A Expansão da História – BARROS (TH)

BARROS, José D’Assunção. A Expansão da História. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2013. Resenha de: FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. Será possível fazer de outros modos? Configurações e práticas da disciplina história segundo algumas de suas teorias. Tempos Históricos, v.18, p.404 – 409, 1º Semestre de 2014.

De início, ao leitor poderá parecer que o livro A Expansão da História é mais um livro de textos panorâmicos sobre Teoria da História em aspectos gerais que renovaram a disciplina no século XX, mas seus seis textos fazem mais, verticalizando discussões. Com um pano de fundo diagnosticado como de interdisciplinaridade e risco de hiperespecialização da disciplina História, discutem-se conceitos históricos e fragmentação disciplinar num contexto de multidiversidade temática e de abordagens. O autor propõe analogias e metáforas pouco convencionais para se pensar a História e os historiadores. Conceitos como “dialogismo” e “polifonia” articulados à Teoria dos discursos e à Teoria musical são base para análises originais. Recorrentes nos textos, a polifonia e a música explicam-se: o autor é formado em História, mas também em Música, do que se aproveita bem, fazendo interdisciplinaridade. O livro compila seis conferências feitas entre 2009 e 2012 e, como na está na Apresentação da obra, o “tema comum a todas é a História – mais especificamente nos seus aspectos teórico, metodológico, historiográfico”. (p.7)  O capítulo 1, A Expansão da História, é panorâmico mesmo, da “rica diversidade e sobre a crescente complexidade da historiografia contemporânea” (p.15). Se o século XIX foi o “século da História” e constituiu acervos e arquivos que trouxeram a disciplina História para o primeiro plano, foi no século XX que houve “novas revoluções (…) agora direcionadas para uma reconfiguração do próprio campo de saber histórico, de seus métodos, aportes teóricos, temas de estudo” (p.14). O raciocínio sobre a expansão presume a “reconfiguração da História” presidida por “três grandes forças: (…) a tendência à especialização, a chamada ‘crise do paradigma único’ e as aberturas oferecidas pela interdisciplinaridade” (p.18). O autor problematiza a multidiversidade das “inúmeras subdivisões historiográficas” (p.26) surgidas do cruzamento dos fatores “hiperespecializacao”, “multiplicação de paradigmas” e “interdisciplinaridade” que atingiram a História no decorrer do século XX. E desenvolve argumento em torno da ausência de critérios claros e coerentes que justifiquem aquela multidiversidade.

As modalidades infinitas de escrita e de campos de investigação histórica se concretizaram em “grandes coletâneas de ensaios historiográficos que buscavam apresentar uma reflexão dos diversos historiadores sobre seu próprio ofício” (p.26) e sobre sua própria modalidade, sem, no entanto, demonstrar quais critérios agrupavam modalidades tão diversas e tão sem aparente ligação, como mulheres, economia, vida urbana, vida privada, mentalidades, trabalho, família, medo, infância etc. Barros considera que tais coletâneas pareciam agrupar modalidades historiográficas de modo muito mais aleatório e assistemático, aparentemente sem nexos científicos. Sobre os critérios de coerência para os agrupamentos aparentemente sem nexos de modalidades historiográficas tão distintas em coletâneas editoriais, o autor questiona: “dito de outra forma, que sistematização de critérios pode ser pensada para presidir a organização de livros (…) de modo que os capítulos do livro não pareçam (…) estarem unidos por uma ordem aleatória, não científica?” (p.28). Contra essa ausência de critérios para se pensar essa realidade de aleatória multidiversidade historiográfica, Barros pondera se não seria possível uma “Teoria dos campos históricos” ou algo que pudesse ser uma “tábua explicativa” para os sistemas que produzem uma “ordem lógica para a compreensão” (p.29) dos critérios de agrupamento de tão variadas modalidades historiográficas.

Deriva de sua proposição uma indagação ousada sobre “possibilidades novas de escrita da história” nas próximas décadas. O autor, porém, entende essas “possibilidades novas de escrita” sob duas perpectivas: uma, a da proposição de outros campos de pesquisa e novos objetos de estudo que venham a multidiversificar ainda mais a disciplina, o que o autor questiona; depois, ele entende a escrita como “apresentação” da história pelo historiador sob a forma de um texto, mas pondera se não haveria “a possibilidade de teses de História apresentadas em formatos de vídeo ou DVD, ao invés do tradicional formato livro?” (p.37). Não há considerações e juízos de Barros sobre as possibilidades de os textos serem apresentados em forma que não o do formato livro, o que frustra um pouco a expectativa do leitor em ouvir considerações propriamente teóricas. Tais ponderações enriqueceriam, do ponto de vista de sua apreciação teórica, o tratamento de um tema ainda em elaboração pela comunidade de praticantes da disciplina: faz-se necessário aprofundar a análise dos fatores que, na história, fizeram da apresentação do conhecimento histórico escrito para o livro um provável determinante da História conhecimento científico.

