A noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos. O caso dos imperadores romanos Septímio Severo e Caracal | Ana T. M. Gonçalves

Ana Teresa Marques Gonçalves é natural do Rio de Janeiro, cidade na qual nasceu em 1969. É graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em História Social e doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora associada de História Antiga e Medieval na Universidade Federal de Goiás (UFG) e uma das mais importantes historiadoras e pesquisadoras acerca do período Severiano (II e III d.C.).

O livro, publicado em 2013 e composto por três capítulos, além da apresentação da obra, do prefácio, escrito pelo Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello e das considerações finais, tem por título “A noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos. O caso dos imperadores romanos Septímio Severo e Caracala”, e resulta da tese de doutoramento, pela USP, em História Econômica da referida autora. Ela busca mostrar, aos interessados na área de História Antiga e aos que desejam se deleitar com uma leitura objetiva e explicativa no que tange à História da Roma dos séculos II e III d.C., mais especificamente, como se deu o processo de afirmação dos dois primeiros imperadores Severianos (Septímio e seu filho, Caracala).

Além disso, a autora busca caracterizar tal período através da noção de propaganda, que ela define como “[…] o conjunto de símbolos, ideias e imagens que era divulgado no território imperial, mediante a utilização de vários suportes, formando em seu conjunto a imagética imperial.” (GONÇALVES, 2013, p. 7).

É importante ter em mente que Ana Teresa foi muito sagaz ao colocar o termo “noção” como parte do título de seu livro, uma vez que não há consenso, entre boa parte dos historiadores, de que a ideia de propaganda, tal como definida supra, esteve presente e serviu para a afirmação do poder imperial Severiano. Faz-se necessário entender, porém, que foram utilizadas muitas formas de propagandear a figura do Imperator, como alguns símbolos e representações, mas nem todas são aceitas. Um exemplo simples a este respeito é citado por Belloni: “[…] os instrumentos de propaganda eram outros, menos elegantes, mas mais penetrantes e eficazes do que as moedas: a palavra, os discursos, os cartazes […].” (apud GONÇALVES, 2013, p. 55).

Aí, percebe-se a crítica do autor à ideia da moeda como forma de propaganda, pois ele as considera como “[…] apenas formas de celebração, ostentação e de recordação dos atos empreendidos pelos soberanos e não fontes de propaganda.” (apud GONÇALVES, 2013, p. 54).

A obra analisada é útil, além de outros aspectos que serão abordados mais adiante, para que os leitores interpretem os conceitos de divulgação, propaganda e consolidação do poder imperial Severiano (considerado, pela historiografia tradicional, como uma Monarquia Militar, e, desde a década de 1980, revisto pelos historiadores como um período que não se utilizou, apenas, do armamento para seu estabelecimento), características que a autora explicará ao desenvolver a observação que fez sobre vários documentos, como inscrições, textos escritos, moedas, entre outros.

No primeiro capítulo, “Imagem e propaganda no estudo do início do Período Severiano (193 a 217 d.C.)”, Ana Teresa contextualiza a época analisada, bem como as tensões presentes no final do século II d.C., palco de guerras civis, e que levaram muitos historiadores a compreenderem-na como uma época de grande intervenção e edificação bélicas, além de considerarem-na como um longo período de declínio, advindo com o governo Septímio, o primeiro imperador dos Severos. Septímio se utilizou do apoio do exército, dos legionários e, ademais, do Senado, para se instalar no poder, tendo disputado, respectivamente, o cargo com Dídio Juliano, Pescênio Nigro e, mais tarde, Clódio Albino.

O período que precedeu ao dos Severos é conhecido como Dinastia dos Antoninos (96 – 192 d.C.), e foi marcado pelo sucesso de alguns dos seus imperadores, como Marco Aurélio, Trajano e Antonino Pio, os quais conseguiram que o território romano atingisse sua extensão máxima, sem abdicar da segurança e paz internas. Por outro lado, Cômodo, último dos imperadores Antoninos, como nos evidencia José Jobson de A. Arruda, “[…] destacou-se por seu mau comportamento. […] Desprezou o Senado, eliminando muitos de seus membros. Enfrentou com êxito várias conspirações, mas numa delas acabou assassinado.” (ARRUDA, 1977, p. 263).

Devido aos seus envolvimentos com o exército, os Severos eram considerados, como mostrado mais acima, uma Monarquia Militar, conceito este que Ana Teresa desconstrói, por exemplo, quando afirma que Septímio não foi um general de carreira e que sua família era ligada ao Senado. (GONÇALVES, 2013, p. 26).

