Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964 | Maria Luiza Tucci Carneiro

Maria Luiza Tucci Carneiro Imagem Mosaico na TV
Maria Luiza Tucci Carneiro | Imagem: Mosaico na TV

O livro “Impressos Subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964” foi escrito pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançado em 2020. A obra, que possui 212 páginas, possui as seguintes seções (todas escritas pela autora): Preâmbulo; introdução; capítulo 1 “Os impressos no mundo da sedição”; capítulo 2 “Na trilha do impresso político”; capítulo 3 “A arte de imprimir e protestar”; capítulo 4 “Artistas de protesto”; capítulo 5 “Panfletos Irreverentes”; Considerações Finais; Fontes; Bibliografia e Iconografia.

A autora fez toda a sua formação em história pela USP, tendo defendido a tese de título “O Anti-semitismo na Era Vargas: Fantasmas de uma geração (1930-1945)” e a tese livre docente “Cidadão do Mundo. O Brasil diante da questão dos judeus refugiados do nazi-fascismo (1933-1950)”. Carneiro atualmente é professora sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Em sua carreira, têm realizado projetos e atividades junto de diferentes instituições, como a Associação Brasileira A Hebraica de São Paulo e o Arquivo do Estado de São Paulo. Sobre este arquivo, a historiadora já havia coordenado, junto de Boris Kossoy, um Projeto Integrado Arquivo/Universidade (PROIN) Leia Mais

Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922) | Ana Luíza Martins

A utilização de jornais e revistas como fontes no trabalho de pesquisa é algo corriqueiro no fazer historiográfico. Vez por outra recorremos a eles para verificar dados, analisar discursos, relacionar idéias dominantes de um período ou personagem que buscamos conhecer. Poucas vezes, no entanto, vemos esses veículos de comunicação no centro da cena. A busca dos significados de sua criação e dos detalhes de suas relações com a cultura e sociedade da época não é tratada com o rigor necessário, sendo subdimensionada na pesquisa.

A historiadora Ana Luíza Martins resolveu inverter essa lógica. Centrando foco na imprensa periódica das quatro primeiras décadas da República, através do estudo específico das revistas, a pesquisadora acabou compondo um verdadeiro painel da cultura e dos meios literários e jornalísticos paulistanos entre os anos de 1890 e 1922. O resultado pode ser conferido em Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922), produto de sua tese de doutorado na USP. Leia Mais

Rock cá/ rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985 | Paulo Gustavo da Encarnação

Bichos escrotos saiam dos esgotos

Bichos escrotos venham enfeitar […]

Bichos, saiam dos lixos

Baratas me deixem ver suas patas

Ratos entrem nos sapatos

Do cidadão civilizado

(TITÃS, 1986).

Nas favelas, no Senado

Sujeira pra todo lado

Ninguém respeita a Constituição

Mas todos acreditam no futuro da Nação

(LEGIÃO URBANA, 1987)

O primeiro fragmento citado compõe a letra da música “Bichos escrotos”, do álbum Cabeça Dinossauro da banda Titãs. Ainda que apresentada em shows desde o começo da década de 1980, a música foi gravada apenas em 1986. O motivo: a censura imposta no regime militar. Já o segundo excerto compõe o disco Que país é este, da banda Legião Urbana. Lançado no álbum de 1987, a música, igualmente intitulada “Que país é este”, rapidamente se transformou num hit da banda e embalou gerações. Ambas foram oficialmente lançadas nos anos iniciais do processo de redemocratização do Brasil. Contêm críticas profundas ao período e aos fundamentos da Nova República, denominação cunhada para tratar do período iniciado com o fim da ditadura militar (FERREIRA; DELGADO, 2018).

Elas foram (e são) entoadas por jovens de diferentes gerações como canções de protesto e contestação à ordem política vigente e à estrutura social. Embora trintonas, são extremamente atuais para pensarmos o cenário político brasileiro, as relações entre Executivo e Legislativo e, principalmente, as práticas políticas adotadas. Afinal, atualmente ainda sobram “bichos escrotos” que desrespeitam a Constituição, mas, apesar da dura realidade enfrentada pelo cidadão brasileiro, entoam fábulas encantadoras sobre o “futuro da Nação”.

Não obstante, as canções também possibilitam aprofundar a discussão acerca das complexas relações entre história, rock, mídia e política. E suscitam outras importantes indagações, tais como: O que é rock? É um gênero nacional ou estrangeiro? É popular ou elitista? É música de caráter alienante ou música de protesto? É expressão de posturas progressistas ou conservadoras? Como é comumente classificado por agentes do campo midiático?

Esses são alguns dos problemas argutamente debatidos pelo trabalho recém-publicado por Paulo Gustavo da Encarnação, doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e com estágio pós-doutoral realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Fruto da sua tese de doutorado, sob a orientação do professor doutor Áureo Busetto, e com estágio de pesquisa em Portugal, o historiador publicou o livro intitulado Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa (1970-1985).

A obra apresentada se inscreve no horizonte da chamada “história política renovada”, que, como formulado por René Rémond (1996), concebe a amplitude dos objetos enfocados pela história política. Toma o rock como objeto com potencial para o conhecimento de práticas políticas diversas e múltiplas dimensões da identidade coletiva — perspectiva que possibilita adentramos “terrenos que, mesmo aparentemente apresentados como paisagens desérticas e estéreis, são searas para serem trilhadas pelo historiador do contemporâneo” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32). O autor do livro observa a “relação rock/política como resultado de um feixe de relações sociais, cujos subsídios principais podem ser percebidos em discursos, nos comportamentos e, inclusive, nas aparentes ausências de elementos e ingredientes da política” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32).

Com tais preocupações, Paulo Gustavo da Encarnação procura demonstrar as proximidades entre o rock brasileiro e o lusitano entre as décadas de 1970 e 1980. Aponta semelhanças entre os países; por exemplo, os períodos de ditadura. Mas também cuida das particularidades. Munido de uma perspectiva comparativa, afasta-se de visões totalizantes, hegemônicas e uniformes para pensar os agentes e expedientes dos universos roqueiros brasileiro e português. Como bem lembrou Marc Bloch sobre o trabalho do historiador (2001, p. 112), “no final das contas, a crítica do testemunho apóia- se numa instintiva metafísica do semelhante e do dessemelhante, do Uno e do Múltiplo”.

Assim, o livro busca refletir comparativamente acerca das características do rock lusitano e do brasileiro. Para tanto, leva em conta parâmetros linguístico-poéticos e musicais na análise de canções com críticas sociais e políticas. Procura demonstrar como o gênero foi classificado, respectivamente, por agentes brasileiros e portugueses, ocupando-se especialmente das definições e dos estereótipos formulados pelos integrantes do universo midiático, assim como da constituição e atuação da crítica musical veiculada em cadernos jornalísticos específicos e/ou em revistas especializadas. Portanto, historiciza o rock e o modo como o gênero foi tomado pela imprensa nos universos brasileiro e português.

Com relação à imprensa, concebe as diferentes e, por vezes, antagônicas facetas que conferem existência a uma empresa midiática. Compreende o estatuto das suas fontes e explica, detalhadamente, os passos trilhados para a realização do estudo. Apresenta, por exemplo, o modo como constituiu quadros temáticos para realização da pesquisa documental e para o trabalho com a bibliografia — expediente que possibilitou estruturar uma narrativa fluente e pouco afeita apenas à exposição cronológica e linear dos fatos.

Com base nos dados obtidos em pesquisa documental de fôlego e a partir da consulta crítica e assertiva à ampla e diversificada bibliografia, o pesquisador expõe consistente tese sobre o tema:

O rock produzido em língua portuguesa, no Brasil e em Portugal, desde os anos 1950 vinha num processo de nacionalização que culminaria, a partir da década de 1970 e, com especial destaque, para os anos 1980, no denominado rock nacional. […] defendemos a tese de que o rock produzido durante o período de 1970-1985 expressou e lançou mensagens musicais e críticas políticas. Ele se tornou, por conseguinte, um catalisador e um difusor de anseios e visões de mundo de uma parcela da juventude que não estava disposta a ver suas expectativas com relação à vida cultural e à política encerradas nas dicotomias: nacional/ estrangeiro, popular/elitista, capitalismo/socialismo (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 25).

Além de fértil e sólida tese, o leitor terá a oportunidade de conhecer o trabalho de um pesquisador incansável que minerou e lapidou dados e elementos históricos. Ademais, o livro de Paulo Gustavo da Encarnação é leitura obrigatória para pesquisadores que apreciam a constituição de séries no trabalho de pesquisa documental, a organização do material e sua exposição numa narrativa envolvente, sem, contudo, renunciar ao enfretamento de densas e qualificadas questões teórico-metodológicas. Ao longo dos quatro capítulos, o leitor terá a chance de conhecer a história do rock e, também, uma potente análise sobre as relações desse gênero musical com a mídia e a política no Brasil e em Portugal.

Se, por um lado, o trabalho de Paulo Gustavo nos ensina sobre um objeto específico e a operação do historiador num recorte temporal definido, comparando práticas em dois espaços distintos, por outro lado, chama atenção para a importância de entendermos o universo político para além das leituras simplistas sustentadas por visões duais e dicotômicas de mundo. Essa não seria, aliás, uma necessidade da nossa frágil democracia? Que a leitura de Rock cá, rock lá fomente a reflexão e o debate. E que os leitores experimentem mais do que visões binárias e esquemáticas de mundo. Afinal, como o autor colocou, o rock “é uma miscelânea de difícil definição”, mas como “posicionamentos que buscam criticar os pilares da sociedade”, expressando, “muitas vezes, elementos, mensagens e linguagem contestadoras” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 267-8).

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2018.

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucila de Almeida Neves (Org.). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016 – Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. v. 5.

LEGIÃO URBANA. Que país é este. In: LEGIÃO URBANA. Que país é este. Rio de Janeiro: EMI-Odeon Brasil, 1987. 1 áudio (2 min. 57).

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.

TITÃS. Bichos escrotos. In: TITÃS. Cabeça Dinossauro. Rio de Janeiro: Warner, 1986. 1 áudio (3 min. 17).

Edvaldo Correa Sotana – Mestre e doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis). Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: [email protected]


ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2018. Resenha de: SOTANA, Edvaldo Correa. Rock, mídia e política: história numa perspectiva comparada. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 24, p. 225-228, jul./dez., 2020.

Acessar publicação original [DR]

50 anos de feminismo – BLAY; AVELAR (REF)

BLAY Eva Foto Cecília Bastos 2018 USP Imagens jornal usp br
Eva Alterman Blay. Foto: Cecília Bastos/2018/USP Imagens. jornal.usp.br

BLAY e AVELAR 50 anos de feminismoBLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia. 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: EUSP, Fapesp, 2017. Resenha de: ALEIXO, Mariah Torres. Argentina, Brasil, Chile entre feminismos e os direitos das mulheres. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Em abril de 2017, a socióloga Eva Alterman Blay e a politóloga Lúcia Avelar publicaram1 a obra 50 anos de Feminismo: Argentina, Brasil, Chile: a construção das Mulheres como Atores Políticos e Democráticos. O livro é uma coletânea de artigos que transitam entre sociologia, ciência política, antropologia, demografia, comunicação e os ativismos feministas.

Embora o contexto político sul-americano recente indique retrocessos no que concerne às conquistas de direitos das mulheres, a publicação – ao fazer a genealogia e a problematização de mobilizações, conquistas e desafios feministas na Argentina, no Brasil e no Chile – mostra que há feminismo consolidado nesses países, induzindo pensar no caráter provisório de alguns recuos atuais. Nesse sentido, os feminismos, especialmente nesses países, não seguem um traçado evolutivo unilinear em direção ao progresso, mas seu percurso é espiralado, permeado de conquistas, derrotas e transformações. Leia Mais

Jinga de Angola/a rainha guerreira da África | Linda Heywood || Além do visível: poder/catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII) | Marina de Mello e Souza

É extremamente oportuno quando duas excelentes obras afins e complementares vêm a lume no mercado editorial brasileiro, quase no mesmo ano, o que revela um momento ímpar de historiografia internacionalizada e conectada. Ganha-se nos detalhes e em visão de conjunto. Uma obra de cada vez, porém. Leia Mais

A Ilustração (1884-1892): Circulação de Textos e Imagens entre Paris, Lisboa e Rio De Janeiro | Tania Regina de Luca

A Nova História Cultural tem proposto abordagens com foco na mediação e nas trocas culturais e simbólicas, ocorridas desde o século XVI até os dias atuais, entre a Europa e o continente americano, sobretudo na região do cone sul. Neste sentido está a obra A Ilustração (1884-1892): circulação de textos e imagens, entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro que expõe a intensa relação estabelecida entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro a partir do entendimento da difusão cultural cujo polo irradiador era a França, país mundialmente conhecido por manter refinados modos, costumes e progressos técnicos. O objetivo do livro é analisar sistematicamente o periódico e demonstrar a lógica da circulação através do Atlântico, além dos projetos culturais e políticos que envolveram a revista e seu principal responsável, Mariano Pina (1860-1899).