Essas possibilidades de escrita mencionadas pelo autor reaparecem no capítulo 2, A Escrita da História a partir de seis aforismos, em análise que aproxima a História das artes visual e literária: “a história da Historiografia (…) é feita das transformações que têm se dado tanto na instância científica da História como na sua instância artística” (p.43). O autor informa o cerne do texto: “Como se dá a tensão entre ciência e arte no interior da História, aqui compreendida como forma específica de conhecimento, e como o ensino voltado para a formação do historiador administra esta tensão. (…)” (p.43). São seis os aforismos – “tudo é História”, “toda história é contemporânea”, “toda história é local”, “a História é arte”, “a História é polifônica” e “a História é multimidiática”. Com eles, Barros discorre sobre o que teria norteado o encaminhamento da concepção da disciplina no século XX e há considerações sobre a formação oferecida por cursos de História e sobre o que entende ser o discurso do historiador: “(…) a um só tempo, cientificamente interdisciplinar, artisticamente literário e experimentalmente multivocal” (p.51). São feitas afirmações surpreendentes acerca de currículos que formam historiadores, advogando que o historiador não poderia deixar de ter “(…) disciplinas que o habilitem a lidar mais artisticamente com a Escrita da História”(p.56). Ou então: “(…) seriam necessários os já mencionados enriquecimentos no currículo das graduações de História, e desta forma o historiador poderia pensar em adquirir conhecimentos mais sólidos de fotografia, programação visual, cinema, ou mesmo música para o caso mais específico da incorporação da sonoridade” (p.75). Nesse capítulo 2, ao tratar da relação entre a História e a Arte, entre instância científica e artística da História, o autor se reporta à formulação de Michel de Certeau em 1977 sobre a representação histórica, publicada em Magazine Littéraire em mesa-redonda com Philippe Ariés, Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie e Paul Veyne: que o historiador repensasse “a relação existente entre o trabalho profissional de investigação (também ele modificado) e a representação historiográfica”.

No capítulo 3, Fontes históricas: olhares sobre um caminho percorrido, o autor se estende sobre a constituição de fontes históricas no século XX com o corolário de olhares novos que aquelas ensejam sobre realidades passadas. O autor revê o arco de mutações pelas quais a disciplina passou na questão das fontes desde os metódicos até os contemporâneos. Entende a “expansão documental” com ênfase no conceito de “fontes intensivas”, quais sejam: as fontes dialógicas e polifônicas pressupostas na análise micro-histórica. “Uma vez que deseje (…) uma análise intensiva de suas fontes, o historiador deve estar atento a tudo, sobretudo aos pequenos detalhes (…) ele estará trabalhando ao nível da realidade cotidiana, das trajetórias individuais, das estratégias que circulam sob uma extensa rede de micropoderes (…)” (p.95). Barros é bastante simpático com a análise micro-histórica, propõe metodologia para tratar de fontes dialógicas e Carlo Ginzburg é seu interlocutor primaz no capítulo. Revelando o cotidiano, as fontes dialógicas recolhem as várias vozes de sujeitos que falam ao mesmo tempo numa troca contraditória de enunciados a serem identificados e compreendidos: indivíduos “(…) cada qual mergulhado na sua intersubjetividade e no seu circuito de ambiguidades pessoais (…) uma rede dialógica, polifônica, na qual estarão expressas diversas vozes a serem decifradas” (p.97). Com Bakhtin, os textos estão numa “rede intertextual, em um diálogo com outros textos” (p.104). Uma vez mais, a metáfora da polifonia ressurge: o historiador “ (…) lida com planos polifônicos envolvendo várias épocas. Entre as várias vozes com as quais irá lidar está a sua mesma” (p.125). Várias vozes são uma “música” que o historiador deve reconhecer sem impor sua voz às demais vozes, com as quais – diríamos – canta também, melódica e harmonicamente.

Os capítulos 4, Espaço e História, e 5, O lugar da história local, encadeiam-se. O homem e o tempo são categorias históricas irredutíveis, mas também o espaço físico, e mais ainda: os espaços geográfico, político, social, cultural, imaginário e virtual. A contribuição de Braudel é relevada. O O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II é visto como ensaio sobre a “temporalidade especializada na qual o tempo infiltra-se no solo a ponto de quase desaparecer” (p.147). A polifonia reaparece. Braudel baseia-se no ritmo da duração dos tempos e captou a “longa duração”, da qual se vale para “orquestrar polifonicamente as três durações distintas” (p.149) e simultâneas do tempo. Braudel “havia considerado que o Mediterrâneo possuía, sob certos aspectos, uma unidade que transcendia as unidades nacionais” (p.150), regiões autônomas que convergiam para um “ritmo supralocal” (p.150), vozes que se harmonizavam. O autor distingue história local e regional da micro-história, “que (…) frequentemente vê-se confundida com a história local por trabalhar com realidades ‘micro’ (…)”. Numa guinada interpretativa, Barros figura a academia como um espaço também de poder, onde há um “jogo institucional de poderes e saberes”.

