Amor Mundi: atualidade e recepção da obra de Hannah Arendt / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Em meados do século passado, o historiador Fritz Ringer publicou a monumental obra O Declínio dos Mandarins Alemães (RINGER, 2000), na qual descreve o ambiente acadêmico alemão no período guilhermino e na República de Weimar. Em seu trabalho, a ressaca da Primeira Guerra Mundial e os perenes sentimentos de angústia, pessimismo e ansiedade conduzem a um progressivo sectarismo e isolamento da Academia alemã, que facilitará a adesão ao Nacional-socialismo por boa parte dos professores universitários a partir da ascensão de Hitler. Entretanto, ainda que esse momento trouxesse o declínio da influência desses mandarins sobre a sociedade alemã, não há dúvidas de que continuava a ser, entre ortodoxos e modernos, um grupo de letrados e eruditos de enorme prestígio. Herdeiros diretos do Iluminismo e do Idealismo alemão, formados por um rígido currículo e moldados na disciplina diletante, os acadêmicos alemães do período ganham reconhecimento do mundo inteiro.

Hannah Arendt é fruto dessa tradição. Com uma formação densa, pautada na erudição, no conhecimento da História e de vários idiomas, versada na tradição clássica que tanto irá influenciar seu trabalho, Arendt parece ter sido preparada por toda sua vida para o destino que a encontrou. Em seu caminho, errante e muitas vezes turbulento, entrou em contato com alguns dos maiores nomes da Academia do período pós-guerra, como Martin Heidegger, Karl Mannheim e, principalmente, Karl Jaspers, que viria a orientar sua tese de doutorado, O Conceito de Amor em Santo Agostinho (1997), e seria um interlocutor constante. Marcada pela fuga do nazismo e pelo exílio, tendo atuado como jornalista, ensaísta e professora, Hannah Arendt é conhecida pelos historiadores principalmente por suas obras Sobre a Revolução (2011), Eichmann em Jerusalém (1999) e Origens do Totalitarismo (2012), que é considerada seu Magnum Opus. A relação da autora com a História vai ainda além1 : ela utilizou constantemente conceitos históricos para discutir fenômenos políticos presentes e, em alguns de seus escritos, desenvolve a sua crítica da história monumental de Hegel e Marx, apontando para uma historiografia que deixa em aberto o espaço de eventos imprevisíveis e de contingência (“Todo aquele que, nas ciências históricas, acredita honestamente na causalidade, nega o objeto de estudo de sua própria ciência” [ARENDT, 2002, p. 50]). Mas foi mesmo com suas reflexões acerca do fenômeno totalitário que Arendt se tornou conhecida, primeiro nos Estados Unidos, onde se refugiara durante a guerra, depois no mundo.

Esse reconhecimento, entretanto, não foi imediato no meio acadêmico. De fato, como demonstra Kathryn Densberger (2008), até a década de 1980 eram poucos os estudiosos e as publicações que refletiam sobre sua obra, um panorama que começou a mudar na década seguinte, seguindo a publicação e alguns volumes de correspondências da autora, em particular suas cartas trocadas com Karl Jaspers (1992), Mary McCarthy (1995) e Martin Heidegger (1998). Isso despertou um novo interesse na obra da teórica em todas as áreas das Humanidades, que alcançou novo impulso a partir de 2002, com leituras e pesquisas voltadas à compreensão do fenômeno do terrorismo e da violência no campo público, e com as comemorações em torno do centenário de Arendt, em 2006.

Esse progressivo interesse pela obra de Hannah Arendt não ocorre sem críticas. Não são poucos os que a identificam como uma não acadêmica e não intelectual, para além daqueles que a ignoram solenemente após a rotularem como “liberal” – seja lá o que entendam com esse adjetivo. Arendt tem enfrentado, tanto em vida quanto após sua morte, críticas que abarcam não apenas as ironias feitas ao seu relatório Eichmann em Jerusalém (retratadas no filme de Margarethe Von Trotta, de 2012). Ela também é criticada por seu uso da polis grega como base de sustentação para sua argumentação, o que é apontado como uma suposta nostalgia conservadora ou um idealismo desapegado da realidade. Seu método também é alvo de censuras: sua teoria política carece de normatividade, de acordo com Seyla Benhabib (1996); sua escrita da História não apresenta a objetividade necessária, como aponta Eric Voegelin (1998); e a sua filosofia não tem rigor, de acordo com Axel Honneth (2014). Até mesmo sua representação do colonialismo europeu na África já foi acusada de eurocentrismo, quando não de racismo (KING; STONE, 2007).