O estudo da publicação esteve circunscrito num projeto maior de pesquisa, intitulado “Circulação Transatlântica dos Impressos – a globalização da cultura no século XIX”, coordenado por Jean-Yves Mollier (Université Saint-Quentin Yvelines) e por Márcia Abreu (UNICAMP), com objetivo em investigar impressos que circularam entre Inglaterra, França, Portugal e Brasil no período de 1789 a 1914, recorte inspirado no clássico livro de Eric Hobsbawm (1917-2012), A Era dos Impérios (Editora Paz e Terra, 2012). O livro de Tania Regina de Luca (Unesp – Câmpus de Assis) abordou o periódico a partir da perspectiva de fonte e objeto, ou seja, as análises são realizadas levando em conta o aspecto diacrônico, que assenta o periódico na ótica da história da imprensa, e sincrônico, extraindo evidências e diálogos entre os agentes dos impressos e as publicações contemporâneas. Ademais, a mobilização de A Ilustração contribuiu ricamente para demonstrar novo e instigante modo de manuseio das fontes periódicas: ambos os eixos puderam ser vistos sob o ponto de vista transnacional, de forma a demonstrar como a revista estabeleceu relações culturais e econômicas com outras publicações do Brasil e de países europeus, ponto, aliás, destacado por Márcia Abreu no prefácio. Leia Mais

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) | Alain El Youssef

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) é resultado da dissertação de mestrado de Alain El Youssef, defendida em 2010, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. Na obra, o autor analisa como a temática do tráfico negreiro foi abordada nos periódicos do Rio de Janeiro desde o ano de 1822, marco da proclamação da independência do Brasil, até a década de 1850, quando houve a aprovação da Lei Eusébio de Queirós e o tráfico no Império brasileiro foi legalmente abolido. Ao eleger o tráfico negreiro e a escravidão nos periódicos como seu objeto de estudo, Youssef se contrapõe a autores da historiografia brasileira que postularam a ausência de debates relativos a esses temas na imprensa do Rio de Janeiro até a década de 1870 [1]. A obra é, portanto, historiograficamente, uma afirmação desta presença.

Além de constatar essa existência, o autor procura demonstrar como diferentes grupos políticos se utilizaram da imprensa, desde o Primeiro Reinado, como estratégia e instrumento para a formação de uma “opinião pública” sobre questões, entre outras matérias, relativas ao fim do tráfico negreiro para o Império do Brasil. Segundo Youssef, essa estratégia tinha como intuito “preparar o terreno” para a discussão pública de determinados temas que estavam ou entrariam em voga no parlamento imperial. Por outro lado, o autor busca evidenciar como esses mesmos grupos políticos recorriam ao argumento da “opinião pública” para legitimar suas pautas.

Neste sentido, são importantes para a construção do argumento de Youssef as categorias de espaço público e opinião pública, adotadas a partir das perspectivas de François-Xavier Guerra [2] e Marco Morel [3]. Aqui, a imprensa é vista como um espaço público na medida em que se constituía como um lugar no qual ocorriam interações de diversas naturezas entre agentes históricos. Por sua vez, a opinião pública é “tratada como um conceito que os coevos dos séculos XVIII e XIX utilizavam para legitimar suas práticas políticas, principalmente aquelas que visavam influir a administração pública” (p. 30).

Embora a imprensa não seja apresentada na obra enquanto uma espécie de partido propriamente dito, menos ainda nos termos empregados no século XXI, Youssef procura chamar a atenção dos leitores para a importância que os periódicos, muito dos quais explicitamente partidários, tiveram na propagação dos ideais de moderados, exaltados e restauradores, luzias e saquaremas, liberais e conservadores, na complexa conjuntura política imperial. No que se refere ao tráfico negreiro em específico, o autor procura demonstrar como a imprensa teve um papel de suma importância na consolidação da política do contrabando negreiro no Brasil, empreendida pelos conservadores.

Segundo o autor, com o avanço do regresso, os conservadores passaram a fazer uma intensa campanha de defesa da reabertura do comércio negreiro em periódicos, tanto apresentando as vantagens econômicas da continuidade do negócio como publicizando as propostas de reabertura do tráfico transatlântico apresentadas ao parlamento brasileiro. Assim, para Youssef, a imprensa funcionou como uma espécie de elo de comunicação entre os políticos e proprietários de escravos interessados na continuidade do comércio negreiro, dando uma poderosa contribuição ao fortalecimento do contrabando e, consequentemente, ao aumento das cifras relacionadas a essa atividade.

Sobre a política do contrabando negreiro, é explícito o diálogo de Alain El Youssef com a leitura feita sobre o fim do tráfico por Tâmis Parron em suas produções recentes. Em certa medida, o livro de Youssef é complementar à dissertação de mestrado de Parron, reformulada em livro com o título A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865) [4] em 2011. Ambos buscam analisar o fim do contrabando negreiro através da história política, a partir das perspectivas de segunda escravidão de Dale Tomich [5], e de economia-mundo/sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein [6], e procuram entender como os debates e interesses político-econômicos em torno da (des)continuidade do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil estavam inseridos dentro de um contexto maior de transformações socioeconômicas mundiais no período. Partindo de tantos pontos em comum, é principalmente nas fontes que Youssef e Parron tomam caminhos diferentes. Enquanto os discursos parlamentares são os principais documentos históricos empregados na análise da narrativa de Parron, Youssef constrói sua narrativa a partir dos periódicos cariocas – o que confere complementaridade às duas obras.

Por pensar seu objeto a partir de uma perspectiva ampliada, Youssef procura entender a imprensa (assim como o tráfico negreiro) dentro das transformações ocorridas no mercado e na sociedade mundial no período. Dessa maneira, o autor busca demonstrar como a expansão do capitalismo, a queda de monarquias absolutistas, as revoluções de independência no Novo Mundo e a reconfiguração das áreas fornecedoras de importantes commodities para o mercado mundial, entre outros fatores, também contribuíram para a difusão de novas (ou modernas) formas de sociabilidades, que passam a conviver com as do Antigo Regime. No caso da imprensa, essas transformações teriam oportunizado a proliferação de impressos, a abolição/diminuição da censura, o surgimento de espaços de leitura e sociabilização das ideias presentes nestes impressos, e, como consequência, possibilitado a emissão de julgamentos por parte do público aos acontecimentos a ele contemporâneos.

Em termos de leitura histórica, outra produção historiográfica cuja influência sobre o livro de Youssef é notável é O Tempo Saquarema, de Ilmar Mattos [7]. Obra de referência sobre a história do Brasil Império, publicada pela primeira vez em fins da década de 1980, O Tempo Saquarema aborda elementos centrais contidos no livro de Youssef, como a relação entre expansão cafeeira, formação de projeto político imperial centralizador, continuidade do tráfico negreiro e o papel político-econômico britânico neste contexto. No entanto, Youssef distancia-se de Mattos em dois aspectos centrais do seu trabalho, a imprensa e a pressão inglesa. Enquanto Mattos, na perspectiva gramsciana, entende como secundário o papel da imprensa e das organizações civis consideradas privadas na construção da coalização entre proprietários do centro-sul e o grupo conservador na política imperial, Youssef apresenta a imprensa como tendo um papel central neste processo. Segundo o autor, a imprensa foi uma das principais responsáveis para que essa aliança, assim como a política do contrabando negreiro, tenha alcançado êxito.

Sobre o papel britânico nesse contexto, enquanto para Mattos os interesses internos da classe dirigente são vistos como predominantes, embora a pressão externa não seja ignorada, Youssef atribui protagonismo à pressão externa sobre as decisões relativas ao tráfico negreiro adotadas pelo governo imperial. Para o autor, a intensificação da pressão britânica pelo fim do comércio negreiro para o Brasil em meados da década de 1840 – e, inclusive, a iminência de um conflito armado entre as duas nações – por exemplo, não deixou alternativas aos Saquaremas senão a defesa do fim do contrabando. O grupo retornaria aos periódicos para preparar o terreno, desta vez para a abolição do tráfico.

A respeito disso, observa-se que Youssef também se distancia de recentes produções historiográficas brasileiras sobre o fim do tráfico negreiro que, embora não desprezem a importância que a pressão britânica teve sobre os rumos tomados por esta atividade, têm repensado como outros fatores influenciaram o fim do comércio proibido de escravos [8]. O autor procura demonstrar que fatores como o haitianismo, para citar um dos aspectos apontados recentemente pela historiografia, que também é mencionado pelo autor, não teve grande peso sobre o fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil. Youssef avalia que o haitianismo foi utilizado na imprensa do Rio de Janeiro muito mais como argumento retórico do que como um temor real.

Na obra de Alain El Youssef, a imprensa é, ao mesmo tempo, fonte e objeto histórico, informações que o autor deixa explícitas já no princípio da obra. Sobre isso, nota-se que, ao adotar a imprensa também como objeto, o autor consegue ir além do texto publicado. Investigando, por exemplo, as vinculações partidárias dos editores dos periódicos que consultou, é capaz de acessar alguns dos interesses existentes por trás das notícias veiculadas. Assim, o autor não deixa de chamar atenção para o modo como parte da historiografia brasileira tem utilizado a imprensa. Ao analisar os periódicos pontualmente, muitas vezes sem levar em consideração as vinculações das publicações, a historiografia acaba por reproduzir um discurso enviesado. Neste sentido, chama a atenção para a necessidade de se observar o enviesamento existente nas publicações.

Ao fazer a leitura deste livro no ano de 2018, período indubitavelmente conturbado da política brasileira, não poderia deixar de mencionar a atualidade da obra. Através do livro de Youssef verificamos como o argumento político da “opinião pública” e a construção politicamente enviesada da “opinião pública” pela imprensa têm sido empregados ao longo do tempo para conformar os rumos da história do Brasil.

Notas

1. Cf. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SOUZA, Christiane Laidler de. Mentalidade escravista e abolicionismo entre os letrados da Corte (1808-1850). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.

2. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992.

3. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.

4. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

5. Cf. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

6. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world system: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Nova York: Academic Press, 1974. vol. 1. Idem. The capitalist world-economy. Nova York: Cambridge University Press, 1979. Idem. The modern world-system: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. Nova York: Academic Press, 1980. vol. 2.

7. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987.

8. Dentre as produções que repensaram o papel da pressão britânica destacamos os estudos de Sidney Chalhoub, Flávio Gomes, João José Reis, Jaime Rodrigues e Robert Slenes. Cf.: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, ed. rev. e ampl., 1ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 2000. SLENES, Robert. “Malungu, Ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, 1992.

Referências

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992.

KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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WALLERSTEIN, Immanuel. The capitalist world-economy. Nova York: Cambridge University Press, 1979.

WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. Nova York: Academic Press, 1980. vol. 2.

YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeiros; Fapesp, 2016.

Silvana Andrade dos Santos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Doutoranda, PPGH-UFF, bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]


YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2016. Resenha de: SANTOS, Silvana Andrade dos. Imprensa como partido: “opinião pública” e tráfico negreiro em periódicos cariocas. Almanack, Guarulhos, n.19, p. 331-337, maio/ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Com Som, Sem Som – Liberdade políticas, liberdades poéticas – VALENTE; PEREIRA (RTA)

VALENTE, Heloísa de A. Duarte; PEREIRA, Simone Luci. Com Som, Sem Som – Liberdades políticas, liberdades poéticas. São Paulo: Letra e Voz/FAPESP, 2016. Resenha de: MOREIRA, Lemos Moreira. Canções, Projetos e Expressões Políticas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.621-627, abr./jun., 2018.

Capaz de produzir sensações, presenças e despertar sentimentos, a música, entre suas várias possibilidades, é capaz de mobilizar indivíduos e grupos sociais. No Brasil, uma série de pesquisadores, como Marcos Napolitano (2002), Miriam Hermeto (2012) e Márcia Ramos de Oliveira (2002), pontuam a capacidade da música e da canção de não apenas representarem um período vivido, mas também como um caminho de reflexão sobre a opinião pública, a circulação de ideias e seu caráter de mobilização social. É nesse sentido que as pesquisadoras Heloísa de Araújo Duarte Valente1 e Simone Luci Pereira2 propuseram a organização da obra “Com Som! Sem som… Liberdade políticas, liberdade poéticas”, publicada em 2016, pela editora Letra e Voz e dividida em quatro partes.

Fruto de parte das reflexões do 10º Encontro Internacional de Música e Mídia (2014)3, o livro é a oitava publicação do Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid), o qual as organizadoras integram. Articulando pesquisas acadêmicas e relatos de experiência, a coletânea reúne pesquisadores/as que fizeram parte da programação do evento com outros/as convidados/as posteriormente, através de um objetivo em comum: refletir acerca das redes de produção e circulação de músicas ibero-americanas entre os séculos XX e XXI através de discussões que gravitassem em torno das relações entre música, mídia, repressão e liberdade.

