O Desafio Biográfico – Escrever uma vida | François Dosse

– O historiador é capaz de fazer uma biografia?

Questão aparentemente simples, a julgar pela quantidade de produções biográficas das últimas décadas, muitas delas produzidas ou supervisionadas por historiadores. Todavia, esta mesma questão foi-me dirigida quando da defesa do meu projeto de pesquisa – uma das etapas do processo de seleção para o doutorado. Respondi de pronto e afirmativamente naquela ocasião, embora houvesse momentos de titubeação ao longo do projeto a ser “defendido” (o que, possivelmente, explica o motivo da indagação).

François Dosse, ao contrário, não titubearia frente à tal pergunta; não depois de ter escrito O Desafio Biográfico – Escrever uma vida, uma obra que contribui sobremaneira para o atual status que a empresa biográfica tem alcançado na academia. Conhecido no Brasil sobretudo pelas obras História do Estruturalismo e A História em Migalhas, este professor do Instituto Universitário de Formação de Professores de Créteil e do Instituo de Estudos Políticos de Paris que é Dosse não abre mão de seus posicionamentos acadêmicos ao construir um livro que poderia, à primeira vista, ser taxado “antologista” (suas fontes são, em sua maioria, biografias), mas que numa leitura mais atenta demonstra que seu autor acompanha (além de ser partícipe) das novas e sofisticadas discussões acerca da escrita biográfica.[1]

Localizar, aliás, esse atual status da biografia e contrapô-lo a outras formas sob as quais ela foi tomada pela academia é um dos grandes trunfos d’O Desafio Biográfico, muito embora a riqueza de tal estudo esteja justamente no alargamento que Dosse estabelece para o “ato de escrever uma vida” – que é múltiplo, trans- histórico e pode ser tomado como a construção de um perfil; de uma trajetória; de relatos de vida; de uma autobiografia ou de uma biografia psicológica; de biografemas ou de hagiografias; como a construção de uma biografia jornalística ou como um ensaio biográfico…

A palavra biografia, aliás, no moderno termo que hoje a tomamos, apareceu nos dicionários europeus somente no século XVII (!), o que só ratifica o seu “gênero híbrido”. Isto porque sabemos este “ato” remonta aos primórdios da humanidade e, mesmo se desconsiderarmos a tradição oral, encontraremos provas dele na Antiguidade (via Plutarco e suas “Vidas Paralelas”, por exemplo); na Idade Média (via hagiografias incensadas durante todo este período); na Modernidade (via perfis de heróis e dos “grandes homens” dos cursos de Moral e Cívica) e na Idade Contemporânea (via biografia de personalidades do mundo artístico) – só para continuarmos na eurocêntrica divisão quadripartite da História. Segundo François Dosse:

É hábito nosso distinguir dois gêneros: a biografia e o relato de uma vida. […] Da Antiguidade ao século XVII, seria a época do registro das Vidas, impondo-se depois, quando da ruptura moderna, a biografia. O que mudou, no fundo, foi o método de escolha dos grandes homens, dos sujeitos das biografias. [2]

Entretanto, mais do que definir suas diferentes nomeações, Dosse articula este “ato de escrever uma vida” às também diferentes “funções” que a biografia exerceu durante os séculos (e.g.: Historia Magistra Vitæ) e às diferentes interlocuções que ela manteve com as ciências humanas, de uma forma geral, e com a historiografia, em particular. Este panorama está representado pela divisão dos capítulos d’ O Desafio Biográfico: capítulo 2 (“A Idade Heroica”); [3] (“Biografia Modal”); [4] (“Idade Hermenêutica I – A unidade dominada pelo singular); [5] (“Idade Hermenêutica II – A pluralidade das identidades”) e capítulo [6] (“A biografia intelectual”).

Jogando a Rayuela de Cortázar, os leitores de língua portuguesa desta edição publicada pela Edusp em 2009 (no bojo do “Ano da França no Brasil”) podem perfeitamente pular o prólogo em que François Dosse apresenta um exaustivo panorama editorial, francês, daquilo que chamou de “febre biográfica” pois, a despeito da bem construída análise que envolve projetos editoriais, legitimação acadêmica e publicações biográficas, tal passagem pode desanimar um leitor que não esteja tão familiarizado com as especificidades daquele mercado a ponto de não considerar as disputas entre Fayard, Gallimard ou Flammarion mais do que simples informações de notas de rodapé (e não de 30 páginas, como o livro apresenta!).

