Minas do ouro, Minas indígena / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2011

“Minas do ouro, Minas dos cataguás.” Com esse epíteto, batizou-se o território mineiro, reconhecendo-se, desde os primeiros contatos, os índios como os senhores de todas as Gerais. O que se sabe é que a presença dos colonos se estendia pouco além dos povoados, e tudo o mais era, então, domínio das populações nativas. “Infestando” o território, índios de diversas nações – caiapó, botocudo, puri, coroado, malali, maxacali e pataxó, entre outros – ocupavam todo o cenário até que colonos, avançando pelo interior e desbravando sertões inóspitos, imprimiriam uma nova paisagem ao transpor as fronteiras sob domínio das populações nativas.

No entanto, os trabalhos sobre as Minas dos cataguases, prenúncio de uma História marcada pelo encontro com os índios, pouco contribuíram para o conhecimento do processo histórico a que esses povos foram submetidos com o avanço das frentes de expansão colonizadora. Mesmo que a presença dos povos indígenas tenha sido, reiteradas vezes, tema das discussões administrativas e eclesiásticas, foram ignorados por parte expressiva da historiografia mineira. Ainda que uns poucos historiadores admitissem sua presença nesse cenário, antecipavam suas ressalvas, ao reduzirem a atuação dos índios aos primeiros contatos, sem os tomar sequer como agentes da História e da formação sociocultural de Minas. E, mesmo quando assim foram considerados, eram tidos como meros apêndices dos estudos, prestando-se, quase sempre, a penduricalhos à ação colonizadora e ao protagonismo português, como testemunham as obras clássicas da historiografia que apenas tangenciaram a questão.

Silêncio na História

Objeto de raríssimas pesquisas, a etno-história indígena mineira deixou, por isso, esparsas contribuições, acabando por impor aos povos nativos um silêncio avassalador. Situação ainda mais agravada quando se percebe uma desproporção entre a produção acadêmica e a riqueza qualitativa e quantitativa das fontes depositadas nos arquivos. Se abunda farta documentação, capaz de assegurar investigações de grande fôlego e de diversos matizes, como entender então essa indigência bibliográfica sobre a trajetória dos índios em Minas Gerais? Certamente a resposta a essas questões está ligada tanto ao “tratamento” dado à questão indígena pelas políticas coloniais de sucessivos governos quanto pela própria genealogia da historiografia mineira – condições que, indissociáveis, ajudam a esclarecer esse vazio historiográfico.

Uma justificativa para explicar a ausência dos índios na História de Minas foi atribuída à ação das expedições de conquista – conhecidas como “entradas e bandeiras” – no final do século XVII e início do século XVIII. Penetrando os sertões, essas campanhas teriam avançado indiscriminadamente sobre o território, devastando aldeias e dizimando toda a população nativa. Chacinados pela violência e crueldade dos colonos, os índios teriam desaparecido da História. Nelson de Senna, pioneiro nos estudos sobre História indígena, é um exemplo notável dessa tendência que, parece, fincou raízes. Afirmava que “sob o ponto de vista da formação da gente mineira, o índio apenas teve aquele momento histórico de penetração e conquista do solo das Minas”.[1]

Sob essa alegação, calcada em um discurso vitimizador que responsabilizava os colonizadores pelos atos atrozes contra os nativos, selava-se, assim, o desaparecimento dos povos indígenas. O mais significativo é que, considerados exterminados por essas investidas devastadoras, os índios foram excluídos da História de Minas, não tendo participado de sua construção e, por extensão, abandonados como tema de estudo pelos historiadores.

Território proibido

Nesse contexto, a particularidade da política indigenista na Minas colonial é outro motivo a ser ponderado. A Coroa portuguesa proibiu o acesso às Minas, decretando certas “áreas proibidas”, temendo os descaminhos do ouro levado a cabo por ávidos contrabandistas. Essa deliberação recaiu também sobre as ordens religiosas, que nutriam grande autonomia e foram, por isso, proibidas de pastorear na capitania. Tal decisão acabou por comprometer os estudos sobre as estratégias de “civilização” dos índios – tema tão caro às investigações sobre o papel de cristianização da Igreja na colônia.

De toda forma, a ausência formal das ordens religiosas não significou um vazio nas relações da Igreja com os grupos indígenas, mas constituiu-se, por isso mesmo, em uma prática singular do clero secular que mereceria ser analisada, como a atuação do padre Manoel de Jesus Maria ou do padre Pedro Mota, índio cropó educado com o propósito de arrebatar sua gente para o seio da Igreja.

É verdade também que os capitães-generais nem sempre estiveram de fato preocupados com a civilização do gentio, que, muitas vezes, prestava melhores serviços na condição de “canibais, bestas e selvagens” – adjetivos tão comuns à época –, intimidando com essa imagem o avanço de intrépidos aventureiros nos sertões à revelia do controle metropolitano. Ali, exercendo seu papel de guardiões, como barreira natural, os índios contribuíam para estancar as levas de colonos que desobedeciam às restrições da Coroa.

