROTSCHER, Méri (Org.). História oral e práticas educacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. 226 p. Resenha de: SANTHIAGO, Ricardo. A história oral e suas possibilidades educacionais. História Oral, v. 20, n. 1, p. 237-240, jan./jun. 2017.

O livro História oral e práticas educacionais, organizado por Carla Simone Rodeghero, Lúcia Grinberg e Méri Frotscher, consolida e amplia discussões motivadas pelo 13º Encontro Nacional de História Oral, realizado em 2016 na cidade de Porto Alegre, em torno do mesmo tema. A diversidade dos artigos que compõem a obra mostra-se não a despeito do tema unificador do evento, mas, ao menos em parte, em função dele. No Brasil, afinal, a história oral desenvolveu-se predominantemente enquanto uma especialidade acadêmica, perseguida no seio da universidade e favorecida pela expansão do sistema de pós-graduação.

Diferentemente do que ocorreu em contextos onde a história oral floresceu em arquivos, bibliotecas e institutos eminentemente investigativos, aqui a pujança do campo esteve atrelada às universidades; deve-se ao entusiasmo de estudantes que, com inúmeras teses, dissertações e trabalhos de graduação, tiveram e têm um papel fundamental em dimensionar a prática da história oral e garantir que ela seja considerada como um recurso de pesquisa valioso e como um empreendimento coletivo capaz de oferecer interpretações sólidas e muitas vezes desafiadoras sobre o passado e o presente.

A principal novidade da coletânea reside no esforço de sistematização de reflexões e experiências sobre o uso da história oral no ensino – em universidades, escolas e espaços de educação não formal –, aliando-se a outras publicações recentes que tratam do assunto. A busca por essa sistematização dá o tom da primeira parte da obra, História oral e práticas educacionais.

O capítulo De volta ao futuro: o poder político da história oral na educação, da canadense Kristina R. Llewellyn, provém de um contexto que tem a história oral como recurso frequente na escola básica, em variadas disciplinas e em projetos interdisciplinares. Llewellyn argumenta que a história oral “proporciona aos jovens a capacidade de transformar narrativas históricas sobre suas nações e empoderaos para moldar seu futuro político” (p. 17), mas defende que isso passa por uma reorientação da “cultura do testemunho” em que os jovens estão inseridos e das ferramentas tecnológicas em que essa cultura está encarnada. A autora entende o uso do método na escola como um caminho para a democratização e para a consciência crítica, e oferece exemplos de como isso tem sido perseguido, inclusive no projeto que integra, que combina história oral, realidade virtual e realidade aumentada.

Os dois textos seguintes harmonizam o entusiasmo de Llewellyn com reflexões que descortinam a complexidade do uso pedagógico da história oral.

Em Dois temas sensíveis no ensino de história e as possibilidades da história oral: a questão racial e a ditadura no Brasil, Verena Alberti vai além das dimensões sinalizadas por seu título e evidencia como “a própria História já pode ser vista como uma matéria sensível e controversa” (p. 38). Com exemplos instrutivos e propostas pedagógicas práticas, Alberti demonstra de que formas as histórias pessoais podem ser utilizadas como aliadas para desafiar noções do senso comum e estimular o pensamento crítico. Em História oral e história recente do Brasil: desafios para a pesquisa e para o ensino, Carla Simone Rodeghero reforça a ideia de que as histórias orais servem não somente para sensibilizar, mas também para favorecer a compreensão crítica: recuperando dois de seus temas de estudo, o anticomunismo e a anistia, a autora evidencia a capacidade que os relatos orais têm de tensionar leituras e interpretações estabelecidas sobre o passado.

A segunda parte do livro, História oral: experiências e possibilidades na educação formal e não formal, é aberta por Isabel Cristina Martins Guillen, que em História oral e ensino de história: experiências e debates nutre-se de várias experiências de uso da história oral no âmbito da graduação em História para dissertar acerca do valor pedagógico da história oral e da história local enquanto abordagens capazes de enfrentar questões globais nos estudos sobre o presente. Suas ideias encontram ressonância no ensaio História do tempo presente, história oral e ensino de história, em que Marieta de Moraes Ferreira entrelaça as dimensões de seu título, objetos de reflexão persistentes em sua trajetória, reconhecendo que “as novas metas do ofício de historiador” são balizadas pela “tensão entre seu papel social e seu compromisso com a produção científica” (p. 132) e sugerindo que a história oral é um caminho possível para que o profissional persiga essas metas.

Os outros artigos relatam percursos nos quais os procedimentos estabelecidos encontram-se com a criatividade e integram-se a dinâmicas interdisciplinares e práticas multiprofissionais. Em História, memória e performance em narrativas orais de crianças, Luciana Hartmann recapitula três experiências de investigação distintas em termos de tema e abordagem; da perspectiva de uma antropóloga que estuda performance e as múltiplas manifestações da oralidade, ela chama atenção para esses narradores raramente convocados a relatar suas experiências, valorizando o aproveitamento pedagógico do impulso narrativo das crianças. Em Memória, cultura e educação não formal: experiências de pesquisa, a socióloga Olga Rodrigues de Moraes von Simson revisita seu próprio itinerário, demonstrando como, a partir de seu estudo pioneiro sobre o carnaval paulista, outros territórios temáticos e geográficos puderam ser explorados, em uma perspectiva que configura o diálogo entre estudiosos e sujeitos de pesquisa como propulsor do desenvolvimento de uma consciência identitária e de um senso de pertencimento cultural. Em O amor entre a voz e a coisa: a construção de uma exposição sobre o amor a partir do depoimento dos doadores de objetos, Kênia Sousa Rios relata como, partindo do inventivo deslocamento semântico da expressão “prova de amor”, ela propôs aos seus alunos uma reflexão histórica sobre o amor romântico e os temas que ele vivifica, como as relações familiares e os papéis de gênero; essa discussão culminou na criação de uma exposição que, valendo-se de histórias orais, retratos e objetos, encarnou as expectativas, os sonhos, os delírios e as frustrações que enlaçam histórias de amor.

A parte final da obra, intitulada História oral, pesquisa, ensino e acervos, é aberta por Luciane Sgarbi S. Grazziottin, que em História da educação e história oral: possibilidades de pesquisa em acervos de memória reflete sobre os problemas envolvidos nas pesquisas que se valem de entrevistas arquivadas, mencionando três acervos utilizados em seus próprios estudos. Em História oral e educação matemática: perspectivas e um projeto coletivo, Antonio Vicente Marafioti Garnica e Maria Ednéia Martins Salandim relatam a trajetória do Grupo História Oral e Educação Matemática (GHOEM), no qual a história oral acopla duas funções de igual importância: estabelecer novas fontes para o estudo da formação e do ensino de matemática e dinamizar, junto com os educadores, um processo de reflexão que constitui e revela uma identidade profissional específica. Em Garimpando memórias: esporte, lazer e educação física, Silvana Vilodre Goellner recupera a trajetória do Centro de Memória do Esporte (CEME) da UFGRS, dedicado à guarda e à investigação de acervos esportivos e também à produção cultural, já que os depoimentos são base para exposições, programas educativos e para um acervo digital. O artigo explicita o compromisso em oferecer visibilidade pública às histórias colhidas, em coerência com o impulso de reconhecer o papel das experiências de outros sujeitos que não os vencedores (em se tratando de esportes competitivos, no sentido literal).

O último capítulo da obra, Memórias em movimento: a experiência com fontes orais e visuais do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, de Ana Maria Mauad, ultrapassa a proposta da autora e pode ser interpretado como um encapsulamento de questões que permeiam todo o livro, cujo enfrentamento é crucial na abordagem da história oral como prática educacional.

Em primeiro lugar, é crucial por chamar atenção para os desafios de tomar a memória como um objeto de estudo a ser inquirido criticamente, para além de seu papel celebrativo e reiterativo ou de sua capacidade de sensibilização.

Em segundo, por fazer notar a intertextualidade constitutiva dos textos culturais, cuja leitura é condicionada pelos textos (escritos, orais, imagéticos etc.) que os precedem e sucedem, numa trama histórica complexa. Por fim, não menos importante, por acionar as noções de “prática historiadora” e “prática social”. A justaposição de ambas – “na produção de um conhecimento intersubjetivo e reconhecido como válido pelos sujeitos históricos” (p. 210) – é uma característica que explica, ao menos em parte, a disposição de um número crescente de educadores em incorporar a história oral como ferramenta pedagógica em espaços variados de educação formal e não formal.

