Histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores (I) / HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática / 2020

Quando fomos convidados pelo editor chefe da HISTEMAT para a tarefa de organizar o número temático de 2020, sentimos o peso da responsabilidade de executar um bom trabalho dada a qualidade das publicações presentes nesta revista. A HISTEMAT tem se consolidado como um importante periódico da área da História da educação matemática e nesse sentido cumpre importante papel na disciplinarização do campo científico (Hoffmann, Costa & Valle, 2019).

Como resposta ao convite formulado, decidimos então propor o tema Histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores. Ao iniciarmos as divulgações no âmbito internacional e nacional, rapidamente tivemos o acolhimento de pesquisadores comprometendo-se a encaminhar propostas. Isso demonstrou o reconhecimento pelos investigadores do espaço assumido pela HISTEMAT no campo científico da História da educação matemática. Agradecemos aqueles que responderam a esta chamada. Procuramos identificar, dentre os artigos submetidos, os que melhor apresentaram aderência a proposta.

Os artigos apresentados neste número contemplam divulgações de pesquisas e estudos de autores em âmbito internacional e nacional. Como resultado deste processo, apresentamos neste Número Temático doze artigos dos quais quatro foram escritos por pesquisadores estrangeiros e oito foram escritos por pesquisadores brasileiros.

Dos quatro primeiros artigos estrangeiros podemos observar distintas abordagens metodológicas abrangendo temas relacionados a história do saber matemático em espaços de ensino e formação, particularmente em Portugal, Espanha, México e Venezuela. Privilegiou-se a diversidade geográfica não necessariamente vinculados a uma periodização no desenvolvimento de seus estudos ou mesmo no tratamento do nível de ensino.

O primeiro artigo intitulado CONSTRUINDO O CONHECIMENTO PEDAGÓGICO DO CONTEÚDO EM TEMPOS DA MATEMÁTICA MODERNA: as múltiplas facetas da lógica de autoria de José Manuel Matos e Teresa Maria Monteiro intenta caracterizar os significados atribuídos ao termo “lógica” em tempos da reforma da Matemática Moderna. As análises apresentadas se apoiam sobre um corpus de 26 trabalhos produzidos pelos estagiários do Liceu Pedro Nunes em Lisboa entre 1956 e 1968. Esta instituição, no período considerado, era responsável pela formação de professores de matemática do ensino secundário em Portugal.

A MATEMÁTICA PARA ENSEÑAR EN LOS LIBROS DE AURELIO RODRÍGUEZ CHARENTÓN: la numeración y las operaciones é o artigo produzido por Encarna Sánchez-Jiménez e tem como objetivo caracterizar a matemática para ensinar nos livros indicados deste autor. O prof. Charentón está ligado diretamente ao processo de disciplinarização da metodologia da matemática. Essa narrativa se dá nos espaços de formação dos professores normalistas que preparavam futuros professores para ensinar matemática nas escolas primárias espanholas em tempos de difusão da escola nova na década de 1930.

Retrocedendo no tempo, mas mantendo-se na temática dos saberes matemáticos, o terceiro artigo escrito por Alberto Camacho Ríos tem como título EL POSITIVISMO MEXICANO DEBATE SOBRE LOS FUNDAMENTOS DEL CÁLCULO INFINITESIMAL A FINALES DEL SIGLO XIX. Neste trabalho, o autor relata o debate sobre a fundamentação filosófica do cálculo infinitesimal engendrado no Centro de Ensino preparatório de matemática por dois professores que promoveram sua criação em 1867. A Escola Nacional Preparatória é o cenário da discussão presente no texto e esta instituição se desdobra contemporaneamente na Universidade Nacional Autónoma de México.

O quarto artigo, de autoria de Walter O. Beyer K, intitula-se EL CÁLCULO INFINITESIMAL EN LA FORMACIÓN DE INGENIEROS Y SU PROFESORADO EN EL SIGLO XIX VENEZOLANO. Tomando a história de um saber matemático do ensino superior, este texto apresenta resultados de uma investigação sobre o processo que conduziu a incorporação do Cálculo Infinitesimal nos estudos superiores da Venezuela por alguns dos seus docentes na Academia Matemática de Caracas (AMC), na Universidade e Escola de Engenharia. Para este empreendimento o autor se utilizou de outros estudos históricos e bibliográficos, de catálogos comerciais de livros e de bibliotecas, dos informes da AMC, assim como tomou as obras de cálculo infinitesimal que circularam na Venezuela no século XIX.