A primeira parte do livro, Educação dos sentidos. O sentido de liberdade…, reune dois textos em torno da noção de liberdade. O primeiro deles, intitulado Arte, criatividade e vida do espírito: O que a liberdade de expressão tem a ver com isso?, é assinado pela pesquisadora Daphne Patai, conhecida principalmente por seus estudos na área de História Oral. Em seu texto, a autora faz uma breve reflexão sobre o status da 1 Doutora em Comunicação e Semiótica, Heloísa de Araújo Valente é especialista nas relações entre música, cultura e mídia em perspectiva interdisciplinar, articulando principalmente campos como a comunicação social, a semiótica da cultura e a música. Atualmente, é professora da UNIP, atuando no Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e é fundadora do Centro de Estudos em Música e Mídia.

2 Doutora em Ciências Sociais, com formação também na área de História, é especialista na área de música, comunicação e antropologia voltada especialmente aos estudos sobre práticas musicais-midiáticas. Atualmente é professora da UNIP, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e vice-coordenadora do Centro de estudos em Música e Mídia.

3 Os Encontros Internacionais de Música e Mídia são promovidos pelo MusiMid anualmente, reunindo pesquisadores e estudiosos dedicados às interfaces entre música e mídia nas mais distintas áreas do conhecimento. Para saber mais: <http://musimid.blogspot.com.br>.  liberdade de expressão na atualidade, tomando como base sua experiência docente. Defendendo a liberdade de expressão, a autora aponta novos grupos e modos de silenciamento desta questão a partir de estudantes que se sentem desconfortáveis em tratar de determinados assuntos. Na visão da autora, a liberdade de expressão teria passado por uma mudança de sentido. Se antes fora alvo de repressão, hoje seria alvo de vigilância por movimentos étnicos e de gênero, especialmente o feminismo, do qual a autora é estudiosa. Já o segundo texto, Tempo de tocar, tempo de cantar, tempo de calar, tempo de inventar: Notas a respeito do percurso da Educação Musical no Brasil, de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, propõe uma análise da história da educação musical no país partindo das relações entre múltiplos tempos e focos do ensino de música nas escolas. Sua abordagem visa, para além de relatar como o ensino foi sendo moldado e, em alguns casos, censurado, destacar a confluência de várias temporalidades no modo de ensinar música no final do século XX e início do XXI.

Intitulada Liberdades políticas e poéticas: A música brasileira, a segunda parte do livro reune três artigos que discutem não apenas a música nacional, mas que dialogam com o plano internacional e/ou global, tomando como fio condutor o universo das linguagens. Lina Noronha, autora de A música como linguagem e os conceitos de música universal e música nacional, discute as relações entre o conceito de música universal e música nacional partindo do pressuposto que a música, enquanto linguagem, não se limitaria apenas ao seu caráter linguístico, mesmo sendo constituída por determinados elementos deste. O foco principal da autora está em analisar a maneira como, no período do “culturalismo”, as representações simbólicas da música seriam fundamentais para compreensão de projetos nacionalistas desde romantismo alemão no século XIX.

Em O papel do compositor em debate na imprensa escrita: Brasil, décadas de 1920 a 1960, André Egg dá seguimento à discussão da linguagem musical relacionada a projetos nacionais, porém focando no caso dos compositores. Partindo da imprensa escrita, o autor afirma que mais do que debater a função do compositor, os veículos levantavam a problemática do que isso significava no cruzamento entre as expectativas políticas e as próprias demandas de construção de identidades nacionais em diferentes contextos. Egg parte da preocupação com a utilização de veículos midiáticos na compreensão das redes de sociabilidades do ramo musical brasileiro a partir do que poderíamos considerar como um estudo voltado à nova história política (SIRINELLI, 2003). Laan Barros segue as mesmas discussões sobre fontes “impressas” em Sambas de Adoniran em HQ: Narrativas transversais na cultura midiatizada, dando atenção especialmente às Histórias em Quadrinhos impressas e/ou digitais. Partindo da análise de discurso e das representações narrativas, este capítulo foca as questões estéticas de tais obras e seus desdobramentos na percepção inserida no contexto das apropriações e da elaboração de novas representações.

A terceira seção do livro, Liberdades políticas e poéticas ibero-americanas, pode ser considerada como a sua parte mais volumosa em número de textos – um total de cinco. Heloísa Valente abre a seção debatendo uma das principais abordagens da obra: O viés político da música, dando atenção ao gênero da canção de protesto. Em Grândola, Vila Morena, o povo unido jamais será vencido! A canção de protesto como memória midiática da cultura, Valente se propõe a pensar, a partir de canções dos compositores Sergio Ortega e José Afonso, a importância da música nos períodos de repressão de direitos e de tomada do poder no cenário das ditaduras Chilena e Portuguesa. A análise objetiva pensar de que maneira a canção de protesto, dotada por um forte poder evocativo, é incorporada à memória auxiliando na compreensão de emoções e sentimentos vividos em cada contexto em que ocorreria sua performance. Com foco semelhante, a etnomusicóloga Susana Sardo e o compositor José Mário Branco discutem a canção como dispositivo de militância ideológica em casos brasileiros e portugueses. Intitulado Canções mensageiras: A cumplicidade entre Brasil e Portugal na construção das democracias, o texto versa sobre diferentes composições que circularam, em ambos os países, em seus períodos ditatoriais e também durante sua redemocratização a partir de figuras como Chico Buarque, José Afonso e o próprio José Mário Branco. A especificidade deste texto, que o difere da abordagem de Valente, é centrar a análise em cantores que são compositores de suas canções, o que permitiria investigar uma intencionalidade própria manifestada na criação e articulação entre palavra e sonoridade.

Os três artigos seguintes abordam a música popular especialmente no Uruguai e na Argentina. Marita Bordolli, em seu texto Música Popular, migración, exilio, diáspora: uruguay en los siglos XX y XXI, discute as relações entre a música popular uruguaia e os movimentos migratórios, dando foco aos trânsitos culturais frutos dos processos migratórios e da diáspora. Propondo-se a pensar entre múltiplos marcos, pontuando questões desde o século XX, a autora chega até o contexto dos meios digitais, especialmente da web para pensar as músicas uruguaias e latino-americanas em grupos diaspóricos. Mercedes Liska, autora do capítulo Un comunista atípico: Osvaldo Pugliese, um caso paradigmático de censura musical en la Argentina del siglo XX, analisa a trajetória de Osvaldo Pugliese, um dos principais nomes do tango argentino, levantando os processos de censura ao compositor, que foi filiado ao Partido Comunista. Uma das principais contribuições do trabalho é pensar a repressão ao artista, não apenas durante a ditadura militar argentina (1960 e 1970), mas igualmente nas décadas de 1940 e 1950 – no governo populista conhecido como Peronismo.

O último texto da seção, Tecnologías del sonido más allá de la urbe, assinado por Miguel García, alia as temáticas dos dois artigos anteriores. Ao analisar as práticas musicais do povo Pilagá, desde a década de 1950 até a atualidade, o autor transita por conceitos como cena musical e performance, chegando a debater, por exemplo, o contexto da década de 1970 com o crescimento do chamado folklore evangelico. Além disso, García, ao aproximar seu recorte temporal da atualidade propõe que, para o povo Pilagá, a tecnologia tem sido vista como uma extensão da sua música e um espaço de experimentação.

Com som! Sem som… Memórias musicais, em primeira pessoa, última parte da obra, reune dois textos que aliam produção científica e relatos testemunhais. Alfonso Padilha narra sua trajetória durante a ditadura Chilena em La música en una cárcel de la dictadura chilena, especialmente refletindo sobre de que maneira o contexto ditatorial vivido por ele contribuiu para sua visão do potencial político da música. Participante de movimentos comunistas no Chile desde a juventude, e exilado na Finlândia em 1975, Padilla destaca, entre vários pontos, a presença da música dentro dos campos de concentração de presos políticos, criados muitas vezes em estádios de futebol chilenos. Segundo o autor, espaços desse tipo, diferentemente do que se poderia pensar, foram permeados de canções e expressões artísticas inclusive unindo as pessoas ali presas. O professor de composição Paulo C. Chagas, apresenta no texto Observar o inobservável: Música e tortura no oratório digital A geladeira um projeto encomendado pelo Centro Cultural de São Paulo e do Núcleo Hespérides em função dos 50 anos do golpe militar de 1965. Seu foco foi o de expressar a memória e experiência do próprio Paulo Chagas que, aos 17 anos, foi torturado no contexto da ditadura civil-militar brasileira. Em seu texto, o autor faz uma análise que busca demonstrar as relações semióticas entre música e denúncias de tortura ao apresentar a sua obra afirmando que a música tem o poder de tornar visível o invisível. De acordo com o autor, a intenção, com A geladeira, foi de dar visibilidade à tortura, porém reconhecendo que a mesma seja impossível de se observar.

De modo geral, os textos reunidos no livro Com som! Sem som…- Liberdade políticas, liberdades poéticas buscam trazer um panorama geral da música ibero-americana no final do século XX e início do XXI sob o viés político. Alguns de seus textos observam a canção de protesto, a música dentro dos movimentos sociais e denúncias contra regimes de opressão. Outros adotam perspectivas mais gerais, pensam a função política e social dos indivíduos e da música em sociedade, dando especialmente destaque aos papéis sociais de alguns grupos, como os compositores. Contudo, o que permeia a totalidade deste trabalho é sua contribuição polifônica entre música e mídia, especialmente na compreensão desta última como parte da própria construção de ritmos, carreiras e sujeitos artísticos. Deste modo, a canção não é interpretada na obra apenas como uma expressão de arte por ela mesma, mas que cantar/tocar/compor significa estar permeado por sujeitos, projetos e contextos que são também políticos.

Referências

HERMETO, M. Canção popular brasileira e ensino de história: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de. Uma Leitura Histórica da Produção de Lupcínio Rodrigues. Tese de Doutorado – UFRGS, 2002.

SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais. RÉMOND, René,. Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2003.

Igor Lemos Moreira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bolsista CAPES-DS. Florianópolis – SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana | Alexandre Almeida Marcussi

Logo no início da leitura, percebi que o livro tratava de uma problemática que eu já havia muitas vezes incluído em cursos e que adoraria ter dedicado maior atenção em alguma publicação. A simpatia foi quase imediata pela iniciativa de um jovem historiador em seu trabalho de Mestrado. Leitura mais do que recomendada a todos que se dedicam ao estudo das culturas africanas na diáspora. Leia Mais

Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos / Ludmila C. Abílio

O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões.

Vendo esses expressivos números, uma pergunta logo vem à baila: será que o crescimento do setor de perfumes e cosméticos no Brasil está sendo acompanhado no mesmo ritmo de melhorias salariais e de trabalho para os indivíduos que dele fazem parte?

Será que o negócio do SVD, que vem crescendo em ritmo galopante, tem realmente gerado lucros e benefícios para os revendedores, conforme divulgam amplamente as empresas que operam nesse sistema? O recente livro de Ludmila Costhek Abílio aponta que não.Escolhendo como objeto de estudo uma das mais importantes empresas de cosméticos do país, a Natura, a autora revela que a empresa tem conquistado lucros exorbitantes adotando uma “estratégia de negócios” que acarreta inúmeras condições adversas para quem está na ponta –baixa remuneração, informalidade, indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, instabilidade, precariedade, exploração do trabalho, flexibilidade, adoecimento, sofrimento, falta de reconhecimento etc. Ludmila tira a maquiagem da Natura e revela que o SVD dessa empresa é uma atividade que, sob o amparo legal, tem a aparência de um “não trabalho”, mas que, na prática, tem a concretude de um trabalho pesado, precário, extremamente extenuante, ausente de normas e de vínculos empregatícios reconhecidos, e o mais grave: “não pago”.

A pesquisa de Ludmila desnuda friamente a “contradição” que permeia a relação entre a Natura e as revendedoras: de um lado, a “visibilidade” da marca; de outro, a condição “invisível” das consultoras, que estão em toda parte, mas que não têm o trabalho reconhecido, nem visto como tal. Em outras palavras, o que fica visível na relação entre a Natura e o seu exército de um milhão de revendedoras (menos de 5% dos consultores são homens) é que muito embora essas mulheres não sejam reconhecidas como trabalhadoras pela empresa, a verdade é que sem elas os atuais lucros da Natura não existiriam. A Natura conseguiria manter o mesmo valor de mercado e a sua alta margem de lucro se assalariassem um milhão de revendedoras com direitos e garantias trabalhistas? A resposta de Ludmila Abílio é, obviamente, um “não”,pois a acumulação,o sucesso comercial e os lucros galopantes da Natura advêm justamente da exploração do trabalho, da flexibilização, da extração de valor do excedente, da informalidade, ou seja, do duro trabalho “não pago” às revendedoras.