Ricardo Santhiago – Doutor em História Social pela Universidade São Paulo (USP), com pós-doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI-UFF), do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (GEPHOM/EACH-USP) e do Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid). E-mail: rsanthiagoc@ gmail.com.

História oral e arte – SANTHIAGO (HO)

SANTHIAGO, Ricardo (Org.). História oral e arte: narração e criatividade. São Paulo: Letra e Voz, 2016. 186 p. Resenha de: LIMA, Gabriel Amato Bruno de. Por uma história da arte e dos artistas com a história oral. História Oral, v. 19, n. 2, p. 213-216, jul./dez. 2016.

Certa vez, ao debater num curso de história oral a questão do retorno aos entrevistados, a colega com quem eu dividia a regência das aulas admitiu um impasse. Por entrevistar artistas, em especial “homens de teatro”, ela disse ter dificuldades em pensar formas de retornar aos entrevistados os resultados de suas pesquisas. Os textos acadêmicos, com suas exigências de linguagem e formato, pareciam a ela insuficientes, pois dramaturgos ou atrizes estão habituados a se relacionar com o mundo de forma inventiva. Restava a dúvida: como dizer aos entrevistados sobre a importância de suas contribuições? Pesquisando mais sobre as investigações que elegem a arte como tema e as entrevistas como método, descobri que há ao menos mais um pormenor no campo – desta vez, teórico. Ao resenhar livros sobre o tema, Elisabeth Stevens identificou um paradoxo das “entrevistas com e sobre artistas”.

Segundo a autora, elas “requerem que pessoas que escolheram meios não verbais para se expressar ainda assim expliquem a si mesmas, ou sejam explicadas, com palavras” (Stevens, 1990, p. 111, tradução livre). A própria decisão de entrevistar artistas já traria questões de fundo para o pesquisador: como não se limitar à busca por traduzir arte em narrativas de história oral? Como evitar o discurso pronto daqueles que criam narrativas públicas sobre si? Essas breves considerações sugerem a importância da coletânea História oral e arte: narração e criatividade, editada em 2016 pela Letra e Voz.

Pelo título, o leitor familiarizado com os debates da metodologia poderia intuir se tratar de novo capítulo da discussão acerca do estatuto epistemológico da história oral – se técnica, metodologia, disciplina ou arte. Mas não é nem à reivindicação da história oral como “arte multivocal” (Portelli, 2010), nem ao tratamento literário das entrevistas – a “transcriação” (Meihy, 2005, p. 195-203) – que o livro dedica sua atenção. Os textos de História oral e arte direcionam seus esforços para a afirmação de uma agenda de pesquisas em torno da produção, circulação e recepção dos trabalhos de músicos, artistas cênicos, pintores, escultores, arquitetos, literatos e cineastas (isso para nos limitarmos à enumeração das sete artes).

Organizado por Ricardo Santhiago, o livro é parte da coleção História Oral e Dimensões do Público, dirigida por Juniele Rabêlo de Almeida. Sua proposta editorial é uma relativização do diagnóstico elaborado pelo organizador três anos antes, segundo o qual “se não faltam profissionais que empregam o método da entrevista […] na abordagem das artes, poucos são os que engatam nesses estudos todo o lastro teórico e conceitual” da história oral (Santhiago, 2013, p. 166). Como indicam os oito artigos do livro, “só faltava abrir o jarro, parece, para que perspectivas instigantes sobre a relação entre história oral e as artes tivessem sua dimensão evidenciada” (p. 8). E, de fato, a leitura de História oral e arte ajuda a compor uma problematização dos usos possíveis dessa metodologia em pesquisas sobre o mundo artístico.

Um primeiro conjunto de estudos do livro se dedica à reflexão sobre o sujeito. Em Inovação e criatividade: a história de Dona Isabel Mendes, das panelas de barro às bonecas de cerâmica, Karen Worcman analisa a narrativa de uma ceramista cujo ofício foi reconhecido como arte pelo mercado. Segundo Worcman, a entrevista com Isabel evidencia como “um indivíduo alia seus desejos pessoais à tradição, destacando-se em sua criatividade e empreendedorismo ao ser estimulado por seu próprio contexto” (p. 22). Seu argumento indica um movimento de deslocamento de análise em história oral: das memórias coletivas às formas como sujeitos elaboram processos de recordação.

Em sentido análogo, está Tudo que o tempo deixou: as continuidades e rupturas da história bossanovista através da memória de Alaíde Costa, de Daniel Lopes Saraiva. O autor argumenta que a história oficial da bossa nova silencia os conflitos (inclusive de memória) entre os bossanovistas. Ela também invisibiliza a atuação de Alaíde Costa, uma “cantora negra, vinda do subúrbio carioca, que já era profissional à época quando a bossa nova surgiu” (p. 58). Sua memória, portanto, adiciona importantes nuances às narrativas sobre o movimento.

O enfoque nos sujeitos-artistas está presente também em O menino João das Neves: reminiscências de um amante da arte, de Miriam Hermeto e Natália Batista. Explorando a articulação entre experiência e expectativa na entrevista com o dramaturgo, as autoras identificam na memória de João das Neves os “múltiplos meninos-João, que se configuram temporalmente e constituem uma personalidade singular do velho-João” (p. 134). Outra característica instigante do trabalho são as considerações sobre a relação que se estabeleceu com João ao longo das entrevistas, que nos ajudam a localizar as subjetividades em jogo na produção de uma “história de vida”.

Um segundo grupo de textos questiona as coletividades e a construção de identidades. Em Circuitos operacionais das artes: memórias em torno da profissionalização dos artistas plásticos em Pernambuco nos anos 1960, José Bezerra de Brito Neto trata de uma entidade de artistas, concatenando memórias que formam um quadro de lembranças sobre identidades profissionais. O objetivo do autor é “analisar as fábricas políticas e culturais do status profissional no campo das artes plásticas de Pernambuco, na década de 1960” (p. 37), ainda que a especificidade da política cultural sob um Estado autoritário seja apenas apontada no trabalho. Também Haroldo Rezende, em Kukukaya: um grito de amor, um grito de dor, lida com questões identitárias ao analisar o circuito de apropriações de uma canção de Cátia de França. O autor observa que uma geração de músicos nordestinos dos anos 1970 criou uma rede de significados da memória, que é “refundada a cada execução, a cada gravação, a cada interpretação” da canção (p. 98).

Dayse Perelmutter, em A história oral como laboratório de sensibilização estética: memórias e marcas de artistas brasileiros de ascendência judaica, também se questiona sobre a identidade de artistas. A autora analisa “a maneira como o legado judaico foi transmitido e inscrito e a intensidade de sua reverberação na sensibilidade contemporânea de cada um” dos seus entrevistados (p. 107). Apesar do predomínio de debates teóricos, o texto é concluído com uma análise de depoimentos de artistas que articulam o par identidade/diferença em suas narrativas de história oral.

Por fim, dois textos trazem reflexões teóricas a partir da percepção da história oral como “prática reflexiva” (p. 9). Em História oral e história da arte: aproximações, Eduardo Veras analisa a produção de entrevistas com artistas e a fecundidade de questões próprias da história oral. Problematizar a “condição a posteriori das entrevistas” e “questionar a absolutização dos demais documentos de processo” criativo são, para o autor, contribuições da metodologia, em especial quando se considera “as entrevistas no contexto maior da longa tradição de convívio entre textos e obras de arte” (p. 146- 147). Ricardo Santhiago encerra a coletânea com A pergunta que não se faz: algumas ideias sobre história oral e canção. O ensaio levanta a possibilidade de se tratar canções como história oral, concluindo que “é o casamento entre ambas que pode promover uma compreensão mais profunda de determinado fenômeno, aliando a subjetividade narrativa e a subjetividade artística” (p. 168).

Em seu conjunto, os artigos de História oral e arte indicam possibilidades para pensarmos a história oral e o campo artístico a partir das ambiguidades dos sujeitos, das identidades profissionais e da análise dos produtos culturais e das narrativas sobre eles. Problemáticas peculiares costumam aparecer quando lidamos com grupos sociais diferentes em história oral – e não é diferente com os artistas. Evidenciá-las em pesquisas temáticas enriquece os debates, permitindo revisões de nossa prática e o alargamento de nosso repertório teórico – tarefa que o livro cumpre com êxito.

Referências

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

SANTHIAGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios. História Oral, v. 16, n. 1, p. 155-187, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://revista.historiaoral.org.br/index.php?journal=rho&page=article&op=view&path%5B%5D=278&path%5B %5D=309>. Acesso em: 3 set. 2016.

