Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais (1889-1945) / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2008

República e modernidade em Minas

O presente Dossiê é fruto de mais uma aproximação entre duas instituições que, com orgulho, têm contribuído para o desenvolvimento científico e cultural do Brasil. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desde 2001, implementa o Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória. O Arquivo Público Mineiro (APM), responsável pelo mais importante acervo documental referente à história mineira, desenvolve, desde 2005, o Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais (1889-1945).

São empreendimentos de fôlego e que vêm inovando a pesquisa a respeito do tema. O Projeto República tem constituído acervos e desenvolvido várias atividades de pesquisa integradas, relacionadas às teorias do republicanismo e da sensibilidade republicana. Seus frutos são múltiplos. Além de livros, artigos, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado, a iniciativa também é responsável pela curadoria de exposições, promoção de eventos científicos e produção de vídeos e CD-ROMs.

O Projeto Memória da Administração, por sua vez, comemora, com o lançamento deste volume, a disponibilização, para pesquisa, de centenas de milhares de documentos inéditos das secretarias de Estado de Minas Gerais, referentes aos primeiros 50 anos da experiência republicana brasileira. Outros milhões de documentos estão em fase de higienização e descrição, podendo-se prever que, nos próximos anos, serão progressivamente disponibilizados à pesquisa.

Embora com objetos e abordagens próprios, há vários pontos em comum entre o Projeto República e o Projeto Memória da Administração, daí advindo nova aproximação entre a UFMG e o APM, relação mutuamente enriquecedora e que tem raízes antigas, confundido-se com a história das duas instituições não só na forma de projetos de pesquisa como também de estágios técnicos, bolsas de iniciação científica etc. De fato, em Minas Gerais, a existência de cursos de graduação e pós-graduação, nas várias áreas de ciências humanas, muito deve ao competente trabalho desenvolvido pelo APM.

Os artigos que compõem este Dossiê cobrem mais de dois séculos de história mineira, do período colonial a nossos dias, tratando de personagens que encarnaram os limites e as várias dimensões que o republicanismo assumiu no Brasil. Na realidade, o ponto de partida da sensibilidade republicana desses homens estava no ideal de independência e autogoverno.

José Murilo de Carvalho, em texto de abertura, identifica e rastreia ao longo da trajetória histórica de Minas uma linguagem moderna e republicana sedimentada a partir de uma tradição que se reinventou ao longo dos séculos, desde a Inconfidência – movimento fundador e epifania dessa mesma linguagem política. Incontestável, para José Murilo, é a presença do tema da liberdade nas agitações do século XVIII: “A consciência da liberdade individual não demorou a produzir rebeldia política contra a metrópole, sonhos republicanos de participação política e de autogoverno” – afirma o autor.

Modernidade e republicanismo reaparecem no século XIX, por meio de uma das suas mais típicas instituições: a Escola de Minas de Ouro Preto, responsável por introduzir em Minas e no Brasil o que se conheceu depois como mentalidade desenvolvimentista. No século XX, o fio dessa tradição é recuperado por Juscelino Kubitschek, talvez o mais autêntico republicano, que – na condição de presidente –, sem a pose majestática de seus antecessores, portou-se como homem comum, avesso à pompa do poder.

Para além dessas trajetórias individuais, José Murilo de Carvalho desvenda as continuidades subjacentes à modernidade e à república no Brasil: continuidades, porém, frágeis e contaminadas, seja pela desigualdade social, seja pela corrupção e ineficácia do sistema representativo ou, ainda, pela violência que deteriora a vida urbana.

Sérgio Alcides, no texto seguinte, investiga os dois topói contraditórios – o do desterro ovidiano e o do amor pátrio – presentes na poesia de Cláudio Manoel da Costa. Aprofundando a análise dos limites e contradições da república das letras em Minas colonial, o autor conclui: “[…] o letrado moderno traz o exílio em si – e mais ainda nele se aprofunda quanto mais à margem da cultura letrada se situa, ou pelo berço ou pelo destino de servidor dos desígnios reais”.

Nesse mesmo cenário de longa duração, Valdei Lopes de Araujo busca em Teófilo Ottoni, mais precisamente em dois de seus escritos mais conhecidos, a Circular aos eleitores mineiros, publicada em 1860, e A estátua eqüestre de D. Pedro I, de 1862, os contornos de uma linguagem política que poderia ser denominada de liberalismo republicano mineiro. Para Ottoni, a instrumentalização do conceito de república não implicava necessariamente a mudança do regime. A idéia de “republicanizar” a monarquia – percebida a partir de uma perspectiva filosófica – pressupunha a noção de “uma evolução gradual e necessária para melhor […]. Como conceito de movimento, república, em Ottoni, tinha a dimensão do futuro reforçada, servindo para legitimar a própria ação política partidária”.