Mas contra essas percepções críticas, a obra de Arendt vem ganhando espaço nas pesquisas e reflexões de acadêmicos nos últimos anos. A recepção de seus escritos tem a característica de ser naturalmente interdisciplinar, carregando consigo elementos da Teoria Política, da História e da Filosofia, abrindo novos campos e lançando novos olhares nas diferentes áreas das Humanidades. Arendt é uma pensadoraponte, ela facilita nossa inserção em terras vizinhas, mas cujo acesso nem sempre é tranquilo.

Também no Brasil, poucos foram os pensadores que ganharam a importância e que exerceram influência maior sobre as produções acadêmicas dos últimos anos que Hannah Arendt. A obra da filósofa alemã é uma referência constante nas reflexões e nos estudos brasileiros produzidos por especialistas das mais diversas áreas. Dentre os principais frutos que as sementes arendtianas geraram em Terra Brasilis encontramos trabalhos e pesquisas diversificados, desde as reflexões pioneiras de Celso Lafer (1979; 1988) passando por contribuições como a de Ricardo Benzaquen de Araújo (1988) e Eduardo Jardim (2007; 2011) até os recentes trabalhos de Edson Teles (2013), André Duarte (2000; 2010), Renata Schittino (2015) e Bethânia Assy (2008; 2015), entre muitos outros nas mais diversas áreas das Humanidades.

Tais esforços colocam a obra de Hannah Arendt no primeiro plano da produção brasileira, fornecendo uma estrutura de base fenomenológica para o pensamento da política e dos fenômenos políticos dos séculos XX e XXI. É no diálogo com Arendt, com seus conceitos de Autoritarismo, Totalitarismo, Liberdade, Ação, Política e, talvez sua contribuição mais disseminada, de Banalidade do Mal, que vários pesquisadores de primeira linha brasileiros encontram sustentação e inspiração para o desenvolvimento de seus próprios trabalhos.

Diante desse retrato, o presente dossiê busca apresentar um panorama da produção atual sobre e acerca da obra de Arendt, sendo dividido em duas partes: os primeiros quatro artigos, de autorias europeias, abordam temas e debates que demonstram exemplarmente as discussões mais atuais nos círculos arendtianos no velho continente; na segunda parte, os quatro artigos são de autoras latino-americanas, buscando apresentar uma amostra dos interesses e das apropriações da teoria arendtiana deste lado do Atlântico.

O texto que abre o dossiê é de autoria de Frauke Kurbacher, da Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Nele, a filósofa dá importante contribuição para o entendimento da faculdade do juízo e de sua relação com a ação e o pensamento de Arendt, buscando suas origens nas Críticas kantianas. É na dimensão estética do julgamento que Kurbacher encontra a base para o pensamento arendtiano – e também, por extensão, para o agir. O agir é também o objeto do segundo texto, de autoria de Alexey Salikov e Alexey Zhavoronkov, ligados à Universidade de Kaliningrado / FU-Berlin e à Academia Russa de Ciências / Universidade de Erfurt. Aqui, a proposta de análise recai sobre o texto Da Revolução, de Hannah Arendt, e sua aplicabilidade na arena pública moderna.