STEVENS, Elisabeth. Art, artists, and oral history. Oral History Review, v. 18, n. 1, p. 111- 115, primavera 1990.

Gabriel Amato Bruno de Lima –Mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Núcleo de História Oral da mesma universidade. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: Ética, memória e acontecimento na história oral | Alessandro Portelli

O livro “A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: ética, memória e acontecimento na história oral” proposto para análise é de autoria de Alessandro Portelli, que o dividiu em duas partes: “Oralidade, ética e metodologia” e “Acontecimentos, memórias e significados”, respectivamente.

Alessandro Portelli é um dos autores mais importantes no cenário mundial no que se refere ao tema da História Oral. Professor de literatura norte-americana na Universidade de Roma, Portelli fez inúmeros trabalhos de campo nos Estados Unidos e na Itália, resultando na publicação de obras que são referências na História Oral, entre elas “Biografia di una città. Storia e racconto: Terni, 1830-1985”, “Storie Orali. Racconto, immaginazione, dialogo” e “Ensaios de História Oral”. O autor fundou o “Circolo Gianni Bosio” – espaço para pesquisa de memória, música e culturas populares – onde desenvolve, comunica e expande seus trabalhos. Leia Mais

História Oral, desigualdades e diferenças – LAVERDI et. al (TH)

LAVERDI, Robson; FROTSCHER, Méri; DUARTE, Geni; MONTYSUMA, Marcos e MONTENEGRO, Antonio (Orgs.). História Oral, desigualdades e diferenças. Recife: Ed. Universitária da UFPE; Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2012, 333p. Resenha de: GILL, Lorena Almeida.  Tempos Históricos, v.17, p. 384 – 388, 2º Semestre de 2013.

Quando penso sobre a razão que me motiva a trabalhar durante tantos anos com a metodologia de História Oral, a resposta que encontro é, certamente, pela possibilidade de conhecer tantas pessoas com suas memórias comovedoras. Memórias como as reveladas por Roseli Boschilia (2012, p. 107), que entrevistou imigrantes portugueses, dentre eles, Maria Helena, a qual contou sobre a sua partida de Portugal e do sofrimento advindo deste fato, quando ainda era uma menina pequena:  Fui arrancada dos braços de minha avó, eternamente enlutada e cega; arrancada do chão de minha terra, dos sons, das cores e dos cheiros de minha aldeia para ser ‘plantada’ em São Paulo […] Vivi com minha mãe durante 12 anos na casa da família onde ela trabalhava como doméstica. Minha mãe fugira dos ‘trabalhos sem fim dos campos’ para acabar por definhar no ‘trabalho sem fim como empregada’, numa casa alheia, numa pátria alheia, longe dos seus.

História Oral, desigualdades e diferenças, livro organizado por Robson Laverdi, Méri Frotscher, Geni Rosa Duarte, Marcos Freire Montysuma e Antonio Torres Montenegro nos apresenta narrativas como a de Maria Helena e de tantos outros depoentes, que fazem com que paremos para refletir, a cada parte de sua leitura, sobre a necessidade de se construir memórias infames, no dizer de Michel Foucault (2003), e dos seus sentimentos, sofridos, alegres, banais, cotidianos.

O livro, publicado em parceria pelas Editoras da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Federal de Santa Catarina, foi gestado durante o V Encontro Regional Sul de História Oral, realizado no ano de 2009, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon, tendo como eixo de organização as mesas que ocorreram durante a programação do evento e as discussões realizadas.

O livro é tão diverso quanto foi a proposta do encontro, refletindo sobre Teoria, prática do historiador, questões vinculadas à memória e à subjetividade, as cidades, os movimentos sociais, os processos migratórios, o ensino e a história oral como ferramenta de reflexão na ação. Há, no entanto, um fio condutor que organiza o material, ou seja, uma necessidade de trocar experiências tão ricas, como aquelas produzidas em diferentes universidades do Brasil e do exterior, especialmente da Argentina e do Canadá.

Na primeira parte do material, Regina Beatriz Guimarães Neto, Antonio Torres Montenegro, Marcos Fábio Freire Montysuma e Pablo Alejandro Pozzi analisam as fontes orais e o ofício do historiador. Ainda que discutam sobre práticas de pesquisa, constituição de fontes, autorização de cessão de uso de relatos, utilização de testemunhos, o que chama a atenção é a trajetória de cada um dos autores relacionada à história oral. Seus textos revelam experiência e cuidado ao tratar da metodologia, ao mesmo tempo em que há certo militantismo, no que diz respeito às suas escolhas profissionais. Seus textos e seus percursos lembram muito um dos escritos de Portelli (1997, p. 15), no qual reflete sobre ética e assim diz:  […] compromisso com a honestidade significa, para mim, respeito pessoal por aqueles com que trabalhamos, bem como respeito intelectual com o material que conseguimos; compromisso com a verdade, uma busca utópica e a vontade de saber ‘como as coisas realmente são’, equilibradas por uma atitude aberta às muitas variáveis de ‘como as coisas podem ser’.

Na segunda parte, Benito Bisso Schmidt e Roseli Boschilia transitam com maestria pelos temas da história oral, da memória e das subjetividades. Benito se propõe a realizar uma discussão mais teórica, ao reforçar a necessidade de se utilizar a noção de subjetividade de forma profunda no momento da análise da narrativa; Roseli, ao apresentar um trabalho realizado com imigrantes portugueses, nos brinda com entrevistas plenas de sentimentos. Três homens e uma mulher portugueses, que vivem em Curitiba atualmente, falam de suas origens, da nostalgia, da saudade, em relatos onde o passado, o presente e o futuro se entrelaçam.

Na terceira parte, os temas da cidade e da diferença aparecem com ênfase. Marcos Alvito conta sobre seus primeiros trabalhos com história oral, em Acari, para chegar a uma pesquisa mais recente, construída em 2009, com descendentes de escravos do quilombo São José da Serra, município de Valença, Rio de Janeiro. Relata o autor algumas narrativas, dentre elas a de Nathanael, que compara uma árvore, o jequitibá, à comunidade de ex-escravos. Alvito usa as falas de narrador e de outros depoentes para observar a complexidade de um relato, o qual necessita de profunda análise e interpretação por parte do historiador. Já Luiz Felipe Falcão toma como estudo de caso a capital de Santa Catarina, Florianópolis, buscando revelar que ainda que existisse um discurso construído de que a cidade fosse uniforme culturalmente, os outros (moradores de bairros populares, negros, pessoas vindas de fora) estavam sempre lá para mostrar o quanto havia a diversidade e a desigualdade. Por fim, Robson Laverdi aborda a alteridade gay, a partir da maneira como eles lidam com o preconceito e a homofobia. O discurso de um deles, denominado Márcio, um jovem nascido na zona rural que passa a viver na cidade de Assis Chateaubriand, ao trabalhar em um frigorífico, revela uma forma de se forjar em espaços absolutamente discriminatórios. Não se trata, no entanto, de uma narrativa lacrimosa ou algo que o valha, mas da constituição de uma identidade. No dizer de Candau (2011, p. 76):  Quando um indivíduo constrói sua história, ele se engaja em uma tarefa arriscada consistindo em percorrer de novo aquilo que acredita ser a totalidade de seu passado para dele se apropriar e, ao mesmo tempo, recompô-lo em uma rapsódia sempre original. O trabalho da memória é, então, uma maiêutica da identidade, renovada a cada vez que se narra algo.

No quarto tópico, o qual versa sobre os movimentos sociais, Davi Félix Schreiner observa que, por muito tempo, os trabalhadores rurais não tiverem espaço na historiografia, situação que foi sendo alterada com o uso da metodologia de história oral. Utilizando o conceito de liminaridade e a categoria de subjetividade, revela um amplo espectro para o que pode ser chamado de trabalhadores sem-terra, analisando narrativas, sobretudo, vinculadas à vida em acampamentos. Mônica Gatica, por seu turno, procura compreender a dinâmica dos movimentos sociais e dos “novos movimentos”, que surgem na América Latina, a partir dos anos de 1980 e para isso se utiliza de vários teóricos imprescindíveis para a História Oral; ainda há Pablo Ariel Vommaro, o qual discute a organização do Movimento dos Trabalhadores Desempregados de São Francisco Solano, que se constituiu a partir de 1997, em Quilmes, sul da grande Buenos Aires. O foco são os trabalhadores urbanos e os processos de constituição de redes sociais. Nessa conjuntura, a História Oral, para o autor, é mais do que uma metodologia, mas uma maneira de aproximação da realidade.