Em Vestígios de uma utopia republicana, Carlos Antônio Leite Brandão investiga, na materialidade construtiva e visível de Belo Horizonte, os artifícios – no sentido mesmo da construção do artefato, de feito realizado com habilidade e perspicácia – da cidade símbolo da república e da modernidade brasileira, já que possibilitou, dentre outras coisas, “pavimentar o caminho para o advento da Pampulha, de Brasília, e o de artistas e intelectuais modernistas capazes de dar relevância ao contexto local e nacional e conectá-lo com o resto do mundo”.

Expoente dessa face moderna e desenvolvimentista de Minas Gerais, a trajetória do engenheiro Lucas Lopes tem sido abordada na maior parte das vezes na perspectiva de sua atuação enquanto administrador e dirigente público. Nesse sentido, o texto biográfico de Clélio Campolina Diniz oferece aos leitores um novo olhar sobre esse importante protagonista do desenvolvimento econômico e industrial do Estado nas décadas de 1940 e 1950, destacando sua experiência enquanto pesquisador e professor universitário na Faculdade de Ciências Econômicas da então Universidade de Minas Gerais. Pesquisador atípico, autodidata e orientado pela busca constante da solução dos problemas e desafios que o exercício administrativo lhe impunha, Lucas Lopes foi um professor obcecado pela geografia econômica e sua inter-relação com as diferentes áreas do saber. Atuando nos bastidores da grande política, ao lado de Juscelino Kubitschek, Lucas Lopes pode ser considerado, conforme destaca Clélio Campolina, um grande tecnocrata, na melhor acepção da palavra.

Em texto de minha autoria, procuro revelar, a partir da noção de sertão em Guimarães Rosa, o melhor modo para entender a paradoxal metáfora de uma república construída longe da dóxa, distante daquilo que é comum: um país sem lugar, permanentemente suspenso entre universalismo e particularismo, entre cidade e interior, entre modernidade e arcaísmo, entre autonomia e dependência, entre miséria e abundância, entre república e corrupção, entre desigualdade e democracia, entre Primeiro e Quarto mundos.

A perspectiva biográfica reaparece no texto de Helena Maria Bousquet Bomeny, que busca, por meio desse viés, ressaltar o projeto republicano de Darcy Ribeiro, aproximando-o, inclusive, de João Pinheiro, principalmente no que diz respeito ao pragmatismo e à aversão à burocracia que marcam a personalidade e a trajetória de ambos. Pesquisadora constante desse universo de valores freqüentemente atribuídos aos mineiros, Bomeny destaca em Darcy Ribeiro, a partir da análise de seu itinerário intelectual e político, duas percepções que de certa forma traduzem o próprio dilema desse republicanismo: a constatação pouco otimista da existência de uma sociedade herdeira de uma tradição que dificulta sua inserção no mundo moderno e a utopia ou crença na capacidade do povo de fazer valer seus interesses ou de assumir seu próprio destino. Conforme a autora, a “combinação de uma sociologia engajada, universalista e militante, com uma antropologia compreensiva, voltada ao singular e à interpretação fincada em seus próprios termos, fez de Darcy um intelectual controvertido, ao menos pouco comum. A ousadia da combinação nem sempre foi bem-sucedida, mas permaneceu como ousadia”.

Ousadia que também caracteriza o texto de Bruno Viveiros Martins – Clube da esquina: a canção amiga nas ruas da cidade –, revelador da modernidade de Belo Horizonte através das canções populares; uma cidade que se reinventa enquanto espaço de poesia e liberdade – espaços possíveis da cidadania.

Enfim, a proposta deste Dossiê e os textos que o compõem revelam o êxito de um feliz diálogo entre perspectivas e abordagens distintas, bem como a necessidade de se enfrentar um tema importante, controverso e, de certa forma, incontornável. Como afirmou Drummond, o espírito de Minas é o lugar do encontro de coisas aparentemente irreconciliáveis:

Vi claramente visto, com estes olhos

que a terra há de comer se os não cremarem,

o carro de bois subir, insofismável,

esta soberba Rua da Bahia,

sofridamente puxado

por sete juntas de bois.

Vi claramente visto o cupê de João Luís Alves,

Secretário de Estado de Bernardes,

descer esta rua soberba da Bahia, cruzar o

carro de bois,

no dia claro, e o espírito de Minas

fundindo sabiamente

a dupla imagem.

Heloisa Maria Murgel Starling – Professora de história das idéias do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); coordenadora do Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória da UFMG; pesquisadora do Centro de Referência do Interesse Público (UFMG); e vice-reitora da instituição. Autora, entre outros livros, de Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande sertão: veredas.


STARLING, Heloisa Maria Murgel. Apresentação. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v.44, n.2, jul. / dez., 2008. Acessar publicação original [DR]

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