Em seguida, a autora busca relacionar a consolidação do poder dos imperadores através da divulgação de suas imagens, feita através da propaganda da “imagética imperial” (GONÇALVES, 2013). Ela considera o poder como uma maneira de comunicação, onde aqueles que comandam têm que possuir dadas habilidades para se manterem no comando, e devem influenciar a população, a fim de governarem determinado território por um longo período de tempo.

A imagem do imperador é representada, sendo assim, através de vários símbolos, como monumentos, retratos, estátuas, moedas, festas, eventos públicos, roupas e, até mesmo, feitos memoráveis. Como afirma Vovelle (1997, p. 31), “[…] a imagem se tornou parte integrante da elaboração de um discurso, que não pode prescindir dela.” (apud GONÇALVES, 2013, p. 34).

Era muito importante, para o imperador, passar a imagem de suas qualidades e virtudes aos seus súditos, com o intuito de manter o poder, obter apoio, legitimidade e autoridade. Daí é possível inferir que a questão da identidade do Imperator se estabelecia através dos meios propagandísticos por ele divulgados.

A propaganda era necessária para que se tivesse a imagem de um soberano idealizado, representante da ordem perene do mundo (HOPKINS, 1978, p. 232 apud GONÇALVES, 2013, p. 40). Um meio muito importante que a autora destaca como forma de propaganda são as moedas, as quais, aliadas a outros meios de propaganda, foram grandes iconografias da imagem imperial, dado que elas possuíam algumas informações a respeito do império nos seus dois lados. Elas eram entregues, antes de tudo, aos soldados, como forma de pagamento (o “soldo”) por seus serviços prestados e, em seguida, começavam a circular pelas demais camadas da população, começando pelas mais abastadas em direção às mais pobres. Assim, boa parte da população tinha contato com as moedas cunhadas e, por conseguinte, com a imagem do imperador nela inscrita, e, possivelmente, de seus principais feitos.

Com a noção de propaganda, aparece, apesar de pouco relatada, a de contrapropaganda (ou, simplesmente, censura), que foi utilizada tanto na época de Septímio quanto na de Caracala, com o intuito de impedir a circulação de críticas ao governo de ambos (o termo “contrapropaganda” será melhor abordado no capítulo três).

Após Ana Teresa citar, no término do primeiro capítulo, mais alguns autores que definem o que é a propaganda no período Severiano, é possível sintetizá-lo com uma definição explicativa sobre a mesma:

[…] entendemos propaganda como a construção e a difusão sistemática de mensagens, através de vários suportes, destinados aos vários grupos sociais que integravam a sociedade imperial, visando reforçar uma imagem positiva de determinados fenômenos, articular uma imagem do governante e estimular determinados comportamentos ligados à adesão dos súditos a este governante. (GONÇALVES, 2013, pp. 59-60).

Na sequência, a partir do capítulo dois, “As facetas das imagens imperiais de Septímio Severo e Caracala”, notamos maiores peculiaridades quanto à divulgação da figura do imperador, bem como de sua relação com a família, sua residência, as comemorações, as vinculações a grandes generais e heróis.

A princípio, o que se pode notar é uma associação entre Septímio e Pertinax [1], sendo que aquele se autodenominou “Vingador de Pertinax”, uma vez que o título de Vingador era considerado positivo, afinal, determinado crime deveria ser corrigido para a temperança voltar a existir no próprio império. Assumindo este título, Septímio, de certa forma, se comprometia em reformar a Guarda Pretoriana e os hábitos militares, e contribuía para o aumento de sua popularidade entre os seus súditos e mesmo o Senado Romano, a princípio. Contudo, apesar de adotar falas de estabilização do império, de volta aos tempos áureos de outrora (por exemplo, da Dinastia dos Antoninos, onde é muito aclamada a associação dos Severos com os imperadores Antoninos), a Dinastia Severiana exerceu algumas reformas, as quais não foram muito aceitas pela camada mais conservadora do Senado. Daí, Septímio optou por instaurar uma imagem positiva dele no Senado, através de discursos (uma forma de autopropaganda) que visavam atender aos interesses dos senadores, como a criação de uma aristocracia, na qual eles teriam mais poder de decisão.

Entre muitos aspectos abordados para a consolidação dos Severos, Ana Teresa destaca alguns que merecem uma atenção maior, e que são desenvolvidos ao longo do capítulo, como a imagem da família imperial (a domus imperial), na qual as principais personagens eram o imperador Septímio Severo, sua esposa, Júlia Domna, e seus dois filhos, Caracala e Geta. (GONÇALVES, 2013, p. 91).