A quinta parte, versando sobre migração, memória e identidade, traz textos de Alexander Freund e Méri Frotscher. Alexander reflete sobre os imigrantes, afirmando que, muitas vezes, se sentem perdidos entre dois mundos. O fato de não compartilharem uma memória coletiva (conceito que reverencia como fundamental para a análise dos processos de deslocamento) no novo país em que estão, faz com que se vejam em uma espécie de meio do caminho. Para o autor, no entanto, não se trata de uma história apenas de perdas, mas também de possibilidades, ao se construir ricos intercâmbios culturais. Méri Frotscher, por sua vez, observa as possibilidades de se relacionar as fotografias de migrantes e as fontes orais. Tendo em vista dois estudos de casos, de jovens do Paraná que foram trabalhar, de forma temporária, na Áustria e na Suíça, a partir dos anos de 1970, a autora analisa os “olhares sobre a alteridade”, presentes nas narrativas orais e visuais dos depoentes, percebendo que o uso das duas fontes permite compreender, de forma mais significativa, as experiências e os sentimentos dos migrantes.

Na última parte, Geni Rosa Duarte e Bibiana Andrea Pivetta analisam as experiências no campo do ensino. Geni, ao trabalhar com as migrações, advoga o direito ao conhecimento do passado de forma plural. Não basta para a autora dar voz aos antigos moradores, sem que se aceite os novos personagens, que se colocam no presente. A escola deve se abrir para o que não é homogêneo, para o que traz o antagonismo, para o que faz pensar sobre a realidade social. Por sua vez, Bibiana apresenta o projeto Aborígine para a Integração, o qual utiliza a história oral como ferramenta didática para um maior conhecimento de saberes tradicionais. Segundo a autora, através da metodologia, é possível conhecer melhor a sociedade pluricultural em que a comunidade está inserida, fazendo com que as crianças reflitam sobre suas origens e vivências.

Na apresentação do livro é revelado que seu eixo argumentativo principal foi a construção de um diálogo, nos campos interinstitucionais e internacionais. A dialogicidade é construída pelo fato de que vários desses autores convivem em encontros de área, os quais buscam estabelecer um bom debate sobre as pesquisas em andamento e as já realizadas. Igualmente, participam de programas de pós-graduação, que possuem forte interlocução com a metodologia. Há ainda aqueles que se organizam a partir de redes, como a Rede Latinoamericana de Historia Oral, que tem como pretensão difundir as produções existentes.

O livro, mesmo com abordagens tão diversas, e este é o seu fundamento, consegue proporcionar uma visão ampla sobre como se articula o trabalho com a metodologia atualmente, ao mesmo tempo em que debate ferramentas vinculadas à práxis histórica e incita discussões sobre novos temas a serem pesquisados. Torna-se, dessa maneira, uma bibliografia fundamental, tanto para graduandos quanto para pesquisadores mais experimentados.

Referências

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.203-222.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na História oral. Projeto História. São Paulo (15), abril de 1997, p. 13- 49.

Lorena Almeida Gill – Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected].

Ensaios de História Oral – PORTELLI (HP)

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258 p. Resenha de: CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco. História oral: questões e indicações para o debate. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 24, n. 45, 14 dez. 2011.

Acesso permitido apenas pelo link original

Memória e diálogo: escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral – MAGALHÃES; SANTHIAGO (HO)

MAGALHÃES, Valéria Barbosa; SANTHIAGO, Ricardo (Org.). Memória e diálogo: escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral. São Paulo: Letra e Voz; Fapesp, 2011. 186 p. Resenha de: CORRER, André Bortolazzo. História Oral, v. 14, n. 1, p. 153-158, jan.-jun. 2011.

Memória e diálogo é resultado da preocupação e dos esforços que vêm sendo empreendidos para fomentar discussões sobre a Zona Leste de São Paulo, sua história e memória, e sobre a prática de pesquisa com narrativas orais e lembranças. Essa preocupação se refl ete nas discussões do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (Gephom), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). Fundado pelos organizadores da obra em questão, no intuito de trazer ao ambiente acadêmico as preocupações com o entorno da universidade, o Gephom desenvolve pesquisas sobre movimentos migratórios na Zona Leste de São Paulo e sobre a história oral enquanto método de pesquisa, entre outros temas. O 1° Simpósio de História Oral e Memória: Memória da Zona Leste de São Paulo, realizado em junho de 2010, na EACH-USP, foi o ambiente de efervescência da obra, sendo que grande parte dos textos nela publicados foram apresentados no evento.

O subtítulo do livro – “escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral” – revela sua primeira peculiaridade: uma divisão entre prática de pesquisa e referencial teórico, que ao fi nal acaba por constituir um todo emaranhado que se complementa e se cruza durante a leitura. Isso concede à obra como nova prática pedagógica que visa aumentar a interdisciplinaridade e quebrar com a prática secular que forma especialistas sem conhecimento do todo. Todas essas questões são apenas lançadas à tona pelos professores, uma vez que o tema ainda tem muito a ser discutido e aprofundado.

O texto do padre Ticão, militante dos movimentos sociais da Zona Leste de São Paulo, busca contar um pouco de sua trajetória e da história da região do ponto de vista dos habitantes locais. Padre Ticão faz uma análise da evolução dos movimentos sociais ao longo das últimas quatro décadas, com o surgimento da Teologia da Libertação, a ditadura militar, o papel da Igreja Católica nos movimentos sociais do período da repressão, a redemocratização da década de 1980. Finalmente, ele apresenta frutos desses movimentos, como a expansão do Sistema Único de Saúde (SUS), os movimentos de moradia, a conquista da universidade na região, além de apresentar as necessidades ainda prementes na região mais densamente povoada do município de São Paulo.

Valéria Barbosa de Magalhães, uma das organizadoras da obra, em seu texto “Memória e história da Zona Leste de São Paulo”, realiza uma refl exão acerca de sua pesquisa atual, enfatizando entrevistas já realizadas com a população da região, em sua maioria migrantes do Nordeste do país. A autora trata de questões sobre o método e sobre a memória regional, destacando a importância desse trabalho nos campi de universidades localizados na periferia.

Uma das características do projeto é seguir a tendência de registro e disponibilização online de entrevistas de história oral, visando privilegiar a articulação “memória-sujeito-identidade”.

Finalizando a primeira parte da obra, Mauro Alves Bonfi m descreve o projeto “Observatório de memória audiovisual, do CPDOC, núcleo de projetos da Fundação Tide Setubal, criado em 2008. O CPDOC tem por objetivo a constituição de um acervo de depoimentos e fotos dos moradores para a produção da memória local. O autor destaca que o centro busca criar uma referência local, especialmente para os moradores de São Miguel Paulista, incluindo o uso de mídias sociais, de plataformas colaborativas e de audiovisual.

Questões do método: teoria da pesquisa em história oral A segunda parte do livro compreende refl exões teóricas sobre o método – a história oral –, com textos de variados autores da área, entre os quais Leland McCleary, Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, Maria de Lourdes Monaco Janotti, Richard Cándida Smith e Daphne Patai, além do texto de um dos organizadores da obra, Ricardo Santhiago.

O texto de McCleary trabalha com questões de língua e tecnologia e a relação da primeira como veículo narrativo e de comunicação. Passando pela discussão sobre gêneros textuais, o autor trata da entrevista como o mais adequado gênero para a história oral. A história oral acontece no âmbito da oralidade, mas também pode ocorrer em outras linguagens, como o exemplo destacado pelo autor de uma entrevista em libras, a linguagem de surdos.

Além da entrevista, há a transcrição, que se constitui como outro gênero textual, o escrito. Com o advento de novas tecnologias, no entanto, as possibilidades de interação se multiplicaram e inúmeros canais vêm surgindo para registros e bases de dado online, lançando novas possibilidades para o futuro da história oral.

Alice Lang aborda as propostas e perspectivas da metodologia de pesquisa para o estudo do tempo presente, a história oral. Nesse aspecto, avalia as variações da abordagem ao longo do tempo e nos diferentes grupos de pesquisa, com destaque para a história de vida, inspirada por Roger Bastide, e a história oral moderna americana, surgida no Oral History Research Offi ce, de Nova York. Basicamente, a autora identifi ca três tendências, que muitas vezes se imbricam: a história oral voltada para a pesquisa, a dirigida para a criação de documentos sobre o tempo presente e a militante. Em seguida, a partir da experiência do Centro de Estudos Rurais e Urbanos (Ceru), detalha os principais pontos do processo de pesquisa.