A partir das contribuições recebidas pelos pesquisadores brasileiros, podemos destacar que no Brasil há, também, um crescente movimento de historiadores da educação matemática preocupados em construir histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores, sob uma variedade de abordagens teóricas, metodológicas e de estilos narrativos, alinhados com certo fazer de uma história dita cultural.

Nessas historiografias, há espaços não apenas para os fatos regulares, mas, ainda, para episódios que fogem ao comum em um dado tempo histórico, sem nenhuma preocupação com grandes sínteses generalistas que tudo explicam independentemente do contexto sociocultural e suas peculiaridades (Vainfas, 1997). Seguem essa ótica as pesquisas nacionais que compõem este número temático.

De fato, tais pesquisas evidenciaram, em primeiro plano, que os saberes matemáticos não foram constituídos no ensino e na formação do professor de forma homogênea, estanque e inflexível nas mais diversas localidades brasileiras em cada tempo histórico-pedagógico (Valente, 2016). Houve, nesse sentido, uma pluralidade de saberes matemáticos, sedimentados por certos ideários de educação e por contextos socioculturais como sendo necessários e importantes para cada uma das dimensões das modalidades de ensino e de formação do professor que ensinaria matemática, em distintos períodos históricos.

Sob o contexto das escolas normais, que formavam o professor que iria lecionar nas escolas primárias brasileiras (Tanuri, 2000), os saberes matemáticos foram analisados em três diferentes cenários.

Nesse sentido, no quinto texto intitulado OS SABERES A ENSINAR DESENHO PARA A ESCOLA NORMAL DO MARANHÃO: um encaminhamento pelas finalidades de ensino, 1905-1934, o autor Marcos Denilson Guimarães direciona sua investigação para as finalidades do saber Desenho na formação dos professores normalistas maranhenses durante a primeira metade do século XX.

Os dois textos seguintes refletem uma política de expansão da educação baiana para o interior voltada para a formação do professor na década de 1950. Assim, ambos os textos foram construídos no mesmo espaço geográfico, isto é, no estado da Bahia e possuem periodizações semelhantes. Contudo, revelam cenários diferentes, tanto em termos de localidades, bem como em relação às categorias administrativas das instituições analisadas.

Com efeito, o texto SABERES RELACIONADOS AO ENSINO DE MATEMÁTICA NO CURSO PEDAGÓGICO DO GINÁSIO DE JEQUIÉ de Marly Gonçalves da Silva e Janice Cassia Lando direciona-se para os saberes matemáticos, mais precisamente, para aqueles presentes nas disciplinas de Matemática, Estatística e Desenho, no período de 1954 a 1966. Tais saberes, faziam parte das práticas pedagógicas dos professores formadores do Curso Pedagógico do Ginásio de Jequié, uma instituição de iniciativa privada criada no município de Jequié.

Já o trabalho de Wesley Ferreira Nery, Larissa Pinca Sarro Gomes e Martha Raíssa Iane Santana da Silva intitulado SABERES RELACIONADOS AO ENSINO DE MATEMÁTICA NO CURSO PEDAGÓGICO DO GINÁSIO DE JEQUIÉ contempla o ensino dos saberes aritméticos na Escola Normal Teodoro Sampaio no período de 1954 a 1963. Trata-se de um estabelecimento público, localizado na cidade de Santo Amaro, outra cidade do interior da Bahia.

O oitavo artigo, A MATEMÁTICA PROFISSIONAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES, escrito por Nara Vilma Lima Pinheiro, também aborda os saberes profissionais em um espaço específico de formação do professor que iria ensinar matemática em escolas primárias. No entanto, sua análise sobre a constituição e sistematização de uma matemática profissional própria na formação do docente foi circunscrita ao Instituto de Educação do Rio de Janeiro, criado na década de 1930. Esse Instituto, diferentemente ao modelo de formação que predominava até aquela conjuntura nas escolas normais, trouxe uma estruturação fundamentada nos saberes advindos das ciências da educação a partir de uma preocupação com o desenvolvimento infantil.