Na primeira parte da obra, Ludmila realizou um fecundo panorama sobre os perfis socioeconômicos das “profissionais” e a relação que elas mantinham com as vendas. Para atingir o seu objetivo, a autora realizou entrevistas com consultoras das mais variadas regiões e posições sociais. Ao longo da pesquisa, Ludmila percebeu que o perfil socioeconômico das revendedoras é bastante heterogêneo, englobando estratos da classe baixa, média e alta. Ludmila apontou que as pessoas de baixa renda formam a maioria das empregadas no ramo do SVD. E o motivo não é difícil de entender. Deve-se, grosso modo, à voracidade do capitalismo que aumenta cotidianamente a fileira dos desempregados e tende a puxar para baixo o poder de compra dos mais pobres. A Natura se apresenta para muitos indivíduos como uma verdadeira “tábua de salvação”. Para as mulheres que estão empregadas no trabalho formal (domésticas, faxineiras e babás, por exemplo), a Natura é tida como um complemento de renda; já para as centenas de desempregadas, ela é vista como a única fonte de renda. O que se revela surpreendente no estudo de Ludmila é que as revendedoras de baixa renda são as que amargam, no geral, tanto os “menores lucros” como os “maiores prejuízos” decorrentes dos altos índices de inadimplência. Aqui, cabe advertir que a Natura repassa para as revendedoras todos os riscos (de estocagem e de inadimplência) envolvidos na atividade.

Assim como a população pobre, a classe média também não é homogênea. Em relação à venda dos produtos, Ludmila dividiu a classe média em dois grupos. O primeiro é constituído por mulheres que fazem das vendas sua ocupação e principal fonte de renda. São mulheres que empregam vários dias da semana e horas do dia para a venda de Natura. São mulheres que trabalham duramente para subir no ranqueamento da empresa e, assim, serem premiadas com viagens, troféus, bijuterias, cosméticos etc. As entrevistas de Ludmila revelaram que, de uma maneira geral, esse grupo é formado por mulheres que largaram sua profissão para se dedicar exclusivamente à Natura. O que torna trágico para essas mulheres é o fato de que se antes a atividade gerava um razoável lucro, hoje, devido ao aumento do número de revendedoras, muitas se arrependem de terem largado o trabalho formal.

O segundo grupo de vendedoras no interior da classe média é constituído por mulheres que não apresentam a venda dos produtos da Natura como a sua principal fonte de renda. De acordo Ludmila Abílio, 70% das revendedoras da Natura têm outra atividade principal. O que, na realidade, significa horas de trabalho para além de sua própria jornada, a banalização do “trabalho para além do trabalho”. Nesse grupo estão incluídas centenas de mulheres que vendem os produtos em seus locais formais de trabalho, mas sem maiores pretensões salariais e de carreira dentro da Natura. São mulheres, portanto, que optaram por uma dupla (ou tripla?) jornada –trabalho fora de casa, trabalho de dona de casa e venda dos produtos –, combinando a venda dos produtos com outras atividades. A existência de trabalho formal e estável possibilita queas vendas dessas consultoras sejam mais estáveis e rentáveis com pequeno índice de inadimplência. De modo geral, essas mulheres, que já detém uma profissão, não procuram se qualificar como “vendedoras” da Natura. Preferem preservar a identidade de sua ocupação principal, de seu trabalho formal. As vendas aparecem para esse estrato de mulheres como passatempo ou como uma oportunidade para consumir produtos por um preço menor, apagando-se, assim, todo o complexo e cruel processo de vendas envolto.

Além de expandir seu mercado consumidor e trabalhador para as classes baixas e médias, a Natura também alcançou estratos da elite. Há poucos anos, criou o “setor Crystal” para congregar consumidoras e vendedoras de altas rendas. Este setor funciona de forma diferente dos demais. Ao invés de 500 a 800 consultoras por cidades, a Natura destina, em média, 40 apenas por área. As consultoras são mulheres jovens, de nível superior, que vêm da elite ou circulam por ela. O ingresso ao seleto grupo se dá por meio de convites.Geralmente, a venda dos produtos não ocorre por meio do catálogo, mas através de reuniões e festas organizadas pelas vendedoras. Mas, por que mulheres de alta renda procuram essa atividade? As respostas, obviamente, são diversas: para terem maior “independência financeira”; preencherem o tempo; aumentarem o círculo de amizade com as pessoas da mesma posição social; ou até mesmo porque acreditam nos valores da empresa, sua filosofia vinculada ao capitalismo verde, que cultua a “sustentabilidade” e se apresenta como “politicamente correta”. Para muitas pessoas, a Natura representa a prova do “Brasil que dá certo!”. A análise de Ludmila Abílio em relação ao comportamento das vendedoras dessa classe social é mordaz: embora não se sintam “trabalhadoras”, todas as ações envolvidas no processo de venda dos produtos levam essas socialitesdesempenharem exatamente a mesma atividade pela qual as suas empregadas domésticas recorrem para complementar a renda familiar.

Na primeira parte do livro também foram trabalhadas outras questões que atingem as revendedoras da Natura, independentemente de sua posição social. A principal delas é que as consultoras raramente sabiam identificar quanto ganhavam por seu trabalho, quanto gastavam (“investiam”) com a compra dos produtos ouquanto tempo dedicavam à atividade. No geral, as contas feitas pelas revendedoras se mostravam complicadas e confusas, pois misturavam a venda dos produtos com o consumo próprio–que, surpreendentemente, se revelou, através da pesquisa, altamente excessivo, para não dizer desnecessário. E esse consumo supérfluo tem uma explicação simples: as vendedoras da Natura são constantemente envolvidas a se tornarem elas mesmas propaganda da marca. Cabe ressaltar que, além de incentivar as vendedoras a se constituírem em vitrines vivas dos artigos que vendem (na verdade, agentes não pagas pelo marketing que realizam), o estímulo da Natura ao consumo também se dá por meio de “pontuação”, com a qual a empresa encoraja as mulheres a “investirem” em maciços estoques de produtos que, na maioria, não são vendidos. Essas mulheres se constituem, assim, no dizer de Ludmila Abílio, em “trabalhadoras-consumidoras”, à medida que trabalham para consumir e consomem para trabalhar. Vale enfatizar que o trabalho de Ludmila –embora trate da relação e da situação de trabalho de um conjunto de mulheres numa empresa específica, a Natura –não deve ser entendido como mais um “estudo de caso”. O seu trabalho extrapola em muito essa definição. E este é justamente o brilhantismo da obra, quea fez ser a vencedora, em 2013, do prêmio Mundos do Trabalho, da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Na segunda parte da obra, Ludmila demonstrou claramente que a exploração econômica envolvida no SVD não ocorre de maneira acidental ou por acaso. A exploração faz parte da própria “gestão de negócios” das empresas desse ramo. Elas acumulam capital através da extração de valor do excedente, ou seja, acumulam capital através do duro trabalho (“não pago”) de seus próprios vendedores.  Ludmila, ao tratar do caso específico da Natura, a insere nesse contexto mais amplo de exploração e precarização do trabalho que caracteriza hoje as políticas neoliberais. Ou seja, a autora parte do trabalho invisível, não reconhecido de mais de um milhão de mulheres para pensar na relação deste com a acumulação da Natura. A enorme disparidade entre o lucro da empresa e a “riqueza distribuída” para as consultoras fica visível, por exemplo, nos relatórios anuais da Natura. No Brasil, a receita líquida da Natura em 2014 foi de R$ 7,640 bilhões e o lucro líquido de R$ 732,8 milhões. No ranking das marcas mais valiosas em 2014, a Natura ficou em sexto lugar, superando, inclusive, a Petrobras. À frente da Natura estão apenas: Itaú, Bradesco, Skol, Banco do Brasil e Brahma. Por outro lado, essa bonança financeira não é sentida pelas trabalhadoras. No Relatório Anual de 2013,por exemplo, a companhia apresentou o rendimento anual médio de R$ 4.138 para as vendedoras, o que correspondia ao ganho de R$ 345 por mês. Vale salientar que, como toda média, esses números são problemáticos, pois as vendedoras não vendem necessariamente da mesma forma, nem a mesma quantia todos os meses, além de que existirem mulheres que pagam mais do que ganham por causa do assíduo consumo dos produtos.

No começo dos anos 1990, no auge das políticas neoliberais, diversas pessoas passaram a pregar basicamente duas teses. A primeira advogava a “inevitabilidade” das terceirizações, flexibilizações e desregulações trabalhistas para garantir a sobrevivência do “mercado”. A segunda dizia respeito à primazia do imaterial e à perda de centralidade do trabalho. Mas será que houve, de fato, um “adeus ao trabalho”? Ludmila responde que não. Para autora, é um equívoco pensar na tese do “fim do trabalho”. À bem da verdade, os trabalhadores estão todos aí em nosso redor –motoboys; atendentes de telemarketing; assalariados dos fast food; trabalhadores dos hipermercados; terceirizados de toda ordem, entre outros. É só olhar para os países do Terceiro Mundo –onde se encontram 2/3 da população mundial que trabalha –que se encontrará milhões desses trabalhadores. O momento atual representa uma “mutação do trabalho”, mas não a sua eliminação.

Os trabalhadores de hoje estão inseridos numa “nova morfologia” do trabalho que reduziu o operariado industrial de base taylorista/fordista e ampliou, a partir da lógica da flexibilidade toyotizada, contingentes de terceirizados, subcontratados, temporários e precarizados. Esse “novo proletariado” não está mais, em sua maioria, na indústria, mas sim no setor de serviços. O trabalho desse “novo proletariado”, just in time, toyotizado, está cada vez mais precário, intensificado, flexível, instável, rotativo, baixo remunerado, informal, desregulado e ausente de normas e vínculos empregatícios reconhecidos. São pessoas que trabalham por mais tempo, mais intensamente e também em formas que muitas vezes não são reconhecidas ou contabilizadas como trabalho. Ludmila Abílio, ao procurar entender como mais de um milhão de mulheres se envolveram em um negócio pouco rentável, que demanda investimento monetário e tempo e que permeia tanto o tempo de trabalho como o tempo do lazer, traz uma importante contribuição para entender a história recente do trabalho, mais precisamente a “nova morfologia” do trabalho e o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutações que vem abalando o mundo produtivo do capital nas últimas décadas.

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014.

Rafael Leite Ferreira – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco(UFPE). Professor da Unibra -Centro Universitário Brasileiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0295848610110162. Email: [email protected]


ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014, 238p. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. O sistema de vendas diretas da Natura: O hiato entre a acumulação da empresa e a precarização do trabalho. Em Perspectiva. Fortaleza, v.4, n.1, p.275-280, 2018.Acessar publicação original [IF].

Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos | Ludmila Costhek Abílio

O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões. Leia Mais

Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana – MARCUSSI (RTA)

MARCUSSI, Alexandre Almeida. Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2016. 258p. Resenha de: PINHEIRO, Bruno. Caminhos e descaminhos do pensamento cultural na historiografia da diáspora africana. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.22, p.487-493, set./dez., 2017.

O livro Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana, de 2016, é resultado da dissertação de mestrado defendida em 2010 por Alexandre Almeida Marcussi, hoje professor de História da África na Universidade Federal de Minas Gerais. Nessa pesquisa, ele toma como objeto de análise os modelos interpretativos da Antropologia Cultural acerca do contato entre diferentes populações que se tornaram definidores dos debates sobre a ideia de cultura afro-americana na historiografia da diáspora. Nos quatro capítulos, Marcussi realiza, a partir de uma seleção de textos-chave publicados ao longo do século XX, uma genealogia dos conceitos popularizados nessa literatura, localizando os processos de continuidade e descontinuidade de suas operações lógicas e as contradições em seus usos.

No primeiro capítulo, As armadilhas da cultura, são apresentados os enunciados propostos por Franz Boas que permitiram a formação de uma concepção culturalista de intercâmbio cultural. É também avaliada a reelaboração desses argumentos nos estudos afro-americanos de Melville J. Herskovits, a partir da análise do ensaio O mito do passado negro (1941), e os limites de seus pressupostos, evidenciados a partir de seus debates com o sociólogo negro Edward Franklin Frazier. Para tal fim, Marcussi parte de um esquema produzido por Boas acerca das relações de contato nas quais elementos da cultura nativa passariam por processos simultâneos de permanência e mudança. Nessa relação, seria estável o “espírito” de cada povo, ideia associada a um sentido indivisível e imanente às culturas. Essa noção, frente à experiência histórica de cada contato, definiria o que seria passível de ser transformado, mediando a operação entendida por Boas como aculturação. Essa postura, ao mesmo tempo essencialista e historicizante, se apresenta na leitura de Marcussi como um importante alicerce das interpretações da cultura afro-americana, de modo que sua longa permanência se configura como um problema central do livro.

