História da profissão docente no Brasil: representações em disputa – VICENTINE; LUGLI (RBHE)

VICENTINE, Paula Perin; LUGLI, Rosário G. História da profissão docente no Brasil: representações em disputa. São Paulo: Cortez, 2009. Resenha de: ALMEIDA, Cíntia Borges de; VILAÇA, Murilo Mariano. História da profissão docente no Brasil: representações em disputa. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 11, n. 1 (25), p. 243-250, jan./abr. 2011.

A presente resenha, uma arriscada prática de seleção sintetizadora é uma análise do livro História da profissão docente no Brasil: representações em disputa, de Paula Perin Vicentini e Rosário Silvana Genta Lugli. Professoras da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), respectivamente, ambas se doutoraram naquela universidade, com teses que tematizaram a profissão docente. Uma, através das imagens e representações sociais; a outra, pela constituição do campo de trabalho denominado magistério.

O livro focaliza a história do professorado primário e secundário do ensino público brasileiro, que é identificado como “[…] um grupo tão diverso em seu interior e submetido a condições tão distintas por todo o país […]” (Vicentini; Lugli, 2009, p. 24). Assim, fazer uma história da profissão docente é, para elas, lidar com processos profissionais e não profissionais que variam quanto aos lugares e públicos atendidos.

A perspectiva teórico-metodológica adotada é, por um lado, a sócio-histórica, fundando-se em António Nóvoa. A partir do conceito de profissionalização de Nóvoa, elas analisam a complexidade de relações, internas e externas à categoria, que concorreram para a formulação de estratégias de formação, o estabelecimento do espaço de atuação, das práticas e dos valores atinentes à docência. Por outro lado, é adotada uma metodologia de análise de fontes (leis, textos impressos, jornais) para construção de narrativas históricas, atentando para o conteúdo e para o lugar “de onde o discurso é produzido” (idem, p. 24). Utilizam fontes para apresentar a materialidade cotidiana do trabalho docente (os materiais escolares, a arquitetura escolar, os uniformes). Também são usados instrumentos como tabelas, iconografias e recortes de jornais. A partir dessas fontes, o livro expressa sua preocupação em elaborar uma narrativa sobre “o processo de organização e desenvolvimento da profissão docente no Brasil sem incorrer no equívoco de generalizar características de um determinado segmento para toda a categoria, ou de um estado para todo o país” (idem, p. 24).

A preocupação supra é pertinente, mas foi relativamente descumprida pelas próprias autoras. O esforço em historicizar o campo docente no Brasil ficou comprometido, ante o fato de terem dado especial lugar e largo destaque às experiências ligadas a São Paulo. Há, de fato, algumas referências a experiências em outros estados (Bahia, Sergipe, Minas Gerais etc.), mas elas geralmente aparecem para corroborar aquilo que fora identificado no contexto paulista. Essa é uma marca geral do texto, o que, a nosso ver, expressa um olhar bem específico sobre a história da profissão docente, que parece exprimir mais certa visão sobre São Paulo do que sobre o Brasil.

O período recoberto pela obra compreende marcos temporais diversos. Parte das Reformas Pombalinas do século XVIII, pois, segundo as autoras, em razão do inédito vínculo que estabeleceu entre a formação docente e o Estado, representariam um divisor de águas. Passa pelo século XIX, com aquilo que elas denominam de início das preocupações oficiais com o preparo docente e do movimento docente, haja vista, nesse caso, o surgimento das primeiras associações docentes, chegando ao XX, nos limites do qual analisam as imagens sociais do magistério.

O primeiro capítulo, intitulado “Como se preparavam os professores para o ensino? As instituições de formação”, analisa as instituições destinadas à formação docente, a partir do século XIX. Dentre as estratégias de formação docente, as autoras ressaltam as iniciativas das Escolas Normais, do Curso Primário Complementar (CPC), do curso superior de pedagogia e a Preparação dos professores secundários. No texto, as autoras dedicam-se à análise, sobretudo, das Escolas Normais (EN).

No que tange às EN, o trajeto analítico das autoras envolve os seguintes passos: (1) a abertura das primeiras EN na primeira metade do século XIX; (2) as dificuldades encontradas para a manutenção dessas escolas; (3) as estratégias de formação de professores, a discussão sobre os conteúdos pedagógicos e a lenta organização de estruturas burocráticas; e (4) o estabelecimento de um currículo próprio a partir da década de 1850.

Quanto aos empecilhos à manutenção das EN, destacam-se a precariedade das estruturas e a baixa procura, o que tornou frequente a notícia de fechamentos. Acerca do reduzido interesse, os motivos citados são o desprestígio da profissão, a baixa remuneração e a desnecessidade do diploma da EN para o exercício docente.