O texto de Ricardo Santhiago trata da polêmica questão da tradução na história oral e os problemas que podem ocorrer com a falta de cuidado nesse aspecto, gerando diferentes interpretações sobre posições de pesquisadores estrangeiros na área. Parte de seu projeto de doutorado, o texto passa pela chegada da história oral no Brasil, sua consolidação e variações, e a limitação das traduções nas primeiras décadas. Segundo o autor, grande parte dos textos-chave para o campo da história oral como método de pesquisa ainda não possuem, ou não possuíam até recentemente, tradução para o português.

Nessa abordagem, ele inclui também a crítica a propostas como a de “transcriação”. Richard Cándida Smith é o atual diretor do programa de história oral da Universidade da Califórnia – Berkeley, e trata em seu texto da questão da autoria no âmbito da historiografi a. Constrói seu texto colocando-se do outro lado da entrevista, numa inversão de papéis, uma vez que narra uma experiência que viveu como entrevistado sobre o ativismo estudantil na década de 1960. Cándida Smith destaca que essa inversão de papéis ocorreu apenas 25 anos depois de ter começado a trabalhar com história oral, enquanto entrevistador e pesquisador, o que lhe trouxe uma perspectiva totalmente nova com relação ao seu interlocutor. Diante dessa experiência, ao assumir o centro de história oral, traçou novas metas, como a publicação de todas as entrevistas na internet, o envolvimento dos estudantes nos projetos e o desenvolvimento de uma agenda de investigações temáticas e históricas.

Em “Pensando as implicações do testemunho na história oral”, Maria de Lourdes Monaco Janotti levanta alguns dos problemas existentes nas relações entre os vários tipos de testemunho e a história oral enquanto metodologia. Para tanto, a autora utiliza dois casos clássicos do uso da história oral em acontecimentos de importância política: a obra de Hanna Arendt Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal e o julgamento do general Aussaresses e suas publicações posteriores em forma de entrevista. Dentro dessa análise, trata da questão da interpretação dos testemunhos no interior de cada disciplina e as difi culdades que ainda se colocam no trato com as entrevistas, em especial na sua conversão para o texto defi nitivo.

Finalizando a obra de maneira destacável, Daphne Patai escreve em “Existe vida fora da história oral?” que o desafi o do pesquisador consiste em construir um conhecimento “multifocal, multidimensional, que não privilegie uma só metodologia, por mais sedutora que ela seja” (p. 174). Para além das entrevistas e transcrições, as análises histórica, política, social, econômica, entre outras áreas que se relacionam com a pesquisa, são essenciais para a construção de uma obra. A história oral não basta por si só; portanto, é mais uma metodologia que se complementa com outras formas de pesquisa. Finalmente, a autora destaca que a história oral, segundo sua visão, não necessariamente representa a voz dos oprimidos e nem deveria ser privilegiada com essa fi nalidade, pois, entre outros problemas, corre-se o risco de supervalorizar o papel e a capacidade de atuação do pesquisador.

Memória e diálogo, em seu conjunto, tem uma importância significativa por apontar os rumos da história oral atualmente no Brasil e no mundo, apresentando suas principais características como método de pesquisa. Além disso, por meio de textos de diversos autores, a obra problematiza posições consolidadas a respeito do método, em especial as posições que pretendem conceder à história oral um papel de disciplina acadêmica específica.

Outro fator de destaque é a capacidade de clarear a ideia de que a história oral pode ser feita e usada de diversas formas, para diversos fins e com diferentes temáticas de pesquisa, sem a pretensão e a necessidade de ser superior a outras formas de pesquisa, mas complementar.

Para além das questões metodológicas, a obra é rica por trazer à tona temáticas de discussão fundamentais para a Zona Leste da cidade de São Paulo, como os movimentos sociais, a universidade pública e sua localização, as questões emergentes locais, entre outras. Além disso, lança luz a algumas questões essenciais para a formação histórica e social da região, como a migração, a organização do espaço urbano e a industrialização.

Trata-se de um livro teórico e prático, ao mesmo tempo, conseguindo atingir diversos públicos e interesses, num todo coeso e de agradável leitura.

Uma vez que a história oral constitui-se como estudos sobre o tempo presente, seu uso para tratar dos problemas e desafios da Zona Leste foi muito bem aplicado.

Constituindo-se como leitura atualizada sobre os temas que se propõe a discutir, a obra atinge diversos públicos com interesses específicos. O primeiro deles compreende interessados na história da Zona Leste de São Paulo, em especial aqueles que trabalham com questões de imigração e formação social da região. Ao lado destes, historiadores interessados nas histórias de bairros e municípios, em especial na história da cidade de São Paulo, podem encontrar reflexões importantes. Um terceiro grupo para o qual a obra seria de grande utilidade é formado por pesquisadores, professores, alunos e comunidade da EACH-USP. Visto que a obra se propõe a discutir questões do ensino superior e da origem e construção da história da própria unidade, esses podem encontrar aqui pistas para compreender diferentes aspectos da realidade acadêmica da EACH e sua relação com o entorno.

Finalmente, o livro se destina a iniciantes e pesquisadores de história oral, pois apresenta interessantes debates e posicionamentos sobre o método, suas perspectivas, tendências e possíveis abordagens. É uma leitura importante para quem busca na história oral uma metodologia consistente e válida para pesquisas acadêmicas e extra-acadêmicas.

Rastros de histórias ou as Mortes de José Adelaide Gonçalves1 ALMEIDA, Nilton. Fortaleza Rebelde: cartografia das lutas dos trabalhadores ferroviários em Fortaleza. Fortaleza: Edições SECULT , 2012 História Oral, v. 1, n. 15, p. 255-260, jan.-jun. 2012 1 Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará Um livro pode ser lido de muitos modos. Aqui, a sensibilidade do leitor vai destrinçando os fios da trama a partir dos fragmentos de uma memória da dor nos depoimentos de familiares, filhos, amigos e viúvas dos trabalhadores ferroviários. Observe‑se a dimensão dos textos testemunhais em seu propósito político e educativo: transmitir experiências coletivas da luta política, assim como os horrores da repressão, em um intento de indicar caminhos e marcar com força o ‘Nunca Mais’, como na arguta abordagem de Elizabeth Jelin. Veja‑se, inclusive, como este estudo pode suscitar seguidas reflexões sobre certas grandes ausências nas narrativas, como é o caso das mulheres. Num mundo do trabalho predominantemente masculino, elas terão assumido apenas os papéis prescritos: professoras, escriturárias, assistentes sociais? Na fotografia do III Congresso Nacional Sindical, em 1960, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, numa tomada do palco e da lateral do auditório, muitos engravatados e de paletó, outros em mangas de camisa e nenhuma mulher.

Neste livro, uma diversa cartografia da cidade de Fortaleza. O autor esquadrinha a cidade em direção às estações do trem, aos bairros cortados pelos caminhos de ferro, aos espaços de confraternização e organização da classe, engenheiro Couto Fernandes, em 1919, o Olímpico Football Clube, pois os engenheiros estão sempre à espreita querendo em tudo mandar, até chegar ao Ferroviário, time oficial, da empresa. Mas a história prega peças aos desavisados; o time da empresa vira o Ferrim dos comunistas e anarquistas, da resistência coral proclamada: “nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes”; “nada diminui nossa paixão incendiária, ferroviário, orgulho da classe operária”. O Ferrão com seu grito e seu hino.

A alegria das lembranças é fato notável neste livro. Quando a memória é acionada para lembrar as invenções da política da classe, é com alegria que se lembra a força da novidade do Pacto Sindical no final dos anos 1950.

“Era um movimento bonito e animado”, no dizer de Zé Leandro. A luta era bonita e alegre! Era o tempo dos meetings, dos comicios‑monstro entoando os hinos do Jataí e dando vivas ao Partidão. Como atestam os instantâneos, registrando na fotografia uma celebração coletiva da vitória da classe, até ontem em pé de guerra, no dizer da manchete em vermelho do jornal Unitário, na greve do “fora Humberto Moura”, em 1961: piquetes, dormentes dos trilhos e blocos de cimento virando barricadas, carros de rodas para cima, barraca da resistência; na capital e no interior, como se vê nas fotografias em frente à oficina do Urubu, em Sobral ou no Ipu. Fotografias de gente no plural, encenando os coletivos e a coreografia da luta social.

Aliás, o sentido da luta como festa redentora é recuperado em outras passagens deste estudo. É de se ver a camaradagem, a conversa entre iguais e o dizer‑de‑tudo dos ferroviários ali no bar pertinho do sindicato, espécie de território livre, onde se encontravam e de tudo falavam. Nesse convívio, até os apelidos – o Cajarana, o Catita, o Caboclinho, o Sol Quente, o Sereno, o Macarrão – são os sinais da camaradagem atualizando as conversas. Dali, saíam confiantes para inventar as coreografias do protesto narradas neste livro. Passeatas contra a carestia, de solidariedade aos bancários e estudantes.