O papel feminino no âmbito da domus imperial era muito relevante, pois a esposa do Princeps sempre o acompanhava em eventos solenes. Júlia, por exemplo, chegou a ter sua imagem cunhada em algumas moedas, assim que entrou, com seu marido, em Roma. Havia, portanto, uma imagem da família imperial associada à união, mais precisamente, à Concordia entre os membros. Tal imagem está ligada, então, à harmonia e vitalidade do Império, bem como à prosperidade romana, fundamentais à perpetuidade do mesmo.

A inscrição Concordia estava presente, ademais, em alguns ícones que representavam Caracala e Geta, filhos de Septímio, tendo em vista a propagação da relação, teoricamente, positiva entre eles. Os documentos que Ana Teresa analisa, como os relatos de Herodiano, por exemplo, deixam claro que os irmãos nunca foram bem relacionados, discutiam e discordavam de muitas coisas, muitas vezes, sem motivo.

Num outro âmbito, a autora destaca as festas e cerimônias públicas realizadas por Septímio, que possuíam cunho político, a fim de controlar a opinião pública e o poder, além de servirem para propagandear o Império como abundante e cujos familiares imperiais eram unidos. (GONÇALVES, 2013, p. 115 e 117). Tais comemorações funcionavam como pano de fundo para a divulgação dos bons atributos do soberano, bem como suas conquistas militares e feitos grandiosos.

Integrando-se mais Caracala a Septímio, eles foram, como Ana Teresa evidencia, os criadores de reformas nos monumentos romanos, como o Fórum, que passou por um incêndio em 189 d.C., ou mesmo o Panteão. Tais reformas eram feitas, a princípio, tendo em vista organizar Roma para as festividades supracitadas, utilizadas para divulgarem, novamente, a figura do Imperador.

Outra forma de se legitimar decisões políticas era através da comunicação onírica [2], a qual mostrava uma manifestação do divino com relação àqueles que possuem o poder. O papel dos presságios também era visível, como se observa no caso do assassinato de Pescênio Nigro, quando o sacerdote de Júpiter viu, em sonho, um homem negro assassinar Septímio. Os omina mortis e omina imperii eram, respectivamente, os presságios de morte e de comando, ou seja, eram sonhos que alguns sacerdotes, videntes, adivinhos e astrólogos interpretavam e que, de forma direta, influenciava nas questões políticas que seriam realizadas.

Finalmente, a autora trabalha a ideia da associação da imagem imperial à imagem dos grandes generais e heróis gregos e romanos, pois ela afirma que a figura do herói, como líder e guiador dos povos, torna-se uma grande ferramenta de propaganda aos poderosos, por representarem ações realizadas no passado e que, então, poderiam ser repetidas (GONÇALVES, 2013, p. 183). Caracala, neste sentido, quis se associar às figuras de Alexandre, Hércules, Aquiles e Sula, por exemplo, devido às características positivas que lhes eram presentes (vigor, coragem, astúcia, confiança) e que ele tentava imitar.

No terceiro capítulo, “A contrapropaganda ou a obliteração [3] das imagens concorrentes”, Ana Teresa ressalta as estratégias utilizadas pelos Imperadores Severos para a divulgação de uma imagem positiva de si mesmo, além da construção de uma imagem negativa dos seus opositores. (GONÇALVES, 2013, p. 195).

Um dos primeiros casos a esse respeito é visto quando Pescênio Nigro tentou criar uma imagem própria de salvador romano, além de repelir a figura de conspirador, a qual os adversários poderiam lhe impor. Começou a frequentar festas e jogos, com o intuito de elevar sua popularidade. Septímio Severo, entretanto, tomou conta de que a imagem de Nigro fosse passada, ao Senado, como inimigo público.

Ação muito comum de se fazer com os opositores, a damnatio memoriae [4] não foi realizada completamente, por exemplo, com Pescênio Nigro, isso porque Septímio pediu que deixassem uma das estátuas dele, bem como não apagassem a inscrição nela feita, que mostrava os grandes feitos de Nigro, pois gostaria que esta fosse um símbolo da força Severa. Simples: uma vez que, detentor de todos aqueles atributos, Nigro fora derrotado, aquele que o derrotou, decerto, possuía mais virtudes do que ele, e deveria ser visto e consagrado como soberano.