Os problemas da manutenção das EN foram apresentados como determinantes para que o CPC servisse como uma modalidade acessória de formação docente. Num aparente paradoxo com a supracitada ideia de baixa procura pelos Cursos Normais, afirmam que os CPC supriram os escassos cursos de formação de professores. Ora, se havia baixa procura, sobretudo em virtude dos motivos elencados, como falar em escassez?

O último registro sobre as estratégias de formação docente que julgamos pertinente ressaltar diz respeito à relação que as autoras sugerem entre Lei Orgânica do Ensino Normal (1946) e a decadência dessa modalidade de ensino, o que capitaneou um posterior investimento na formação em nível superior, através da criação dos cursos de pedagogia, especialmente a partir da década de 1930.

No capítulo seguinte, intitulado “Professores e escolas: as condições de trabalho”, defende-se a importância de se compreenderem as condições concretas em que ocorre o trabalho dos professores, para que se possa refletir sobre os processos de profissionalização docente no Brasil.

Nesse capítulo, são quatro os eixos. Primeiramente, elas abordam como os concursos para o ingresso à carreira docente foram paulatinamente constituídos e regulamentados. Envolvendo critérios diferenciados dos critérios tipicamente “morais” do século XIX, os concursos usariam critérios “mais” técnico-profissionais. Tal mudança é decorrente, por exemplo, do regulamento de 1936, que instituía provas escrita, oral, didática e prática. Em segundo  lugar, quando analisam as condições materiais do exercício da docência, são citadas a condição do mobiliário escolar e dos prédios, passando pela alteração nas punições físico-morais dos alunos, chegando à questão da obrigatoriedade escolar. No terceiro eixo, sobre o controle do ofício docente, chama a atenção a ideia de que o início do período republicano seria um marco no processo de racionalização do sistema de ensino e do trabalho docente, o que é questionável, haja vista as iniciativas já vigentes no período anterior (Império). Por fim, analisam os salários no registro de um constante empecilho ao melhoramento das condições da docência.

Ainda nele, tratando-se da questão do funcionamento das instituições e mais especificamente, da seleção de professores para cargos públicos no período anterior a República, chamou-nos a atenção a seguinte afirmação: “tratou-se de um processo longo e difícil, uma vez que os cargos de professores sempre foram ‘moedas de troca’ valiosas entre os políticos e suas comunidades de origem” (idem, p. 69, grifo nosso,), sugerindo a inexistência de concursos. O uso do termo “sempre” remete-nos à ideia de que no Império não houve concursos, sendo o favoritismo ou apadrinhamento o modo de selecionar um professor. Tal assertiva é inverossímil e representaria uma aparente contradição interna ao próprio texto, já que as autoras afirmam que, já no século XVIII, havia processo de seleção de docente. De acordo com elas, “o processo de seleção de professores iniciou-se em 1760” (idem, p. 70), como o estabelecimento de critérios mais específicos para os concursos durante o século XIX.

O terceiro capítulo, “Movimento docente: pluralidade e disputas”, tem como objetivo traçar um percurso do movimento docente e das possíveis tensões e disputas ocorridas. É dedicado um esforço considerável à análise da organização do campo docente, com o intuito de observá-lo em âmbito nacional, posicionando o modo como as disputas aconteceram no cenário brasileiro. Para isso, realizou-se um levantamento de fontes primárias, como propagandas jornalísticas, e uma revisão bibliográfica de autores que pesquisaram a mesma temática. Posteriormente, o texto sugere que pensemos no movimento docente como algo que envolve os diferentes segmentos de ensino, ou seja, primário, secundário, profissional e superior. Todavia, pode-se notar que as experiências colocadas em destaque se referem, em grande maioria, ao magistério primário, dando pouco lugar para o secundário e nenhum para os demais segmentos de ensino, o que contradiz aquela tese da importância de uma visão, por assim dizer, holística.

Esse capítulo permite pensar as configurações do movimento de organização dos professores em algumas cidades do Brasil, tendo assinalado as principais características do modelo associativo, numa tentativa de percorrer o final do século XIX até a década de 1970. Apresenta pontos importantes, como a luta pela escola pública (idem, p. 136) e a tentativa de articulação nacional dos professores, apesar das questões relativas à tensão entre centralização/descentralização administrativa (idem, p. 138), questão já abordada em outros trabalhos, como as obras de Faria Filho (2000) e Faria Filho et al. (2000). Em virtude do seu caráter pragmático-panorâmico, outro ponto que merece destaque é a tentativa de organizar em tabelas as associações de professores em algumas cidades do Brasil (idem, p. 145-153).