No entanto, a crise da mineração a partir de 1760, que tanto mal-estar causou, colocou em xeque essa política. A chave para salvar a capitania de seu declínio foi focalizar justamente as terras então sob domínio dos índios. Várias ordens foram expedidas para se proceder à “conquista e civilização do gentio”, alavancando a formação de dezenas de expedições durante toda a segunda metade do século XVIII.

No albor do século XIX, os colonos ainda apelavam para os governantes, alegando os danos causados aos cofres reais, à indústria e ao comércio pelos constantes assaltos das hordas de índios. Clamavam por uma pronta resposta a tamanho insulto. Em 1806, em Vila Rica, o então governador da capitania, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Melo, fez um pronunciamento inflamado: estava “cansado e horrorizado de ouvir o grito dos miseráveis povos”, “pela carnagem brava e insaciável com que têm sido atacados, mortos e devorados pelos bárbaros antropófagos gentio Botocudo”.2 Tal atitude acenava, ao dobrar o século, para um desfecho pungente e cruento – muito apropriado aos olhos dos colonos – quando, pouco tempo depois, a carta régia de 13 de maio de 1808 declarava guerra contra os botocudos. Instituídas as unidades militares, conhecidas como Divisões Militares do Rio Doce (DMRD), essas cumpriram o papel de “atrair” os grupos indígenas, atuando ativamente entre 1808 e 1839, quando então foram extintas. Uma nova investida catequética reiniciou-se em 1841 e, seguida da promulgação do Decreto n. 426 de 1845, estabeleceu-se o Regulamento das Missões. Na segunda metade do XIX, sob a direção dos capuchinhos, foi instituído o aldeamento do Itambacuri, que perduraria até a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910.

Uma Minas indígena

Diferentemente do que quis fazer crer a historiografia, a “conquista” dos índios não cessou com as entradas na busca de novos descobertos, no final do século XVII, nem culminou com o desfecho da guerra contra os botocudos iniciada em 1808, que aprisionou e escravizou – sob o aval da pena régia –, mas persistiu durante todo o Império. De fato, se muitos dos aspectos da formação da sociedade mineira ilustram de modo cristalino o processo de exclusão, exploração e destruição das populações indígenas, eles são também expressão do quanto esses grupos contribuíram para nossa formação sociocultural, como ainda hoje evoca a presença de povos indígenas em Minas Gerais.

Nos trabalhos históricos que se debruçaram propriamente sobre os índios de Minas Gerais, apenas recentemente, na década de 1990, a questão indígena veio à baila sob uma perspectiva inédita de novas tendências metodológicas, com a incorporação de novos atores sociais, temas e objetos de pesquisa. Essa renovação metodológica, fortalecida pelo diálogo interdisciplinar entre Antropologia, Arqueologia e História, bem como a emergência dos movimentos das populações indígenas em busca de reconhecimento de seus direitos e sua atuação no panorama nacional, foi decisiva para a produção acadêmica, representada, em parte, nos textos dos autores deste Dossiê.

O texto de Hal Langfur, Mapeando a conquista. abre esta coletânea. O autor mostra com perspicácia a construção de uma cartografia gentílica composta para talhar uma feição do território que atendia aos interesses metropolitanos.

A seguir, Extermínio e servidão, de Haruf Espíndola, apresenta um estudo circunstanciado das motivações da declaração de guerra pelo príncipe regente, em 1808, e das consequências para os povos indígenas na região do rio Doce.

O terceiro texto, de minha autoria, Amores proibidos, amores possíveis, procura aproximar-se das vivências afetivas dos índios no cotidiano que compartilharam nas vilas das Minas colonial.

Os kurukas no mercado colonial, de Maria Hilda Baqueiro Paraiso, é uma comovente narrativa sobre o apresamento, a venda e distribuição de crianças indígenas pelos colonos, com o propósito, entre outros, da prestação de serviço doméstico.

Izabel Missagia de Mattos verticaliza com sagacidade o estudo com Educar para dominar, recuperando a prática do ensino escolar no aldeamento de Nossa Senhora dos Anjos do Itambacuri como instrumento para a promoção de mestiçagem entre indígenas e adventícios e “dissolução” da rede de sociabilidade indígena.

Por acolher essa mistura de grupos de diversas procedências, de distintas origens étnicas, numa mescla de brancos, negros, índios, Minas Gerais apresenta uma configuração étnica e social complexa, da qual muito ainda resta por conhecer. Este Dossiê é um esforço nessa direção, uma vez que os estudos agora apresentados, ao adotarem a perspectiva dos povos indígenas, transformam o próprio curso da História de Minas, dando a conhecer uma narrativa inédita e ainda tão pouco difundida, a de nossa Minas Gerais indígena!

Notas

1. SENNA, Nelson de. Sobre Etnografia Brasileira – principais povos selvagens que tiveram o seu habitat em território das Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro, ano 25, n. 1, p. 337-335, 1937. SENNA, Nelson de. A terra mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1926, p. 47, 49.

2. Projeto Resgate, AHU, 13080, cx. 179, doc. 36.


RESENDE, Maria Lêonia Chaves de. Apresentação. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v.47, n.1, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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