A damnatio memoriae, ao contrário do que aconteceu com Severo, foi utilizada por Caracala nas iconografias referentes à Geta, uma vez que, aprovada pelo Senado, como se vê no relato de Dion Cássio (LXXVIII, 12. 4-6):

[…] Caracala mandou fundir as moedas que portavam a efígie de Geta, martelar as imagens de pedra e apagar as inscrições, proibiu que os poetas e autores de textos teatrais usassem o nome Geta em suas obras, aboliu a comemoração do aniversário do irmão e foram confiscados os bens de todos aqueles que em seu testamento deixavam algo para Geta. (apud GONÇALVES, 2013, p. 213)

Encerrando o último capítulo, Ana Teresa salienta que a damnatio memoriae de Geta fez com que surgissem lacunas, nas quais o silêncio despontava à espera de uma interpretação da ação feita por Caracala que nos conferisse maneiras de entender tal situação. (GONÇALVES, 2013, p. 220)

Pode-se inferir que a autora, através da obra escrita, pretendeu e conseguiu, de forma coerente, tecer os pontos primordiais sobre o estudo do Período Severiano, no qual ela possui um número elevado de trabalhos realizados, utilizando-se, para tal, conceitos muito importantes, como o de propaganda, divulgação, poder, legitimação, Império, entre outros. Nota-se que ela explicitou seu ponto de vista com relação, sobretudo, a noção de propaganda (facilmente identificado, pois este termo faz parte do título), bem como as formas de propagandear um imperador romano, mecanismo importante para a consolidação do poder imperial e da figura do Imperator em si.

Dentre as principais formas de divulgação que os imperadores se utilizavam, podem-se notar a cunhagem de moedas com a imagem dele, sendo que, em algumas delas, ainda se colocava alguns dos seus principais feitos, a imagem da família (domus imperial), com o objetivo de manter a integridade pessoal; a realização de festas, cerimônias, jogos e desfiles, para mostrar as conquistas mais recentes empreendidas; os discursos, como forma de persuasão daqueles que os escutariam ou escutaram; a inscrição nas estátuas, uma vez que estas são símbolos de poder imperial; entre outras.

Para tal, utiliza-se de um método muito conhecido, que é o histórico, e que possibilita, assim, a confirmação das informações por ela mencionadas, uma vez que ela faz uma ampla pesquisa historiográfica, objetivando a análise dos autores que corroborem sua visão. Outro ponto a ser destacado é o bom uso das citações, que explicam melhor a obra analisada e nos permitem o contato com vários autores da área.

O livro é um aliado fundamental para o desenvolvimento de pesquisas e estudos na área de História Antiga, posto que nos mostra os vários aspectos do Período Severiano, bem como da Dinastia dos Antoninos, suas principais características e, evidentemente, explicados por uma das mais renomadas pesquisadoras brasileiras do período, torna a leitura mais estimulante. Como já mencionado, Ana Teresa Marques Gonçalves consegue, de forma concisa, porém direta, passar sua visão, suas peculiaridades, seu estilo de interpretação das fontes e obras consultadas.

Notas

1. Imperador romano em 193, provavelmente nascido na Ligúria, região do Noroeste da Itália que compreendia as províncias de Gênova, Imperia, La Spezia e Savona, Foi professor antes de entrar nos serviços imperiais. Após o assassinato de Cômodo, em 192, foi proclamado imperador pela guarda pretoriana e aprovado pelo Senado. No poder, promoveu uma série de medidas populares, especialmente contra os excessos do antecessor (Cômodo). Porém, logo caiu em desgraça, até que um destacamento da guarda pretoriana iniciou uma nova conspiração, assassinou-o e fincou sua cabeça em um poste.

2. Onírica faz referência aos sonhos, suas mensagens e interpretações.

3. Obliteração significa eliminar, anular, desaparecer, extinguir algo.

4. Este termo significa “danação da memória”, e consistia em se apagar as inscrições e destruir todos os símbolos e ícones que se referissem a um Imperador Opositor, de modo a não ficar nenhum meio de divulgação ou referência ao mesmo. Tal decisão sobre a aprovação ou não da damnatio memoriae cabia a uma decisão tomada pelos senadores, o senatus consultum.

Luis Eduardo Bove de Azevedo – Graduando em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca. E-mail: [email protected]


GONÇALVES, Ana Teresa Marques. A noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos. O caso dos imperadores romanos Septímio Severo e Caracala. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. Resenha de: AZEVEDO, Luis Eduardo Bove de. A propaganda e a divulgação da figura Imperial na Antiguidade Clássica: uma análise sobre o período Severiano. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.3, n.4, p. 304-312, jan./jul., 2015. Acessar publicação original [DR]

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