Na busca por entender os usos dos termos boasianos no estabelecimento dos Estudos Afro-Americanos, Marcussi analisa o livro O mito do passado negro de Herskovits. Esse texto foi uma resposta direta à ideologia dominante no debate acadêmico norte-americano daquele período, que sugeria que os negros dos Estados Unidos haviam abandonado sua herança cultural africana e se tornado, assim, sujeitos sem passado. O autor refuta essa hipótese, produzindo uma escala das diferentes relações das culturas afro-americanas com sua herança cultural, cujas balizas seriam a aculturação e a africanização. Um dado fundamental para classificar uma comunidade nessa gradação seria o contato entre negros e brancos em seu interior, de modo que, quanto mais concentrados os indivíduos de ascendência africana, mais africanizada seria a comunidade. Enquanto essa razão numérica era produzida por circunstâncias históricas, as transformações determinadas pelo “espírito” ocorreriam ora na “aparência exterior” de sua manifestação, ora em suas “qualidades imanentes”. Marcussi entende esse esquema como uma reelaboração daquele produzido por Boas, sendo que, em Herskovits, permanência e mudança poderiam ser entendidas como imbricadas em um mesmo processo cultural, compondo formas intermediárias de aculturação.

A ideologia que O mito do passado negro buscava desarticular tinha adesão de intelectuais negros norte-americanos em sua época, sendo utilizada como forma de defesa frente a retórica ainda popular do evolucionismo, que associava esse passado à ideia de barbárie. Marcussi identifica o problema da assimilação das populações negras à sociedade estadunidense como questão central da disputa entre Frazier e Herskovits na década de 1940. Ao localizar as culturas afro-americanas como autóctones, resultantes da total desagregação das formas básicas de organização social reconhecidas pelas populações escravizadas, Frazier as opõe à ideia herskovitsiana de que um “espírito” africano guiaria as ações das comunidades negras americanas. A concepção culturalista de Herskovits, levada a seu limite, permitiria interpretar as ações dessas populações como guiadas por valores estranhos à cultura euroamericana, inviabilizando qualquer debate sobre integração.

Em seu segundo capítulo, Ambiguidades da crioulização, Marcussi avança três décadas para, a partir do ensaio O nascimento da cultura afro-americana (1973) dos antropólogos Sidney Mintz e Richard Price, analisar a incorporação do conceito de crioulização à tradição boasiana. Em sua retórica culturalista, a crioulização assume o lugar que era ocupado pela ideia de aculturação, ainda que ela não seja uma categoria expressa textualmente, apresentando-se apenas como uma operação lógica. Na medida em que, numa primeira leitura, essa substituição sugira uma descontinuidade, Marcussi a entende como uma tentativa de resolver determinadas limitações e contradições presentes nessa vertente teórica. Desse modo, os conceitos herskovitsianos são rearranjados, numa perspectiva a partir da qual as culturas afro-americanas possam ser entendidas como, simultaneamente, africanas e americanas, ainda que, em seu “espírito”, se mantenham essencialmente associadas à primeira filiação.

Na interpretação das culturas afro-americanas de Mintz e Price, sobrepoem-se dois modelos apresentados como complementares: o argumento demográfico, de origem culturalista, e o sociorrelacional, de matriz sociológica. No primeiro, os autores retomam a leitura de Herskovits sobre a proporção entre negros e brancos na determinação do nível de aculturação de uma comunidade, deslocando o foco para o grau de concentração de sujeitos de cada grupo étnico africano. No segundo, os autores propõem que os contextos institucionais, sejam eles sociais, políticos ou de parentesco, devam ser tomados como modeladores dos processos culturais. A presença dos conceitos culturalistas e sociológicos produz contradições internas no texto que são assumidas por Mintz e Price como necessárias frente à natureza dinâmica dos fenômenos culturais. Esse fato é identificado por Marcussi como um dos motivos centrais das polêmicas em torno da publicação.

No terceiro capítulo, O retorno à cultura, o autor trata da recepção de O nascimento da cultura afro-americana na historiografia da diáspora africana produzida a partir da década de 1980. Nas críticas realizadas a Mintz e Price por pesquisadores como John Thornthon (1992), Douglas Chambers (2001), Paul Lovejoy e David Trotman (2002) e James Sweet (2003), Marcussi evidencia um padrão no qual a interlocução é realizada a partir do vocabulário culturalista, ao passo que o argumento sociológico é minimizado ou desconsiderado. O antagonismo desses autores revela-se especialmente na ênfase dada aos processos de continuidade e descontinuidade no interior das culturas afro-americanas. Enquanto os dois antropólogos ressaltavam a criatividade dos africanos da diáspora em reinventar seus universos simbólicos em ambientes adversos, seus críticos valorizavam os modos de resistência que levaram os sujeitos à manutenção de suas culturas. Essas diferentes posturas são assinaladas por Marcussi como diretamente ligadas às filiações de cada um com os debates públicos em torno do racismo e dos movimentos negros. Em um texto publicado em 1999, Price respondeu a muitas das polêmicas geradas pelo ensaio de 1973, privilegiando a retórica culturalista. Marcussi interpreta essa como uma tendência da historiografia da diáspora africana, ressaltando o predomínio de concepções essencialistas de cultura em sua literatura recente.

No último capítulo, Afeto e ambivalência, Marcussi recua no tempo e retoma duas publicações de matriz boasiana, Contraponto cubano do tabaco e do açúcar (1940) de Fernando Ortiz e Casa grande e senzala (1933) de Gilberto Freyre. Neles, ele evidencia os usos da retórica culturalista pelos dois autores, e, a partir da aproximação com textos ligados ao pensamento pós-colonial, sintetiza soluções para as contradições dessa tradição teórica presentes nos estudos sobre a diáspora. Do primeiro, Marcussi examina o conceito de transculturação, proposto como alternativo a aculturação. Ela se diferencia ao prever, nas relações de contato, transformações nos dois sentidos, que Ortiz exemplifica numa narrativa pouco ortodoxa sobre a introdução do tabaco na Europa. Para o autor cubano, os sentidos da planta, ligados num primeiro momento à religiosidade ameríndia, teriam sido reimaginados frente ao julgo eclesiástico e, em seguida, ao desejo de intelectuais humanistas em transgredir a ordem cristã. Para Marcussi, a transculturação de Ortiz é guiada por relações de afeto identificadas como desejo e tentação. Ao abordar Casa Grande & Senzala, o argumento da mestiçagem realizado por Freyre é apresentado a partir da posição central assumida pelas relações sociais no interior do latifúndio escravista, que aproximariam os elementos antagônicos do Brasil colonial de modo que os potenciais conflitos originados pelas relações de desigualdade étnico-racial seriam apaziguados. No cerne dessa interpretação, estaria o intercurso sexual entre homens brancos e mulheres indígenas e negras, realizado muitas vezes de modo forçado. Esse seria definidor de uma estrutura de afetos que aproximam prazer e violência.

A partir do debate sobre os afetos em Ortiz e Freyre, Marcussi realiza aproximações improváveis com outros textos de autores ligados ao pensamento pós-colonial. Ao desejo violento descrito por Freyre, Marcussi aproxima as estruturas afetivas delineadas por Franz Fanon em Pele negra, máscaras brancas (1952), no qual são descritas as violências decorrentes das hierarquias raciais socialmente naturalizadas, presentes em relações interpessoais. Apesar de os dois autores assumirem atitudes diametralmente opostas frente ao fenômeno – Freyre o interpretando como a pedra de toque de um projeto nacional, e Fanon como um obstáculo para a emancipação de negros e brancos – ambos operam uma transposição dessa relação do foro íntimo ao plano da política. Marcussi associa essa lógica, entendida como metonímia de uma relação histórica de interdependência entre Europa e África, à análise dos processos coloniais realizada por Homi Bhabha em O Lugar da Cultura (1994). Em Bhabha, a cultura nesses contextos resultaria em um espaço comum em que as partes se redefiniriam mutuamente e constantemente, invalidando a ideia essencialista de cultura presente na tradição boasiana. Marcussi finaliza o capítulo conectando as pontas entre esses autores utilizando o trabalho de Robert Young, Desejo Colonial (1995). Young localiza nos debates públicos acerca das empreitadas coloniais europeias da segunda metade do século XIX uma centralidade dos atos sexuais compulsórios como mediadores de sua efetivação, prática defendida por Joseph Arthur de Gobineau, um dos principais teóricos do racialismo, em seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853). Desse modo, Marcussi insere ao debate das trocas culturais as especificidades próprias à condição de colonialidade.

Ao concentrar-se nas operações lógicas presentes nos textos, localizando-as apenas pontualmente acerca de seus contextos de produção e circulação, a análise de Marcussi é por vezes lacunar. Esse tipo de aproximação traria contribuições para se entenderem as assimetrias em relação aos contextos institucionais em que as publicações analisadas foram lidas, desvendando particularidades da produção de conhecimento sobre a diáspora africana. Apesar disso, Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana apresenta uma leitura bastante acurada da orientação culturalista nos estudos sobre o tema. Ao propor uma integração do pensamento pós-colonial a essas interpretações, ele apresenta um deslocamento salutar para as práticas historiográficas associadas às populações negras e as relações raciais.

Bruno Pinheiro – Doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Brasil. E-mail: [email protected].

Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner/literatura e a construção da nação sul-africana/1880-1902 | Raquel Gryszczenko Alves Gomes

Quais são os caminhos para o estudo de África para além da lusofonia? Existe espaço para a publicação e pesquisa de temas distantes dos países de língua portuguesa? A pergunta anteriormente enunciada revela não somente o itinerário dos estudos africanos no Brasil, como nos deixam pistas de leitura para o texto da historiadora Raquel Gomes. Leia Mais

Velas ao Mar – U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos | Mary Anne Junqueira

O livro de Mary Anne Junqueira, produto de sua tese de livre-docência no Departamento de História da Universidade de São Paulo, é um relato expressivo da U.S. Exploring Expedition (1838-1842) chefiada pelo capitão Charles Wilkes da Marinha norte-americana. Segundo a autora, esta viagem teve pouca repercussão nos anos subsequentes, fato que talvez explique a razão da restrita historiografia sobre esta empreitada. O motivo desse “esquecimento” poderia estar no caráter explosivo e violento de Wilkes para com sua tripulação, que teve que encarar uma corte marcial quando voltou aos Estados Unidos. Só a narrativa dos acontecimentos ligados aquela expedição vale a leitura do livro de Mary Anne Junqueira. Cabe registrar o ótimo capítulo que explora a vida dos marinheiros a bordo, ricamente ilustrado, dando voz a um setor comumente negligenciado pelas narrativas históricas. Leia Mais

Um editor no império: Francisco de Paula Brito (1809-1861) | Rodrigo Camargo Godoi

Este retrato de corpo inteiro de Francisco de Paula Brito que Rodrigo Camargo de Godoi nos proporciona ilumina aspectos sociais, culturais e políticos da sociedade brasileira do século XIX. No bem-sucedido esforço de estabelecer a genealogia de Paula Brito, o livro recua ao século XVIII nos fornecendo informações relevantes sobre casamentos entre pessoas livres de cor e sua inserção em determinado substrato da população por meio de suas ocupações: o avô, ourives e capitão; o pai, carpinteiro e senhor de pequeno engenho; o primo, livreiro e encadernador. Figuram também mulheres, como a bisavó escrava que ganhara a liberdade depois de ter tido um filho com seu senhor e que, aos 40 anos, vivia de “sua própria obra”. Se, nesse caso específico, não é clara a ocupação, o fato de ter sido alfabetizado pela irmã e de uma de suas filhas ter se tornado professora, inserem Paula Brito em um estrato social modesto no qual, como demonstra Godoi, havia plena consciência do papel da educação como estratégia de inserção no mundo, inclusive para as mulheres. Leia Mais

Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o movimento do custo de vida em São Paulo (1973-1982) | Thiago Nunes Monteiro

A emergência dos movimentos sociais diversos e de grande vitalidade é uma das dimensões históricas centrais da conjuntura das lutas de resistência à ditadura civil-militar e de redemocratização do país. Em um ambiente de efervescência, o período registra uma grande diversidade de movimentos e práticas urbanas que se configuram como dimensão fundamental do tecido político e social daquele tempo. Leia Mais

Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana – SPAGGIARI (T-RAA)

SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016, 452 p. Resenha de: AZEVEDO, Renan Giménez. Bola na várzea, sonho no campo: trajetórias de famílias esportivas da zona leste paulistana. Tessituras, v.4, n.2, p.141-145, jul./dez., 2016.

Resultado de sete anos em trabalho de campo realizado durante o mestrado e o doutorado, Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana, de Enrico Spaggiari, é uma etnografia urbana que descreve as relações de familiares, técnicos, agentes, e jovens futebolistas através de seus cotidianos varzeanos no Botafogo de Guaianases, agremiação futebolística da Zona Leste de São Paulo. O livro, publicado em 2016, é a versão mais elaborada da tese defendida dois anos antes para o doutoramento do autor no PPGAS da USP. Ao longo do livro, Spaggiari busca explicar a formação de um jovem futebolista, bem como suas relações com o esporte e a carreira profissional, da mesma forma que os garotos, ou “moleques”, expressam criativamente o “jogar bola”. Os vínculos criados pelos atores da etnografia criam redes que o autor chama de famílias esportivas, conceito elaborado através dos oito capítulos que compõem a etnografia.