Os dois artigos seguintes se referem a um tema de extrema importância e de grande debate na Academia europeia nos últimos anos. A crise dos refugiados ganhou os noticiários no ano de 2015, quando grandes levas de imigrantes tentaram adentrar o continente e as imagens de suas perigosas travessias – e das mortes que ocorreram em decorrência – consternaram o mundo inteiro. Os refugiados, como nos ensina Arendt (2009), se encontram em uma zona cinzenta, sem amparo de leis nacionais, sem uma estrutura internacional que os proteja. Tornam-se, para os Estados nacionais, uma massa de incertezas. Sobre essa situação atípica – mas tão típica de nossos tempos – discorrem Vlasta Jalušič, do Peace Institute for Contemporary Social and Political Studies e da Universidade de Ljubljana, e Helgard Mahrd, da Universidade de Oslo.

A segunda parte do dossiê, formada por autoras latino-americanas, tem como carro-chefe o artigo de Claudia Hilb, da Universidade de Buenos Aires. Aqui as reflexões de Arendt servem de ponto de partida para uma incursão sobre a memória da ditadura militar argentina, com particular ênfase sobre os aspectos da responsabilidade, do perdão e do mal. A ditadura chilena e a memória do período pinochetista é o tema da contribuição de María José López Merino, da Universidade do Chile, que reflete sobre o princípio da violência e o conceito de Totalitarismo e suas aplicações ao caso chileno.

O dossiê conta ainda com duas contribuições importantes para as pesquisas arendtianas da América do Sul: a primeira é de autoria de Claudia PerroneMoisés e Laura Mascaro, ambas da Universidade de São Paulo, e gira em torno do lugar da palavra e da narrativa na (re)constituição da história, assim como suas implicações nos tribunais de crimes contra a humanidade. Suas considerações, apesar de centradas no caso de Eichmann e levando em consideração também o de Barbie, serve como ponto de reflexão para os casos das ditaduras do Conesul. A segunda contribuição é de Julia Smola, da Universidade Nacional de General Sarmiento, da Argentina, que traz uma reflexão sobre o livro Da Revolução e suas implicações e relações com a teoria da ação de Arendt. É particularmente interessante em uma leitura combinada com o texto de Salikove Zhavoronkov, observando-se as motivações e pontos de partida de cada uma das contribuições.

O fechamento do dossiê traz a inestimável contribuição de Adriano Correia, da Universidade Federal de Goiás, que apresenta suas considerações sobre o livro essencial de Bethânia Assy, Ética, Responsabilidade e Juízo em Hannah Arendt.

Boa leitura!

Nota

1Para uma reconstrução da concepção de história em Hannah Arendt, ver Schittino, 2015.

Referências

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e revolução: o integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

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______. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

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______. O conceito de amor em Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Instituto Piaget, 1997.

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ASSY, Bethânia. Hannah Arendt: An Ethics of Personal Responsibility. Berlin / Oxford / New York: Peter Lang, 2008.

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BENHABIB, Seyla. The Reluctant Modernism of Hannah Arendt. Lanhan: Rowman & Littlefield, 1996.

DENSBERGER, Kathryn. A History of the Reception of the Work of Hannah Arendt & Why It’s So Popular Now. Paper presented at the annual meeting of the American Sociological Association Annual Meeting. Sheraton Boston and the Boston Marriott Copley Place, Boston, MA, July 31, 2008. Disponível em: . Consultado em: 12 jul. 2017.

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JARDIM, Eduardo. A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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KING, Richard H.; STONE, Dan (Org.). Hannah Arendt and the Uses of History. New York: Berghahn, 2007.

LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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VOEGELIN, Eric. Hannah Arendt. In: Über den Totalitarismus: Texte Hannah Arendts aus den Jahren 1951 und 1953. Dresden: Hannah Arendt Institut für Totalitarismusforschung, 1998.