Já a introdução e o primeiro capítulo (“A biografia – gênero impuro” ) fornecem excelente ponto de partida para distinguirmos as diferentes escritas biográficas e para associá-la à discussão assaz cara às ciências humanas e à historiografia: justamente a tensão entre verdade e ficção. Tais discussões serão aprofundadas nos demais capítulos, mas residem na introdução e no primeiro capítulo o “lugar de fala” de François Dosse – autor de uma obra de honestidade intelectual para com o estruturalismo (História do Estruturalismo), de algumas biografias intelectuais (sobre Michel de Certeau, o jesuíta-historiador autor de A invenção do cotidiano; e sobre o filósofo, também francês, Paul Ricœur) e de demais obras que dialogam íntima e muitas vezes criticamente com a sofisticação do conceito de verdade, da problematização do sujeito, das fontes e das múltiplas narrativas advindos com a Linguist Turn e com a 3ª Geração dos Annales, por exemplo. Todavia, especificamente com O Desafio Biográfico, Dosse avança justamente num ponto em que estruturalismo e pós-estruturalismo são muito próximos (extremos da ferradura?): a negação da biografia. Em suas palavras:

Hoje já se compreende bem que a História é um fazer levado a cabo pelo próprio historiador e, portanto, até certo ponto depende da ficção. Diga-se o mesmo do biógrafo, o qual ficcionaliza seu objeto e torna-o, por isso mesmo, inalcançável, apesar do efeito do vivido que com isto obtém. […] Em todos os domínios que dependem da transversalidade, a escrita biográfica dá um passo à frente, pois se estriba num entreleçamento de disciplinas que abre caminho para hipóteses não reducionistas.[3]

Não por acaso, residem nesta discussão entre ciências humanas (sobretudo a do século XX) e biografia o grosso das obras e dos autores analisados por François Dosse. Condensando no segundo capítulo (“A idade heroica”) toda a tradição da Historia Magistra Vitæ – que remonta da Antiguidade ao século XIX, mas que Dosse também encontra ecos na contemporaneidade, com as biografias do gênero “grandeza artística” –, O Desafio Biográfico reserva outros quatro capítulos para traçar uma espécie de história do ocaso, da “criptoexistência” e do ressurgimento do gênero biográfico frente à academia, ocorridos no último século. Isto porque, fora dos muros universitários – seja na França, seja no Brasil –, é ponto pacífico que a biografia nunca passou por grandes problemas de legitimação – e, consequentemente, de vendas.

Falar, portanto, de uma “volta” do gênero biográfico como atualmente se admite requer alguns poréns. Mesmo se conjugarmos esse “retorno” à academia (o que parece mais factível) é preciso considerar que mesmo em tempos de “déficit do sujeito” recorreu-se ao indivíduo para exprimir o quinhão demasiadamente humano de qualquer acontecimento histórico. Na “biografia modal”[4], por exemplo, em que “o singular se torna uma entrada no geral, revelando […] o comportamento médio das categorias sociais” e onde há uma verdadeira hipervalorização da estrutura frente ao indivíduo, François Dosse nos faz enxergar a presença de um gênero muito próximo à biografia, que é a prosopografia – grosso modo, e segundo o autor, “um gênero que tem por objeto reposicionar as características de um grupo esmiuçando as informações sobre todos os seus membros”[5].

Outro porém relacionado a esta “volta” da biografia (“boom”, “retorno”, “febre” são outras palavras utilizadas para descrever o fenômeno) reside em consideramos justamente seu caráter histórico, relacionando a atual legitimação conquistada junto a academia às transformações pelo qual este gênero passou nas últimas décadas. Nas palavras de Dosse, “o quadro monista, unitário da biografia foi desfeito, o espelho se quebrou para deixar aflorar mais facilmente a apreensão da unidade pela singularidade e, ao mesmo tempo, a pluralidade das identidades, o plural dos sentidos da vida”. [6]

Em outras palavras, tal legitimação está intimamente ligada ao trabalho de historiadores que avançaram no debate, em muito paralisante, da chamada “crise da história”, mas que também não abriram mão da sofisticação metodológica também fruto daquele debate, como é o caso de François Dosse.

Notas

1. A lista só tem crescido nos últimos anos, mas poderíamos citar o já clássico: BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M.M. (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1996. O também traduzido: LORIGA, Sabrina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998, p. 225-249. Além da coletânea: SCHMIDT, Benito B.; GOMES, Angela C. ( Org.) . Memórias e narrativas (auto)biográficas. Porto Alegre/ Rio de Janeiro: Editora da UFRGS/ Editora da FGV, 2009.

2. DOSSE, F. O Desafio Biográfico – Escrever uma vida. Trad.: Gilson César C. Souza. São Paulo: EdUSP, 2009, p. 12.

3. Id. Ibid., pp. 71 e 122.

4. Id. Ibid., p. 195.

5. Id. Ibid., p. 223.

6. Id. Ibid., p. 359.

Eduardo Gomes Silva –  Mestre em História pelo PPGH/UFF. Atualmente é doutorando em História pelo PPGH da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]


DOSSE, François. O Desafio Biográfico – Escrever uma vida. Trad. Gilson César C. Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. Resenha de: SILVA, Eduardo Gomes. A “volta” de um gênero híbrido e assaz historiográfico – Biografia. Cantareira. Niterói, n.15, jul./dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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