A apresentação do campo vivenciado por Spaggiari é transposta para o livro em sua primeira parte, onde o autor dá voz aos interlocutores nas partidas de futebol, nos treinos, nos churrascos e outros acontecimentos da vida na várzea paulista, que ocorrem em escolinhas, campos, casas de familiares e bares. O primeiro capítulo aborda o tempo e o espaço nas narrativas daqueles que estão no cotidiano da várzea, cujas memórias alimentam tais relações nostálgicas – ainda que os informantes neguem tal sentimento. Partidas consideradas clássicas e disputas importantes são expostas com grande riqueza de detalhes. Outro aspecto abordado no capítulo, e ilustrado pelas lembranças relatadas, é a gentrificação e o avanço urbano e outras formas de transformações da cidade, de modo que futebol de várzea torna-se uma forma de resistência cultural, além de uma forma de vivenciar a cidade e os bairros onde ocorrem as partidas. O crescimento da urbanidade também é apresentado na introdução do livro, onde o autor relata o cotidiano em torno do canteiro de obras da Arena Corinthians em Itaquera, especialmente quando seu Josias, aposentado da construção civil, queixa-se dos futuros problemas imobiliários da região ao dizer que “Esse é o preço do progresso” (SPAGGIARI, 2016, p. 24).

No segundo capítulo, Spaggiari apresenta o Grêmio Botafogo de Guaianases, fundado em 1955, juntamente com a estrutura contemporânea do futebol de várzea em São Paulo. As questões financeiras vividas pelos clubes são abordadas, assim como os problemas como sede social e a posse de um campo. Os bares, que funcionam como bases provisórias, são palco de comemorações, disputas, reuniões e outros acontecimentos, tornando seus proprietários “ótimos informantes” para a etnografia.

A importância do calendário esportivo com as competições que envolvem o clube, especialmente a Copa Kaiser de Futebol Amador, é descrita pelos olhos de torcedores, jogadores, dirigentes e vendedores de bebidas presentes nas partidas. As relações entre futebol, samba e cerveja produzem uma sociedade futeboetílica, que envolve modos de beber e agir.

O terceiro capítulo descreve os impactos políticos do clube por meio da corrida eleitoral de 2010. Ao ver nos clubes de várzea a possibilidade de ascensão política, os candidatos criam redes com os dirigentes destas agremiações esportivas. Importante notar que tais relações revelam a projeção do clube para a cidade, seja por meio de competições, seja por meio da produção de jovens futebolistas no trabalho de base dos times.

A segunda parte do livro, dedicada às formações profissionais, inicia-se no quarto capítulo com Spaggiari descrevendo as cidades futebolísticas. Estas redes são construídas através da vivência do cotidiano varzeano por meio das competições e trânsitos pelos campos, escolinhas e clubes. Esta circulação faz parte do desenvolvimento do saber futebolístico que estimula a produção de profissionais. Outro aspecto importante do “rodar” a cidade é que isto aumenta a possibilidade de os jogadores serem vistos por olheiros, essencial para a profissionalização dos esportistas.

O conhecimento futebolístico e sua construção coletiva é o tema do quinto capítulo. A corporalidade como forma de aprendizagem, ou seja, olhando e repetindo os movimentos, é a forma por excelência do ensino esportivo. Enquanto um ambiente de “imposição compulsória da heteronormatividade” (SPAGGIARI, 2016, p. 231-232), o conhecimento varzeano também ensina momentos de provocações e demonstração de virilidade, desestimulando comportamentos considerados femininos e incitando atitudes “de homem”. As questões de gênero também são analisadas pelo autor, trazendo voz a uma jogadora que tem seu lugar questionado por pais de alunos. A ideia de cultura como habilidade, tomada de Ingold, permite a construção do “dom” futebolístico, aspecto importante para o ingresso profissional.

O sexto capítulo apresenta o projeto familiar para a profissionalização dos jovens futebolistas. Vislumbrando a possibilidade de ascensão profissional por meio do esporte e, assim, ajudar seus familiares, os garotos recebem apoio de seus parentes para alcançar tais objetivos. Spaggiari dá voz para pais e filhos que sacrificam tempo e recursos financeiros para materializar estes propósitos. O autor também mostra as disputas entre famílias e treinadores a respeito das escalações e métodos de ensino, mas também as integrações destes atores para a formação das casas futebolísticas, que são as relações entre pais, técnicos e professores criadas por meio das famílias esportivas.

A atuação dos agentes futebolísticos é dedicada no capítulo sete. Devido à legislação, especialmente por causa da Lei Pelé (9.615/98), a produção de jogadores e a assinatura de contratos tem ocorrido mais cedo para que os clubes evitem perdas financeiras por causa dos passes. Esta situação causa um desequilíbrio favorável para os clubes com maior poder aquisitivo, uma vez que podem bancar o passe de profissionais mais novos sem maiores preocupações. Neste ambiente, o agente esportivo atua para garantir a melhor carreira para o jovem futebolista de forma conjunta com a família esportiva, criando laços e investimentos em equipamentos. Enquanto o técnico da escolinha é voltado para a formação e educação, o agente esportivo é fator central para a profissionalização dos jogadores. Além destas relações familiares, os agentes entrevistados por Spaggiari falam da importância do “dom” quando buscam por novos talentos ao atuarem como olheiros.

O oitavo capítulo é dedicado às famílias esportivas, onde Spaggiari apresenta cinco trajetórias com gráficos ilustrando as relacionalidades (relatedness) dos atores. Ao buscar as bases teóricas em Carsten, o autor não segue um modelo apriorístico de família, mas sim busca elucidar as tessituras produzidas pelas trocas estabelecidas nestas redes de parentesco, “problematizando conceitos tradicionais de família com reflexões antropológicas contemporâneas” (SPAGGIARI, 2016, p. 371).

Esta etnografia apresenta aspectos importantes da vida urbana por meio do esporte. Enquanto uma forma de viver a cidade, o “jogar bola” também é uma manifestação nos jovens futebolistas e suas famílias esportivas da instituição que é o futebol no Brasil. Quando a “família joga bola”, ela se envolve com a formação esportiva profissional dos garotos e garotas da várzea. A face econômica também é abordada por Spaggiari ao trazer a crença do “dom”, este “algo que o jovem futebolista já carrega e que não é possível ensinar” (SPAGGIARI, 2016, p. 333). O autor ilustra como a produção de “pés-de-obra” tomam uma forma altamente monetizada. Neste ponto, cabe uma crítica sobre a forma que se trata o “dom” como uma mercadoria, passível de monetização, tratando os clubes e jogadores como clientes em uma linha de negociação (STRATHERN, 2010, p. 237). Um terceiro tema que está presente ao longo de toda a etnografia, por meio de toda a polifonia em termos cliffordianos (CLIFFORD, 2002), é a demonstração do futebol como uma forma de viver a cidade. Ao se apropriarem de campos, ao transitarem pelos ônibus, ao se deslocarem para as diversas competições, os jogadores, os técnicos, agentes, enfim, as famílias esportivas atuam na cidade e percebem ela como um palco para o futebol, para poder “jogar bola”.

Renan Giménez Azevedo

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A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822) | João Paulo Pimenta

A desagregação dos impérios espanhol e português é objeto de vastíssima bibliografia. Vinculado a esse assunto, a independência das colônias americanas é um dos temas de estudo marcado por uma infinidade de debates historiográficos importantes. No caso específico do Brasil, um desses importantes temas historiográficos refere-se à dicotomia continuidade/descontinuidade com o passado colonial. Outros pontos importantes relacionam-se com a problemática da manutenção da unidade e com o debate sobre a recolonização do Brasil. A historiografia é abrangente, e boa parte dessas discussões remete ao século XIX.

O livro de João Paulo Pimenta, A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822), é mais um trabalho importante que surge nesse vasto conjunto bibliográfico. O livro propõe uma mirada significativamente insinuante ao tratar esse momento histórico de uma perspectiva ampla, que insere diversos espaços e atores em um cenário maior de profundas redefinições. Esses espaços e atores são aqueles vinculados à “crise e dissolução do Império espanhol na América” e aos envolvidos diretamente na realidade luso-americana.

Pimenta procura estudar como a experiência hispano-americana condicionou a trajetória política dos sujeitos na América portuguesa num contexto mundial turbulento, marcado pela guerra na Europa e pela fragilização dos controles metropolitanos sobre as colônias americanas. Em seus termos,

as transformações políticas em curso na América espanhola durante a crise e dissolução do Antigo Regime constituíram um espaço de experiência para o universo político luso-americano, em grande medida responsável pelas condições gerais de projeção e consecução de horizontes de expectativas na América portuguesa, dos quais resultou um Brasil independente de Portugal, nacional, soberano, monárquico e escravista” (p. 31)

Nessa passagem, estão sublinhadas as duas categorias históricas concebidas por Reinhart Koselleck, a categoria de “espaço de experiência” e a de “horizonte de expectativas”. De fato, ao longo do livro, é possível notar grande unidade narrativa que demonstra como o universo de crise do império espanhol constituiu-se como um espaço de experiência para que os atores vinculados diretamente ao mundo luso-americano pudessem projetar um horizonte de expectativas para o império português. Em diversos momentos do livro, a associação é evidente, como, para citar apenas um exemplo, no caso da Revolução Pernambucana de 1817, quando a experiência hispano-americana explodiu internamente no espaço político luso-americano.

Organizado em quatro capítulos que seguem a lógica dos acontecimentos internacionais entre 1808 e 1822, Pimenta acompanha as vicissitudes que marcaram os impérios espanhol e português, ambos afetados diretamente pelo curso das guerras napoleônicas e por um ambiente revolucionário que facultava a mobilização e a propagação de ideias de transformação. A leitura do livro permite o entendimento de que o Brasil se inseria num contexto marcadamente revolucionário na qual a proximidade com os acontecimentos da América espanhola era determinante para a atuação dos sujeitos – fossem eles apoiadores da Corte joanina ou críticos dela.

No primeiro capítulo, intitulado “A América ibérica e a crise das monarquias (1808-1809)”, tem-se uma compreensão da situação crítica vivida por Portugal e Espanha e da aproximação das experiências desses dois países, que combatiam o mesmo inimigo. A integração econômica entre diversas partes do império português e a América hispânica, especialmente as relações comerciais com o Rio da Prata, e os acontecimentos revolucionários que se iniciam com a invasão napoleônica das metrópoles ibéricas oferecem as bases para a atuação da política externa da Corte joanina. Com o colapso das metrópoles ibéricas, Pimenta expõe as reações hostis na América espanhola ao novo governante francês e o surgimento de diversos projetos para enfrentar a crise, com ênfase para o “projeto carlotista”, que impulsionou disputas em diversos pontos do continente, como no Alto Peru (p. 74-75).

Esse primeiro capítulo apresenta passagens importantes que contextualizam a crise do início de século XIX na América e na Europa, com destaque para a ação da Grã-Bretanha, numa clara tentativa de inserir os acontecimentos americanos na chamda Era das Revoluções. O momento revolucionário fica evidente no fracasso do projeto carlotista incentivado pela Corte do Rio de Janeiro, que pretendia a fidelidade da América espanhola a um parente – Carlota Joaquina – do rei espanhol destronado. Nas palavras do autor, tal projeto

encontrava o mesmo obstáculo que qualquer outro encontraria: a impossibilidade de obtenção de uma unanimidade dentro de uma unidade em profunda crise de legitimidade e de representação política como era o Império espanhol, e que agora conhecia a explosão conflituosa de sua natural diversidade. Vimos como o ocaso dos tradicionais vínculos de coesão nacional fazia surgir dilemas e contradições sem solução, convertendo-se em revolucionário até mesmo aquilo que se pretendia conservador. Ao propor uma manutenção – que era ao mesmo tempo uma substituição – desses vínculos por meio da preservação da dinastia, o projeto carlotista tampouco escaparia a essas armadilhas. (p. 84)

O capítulo 2, “O Brasil e o início das revoluções hispano-americanas (1810-1813)”, apresenta a monarquia portuguesa já consolidada no Rio de Janeiro. Sua ideia central é simples. À medida que se aprofunda na América hispânica, a crise do colonialismo espanhol teria condicionado a política na América portuguesa. De acordo com Pimenta, foi crucial para o governo de D. João acompanhar de perto as notícias da parte convulsionada da América espanhola, especialmente porque, como já referido, os contatos entre uma parte e outra dos domínios ibéricos – muitos dos quais comerciais – eram frequentes, e o perigo de contágio, real. Uma vez mais, compreende-se por que o espaço de experiências das colônias espanholas constituiu-se como um horizonte de expectativas para a política joanina. Isso explicaria três elementos muito importantes abordados no capítulo. O primeiro diz respeito à intensa correspondência entre América e Europa travada pelas autoridades portuguesas. O segundo, à repercussão dos acontecimentos internacionais nos jornais que circulavam no Brasil, especialmente Gazeta do Rio de Janeiro, Idade do Ouro do Brasil e Correio Brasiliense. Por fim, à política interna do governo joanino como, por exemplo, os silêncios e lacunas nas notícias da Gazeta do Rio de Janeiro, a censura a periódicos e a perseguição feita pela Intendência Geral de Polícia do Rio de Janeiro aos franceses – inimigos naturais na Europa – e espanhóis – possíveis inimigos e vizinhos na América. Eles poderiam divulgar ideias perigosas e revolucionárias, segundo o ponto de vista das autoridades. Por isso, conclui Pimenta, “a situação dos domínios espanhóis claramente punha em xeque a própria possibilidade de sustentação da monarquia como regime político. O que notadamente não poderia deixar de dizer respeito ao Brasil, ainda mais porque tudo isso se passava em territórios a ele contíguos” (p. 186).