No quarto capítulo, “Imagens sociais da docência: a multiplicidade dos pontos de vista”, é destacada a imagem de um profissional mal preparado e mal remunerado, de uma carreira vista como missionária, mas também aborda a luta desses profissionais e seus diferentes movimentos e manifestos em torno do prestígio da classe. Dentre os enfoques, ressaltamos a citação da data comemorativa do dia dos professores, em razão dos diferentes sentidos atribuídos a ela, como, por exemplo, a sua utilização como marco para as campanhas reivindicatórias dos docentes (idem, p. 169).

Há, também, a tentativa de relacionar o tempo de prática docente ao ânimo profissional, através de uma inusitada comparação de fotografias. Contrapondo a imagem de uma professora que, no início da carreira, é apresentada como “jovem e feliz”, à de uma professora “experiente e austera”, dá-se a entender que as dificuldades enfrentadas por esta no decorrer da vida profissional comprometeram a sua felicidade (idem, p. 183). Sobre esse ponto, entendemos que outros fatores deveriam ser explorados, a fim de evitar conclusões pouco fundamentadas acerca da relação supracitada. Além disso, questionamos o uso do termo felicidade como um índice mensurável, sobretudo do modo restrito operado pelas autoras.

Ainda sobre esse capítulo, surpreende o modo como o tema dos conflitos e tensões é tratado. Embora recorrente, o texto não evidencia, explicita ou demonstra tais conflitos e tensões, o que, mais uma vez, deixa o leitor na dúvida, a saber, sobre quais foram as tensões, onde aconteceram, quando aconteceram, quem envolveram e quais as suas consequências para a profissionalização docente.

O capítulo 5, como o título “História da profissão docente no Brasil: uma síntese fragmentada” sugere, é um esforço de síntese do que fora feito nos capítulos anteriores. Para isso, as autoras analisam as condições nas quais os professores praticaram seu ofício. Elas, mais uma vez, ressaltam uma ausência de preocupações pedagógicas no Império (idem, p. 209), embora, mais tarde, tentem notificar, com um tom aparentemente crítico, que a oposição entre Império e República é comum nos manuais de história da educação brasileira. Todavia, é possível observar em diferentes momentos do texto justamente tal prática de demarcação de uma passagem temporal, como se a República trouxesse inovações que não fizessem parte de um contexto anterior e como se o Império fosse um conjunto de ausências.

É de suma importância compreender que não há um rompimento radical entre Império e República. Mais que pensar a educação no registro de uma separação das contribuições dos diferentes momentos abordados, é preciso considerar a relevância de cada um para a compreensão da profissão docente. É fundamental entender que as iniciativas ocorridas no século XIX serviram de pano de fundo, num processo marcado por continuidades e descontinuidades, para diferentes rumos de políticas públicas pensadas para a educação no período republicano. A própria escola isolada, que resistiu por muito tempo na República, é um exemplo de prática imperial que não será rompida nas primeiras décadas republicanas. A EN, criada nos moldes imperiais, também fará parte das políticas educacionais por um longo período. Outro exemplo é a obrigatoriedade do ensino, política defendida em importantes projetos do Império, por exemplo, pelos Pareceres de Rui Barbosa, de 1882 (Barbosa, 1947).

Para pensarmos o papel do Império como construtor de ações e discursos em prol da instrução, deve-se ressaltar a variedade de segmentos que contribuíram para os projetos e iniciativas voltadas para o ensino, que, inclusive, repercutiram diretamente sobre o período posterior. As contribuições estatais, a atuação da população e dos professores em busca de voz e reconhecimento são exemplos da efetiva e diversificada movimentação em prol da educação e da profissionalização docente no Império, sendo fundamentais para compreender o que se viu na República.

Se o ato de tomar a história da profissão docente, a sua diacronia, a partir do registro de uma linha de continuidade entre Império e República constituiu um erro, supor uma descontinuidade absoluta, uma superação radical, também nos parece equivocado. As políticas educacionais republicanas são fruto de uma tentativa de estabelecer algo novo, em busca da construção de uma nova nação, mas que em absoluto se pautou pela completa negação de todo o investimento feito anteriormente.

A obra resenhada, apesar dos problemas apontados, cumpre uma função acadêmica importante, a saber, promover o debate acerca de um tema. As controvérsias devem servir mais como provocação do que como demérito. Assim, merece ser lida, considerada e criticada pelos que se interessam pelo tema especificamente ou pela educação brasileira em geral, pois, ao mesmo tempo em que incorre em interpretações falíveis, traz contribuições para o campo de estudos histórico-educacionais.

Referências

Barbosa, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. In: . Obras Completas de Rui Barbosa. Volume X, Tomo I-IV. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947.

Faria Filho, Luciano M. Dos pardieiros aos palácios. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2000.

Faria Filho, Luciano M.; Veiga, Cynthia Greive; Lopes, Eliane Marta T. et al. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Cíntia Borges de Almeida – E-mail: [email protected]

Murilo Mariano Vilaça – E-mail: [email protected]

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