Hannah Arendt na história: da felicidade, da amizade e do amor / História – Questões & Debates / 2007

Hannah Arendt foi uma pensadora, cujas reflexões no campo da política e da filosofia a transformaram em uma importante figura no cenário da teoria política contemporânea.

Intelectual independente e solitária, por ter se mantido afastada de escolas acadêmicas, partidos políticos e linhas ideologias, a autora pertence ao pequeno grupo de pensadores que não se curvam diante dos poderosos e do pensamento único, que se mantém fiel a si mesmos e cuja obra expressa essa lealdade numa escala e abrangência maior. A atualidade e pertinência de suas análises acerca do efeito devastador da modernidade sobre a esfera do político e da liberdade nos regimes totalitários do século XX, transformaram suas obras em leitura obrigatória em diferentes áreas do conhecimento.

No campo da História, embora Hannah Arendt tenha conferido à disciplina um lugar privilegiado, dando visibilidade às coisas humanas, ao colocar o homem no centro de suas reflexões, seu pensamento ainda não foi devidamente explorado pelos pesquisadores dessa área. Nesse sentido, a aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, se constitui numa tarefa, ao mesmo tempo, instigante e desafiadora.

Os textos apresentados nesse dossiê da Revista História: Questões & Debates resultam das reflexões realizadas durante o Colóquio alusivo à comemoração do centenário de nascimento da autora, realizado em Curitiba, em maio de 2007, sob o patrocínio do Goethe Institut de Curitiba, da Associação Paranaense de História e do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

Dentre as diversas perspectivas a partir das quais pode-se ler a obra de Hannah Arendt, o evento, privilegiou os conceitos de amizade, a felicidade e o amor, procurando associar as percepções da autora sobre estes sentimentos a algumas experiências históricas.

Ao tratar de temas ligados à subjetividade, vistos, muitas vezes, com enorme reserva pelos cientistas sociais, quando manifestos no espaço público, a proposta do referido colóquio mostrou-se ousada e inovadora. Rompendo com a idéia de que os sentimentos, as sensibilidades e as paixões – quase sempre entendidos como sintoma de anomia social – são considerados como uma intromissão perigosa na ação coletiva, os palestrantes procuraram discorrer sobre momentos históricos em que os sentimentos promoveram relações de solidariedade e de pactos consensuados.

Coerentes com o pensamento de Hannah Arendt, para quem o pensar e o sentir são momentos éticos indivisíveis, os autores realizaram suas reflexões, procurando entender o passado, não como experiência morta, mas como experiências, exemplos singulares, plurais e coletivos, capazes de iluminar o presente num instante de perigo, como Arendt, inspirada em Walter Benjamin, entendia ser o ofício do historiador.

Renata Senna Garrafoni, no artigo Felicitas romanica, procura desconstruir a leitura moderna que se faz da felicidade quando se trata da Roma Antiga, destacando como, entre as camadas populares daquele período, à diferença de Sêneca e de outros clássicos, a felicidade era cultivada e valorizada na vida privada, manifestando-se enquanto amor erótico.

No texto O amor na política, Renato Augusto Carneiro Júnior orienta-se por uma historiografia dedicada aos sentimentos religiosos, ao refletir sobre a obra O conceito de amor em Santo Agostinho. A partir dessa obra, Carneiro Júnior identifica a oportunidade de analisar a existência humana e a importância do amor na relação do homem com o Criador e com a sociedade, de onde deriva a forma de pensar a política, segundo Hannah Arendt.

Inspirada no percurso do livro Rahel, Ana Paula Vosne Martins, cujo artigo intitula-se Da amizade entre homens e mulheres: cultura e sociabilidades nos salões iluministas, procura reconstruir a tradição dos salões como espaços culturais no qual as distâncias sociais e de gênero foram reduzidas em favor de uma sociabilidade marcada pela civilidade, diálogo, deferência e, sobretudo, amizade. Constituiu-se ali esferas públicas ímpares, heterossociais que, à diferença do que se supõe, muito antes do movimento feminista, aproximaram homens e mulheres em torno da arte, da política e do debate livre de idéias.

Incitada pelas sugestões teóricas propiciadas pelos estudos da “Vida Privada”, Marion Brepohl, em O enamoramento e a separação dos amantes, seleciona passagens do Denktagbuch, escrito por Arendt e organizado por Ursula Lutz, visando à compreensão do amor dos amantes segundo Hannah Arendt. Recusando o método de análise do gênero diário, Brepohl afirma que no caso específico deste livro, a autora não se propõe ao ato confessional de sua intimidade, mas uma reflexão sobre a própria intimidade, em tudo distante dos negócios públicos. Brepohl afirma ser aquela interpretação um legado de seu tempo: na metade do século XX, o amor dos amantes resultaria de uma relação entre iguais, o que fortalece, segundo o que também enfatiza Martins, a aparição no espaço público. E, em diálogo com Carneiro Júnior, observa ainda que, à diferença do amor Ágape e do amor Philia, o amor erótico é tão mais efêmero quanto for sua intensidade.

Finalmente, Wolfgang Heuer, com o artigo Amizade Política pelo cuidado com o mundo, perpassando diversas obras da autora, com ênfase para Human Condition e O que é política?, analisa o conceito arendtiano de amizade pública, percorrendo as três chamadas gerações perdidas do século XX na Europa e concluindo que a amizade política é a alternativa necessária para a ação. Como Garrafoni, recua à sociedade greco-romana, momento em que Aristóteles propôs a amizade como concórdia em favor da comunidade. Momentos raros, sem dúvida, mas que, em virtude de sua excepcionalidade mesma, assumem um caráter exemplar.

Além dos textos que compõem o dossiê, essa edição traz ainda um conjunto de quatro artigos, cujas inquietações apontam para a reflexão acerca de conceitos ligados à intolerância, à memória, às representações e à interdisciplinaridade.

O primeiro deles, de autoria de Nádia Reis, aborda o neointegralismo, baseado no reavivamento de antigas concepções de mundo e de organização da sociedade do movimento integralista dos anos 30 no Brasil.

Na seqüência, o texto de Nádia Maria Weber Santos, tem como objetivo legitimar o uso da literatura como fonte histórica e traçar algumas das inter-relações possíveis entre Literatura e História.

Já a reflexão realizada por Leandro Duarte Rust, destacando a representação de tempo como objeto de estudo das dimensões e alcances históricos, busca problematizar o processo de institucionalização do papado medieval entre os séculos XI e XIII.

O artigo de André Fabiano Voigt revisita um clássico nos estudos sobre migrações, aculturação e assimilação, realizando novas propostas de interpretação dos temas concernentes a este campo historiográfico, ao analisar a obra de Emílio Willems.

Encerra o volume, a resenha escrita por Ximena Alvarez sobre a obra de Hannah Arendt Responsabilidade e julgamento. Trazendo indagações sobre a ética moral, a responsabilidade civil, coletivas e as culpas entorno ao silêncio, a obra constitui uma das coletâneas organizadas com os últimos textos escritos da filósofa antes da sua morte, em dezembro de 1975.

Por fim, gostaríamos de destacar que esse dossiê, além de buscar uma aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, cumpre importante papel no sentido de lembrar que “mesmo em tempos mais sombrios, temos o direito a esperar por alguma iluminação”.

Claudia Roemmelt – Diretora do Goethe Institut de Curitiba.

Roseli Boschilia – Presidente da Associação Paranaense de História.


ROEMMELT, Claudia; BOSCHILIA, Roseli. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.46, n.1, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]

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