No terceiro capítulo, denominado “O Brasil e a restauração hispano-americana (1814-1819)”, tem-se um enfoque mais preciso na situação dos países ibéricos no contexto da nova ordem pós-napoleônica. O cenário de turbulência da América hispânica, marcada pela guerra civil – objeto de denúncia do Correio Brasiliense – e o acompanhamento e a atuação do governo de D. João frente à situação dramática dos vizinhos são dois pontos que o autor consegue muito bem correlacionar. Nesse contexto, as peças de um xadrez revolucionário se movimentam no tabuleiro do espaço Atlântico, tanto do lado de cá, na América, quanto do lado de lá, na Europa, com a nova ordem sendo construída a partir do Congresso de Viena. O difícil jogo de aproximação que se constrói entre os governos de Portugal e Espanha nesse contexto, a ameaça à segurança interna ao império português, as tensões geradas pelo governo de Buenos Aires e pela atuação de Artigas, a necessidade de proteção às fronteiras e a invasão da Província Oriental, tudo isso chama a atenção do leitor para a complexidade do quadro que se apresentava para o universo político português. Nesse sentido, cumpre destacar dois pontos: a caso da localidade de Marabitanas, às margens do rio Negro, na Amazônia, e a atuação de Lecor na Província Oriental. No que se refere ao primeiro ponto, destaca-se a proteção às fronteiras dos domínios portugueses em uma localidade distante do Rio de Janeiro. O aparente isolamento não esconde as intensas comunicações feitas pelo comandante do posto militar de Marabitanas, Pedro Miguel Ferreira Barreto, com o governador do Rio Negro, bem como a necessidade de negociações entre os portugueses nessa fronteira e os revolucionários na Venezuela. Com relação à Província Oriental, destaca-se o modo como atuou o militar Carlos Frederico Lecor na consolidação dos interesses portugueses na região sul do Brasil. Todo esse cenário de turbulências, guerra civil e ameaças de revolução preocupavam a Corte joanina, especialmente após o movimento revolucionário de 1817 em Pernambuco. Justificava-se, desse modo, o acompanhamento das transformações no mundo hispano-americano. Como escreve Pimenta, “o ano de 1817 agregou a um conhecido quadro de medos, tensões e descontentamentos um novo componente: a revolução, que agora se concretizava não somente na vizinhança, mas também no interior do Reino Unido, em Portugal e no Brasil”.

O momento crítico entre os anos de 1820 e 1822 é o assunto do último capítulo, “A Independência do Brasil e a América”. Esse capítulo representa uma continuidade com a tese central da pesquisa de Pimenta, qual seja, a de que a experiência da América espanhola conformou o universo político do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e também a experiência histórica dos partidários da independência do Brasil. Apesar disso, não houve uma determinação mecânica dos ritmos e caminhos entre o que ocorria nas independências da América hispânica e no Brasil. Nas palavras do autor, a experiência hispano-americana

desfrutará [no momento de crise final dos impérios ibéricos] de condições especialmente favoráveis de amplificação no mundo português, amadurecida e publicizada em proporções até então inéditas. Após ter introduzido, durante os anos anteriores, elementos determinantes para as modalidades desde então assumidas pelos projetos de futuro formulados no universo político luso-americano, essa experiência continuará a ser metabolizada no contexto vintista, para fazer despontar uma solução progressivamente hegemônica para a crise portuguesa, cuja perpetuação será o ‘motor’ da própria independência e constituição do Brasil como Estado autônomo, nacional e soberano.

A crise manifestada pela experiência hispano-americana e suas implicações para o universo político do Reino Unido se manifestará em diversos assuntos, como os debates acerca da permanência de D. João no Brasil e a incorporação da Província Cisplatina ao Reino Unido. A Revolução do Porto e a reunião das Cortes de Lisboa, episódios que acentuaram as diferenças entre os interesses portugueses e os do Brasil, são analisados de modo integrado ao quadro de ruptura definitiva que ocorria em diversos pontos da Américas espanhola. A crise apresenta aos brasileiros um leque de alternativas temerárias. Entre elas estavam a guerra civil – que no plano linguístico expressava-se pelos termos anarquia e revolução – e a independência.

Ao final da leitura, uma certeza. A de que é imprescindível inserir os acontecimentos ocorridos na América no quadro mais amplo da Era das Revoluções. Sem dúvida, as ocorrências estudadas por Pimenta podem ser classificadas como revolucionárias porque “tanto Portugal e Espanha quanto seus respectivos impérios ultramarinos integram uma mesma conjuntura política e econômica mundial, marcada pelo avanço do Império de Napoleão e sua subsequente submissão aos padrões reacionários legitimistas da Santa Aliança, bem como pela emergência da Grã-Bretanha na condição de potência hegemônica, alavancada pelo seu pioneirismo no desenvolvimento de padrões industriais de produção capitalista” (p. 462). A leitura do livro, sem dúvida, permite perceber essa perspectiva ampla.

Agregando valor aos grandes temas historiográficos sobre a independência do Brasil, o livro de João Paulo Pimenta será referência para qualquer estudo que revisite o processo de independência do Brasil quebrando as grades de ferro do nacionalismo metodológico.

Marco Aurélio dos Santos – Departamento de História da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]


PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil e a experiênciaamericana (1808-1822). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2015. Resenha de: SANTOS, Marco Aurélio dos. A independência das Américas na era das revoluções. Almanack, Guarulhos, n.12, p. 214-217, jan./abr., 2016.

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Jan Hus – cartas de um educador e seu legado imortal – AGUIAR (RBHE)

AGUIAR, T. B. Jan Hus – cartas de um educador e seu legado imortal. São Paulo: Annablume; Fapesp; Consulado Geral da República Tcheca, 2012. 444 p. Resenha de: NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Cartas de Jean Hus: Indícios de uma intenção educativa. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 15, n. 2 (38), p. 309-314, maio/ago. 2015

Partindo da proposta epistemológica de Carlo Ginzburg (1989), no ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário1, Thiago Borges de Aguiar procurou, em sua pesquisa, conhecer e interpretar a ação educativa de Jan Hus, pregador e importante intelectual, que viveu na Boêmia e morreu condenado pela inquisição em 1415. Ele procura os indícios de um educador, que esteve presente através de suas cartas. “Destas chegaram até nós cerca de uma centena, escritas no período de 1404 a 1415, com aproximadamente 80% em latim e o restante em tcheco” (AGUIAR, 2012, p. 39). Em que sentido essa documentação pode expressar a perspectiva educativa de Hus? É preciso ter em mente que a análise de fontes narrativas, como as cartas, sofre a interferência de nossos padrões conceituais, nem sempre compatíveis com a realidade em que foram concebidas. Presente, pois, esta ‘recomendação metodológica’, de aproximação com o passado medieval, dentro do que é possível ao pesquisador de hoje, o autor buscou por meio de dados, aparentemente negligenciáveis, remontar uma realidade complexa, seguindo pistas que poderiam elucidar a rede de relações em que o clérigo boêmio estava inserido, e o discurso educativo presente em seus escritos.

A primeira edição da correspondência de J. Hus foi realizada no século XVI, pelo reformador Martinho Lutero, intitulada Epistola Quadam Piissima et Eruditissima Iohannis Hus. Outras edições foram publicadas seguidamente. Destas Aguiar trabalhou diretamente com duas: a que chamou Documenta, editada por Frantisek Palacký no século XIX, e a outra Korespondence, publicada em Praga em 1920 por Václav Novotný. Tanto o Documenta quanto a Korespondence possuem traduções para o inglês. Grande parte das cartas foi escrita na prisão, no período em que Hus esteve cativo na cidade de Constança. Como a publicação de Lutero foi a precursora da preservação da correspondência, é preciso considerar que parte delas pode ter sido perdida.

O autor analisa a forma de se escrever cartas no século XV, destacando que, nessa época, o manuscrito deixou de ser um objeto quase sagrado, tornando-se um veículo de transmissão do saber. Essa mudança foi notória a partir do século XII com a organização das universidades. Outra importante transformação narrativa foi o aumento significativo da escrita pessoal, privada. Em relação à correspondência hussita, partes dessas cartas também podem ser consideradas pastorais, endereçadas a uma comunidade específica, ou seja, aos praguenses, especialmente os que frequentavam a Capela de Belém, espaço de pregação e vivência direta do clérigo boêmio. Outra parte considerável, um total de 107, é constituída por cartas pessoais que esperavam por resposta. Nessas fontes, o autor procurou indícios de uma intenção educativa em Hus, pois ele correspondeu-se com todas as camadas sociais da época. “Hus era professor da Universidade de Praga e pregador da Capela de Belém. Esses dois lugares marcaram os espaços a partir dos quais ele participou de uma rede de relações, por meio da correspondência.” (AGUIAR, 2012, p. 97). Suas cartas são consideradas pelo autor como artifícios de ensino. Nelas teria a intenção de aconselhar; continuar seu trabalho intelectual; elaborar uma refutação às diversas acusações que lhe foram imputadas; defender a verdade; dar continuidade à sua tarefa pastoral. A produção escrita de J. Hus é imensa, incluindo, além das cartas, diversos sermões, textos devocionais e teológicos. Entre estes, o mais conhecido e discutido no âmbito acadêmico é o Tratado sobre a Igreja (Tractatus de Ecclesia). Nesse texto, afirmou que o pontífice não seria o chefe da Igreja Universal, motivo fulcral em sua condenação à morte como heresiarca, pelo Concílio de Constança no século XV. Uma característica de seus escritos é o uso da língua tcheca e não somente do latim. Devido a isso, sua produção também possui grande valor linguístico. Na busca pelo educador, o autor afirma que Hus realizou ação educativa por meio de sua produção escrita e de seus sermões. Em sua feroz oposição à Bulla indulgentiarum Pape Joannis XXIII, construiu parte de sua argumentação por intermédio de seus sermões na Capela de Belém, e de debates realizados na Universidade de Praga, o que lhe valeu, mais uma vez, a excomunhão2. Outra aproximação discursiva é com Paulo de Tarso. Assim como Paulo, Jan Hus educava por meio de cartas, escrevendo por estar distante. Nelas também afirmava que poderia morrer por defender a verdade, assim como Cristo o fizera. “Ele precisa escrever para pregar e defender seus princípios” (AGUIAR, 2012, p. 168). Parte importante da produção das cartas hussitas, segundo o autor, foram suas narrativas de viagem. Em agosto de 1414, o clérigo da Boêmia anunciou sua decisão de aceitar o convite do rei Venceslau e ir à Constança. Em seu trajeto, enviava cartas detalhadas sobre as cidades pelas quais passava, e a forma como era recebido. Com sua prisão em Constança, seu estilo de escrita sofreu alterações. Aguiar analisa, então, como os temas prisão e morte tornaram-se constantes em sua correspondência. Sua concepção de ensino adquiriu, ainda mais, um viés religioso. Ao escrever ao povo da Boêmia, enfatizava a importância da salvação e do louvor a Deus.

Thiago Aguiar oferece importante contribuição de cunho histórico, quando analisa as cartas enviadas a partir do dia 18 de junho de 1415, data da formulação final da sentença de morte na fogueira. “Neste período entre 18 de julho, quando recebeu a versão final de suas acusações, até 6 de junho, quando ocorreu seu julgamento, condenação e morte, encontramos vinte e cinco cartas escritas por Hus” (AGUIAR, 2012, p. 205). Nestas narrou pormenores de seu julgamento e a impossibilidade de defesa, criticou a desorganização do Concílio, a incompetência e fragilidade intelectual de seus adversários. Elas serviram também como possibilidade de se defender, já que não obteve em Constança espaço real para explicar seu pensamento, expresso em seus escritos. Essas fontes singulares revelam a memória de seus últimos dias e sua convicção de luta pelo que considerava verdade.