É de se imaginar a beleza dos braços dados acompanhando o vozeirão de José Jatahy e o som da radiadora tocando um hino de classe dos ferroviários.

A letra é luminosa, alvissareira, confiante e esperançosa. Num lampejo de memória, o Sereno diz que aquilo era uma época diferente… Era a maior festa… Bastava um grito: pára o trem! E pronto, a greve estava na praça, na rua. Aliás, a greve é rememorada como uma grande festa: da liberdade, do não ao patrão, de quando o trabalhador se manifesta, dá vazão a todo seu sentimento, como na recordação de Batistinha. Afinal, o aprendizado das greves desde os finais do oitocentos aumenta nos começos do novo século.

Ferroviários, marítimos, portuários e o “pessoal agrícola” do Chico Julião mobilizavam‑se em busca de direitos.

Em busca de direitos denegados. É outro mote deste livro. As tricas e futricas da política local emergem neste estudo por dentro das situações de impasse entre a organização dos trabalhadores ferroviários e a direção da RVC. Em alguns casos, a narrativa encaminha o leitor para uma história à maneira de “queda de braço”, como se vê no malogrado episódio da demissão do engenheiro José Walter. Era chegado o golpe civil‑militar. Tempos difíceis e cinzentos. Acabou a festa. Intervenção, demissão, perseguição, prisão. O vocabulário é outro. A desmesura do arbítrio não tem limite: os ferroviários mais à frente das lutas sindicais são proibidos até de passar por perto da empresa. E se pegos andando na estação central, cadeia neles! É a ordem do doutor engenheiro. A vida mudou demais para esses trabalhadores e suas famílias. Casas invadidas, perseguições, prisões, demissões, o cárcere, a vida virada de ponta‑cabeca. O controle, a vigilância, “os alcaguetes estavam por todo lado: disfarçados e traiçoeiros”.

Por dentro desta narrativa emergem outras histórias dos militantes comunistas e de suas vivências no Partidão. Uma visada retrospectiva parece tudo compreender. Mas, bem vistas as coisas, não é assim. Para alguns militantes, a memória traz de volta uma história atribulada, lembrada com algum travo, de divergências, sectarismos, uma linha justa tirada lá em cima, no comitê central. Para outros, é uma história de autoesclarecimento, de aprender a ler, de estudar nas horas vagas para mostrar o valor da classe, de se tornar “jornalista da classe”. Aliás, este livro traz boas passagens para a história do jornalismo no Ceará. E do jornalismo da militância comunista, como aquele praticado por Jonas Daniel em franco combate à ditadura, fazendo funcionar em Croatá uma tipografia, melhor dizer, um mimeografo elétrico adaptado à função manual, donde saía o Voz Operária, a Estudos e Mundo em Revista e, de quebra, uns quantos panfletos, pois a luta também se travava por impresso. Sobre o fato, o jornal O POVO estampa, em abril de 1973: Imprensa comunista desmantelada no Ceará. A notícia, ao modo do jargão policial, indica os “elementos” presos e se fica sabendo que desmantelar é literal, levar tudo: máquina impressora, grampeador industrial, aparelhagem de fundição de chumbo, guilhotina, clichês, latas de tinta – e prender os ‘subversivos’. Rememorando aquele tempo, Dona Nazareth, viúva de Jonas Daniel, é daquelas que “viveu para contar”, e sua memória tem saudades e é alegre: terá valido a (a)ventura de ser comunista. Como é o caso também de Caboclinho Farias. Perguntado como se tornara comunista, responde depressa: por meio da leitura! A comprovar o dito, o processo na polícia traz o rol de sua literatura de formação: desde o manifesto comunista, compêndios de história, manuais de difusão do marxismo‑leninismo, boletins, até recuerdos de suas viagens militantes. Outras boas histórias de dedicados militantes comunistas: Mascarenhas, Zé Maria, Graciano, José Elias, Anário, Zé Duarte, entre tantos, em sua peleja até na cadeia! Este livro nos dá a pensar também sobre o capítulo da história da destruição dos livros nas ditaduras. Esse episódio terrível deve ser contado.

Terá sido uma hora de muita aflição, quando se sabia acuado pela repressão, enterrar ou queimar os livrinhos. Já os meganhas, quando chegam – e a qualquer hora – vão direto aos livros! Livro é prova do crime de pensar. A comprovar essa sanha contra a palavra impressa, estão aí os processos com extenso rol de livros. A ditadura prende os livros, confisca o pensamento, esse um capítulo de grande significado na história social da interdição do livro e da leitura.

Este livro‑documento terá cumprido largamente a tarefa abraçada desde o início da intenção de pesquisa. Tentar juntar os pedaços da história do ferroviário José Nobre Parente, 37 anos, preso, mantido incomunicável, assassinado na prisão. José perdeu a vida duas ou mais vezes: assassinado na prisão e apagado dos registros das vítimas da ditadura civil‑militar – seu processo na Comissão é parcamente documentado. Perde a vida e a memória é chafurdada. Dele se diz: fraco do juízo, é um suicida. Macabra e porca história tantas vezes falsificada nos prontuários de polícia. José, Manoel, Vladimir terão sido – e continuam sendo – as vítimas da tortura. Esse o nome do bicho, sobre o qual pesam os espessos silêncios convenientes da autoridade policial e o esquecimento deliberado e cúmplice da imprensa local. Amnésia e anistia. Quem matou José? É a pergunta que se faz o jornalista e historiador Nilton Almeida. Pinça da manchete de Última Hora, do jornalismo dissidente, constituindo esses desvãos de memórias persistentemente ocultadas e contrastando versões impressas dos terríveis atos da ditadura. Neste ponto, no âmbito do direito à memória, é de se proclamar a necessidade urgente de amplo inventário e divulgação de fontes do acervo dos documentos da polícia política do Ceará, o acervo do DOPS, sob a guarda do Arquivo Público do Estado do Ceará.

Este livro é trabalho meticuloso de um sincero historiador. Comprometido com a faina do ofício, Nilton Almeida tem no arquivo uma oficina e entende a escrita da história como prática laboriosa de desmontar versões oficialmente arranjadas sobre episódios e personagens, nomeadamente esses “notáveis” que nomeiam bairros, avenidas, logradouros, retirando de sua ação sobre os tempos e lugares os conteúdos do arbítrio, da repressão, do mando. Também é esforço bastante bem realizado de sair dos trilhos da história institucional da estrada de ferro em busca das outras histórias dos trabalhadores, de suas famílias, de seu jeito de viver e de aprender a soletrar as palavras da luta social. É também um respeitoso exercício de escuta das memórias do silêncio ou dos papéis oficiais, em particular, das mulheres‑viuvas, algumas de maridos mortos‑vivos. Mulheres que, às vezes, se acostumaram a andar de olhos baixos para não ver o dedo apontando o estigma do marido preso pelo crime de ser comunista.

André Bortolazzo Correr – Mestrando em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (Gephom). História Oral, v. 18, n. 1, p. 241-246, jan./jun. 2015.

Ensaios de história oral – PORTELLI (HO)

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258p. Resenha de: RIBERTI, Larissa Jjacheta. História Oral, v. 13, n. 2, p. 193-195, jul.-dez. 2010.

Prática reconhecidamente significativa como metodologia de investigação social, a história oral tem ganhado cada vez mais espaço nos meios acadêmicos devido ao seu papel de instrumento de luta política, capaz de revelar sujeitos e discursos geralmente ocultados nas análises históricas e de outras disciplinas. Diante de processos recentes de fragmentação e desenraizamento de modos culturais, a história oral vem se constituindo como uma boa alternativa metodológica para a compreensão das problemáticas dos sujeitos, das memórias, culturas e identidades. Esta prática é, portanto, uma alternativa crítica à análise das novas questões históricas e sociais que se colocam no século XXI.

É nesse contexto que Alessandro Portelli, atualmente professor de literatura norte-americana na Universitá di Roma “La Sapienza” e também fundador do Circolo Gianni Bosio, que incentiva e promove pesquisas sobre músicas e culturas populares, organiza uma seleção de textos – nos quais a metodologia da história oral é a via principal de investigação histórica e social – e publica-os com o nome de Ensaios de história oral. Diante dessas novas questões em debate, em que é necessário considerar discursos individuais e compartilhados como instrumentos do processo de formação das identidades, Portelli fornece refl exões sobre as implicações metodológicas e políticas do conhecimento que produzimos.