Nesse espaço universitário, haveria uma repartição das tarefas intelectuais entre universidades que seria falaciosa, que hierarquiza o saber e impõe um “modelo de divisão do trabalho intelectual” (p.186). Para o autor, na universidade brasileira o “universo da pós-graduação stricto sensu, a instância maior para a produção da pesquisa no Brasil” (p.186) é o “sistema que se superpõe à rede de poderes e saberes” das universidades, distinguindo-as de maneira perniciosa entre “universidade centrais” – que fariam a pesquisa de “saberes maiores”, de realidades mais amplas e de caráter mais geral – e “universidades periféricas” – que se dedicariam a qualquer modalidade temática de História e/ou a saberes locais, principalmente “a história das localidades nas quais se assentam” (p.186). As instituições se distinguiriam, assim, segundo um sistema de poder cujos praticantes acabam tendo de conceber a universidade como grande território de espaços estratégicos a serem ocupados conforme uma geopolítica que gera desigualdades, provocando mais conflito e hierarquia do que solidariedades, o que pouco colabora no país com o desenvolvimento da pesquisa como um todo em História. O autor ataca o que chama de “esquadrinhamento geográfico” dos saberes acadêmicos e não admite que em um “mundo informatizado e ágil nas comunicações e meios de transporte” (p.186), com muitos arquivos digitalizados e em rede, ainda se pense em dividir a tarefa intelectual da pesquisa entre sujeitos conforme sua localização física e pretensa superioridade, uma vez que “um historiador residente em qualquer lugar do país pode empreender boa parte de uma pesquisa relacionada a qualquer tema” (p.187) mais amplo, esteja onde estiver.

No capítulo 6, Acordes Teóricos, há um convite ao que chama de “pensar acórdico”, onde a Teoria musical fundamenta “um novo modelo para a imaginação teórica” (p.221). Instado a se especializar, o intelectual faz interdisciplinaridade ainda e promove “movimentos e propostas que acenam para uma religação de saberes” (p.189). Contra classificações perfeitas que não captam variações ao longo de trajetórias intelectuais de autores, Barros usa a imagem de um “conjunto de notas musicais que soam juntas”, o acorde, que produz uma “sonoridade compósita” (p.196). O autor sustenta que obras intelectuais são reiteradas, modificadas e revistas ao longo de seus trajetos, e isso não é o caso de desqualificá-las em nome de suspostas incoerências, contradições ou falta de uniformidade. Em todo autor, segundo Barros, há variações, ambiguidades e supostas contradições sim, mas como uma polifonia: são pensamentos “em movimento”, com fases que são como “sucessão de acordes” que se harmonizam polifonicamente. A Teoria musical ensina que a obra intelectual, como uma só voz, pode harmonicamente agrupar várias vozes: a obra como um todo é diversidade de fases de produção vistas como harmonia e não incoerência e a produção intelectual não tem uma unidade originária paradigmática que se conserva sempre. Nesse texto 6, o autor oferece um esquema acórdico de pensamento que favorece o olhar para obras intelectuais sempre em movimento de expansão, retração, empréstimos, momentos, contextos – mas em que tudo se transforma numa melodia. A proposição do autor é original porque põe em metáfora uma compreensão mais orgânica da obra intelectual.

O livro A Expansão da História oferece reflexões originais com proposições importantes sobre História e, mais ainda, sobre seus cursos de graduação e de pós-graduação: conceitos, definição, critérios, modos de ser da disciplina se materializam em cursos segundo interesses num campo de disputas. É assim que o livro de D’Assunção de Barros vale muito pelo que ousa dizer num momento da história da História em que seus cursos começam a ser investigados. O livro de José D’Assunção Barros é obra de Teoria da História e soa com um tom de livro já lido, mas não é absolutamente só isso. É, ainda, uma obra com certa ousadia que oferece textos que relevam pontos para um debate teórico sobre o estatuto da disciplina no século XXI e, como desdobramento, sobre como revisões e revisitações à história da História podem orientar novas formas de o historiador comportar-se com relação à apresentação da História, discussão que só agora começa a ganhar espessura com a reflexão sobre as possibilidades do discurso histórico para além do texto escrito e do público especializado.

Bruno Flávio Lontra Fagundes – E-mail: [email protected] .