De outra parte, os autores Jonathan Machado Domingues e Denise Medina de Almeida França, no nono texto deste número temático da HISTEMAT, intitulado DIDÁTICA ESPECIAL DA MATEMÁTICA: em busca dos saberes da profissão docente fazem, do mesmo modo, uma investigação dos saberes da profissão docente, mas debruçados na obra de Manuel Jairo Bezerra, intitulada “Didática Especial da Matemática”, publicada em 1958.

Para além dos saberes matemáticos na formação do professor, essa edição temática, ainda, contemplou trabalhos que tiveram um enredo construídos em torno dos saberes matemáticos presentes em duas modalidades de ensino: primário e industrial.

Na ambiência do ensino primário, Elenice de Souza Londron Zuin conduz a análise de seu artigo FRAÇÕES NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DE SANTA CATARINA: um olhar sobre planos de aula da década de 1940 para o ensino de frações a partir de planos de aula de aritmética para o 3º e 4º anos, elaborados por docentes de escolas do Estado de Santa Catarina, nos anos de 1941 e 1942.

Outro estudo, nessa mesma modalidade de ensino, foi realizado por Nícolas Giovani da Rosa e Elisabete Zardo Búrigo. Esses autores no texto APRENDER E DECORAR: aulas de matemática da Escola Evangélica Duque de Caxias nos anos 1960 realizam uma investigação sobre as aulas de matemática ministradas na Escola Evangélica Duque de Caxias, Rio Grande do Sul, nos anos de 1960, por meio de entrevistas com ex-alunas e uma professora dessa Escola e, ainda, fazendo uso de um Relatório de Estágio escrito no ano de 1967.

Por último, finalizando o rol de artigos deste número temático da HISTEMAT tem-se o texto de Oscar Silva Neto e David Antonio da Costa intitulado SABERES MATEMÁTICOS NO ENSINO INDUSTRIAL: o caso dos números complexos e incomplexos, produzido na esfera do ensino industrial brasileiro, criado mediante promulgação do Decreto-Lei nº 4073, de 30 de janeiro de 1942. Em tal texto, os autores analisam o ensino dos números complexos e incomplexos (não entendidos como números imaginários) nos cursos industriais básicos brasileiros por meio da obra “Caderno de Matemática”, de Arlindo Clemente, publicada no ano de 1955.

Assim, a partir desse universo de 12 pesquisas, foi possível perceber que os saberes matemáticos passaram por processos de transformações a depender dos objetivos educacionais e do contexto sociocultural que vigoravam em cada tempo histórico, nas mais diversas localidades internacional e nacional. Sob essa ótica, ratifica-se, portanto, uma compreensão problematizadora acerca da pluralidade de histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores.

Boa leitura!

Referências

HOFFMANN, Y. T.; Costa, D. A. & Valle, I. R. (2019). Transversalidade entre Bourdieu e Fleck: campo e produção do conhecimento científico. Educar em Revista, (78),283-301. https: / / www.redalyc.org / articulo.oa?id=1550 / 155062213016

tanuri, L. M. (2000, maio / ago.). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88. https: / / www.scielo.br / pdf / rbedu / n14 / n14a05

VAINFAS, R. (1997). História das mentalidades e história cultural. In: Cardoso, C. F.; Vainfas, R. (Org.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, p. 127-162.

VALENTE, W. R. (2016). Sobre a investigação dos saberes profissionais do professor de matemática: algumas reflexões para a pesquisa. Caminhos da Educação Matemática em Revista (online), 6 (1), 1-13. https: / / aplicacoes.ifs.edu.br / periodicos / index.php / caminhos_da_educacao_matematica / iss ue / view / 16

David Antonio da Costa

Eliene Barbosa Lima

Os organizadores,


COSTA, David Antonio da; LIMA, Eliene Barbosa. Editorial. HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática. São Paulo, v.6, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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