A importância da obra aqui considerada se dá justamente porque os ensaios nela contidos procuram discutir, separadamente, as formas de se utilizar o discurso oral como instrumento de pesquisa e análise histórica. Para além disso, Alessandro Portelli propõe um olhar crítico em relação às entrevistas que realizou, desmistificando discursos e abrindo novas possibilidades interpretativas.

Sobre a importância do trabalho metodológico a partir da história oral, Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado ressaltam que “na história oral, existe a geração de documentos (entrevistas) que possuem uma característica singular: são resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de interpretações fundadas numa rígida separação entre sujeito/objeto de pesquisa, e a buscar caminhos alternativos de interpretação” (Ferreira; Amado, 2006, p. xiv).

A obra é iniciada com uma apresentação de Yara Aun Khoury e segue com a compilação de dez textos inéditos em língua portuguesa. Esses ensaios são o resultado de uma obra autoral que vem sendo construída desde 1970 e que revelam o olhar de Portelli sobre as relações entre memória e história. O autor também dá demonstrações de como os discursos pessoais, coletivos e ofi ciais constroem, de maneiras singulares, interpretações sobre determinada memória.

Logo no primeiro ensaio, “Sempre existe uma barreira: a arte multivocal da história oral”, o autor analisa como a relação entre história e memória toma forma na narração oral. Diz ele: “A ‘entre/vista’, afinal, é uma troca de olhares. E bem mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em diálogo” (p. 20). É dessa maneira que o autor recorre à história oral para entender como acontece a combinação entre narrativa em primeira pessoa com referentes espaciais e sociais coletivos que dão o suporte para que entendamos a construção de uma determinada memória cultural.

Sobre a formação de uma identidade coletiva, o autor escreve, por exemplo, o ensaio de número quatro, “Éramos pobres, mas… Narrar a pobreza na cultura apalachiana”, no qual examina os discursos de moradores das montanhas apalachianas do Tennessee. Neste texto, ele procura compreender como, na visão dos próprios moradores, a pobreza era uma situação que provocava um misto de raiva/vergonha e autonomia/orgulho. Encarada dentro de uma comunidade relativamente igualada pela subsistência e autonomia provocadas por uma economia não monetária, a pobreza era vista pelos moradores como um meio para a sobrevivência, já que era o motor dessas relações. Por outro lado, fora desse convívio supostamente igualitário, os moradores se sentiam ofendidos quando eram levados, por exemplo, a participar de uma economia monetária da qual não podiam fazer parte. Ao ouvir os discursos, o autor consegue entender por que, para essas pessoas, e dentro dessa comunidade, as relações de afeto eram mais importantes que as relações monetárias.

A questão das relações entre documentos individuais e realidades transindividuais é tratada no ensaio “O melhor limpa-latas da cidade: A vida e os tempos de Valtero Peppoloni, trabalhador”, no qual Portelli considera a trajetória de vida de um trabalhador de fábrica e de serviços em geral da cidade industrial do Terni, na Itália. Para o historiador, é necessário entender que a narrativa de Valtero Peppoloni recai em padrões, estruturas e motivos discursivos arcados em conjunto: “Há elementos coletivos e compartilhados nessa história que são sufi cientes para justifi car que a descrevamos como documento representativo da cultura da classe trabalhadora local” (p. 182).

Dessa forma, a obra de Alessandro Portelli tem significativa importância para os estudos de história oral. Analisando narrativas e interpretando diferentes discursos, Ensaios de história oral é uma referência importante para se compreender a memória, a oralidade, a cultura popular e os relatos de vida. É também crucial para aqueles que pretendem investigar, a partir da história oral, com um olhar crítico e preocupado com as questões metodológicas dessa prática.

Referências

FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.

Larissa Jacheta Riberti – Mestranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Narrativas e Experiências: Histórias orais de mulheres brasileiras (CP)

VÁRIOS AUTORES. Narrativas e Experiências: Histórias orais de mulheres brasileiras. São Paulo, D’Escrever/Letra e Voz, 2009. Resenha de: CÁSSIO, Fernando Luiz. Faces do feminino em histórias de vida: Narrativas e experiências de mulheres brasileiras. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

Narrativas e experiências: histórias orais de mulheres brasileiras é para ser lido sem pressa. A estrutura é despretensiosamente simples: dez histórias de vida de mulheres brasileiras apresentadas e comentadas por dez historiadores-oralistas fortemente envolvidos com o ofício. O trabalho textual é a marca formal comum – entrevistas transcritas e transformadas em textos de qualidade literária, autobiográficos, confessionais – em muito distantes da sisudez não rara nos volumes voltados exclusivamente ao público acadêmico.

O prefácio de Esmeralda Blanco B. de Moura dá o tom da obra: “a circularidade da qual resulta, o entrelaçar de entrevistadores, entrevistadas e entrevistas que não subverte o singular” (p.7). Idade, local de nascimento, cor da pele, vivências familiares e profissionais – marcas do individual – não isolam estas mulheres do resto do mundo; as insculpem nele. Singularidade sim; excentricidade jamais. Nem heroínas nem vítimas. Mulheres, apenas. Lê-las é deixar-se arrebatar e carregar por suas histórias – fluxos vivos, pungentes, generosos – para destinos deliciosa e inevitavelmente desconhecidos.

Podemos começar por Monalisa, garota de programa que ganha a vida no Sul da Flórida. No hotel cinco estrelas onde atendia a seus clientes, entre um e outro programa, cedeu entrevista a Valéria Barbosa de Magalhães. Oportunidades financeiras, desapontamentos profissionais, o afastamento da família e a estereotipia da mulher brasileira no exterior talham a sua fala corajosa e oferecem outro olhar para a profissão de prostituta – mais que “vida fácil”, efeito de uma causa, a imigração para a Flórida e os seus desdobramentos sociais e pessoais. “O dinheiro pesa para eu continuar dançando. É muito dinheiro, ganho mais do que um gerente de banco, só que o gerente vai ter a profissão a vida inteira, eu não”.

Noah Osman Turk, entrevistada por Samira Adel Osman, é da primeira geração brasileira da família de imigrantes libaneses. Se Monalisa se afasta dos seus, estes sempre estiveram presentes na história de Noah como guardiões das tradições e protagonistas de confrontos socioculturais inconciliáveis. “Foi na adolescência que eu comecei a sentir o peso dos costumes familiares…”. A demarcação dos papéis masculino e feminino – o primeiro provedor e o segundo mantenedor – forja o ambiente infantil de Noah, em muito dependente das relações entre mãe, filha e irmãs. Ao mesmo tempo, a difícil adaptação à vida no Brasil parece reforçar o valor da cultura árabe: Noah mantém os filhos dentro das tradições e planeja viver com o marido no Líbano.

Dona Ana, Ana Luiza da Silva, é devota de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Quase octogenária, viúva e mãe. Assim o historiador Rodrigo de Almeida Ferreira nos apresenta a sua entrevistada, cuja história é a própria história da Marujada e da Festa do Rosário, festas religiosas das quais participa desde os doze anos. Na atmosfera cálida da casa simples, aquecida pelo fogão de lenha no qual cozinha a comida dos Marujeiros, fala sobre as graças recebidas de Nossa Senhora do Rosário com alegria e devoção – mas sem exageros: “O que eu quero mais? Se eu pedir muito, ela fica com raiva de mim” (p.72). Tradições seculares mantidas por sutilíssimas ações: “Já estou esperando a festa deste ano! E vou ajudar com muito café!” (p.73).

Tata Fernandes é artista, filha, neta, tia, amiga, namorada, vizinha, fonoaudióloga, divulgadora, leitora, ouvinte. E musa. Tata é todas. Ricardo Santhiago, de maneira impressionista, descreve a gracilidade que emana de Tata – a mulher encantadora seguida por uma multidão colorida de crianças, alunas da sua oficina de composição. Tata, mais que impressionista – lírica -, narra a partir das felicidades do dia-a-dia, das pequenas delícias: ouvir bolerões de Glenn Miller durante a faxina, fingir tocar violão na praia com as primas, assistir a séries policiais nas madrugadas da TV, cuidar das plantas em casa – do mais singelo brota uma potente paixão pela vida. Não é de espantar que a foto de abertura de sua entrevista seja um gregário entrelaçar de mãos, marca distintiva de uma existência sempre compartilhada.