Wolfgang Heuer – Professor livre-docente no Instituto Otto-Suhr de Ciência Política da Freie Universität Berlin. É historiador e doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin. Entre suas principais publicações então os livros Hannah Arendt (Rowohlt, 1987), Citizen: Politische Integrität und politisches Handeln (Akademie, 1992), Couragiertes Handeln (zu Klampen, 2002) e a organização, com B. Heiter e S. Rosenmüller, do dicionário Arendt Handbuch: Leben – Werken – Wirkung (J. B. Metzler, 2011). E-mail: [email protected]

Vinícius Liebel – Historiador, doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin. Autor de Politische Karikaturen und die Grenzen des Humors und der Gewalt (Budrich, 2011) e Humor, Propaganda e Persuasão: As Charges na Propaganda Nazista – uma análise dos jornais Der Stürmer (Alemanha) e Deutscher Morgen (Brasil) (NEA, 2017). Pesquisador associado do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (Niej), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]


HEUER, Wolfgang; LIEBEL, Vinícius. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 3, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Hannah Arendt na história: da felicidade, da amizade e do amor / História – Questões & Debates / 2007

Hannah Arendt foi uma pensadora, cujas reflexões no campo da política e da filosofia a transformaram em uma importante figura no cenário da teoria política contemporânea.

Intelectual independente e solitária, por ter se mantido afastada de escolas acadêmicas, partidos políticos e linhas ideologias, a autora pertence ao pequeno grupo de pensadores que não se curvam diante dos poderosos e do pensamento único, que se mantém fiel a si mesmos e cuja obra expressa essa lealdade numa escala e abrangência maior. A atualidade e pertinência de suas análises acerca do efeito devastador da modernidade sobre a esfera do político e da liberdade nos regimes totalitários do século XX, transformaram suas obras em leitura obrigatória em diferentes áreas do conhecimento.

No campo da História, embora Hannah Arendt tenha conferido à disciplina um lugar privilegiado, dando visibilidade às coisas humanas, ao colocar o homem no centro de suas reflexões, seu pensamento ainda não foi devidamente explorado pelos pesquisadores dessa área. Nesse sentido, a aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, se constitui numa tarefa, ao mesmo tempo, instigante e desafiadora.

Os textos apresentados nesse dossiê da Revista História: Questões & Debates resultam das reflexões realizadas durante o Colóquio alusivo à comemoração do centenário de nascimento da autora, realizado em Curitiba, em maio de 2007, sob o patrocínio do Goethe Institut de Curitiba, da Associação Paranaense de História e do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

Dentre as diversas perspectivas a partir das quais pode-se ler a obra de Hannah Arendt, o evento, privilegiou os conceitos de amizade, a felicidade e o amor, procurando associar as percepções da autora sobre estes sentimentos a algumas experiências históricas.

Ao tratar de temas ligados à subjetividade, vistos, muitas vezes, com enorme reserva pelos cientistas sociais, quando manifestos no espaço público, a proposta do referido colóquio mostrou-se ousada e inovadora. Rompendo com a idéia de que os sentimentos, as sensibilidades e as paixões – quase sempre entendidos como sintoma de anomia social – são considerados como uma intromissão perigosa na ação coletiva, os palestrantes procuraram discorrer sobre momentos históricos em que os sentimentos promoveram relações de solidariedade e de pactos consensuados.

Coerentes com o pensamento de Hannah Arendt, para quem o pensar e o sentir são momentos éticos indivisíveis, os autores realizaram suas reflexões, procurando entender o passado, não como experiência morta, mas como experiências, exemplos singulares, plurais e coletivos, capazes de iluminar o presente num instante de perigo, como Arendt, inspirada em Walter Benjamin, entendia ser o ofício do historiador.

Renata Senna Garrafoni, no artigo Felicitas romanica, procura desconstruir a leitura moderna que se faz da felicidade quando se trata da Roma Antiga, destacando como, entre as camadas populares daquele período, à diferença de Sêneca e de outros clássicos, a felicidade era cultivada e valorizada na vida privada, manifestando-se enquanto amor erótico.

No texto O amor na política, Renato Augusto Carneiro Júnior orienta-se por uma historiografia dedicada aos sentimentos religiosos, ao refletir sobre a obra O conceito de amor em Santo Agostinho. A partir dessa obra, Carneiro Júnior identifica a oportunidade de analisar a existência humana e a importância do amor na relação do homem com o Criador e com a sociedade, de onde deriva a forma de pensar a política, segundo Hannah Arendt.

