Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia – FEITOSA (AN)

FEITOSA, Lourdes Conde. Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. 168p. Resenha de: SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Anos 90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.361-364, 2006.

Herdeiros da tradição judaico-cristã recebemos a informação primeira de que o sentido da existência humana nos era dado por intermédio do Verbo Divino. Assim, aprendemos com os livros bíblicos o quanto a realidade poderia ser explicada pela palavra.

Então, sob a luz de teorias teológicas, inicia-se a disseminação da teoria hermenêutica, centrada em análises sintáticas e etimológicas, a fim de tornar o texto bíblico mais racional, leia-se, mais científico. Tal processo consumiu séculos de nossa história ensinando-nos a pensar a realidade a partir da escrita literária, empregando imagens apenas como ilustrações embelezadoras das edições.

Somente nas primeiras décadas do século XX, estudos de semiótica e de semiologia contribuíram para o deslocamento de nosso olhar, conformado ao que Derrida chamou de logocentrismo, para enxergarmos a colaboração da produção imagética. Com isso, despertamos para a possibilidade de interpretação dos valores sociais e do contexto histórico representados em inscrições parietais ou em relevos, pinturas em cerâmicas, estátuas e estatuetas, etc.

Nesse sentido, no livro Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, resultado de um longo trabalho de pesquisa de doutoramento, com dados recolhidos em várias bibliotecas do Brasil e do exterior, e ainda de visitas aos sítios de Pompéia, Lourdes Conde Feitosa dedica-se ao estudo crítico sobre as fontes materiais pompeianas, oferecendo ao leitor uma nova abordagem para as inscrições paradoxalmente preservadas pela grande erupção do Vesúvio em 79 d. C., e postas à tona somente no século XVIII.

A autora demonstra salutar ousadia em sua obra não apenas por trabalhar com um corpus pouco explorado pelos estudiosos, mas ainda por retirar análises criativas sobre a sexualidade popular em Pompéia. Outro aspecto interessante deste livro é a junção de fontes literárias com fontes materiais, sem que o entrelaçamento delas pareça complementar as informações apresentadas pela autora. Dividido em cinco capítulos, sua argumentação principia com o capítulo intitulado “Gênero, amor e sexualidade: olhares metodológicos”, em que Feitosa apresenta-nos um balanço historiográfico dos estudos realizados sobre gênero, amor e sexualidade.

Nesse capítulo, a autora questiona teorias e métodos selecionados pelos estudiosos, voltados para a leitura racional dos fatos, centrada na identificação da verdade histórica e, por esse motivo, geradora de uma narrativa histórica totalizante e unificadora. Assim, Feitosa afirma escrever uma “microhistória […] e destacar o heterogêneo, o local e o específico” (p. 24).

No segundo capítulo, denominado “Representações do amor e da sexualidade na literatura acadêmica”, a autora discorre sobre a complexidade semântica da palavra amor, que em sua definição, abarca sentimentos como affectus, dilectio, caritas e eros, como revelam os grafites pompeianos expressos em vocábulos ou em desenhos.

Feitosa delineia o quadro interpretativo dos estudiosos de tais expressões humanas, revelando insuficiências teóricas, constatando a predileção dos estudiosos por análises dirigidas às relações amorosas e sexuais aristocráticas. Nesse sentido, ao estudar as manifestações da sexualidade popular, a autora brinda-nos com uma nova safra de pensamentos descentrados do eixo habitual.

Reflexões sobre a antiga Pompéia Romana constituem a tônica do terceiro capítulo denominado “Pompéia: edificações de um cenário histórico”. Com essa escolha metodológica, a autora remete-nos a aspectos interessantes da vida cotidiana em Pompéia, realçando elementos constituintes da estrutura social e econômica da cidade. Para tanto, Feitosa realiza uma minuciosa leitura das fontes materiais, epigráficas e literárias disponíveis, relatando as particularidades das representações imagéticas dos grafites ou graphio inscripta pompeianos, uma vez que as inscrições podem ser vistas em quase todos os locais públicos e privados da cidade, ou seja, onde havia paredes.

Após a contextualização socioeconômica da sociedade pompeiana, realizada no terceiro capítulo, a autora aponta seus desdobramentos na vida cotidiana de Pompéia, cujas particularidades das práticas populares compõem a temática desenvolvida no capítulo seguinte, nomeado “A expressão popular nos grafites”.

Para distinguir o aristocrata do popular, a autora pautou-se nos conceitos de honestiores e humiliores, recorrentes na literatura latina. Feitosa salienta a origem e a significação social variadas desses vocábulos; em suas palavras: “A tradução literal de honestus (honor – honra, respeito) corresponde aquele que é ‘honrado’, ‘virtuoso’, ‘nobre’, e humilis, ‘o que está no chão’ (humus), ‘o de baixa condição’, ‘o comum’, ‘o modesto’; mas o interessante a ser observado é a conotação adquirida segundo o lugar em que é usado” (p.75).

Encerrando seu percurso, a autora apresenta as inscrições parietais dos populares no quinto capítulo de seu livro, o qual intitulou de “Amor e sexualidade em inscrições parietais”. A autora versa a respeito das constantes inscrições populares sobre suas venturas e desventuras amorosas; como pôde observar durante sua pesquisa nos sítios de Pompéia, Feitosa conclui: “O tema amoroso fazia parte das preocupações cotidianas desses ‘grafiteiros’ e é por meio de suas referências sexo-afetivas que penso na composição do feminino e do masculino, em uma articulação de gênero.

Para essa análise selecionei duas práticas sexuais que, em seu âmago, estão relacionadas à sexualidade masculina e à feminina: a ação de futuere [ter relação sexual com] e de cunnum lingere [praticar a cunilíngua]” (p. 97-98).

Não apenas no último capítulo de seu trabalho, mas ao longo de todas as páginas, Feitosa manifesta sua preocupação com a sexualidade humana. Portanto, o livro Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, de Lourdes Conde Feitosa, representa tanto um movimento de sedimentação dos estudos clássicos no Brasil como a inserção, no mundo das idéias, de um pensamento holístico no tocante à sexualidade dos antigos romanos. Mais um aspecto interessante de seu texto é o tratamento dado à sua temática: a sexualidade dos populares, esquivando-se de análises limitadas pelo olhar moralista bem como de repetições analíticas pautadas em relatos de Plínio, o jovem ou de Tácito, fazendo emergir relatos diversificados e contraditórios sobre a vida cotidiana em Pompéia.

Maria Aparecida Oliveira Silva – Doutoranda em História Social – FFLCH/USP. Bolsista Fapesp. Anos 90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.361-364, 2006.

Acessar publicação original

[IF]