Também artista, Joana D’Arc foi vedete do teatro rebolado. Entre álbuns de fotografias e jornais antigos, narrou sua história de vida a Maria Aparecida Blaz Vasques Amorim. A extrema pobreza na infância, o glamour dos palcos, a vida na Europa, suas relações com os presidentes Getúlio e JK. Depois de circular pelos salões do poder no Brasil do século XX, Joana, na velhice, reflete sobre sua trajetória sem arrependimentos: “Sabe, costumo dizer que minha vida se divide em três atos: um miserável, paupérrimo, outro de total apogeu e agora, tenho o terceiro, tranquilo, sem recalques” (p.124).

Suzana Lopes Salgado Ribeiro entrevistou Dona Ana Ramos, dona-de-casa e assentada rural. Escolhendo os legumes, preparando a comida do dia e falando quase sempre no diminutivo, ela conta sua história desde o nascimento no interior de São Paulo até a vida cooperativa do assentamento. O cotidiano perpassa sua fala: em detalhes, Dona Ana relata o trabalho na horta medicinal comunitária, o cuidado das crianças, o serviço da casa: “O meu dia aqui é bom. Acordo, arrumo o café, saio, bato um papo com os vizinhos” (p.140). O que há de mais extraordinário neste cotidiano (como estampado no título do texto) é justamente o que ele tem de ordinário, de mais trivial.

A presença e a atuação feminina no futebol brasileiro são retratadas por Marcel Diego Tonini, autor da entrevista com a árbitra-assistente Aline Lambert. Atento à posição da mulher em um ambiente predominantemente masculino, Tonini oferece importante contribuição documental ao discutir relações de gênero no seio da cultura futebolística. As influências familiares, vindas do pai árbitro, e o desenrolar de sua carreira na profissão pontuam um relato marcado pela consciência da especificidade de ser mulher, e das implicações que daí derivam, neste campo.

Edna Pereira é soldado da Polícia Militar do Ceará. Por ter participado do movimento grevista de 1997, foi excluída da corporação, sendo reintegrada quase oito anos depois. Voltada ao estudo da repercussão nacional deste movimento, a pesquisadora Juniele Rabêlo de Almeida insere a história de vida numa trama complexa. Para Almeida,

Edna aponta em sua narrativa importantes questões para o estudo do repertório da ação coletiva dos policiais grevistas, destacando a dificuldade de se compatibilizar o princípio da igualdade e o direito de participação, com preceitos militarizantes de disciplina e hierarquia (p.175).

Marta Gouveia de Oliveira Rovai nos apresenta Sônia Miranda, mulher que, segundo ela, “foge ao estereótipo feminino de fragilidade” (p.193). De formação católica, Sônia frequentou as reuniões promovidas pela Juventude Operária Católica e ganhou consciência sobre o momento histórico que vivia: a ditadura militar brasileira após 1968. Seu marido, sindicalista-metalúrgico, foi levado para o DOPS, onde foi preso e torturado. Escondida no interior do Rio de Janeiro, viu-se só: “Estava sozinha com três crianças! Lavava e secava fralda com ferro. E só chovia!” (p.205). Apesar disso, os traumas e as lutas diárias moldaram a educação de seus filhos, “pessoas conscientes e comprometidas com a solidariedade, a ética, a justiça” (p.209).

Surda desde os 11 anos, em decorrência de uma meningite, Sônia Oliveira é a última entrevistada do livro. Fábio Bezerra de Brito introduz a entrevista enfatizando que Sônia viveu uma “experiência de inclusão extemporânea”, numa escola regular, aprendendo a falar e a entender a palavra falada via leitura labial – adaptando-se a um mundo oralizado. Só depois de adulta, contudo, Sônia descobriu a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e, a partir daí, passou a se reconhecer como surda (“Conheci um mundo diferente e fiquei dividida entre eles, o mundo surdo e o mundo ouvinte, até dar um jeitinho de transformá-los num único, pelo menos na minha vivência” (p.231) e a construir uma outra inclusão.

A relação da história oral com a história das mulheres e os estudos de gênero é bastante conhecida, seja na produção nacional ou estrangeira, na forma de trabalhos teóricos ou temáticos. Narrativas e Experiências dialoga com essa tradição, mas possui uma qualidade singular. Além das histórias de vida, matéria primeira do livro, os textos dos entrevistadores exibem a dimensão metodológica de seus trabalhos individuais, como notas de um caderno de campo; oscilam entre etnografias impressionistas e relatos minuciosos sobre os caminhos de suas pesquisas. Contribuições consistentes tanto à prática da história oral (área de atuação dos autores) como à sua aplicação direta aos estudos de gênero.

Narrativas e Experiências é para ser lido a partir da capa. Fugindo a convencionalismos, ela reproduz uma folha de planta bem de perto, com suas cores e nervuras – dando a ver aproximações e afastamentos entre essas mulheres, suas narrativas e experiências, sempre em movimento. A brasilianista Daphne Patai, na quarta-capa, define a obra como “um mosaico rico de memórias e vivências”. Longe da aleatoriedade de uma colcha de retalhos, um mosaico tem caráter dual: a individualidade das tésseras, visto de perto; e o coletivo da forma, visto de longe. Igualmente, o leitor deve mover-se entre o que cada uma destas mulheres tem de particular e o quadro que juntas compõem: modos de viver o feminino no Brasil contemporâneo.

Fernando Luiz Cássio – Aluno de Doutorado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo, com bolsa FAPESP. E-mail: [email protected].

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História oral: memória, tempo, identidades – DELGADO (PL)

Ao entender História Oral como uma metodologia de produção de fontes históricas (os depoimentos), imediatamente somos levados a pensar no lado prático deste método. A importância de se observar o lado teórico deste campo de conhecimento, e de se ter em vista algumas categorias da História no desenvolver dos trabalhos com História Oral, é exposta com propriedade pela mineira Lucilia de Almeida Neves Delgado, que foi presidente da Associação Brasileira de História Oral.

Em seu livro, Lucília relaciona História Oral à memória, ao tempo e à identidade, embora deixe a desejar quando trata das narrativas não expondo o modo como elas se arrumam (narrativas de vida pública, épicas, trágicas, cômicas e narrativas que misturam as várias soluções anteriores), o que o Manual de História Oral de José Carlos Sebe Bom Meihy faz, só para citar um dentre os vários manuais que se pode encontrar. A autora também não tem as preocupações arquivistas e não traz exemplos de roteiros a serem utilizados nas entrevistas. Duas questões importantes que podemos perceber em outro livro, História Oral: possibilidades e procedimentos de Sônia Maria de Freitas. Leia Mais

Rebeldes, reformistas y revolucionarios. Una historia oral de la izquierda chilena en la epoca de la Unidad Popular | José del Pozo

El mundo científico, sofocado dentro del marco de tradicional ascetismo positivista, busca nuevos caminos con el fin de enriquecer su conocimiento. Se hace necesario expandir la mirada histórica más allá del dato documental escrito. Se ha comenzado a interrogar desde los márgenes de la historiografía tradicional, con el objetivo de cubrir una información indiferenciada, tomada desde los propios actores sociales. Se aprecia un desplazamiento del enfoque desde los grandes hitos a la «pequeña historia» que recoge el inconsciente colectivo. Cambian los temas y las metodologías. Un rescate de la memoria y de la subjetividad del sujeto como actor histórico, nos permite abrir espacios para sistematizar conductas e inercias sociales en períodos pletóricos de eventualidad. Aparece la historia oral concentrándose en las experiencias directas de la vida de los individuos, participando en un esfuerzo conjunto con el recopilador. Naciendo como una técnica disponible para una amplia gama de disciplinas, no se define como propia de ninguna en particular y quienes la practican muestran la misma diversidad y hasta irregularidad en cuanto a su valoración como un método histórico relevante.

En Chile se expandió con fuerza durante el régimen militar y actualmente se proyecta en dos tipos de producciones. El primero intenta rescatar testimonios, vivencias, reflexiones y dolores de quienes sufrieron en diversos grados la represión, el exilio o la marginación. El segundo corresponde a conjuntos de testimonios seleccionados y ordenados que, en estricto rigor, no constituyen investigaciones históricas aun cuando comúnmente aparecen bajo el rótulo de historias populares, de poblaciones, de jóvenes, de mujeres trabajadoras, que son resultado del esfuerzo de aprendices y, por ende, las más de las veces, adolecen de profundidad explicativa, por cuanto la técnica de la entrevista por sí sola no da cuenta de los necesarios marcos teóricos, modelos de análisis y apoyo complementario en fuentes escritas que conforman aspectos importantes del método histórico. Leia Mais