Inspirada no percurso do livro Rahel, Ana Paula Vosne Martins, cujo artigo intitula-se Da amizade entre homens e mulheres: cultura e sociabilidades nos salões iluministas, procura reconstruir a tradição dos salões como espaços culturais no qual as distâncias sociais e de gênero foram reduzidas em favor de uma sociabilidade marcada pela civilidade, diálogo, deferência e, sobretudo, amizade. Constituiu-se ali esferas públicas ímpares, heterossociais que, à diferença do que se supõe, muito antes do movimento feminista, aproximaram homens e mulheres em torno da arte, da política e do debate livre de idéias.

Incitada pelas sugestões teóricas propiciadas pelos estudos da “Vida Privada”, Marion Brepohl, em O enamoramento e a separação dos amantes, seleciona passagens do Denktagbuch, escrito por Arendt e organizado por Ursula Lutz, visando à compreensão do amor dos amantes segundo Hannah Arendt. Recusando o método de análise do gênero diário, Brepohl afirma que no caso específico deste livro, a autora não se propõe ao ato confessional de sua intimidade, mas uma reflexão sobre a própria intimidade, em tudo distante dos negócios públicos. Brepohl afirma ser aquela interpretação um legado de seu tempo: na metade do século XX, o amor dos amantes resultaria de uma relação entre iguais, o que fortalece, segundo o que também enfatiza Martins, a aparição no espaço público. E, em diálogo com Carneiro Júnior, observa ainda que, à diferença do amor Ágape e do amor Philia, o amor erótico é tão mais efêmero quanto for sua intensidade.

Finalmente, Wolfgang Heuer, com o artigo Amizade Política pelo cuidado com o mundo, perpassando diversas obras da autora, com ênfase para Human Condition e O que é política?, analisa o conceito arendtiano de amizade pública, percorrendo as três chamadas gerações perdidas do século XX na Europa e concluindo que a amizade política é a alternativa necessária para a ação. Como Garrafoni, recua à sociedade greco-romana, momento em que Aristóteles propôs a amizade como concórdia em favor da comunidade. Momentos raros, sem dúvida, mas que, em virtude de sua excepcionalidade mesma, assumem um caráter exemplar.

Além dos textos que compõem o dossiê, essa edição traz ainda um conjunto de quatro artigos, cujas inquietações apontam para a reflexão acerca de conceitos ligados à intolerância, à memória, às representações e à interdisciplinaridade.

O primeiro deles, de autoria de Nádia Reis, aborda o neointegralismo, baseado no reavivamento de antigas concepções de mundo e de organização da sociedade do movimento integralista dos anos 30 no Brasil.

Na seqüência, o texto de Nádia Maria Weber Santos, tem como objetivo legitimar o uso da literatura como fonte histórica e traçar algumas das inter-relações possíveis entre Literatura e História.

Já a reflexão realizada por Leandro Duarte Rust, destacando a representação de tempo como objeto de estudo das dimensões e alcances históricos, busca problematizar o processo de institucionalização do papado medieval entre os séculos XI e XIII.

O artigo de André Fabiano Voigt revisita um clássico nos estudos sobre migrações, aculturação e assimilação, realizando novas propostas de interpretação dos temas concernentes a este campo historiográfico, ao analisar a obra de Emílio Willems.

Encerra o volume, a resenha escrita por Ximena Alvarez sobre a obra de Hannah Arendt Responsabilidade e julgamento. Trazendo indagações sobre a ética moral, a responsabilidade civil, coletivas e as culpas entorno ao silêncio, a obra constitui uma das coletâneas organizadas com os últimos textos escritos da filósofa antes da sua morte, em dezembro de 1975.

Por fim, gostaríamos de destacar que esse dossiê, além de buscar uma aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, cumpre importante papel no sentido de lembrar que “mesmo em tempos mais sombrios, temos o direito a esperar por alguma iluminação”.

Claudia Roemmelt – Diretora do Goethe Institut de Curitiba.

Roseli Boschilia – Presidente da Associação Paranaense de História.


ROEMMELT, Claudia; BOSCHILIA, Roseli. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.46, n.1, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]

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