Na terceira parte do livro, o autor desenvolve o que chama de construção de um educador por seu legado. Neste âmbito, demonstra como aqueles que foram influenciados por Hus reelaboraram seu legado em diferentes épocas e contextos. Um dos primeiros biógrafos de Hus foi Petr de Mladoñovice, também responsável pela preservação de suas cartas. Mladoñovice foi seu aluno na Universidade de Praga, tendo sido escolhido pelo nobre Jan de Chlum, a quem Hus dirigiu parte de sua correspondência, para acompanhar o clérigo da Boêmia até Constança. Após a morte de Hus, tornou-se professor na Universidade de Praga, assumindo aos poucos papel de destaque entre os Utraquistas3. Seu relato sobre J. Hus é intitulado Historia de sanctissimo martyre Johanne Hus4, primeiramente publicado em Nuremberg em 1528, também por influência de Lutero. Como o próprio nome revela, essa narrativa foi fundamental na construção de Hus como mártir. O mártir defensor da verdade. “Preservar a memória e a verdade por meio do fiel registro do que aconteceu durante o Concílio de Constança foi uma intenção e pedido do próprio Hus” (AGUIAR, 2012, p. 248). Em suas cartas, sempre repetia que não era um herege, e sim um defensor do que era a verdade. Petr de Mladoñovice é o responsável pela divulgação do que a tradição diz que seriam as últimas palavras do mestre Hus: “Tem piedade de mim, ó Deus, eu me abrigo em ti” e “[…] em tuas mãos eu entrego meu espírito”. Uma clara analogia aos últimos momentos da crucificação de Cristo, narrada no evangelho de São Lucas.

A partir da página 274, Aguiar passa a construir o trajeto da expansão da memória de Hus além de sua terra natal, ou seja, a Boêmia. Mesmo com as cinco cruzadas enviadas a essa região, após a eleição do papa Martinho V em 1418, a memória da vida e do sacrifício de Hus, e de seu companheiro e principal discípulo Jerônimo de Praga, também condenado à morte na fogueira em Constança, não parou de crescer. A igreja da Morávia, de influência hussita, é resultado do grupo conhecido como União dos Irmãos. Jan Amós Comenius (1592-1670), destacado educador, foi um de seus mais famosos bispos.

Sem dúvida, o mais importante divulgador do legado de Hus foi Martinho Lutero (1483-1546). Leitor dos escritos hussitas, ele o considerava um verdadeiro cristão. Foi, como já afirmado, o primeiro a publicar suas cartas. Essa divulgação da memória escrita de Hus ocorreu justamente na época do Concílio de Trento (1545-1563), claramente como uma advertência contra a injustiça. Os elogios de Lutero a Hus elaboraram, ao longo do tempo, outra imagem desse personagem, para além de mártir e defensor da verdade: a de precursor do protestantismo, ao lado de John Wycliffe (1328-1384). Lutero afirmou, no prefácio à segunda edição das cartas, que se Hus tivesse sido um herege, ninguém sob o sol poderia ser visto como verdadeiro cristão. Outro escritor protestante que contribuiu para a rememoração de Hus, como precursor reformista, foi John Foxe, que viveu na Inglaterra ainda no século XVI. Aguiar analisa a importância desse autor, entre outros, na introdução do pensamento hussita entre os protestantes. Foxe foi um dos primeiros a traduzir para o inglês os primeiros escritos sobre Hus, sendo também autor do Livro dos Mártires.

Na discussão sobre as traduções da obra de Hus, o autor diz que “[…] cada nova publicação das cartas de Hus é uma nova leitura, acrescentando interpretações e propondo mudanças na compreensão desta correspondência” (AGUIAR, 2012, p. 288). Na França, destaca a figura de Émile de Bonnechose (1801-1875), que publicou, em sua época, dois importantes livros sobre Hus. Entre eles, a biografia intitulada “Os Reformadores Antes da Reforma: Século XV”. Nessa obra, aparece uma nova imagem dos hussitas, como defensores da liberdade de consciência. O contexto da França revolucionária e anticatólica foi fundamental nessa nova reelaboração. Outra contribuição de Thiago Aguiar foi a apresentação de grande parte da historiografia tcheca sobre a reforma na Boêmia. Para ele, “[…] existiram muitos Hus, dependendo da época que se escreveu sobre ele” (AGUIAR, 2012, p. 301). As fontes são as mesmas, mas cada historiador reconstruiu o próprio personagem.

Outro destaque é o uso da figura de Hus como símbolo nacional, representação identitária para o povo tcheco. O nacionalismo do século XIX e a luta pelo fim da anexação ao Império Austro-Húngaro contribuíram para a rememoração do legado desse personagem. As várias mudanças políticas no mapa da região, a criação da Tchecoslováquia e da futura República Tcheca buscaram também em J. Hus uma simbologia, revelando a longa duração do imaginário sobre ele. Essa busca pelo Hus histórico o recriou através de um discurso laudatório e até apologético. Em relação à área da educação, ele também foi visto como o educador da nação tcheca. Outro viés do legado do clérigo da Boêmia foi a construção de sua primeira estátua em 1869 e de seu memorial em 1915. Por fim, o autor procura, no legado imagético de Hus, sua herança cultural. Dividindo a análise em rostos e cenas, Aguiar faz uma rápida discussão sobre algumas representações escultóricas, desenhos, gravuras e imagens construídas desde a idade média. Entre elas, destacou as de mártir, santo, intelectual pregador e defensor da verdade. Percebe-se a inter-relação da narrativa escrita com a imagética. De que maneira Hus é lembrado nos dias de hoje? É importante sua contribuição na área da educação?

Como um personagem é uma construção contemporânea, o livro em análise pode ser visto como um novo olhar, uma nova leitura sobre o clérigo da Boêmia, garantindo uma contribuição da historiografia brasileira, por meio de Thiago Aguiar, na rememoração e reconstrução discursiva de Hus, um indício de seu legado imortal.

Notas

1GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

2O papa enviou a sentença de excomunhão maior, que foi tornada pública em 18 de outubro de 1412.

3 Utraquistas é um dos nomes atribuídos ao grupo dos Hussitas, posteriores à morte de Jan Huss, que defendiam o oferecimento da comunhão com o pão e com o vinho (sub utraque specie) também para os

leigos. O utraquismo foi condenado como heresia pelos Concílios de Constança, Basiléia e Trento (AGUIAR, 2012, p. 245).

4 O relato de Petr foi publicado na Boêmia apenas em 1869 por Palacký, sendo posteriormente revisto, a partir de novas fontes, em 1932 por Novotný. Esta última edição é base para a tradução de Matthew Spinka em 1965. Essa versão é a que foi utilizada pelo autor (AGUIAR, 2012).

Renata Cristina de Sousa Nascimento – Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Participante do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos – UFPR). Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Mestrado em História). E-mail: [email protected]

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eifar, semear: a correspondência de Van Gogh – GODOY (C)

GODOY, Luciana Bertini. Ceifar, semear: a correspondência de Van Gogh. 2. ed. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009. Resenha de: AFIUNE, Pepita de Souza Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p.  224-228, set/dez, 2014.

A autora Luciana Bertini Godoy é graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Mestre em Psicologia Social e Doutora em Psicologia Social pela mesma universidade. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia da Arte do Instituto de Psicologia da USP, recebeu apoio da agência financiadora de pesquisas Fapesp.

Atua na área de Psicologia da Arte, realizando vastas pesquisas e desenvolvendo muitos frutos sobre a biografia e obras de Van Gogh. Leia Mais

Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar / Sandra Reimão

Desde a década de 1980, em que ocorreu a abertura política no Brasil, não se assistia a tão grande empenho em desvelar fatos relacionados ao período da ditadura militar brasileira, empenho que se verifica tanto em atos políticos deliberados (como a criação de uma Comissão da Verdade ou o acesso a documentos considerados sigilosos) quanto em estudos, acadêmicos ou não, voltados à compreensão e elucidação daquele conturbado período de nossa história recente.

Em Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar, Sandra Reimão lembra que uma das primeiras ações dos regimes autoritários é, justamente, a censura da liberdade de expressão, por meio da repressão à imprensa, aos livros, aos meios de comunicação etc. Nesse sentido, a autora se propõe estudar a censura de livros de ficção brasileira durante do regime autoritário de 1964 a 1985, em especial aqueles cujos processos (atualmente no Arquivo Nacional de Brasília) ficaram sob a responsabilidade do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), órgão vinculado ao Serviço de Censura e Diversões Públicas e ao Ministério da Justiça. Em relação ao conceito de censura, define a autora: “concebemos a censura como parte de um aparelho de coerção e repressão que, muito mais do que afetar a circulação de alguns bens culturais, restringia a produção e a circulação da cultura, implicando uma profunda mudança no exercício da cidadania e da cultura em geral” (p. 14).

A autora lembra que, antes do golpe de 1964, consolidou-se no Brasil uma “reflexão social de ideário esquerdista” (p. 19), presente em parte da produção artística e intelectual, manifestações que, num primeiro momento, foram relativamente preservadas pelos militares, permitindo, por exemplo, a publicação da revista Pif-Paf (1964, por Millôr Fernandes), dos livros O ato e o fato (1964, de Carlos Heitor Cony), Quarup (1964, por Antônio Callado), Senhor Embaixador (1968, por Érico Veríssimo) etc., embora alguns outros livros tenham sido apreendidos já naquele momento, sobretudo os que tratavam do próprio golpe militar, como Primeiro de abril (de Mário Lago), O golpe de abril (de Edmundo Muniz), História Militar do Brasil (de Nelson Werneck Sodré) e outros. Ações mais intensas e direcionadas foram, igualmente, perpetradas pelo poder constituído, ainda nessa primeira fase do golpe, como a perseguição ao editor Ênio Silveira, o expurgo de bibliotecas pelo Ministro da Educação Flávio Lacerda, a perseguição das obras de Nelson Rodrigues pelo Ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva, uma série de atentados a editoras e livrarias (Editora Tempo Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Livraria Forense) etc.

Com a edição do Ato Institucional n. 5 (AI-5) pelo Presidente Costa e Silva, em dezembro de 1968, a censura se adensa, espalhando-se por todo o país e atingindo todos os meios de comunicação, mas, ao mesmo tempo, dando ensejo ao aparecimento de uma imprensa alternativa e, às vezes, clandestina (O Pasquim, Opinião).

Apesar da diferença de números entre pesquisadores do assunto (Zuenir Ventura fala em 200 livros; Deonísio da Silva fala em 430 livros), a censura à produção editorial no período da ditatura foi intensa, atingindo inclusive a publicação de peças de teatro (Guilherme Figueiredo, Oduvaldo Vianna Filho, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos etc.), filmes (Macunaíma, São Bernardo, Toda nudez será castigada etc.), livros teóricos (Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro, Guilhon Albuquerque, Rose Marie Muraro etc.) ou considerados pornográficos (Cassandra Rios, Adelaide Carraro, Márcia Fagundes Varella, Brigitte Bijou etc.).

Objeto de estudo da autora, os livros de ficção censurados, que constam nos arquivos do DCDP, são Quatro contos de pavor e alguns poemas desesperados (Álvaro Alves de Faria), Dez histórias imorais (Aguinaldo Silva), Meu companheiro querido (Alex Polari), Zero (Ignácio de Loyola Brandão), Em câmara lenta (Renato Tapajós), Aracelli, meu amor (José Louzeiro), Feliz ano novo (Rubem Fonseca), Diários de André (Brasigóis Felício) e os contos “Mister Curitiba” (Dalton Trevisan) e “O cobrador” (Rubem Fonseca), obras bastante diferentes, mas cujo tema comum a quase todas é a violência física e psicológica.

Tratando, em especial, do livro Feliz ano novo (1975, de Rubem Fonseca) e Zero (1976, de Ignácio de Loyola Brandão) – publicados num período (década de 1970) em que, segundo a autora, “a literatura tornou-se um centro de atenções” (p. 62) da ditadura militar -, Sandra Reimão afirma tratar-se de obras que têm no tema da violência um de seus assuntos principais. Sobre o livro de Aguinaldo Silva (Dez histórias imorais), afirma ter sido censurado quase dez anos após sua publicação, muito provavelmente em razão de sua militância contra o regime autoritário (trabalhou nos jornais Opinião e Movimento, ambos periódicos de resistência à ditadura) e em favor dos direitos dos homossexuais (foi, ao lado de outros escritores e intelectuais, fundador do jornal O Lampião, órgão da imprensa pioneiro nesse tema). Em relação ao livro Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, a autora afirma ter sido um “caso único de autor preso durante a ditadura militar por causa do conteúdo de um livro” (p. 89), sendo, além disso, “o primeiro livro de memórias de ex-militantes políticos da década de 1960” (p. 91), a que se seguiram Os carbonários (Alfredo Sirkis) e O que é isso companheiro? (Fernando Gabeira). A autora trata, finalmente, dos dois contos censurados de, respectivamente, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca (ambos publicados na revista erótica Status, em 1978), tendo sido, ambos, no ano seguinte à censura, publicados em livro, sem contudo sofrerem censura desta vez.

Como conclusão, a autora chega a três constatações gerais: primeiro, a de que toda coação é temporária e limitada; segundo, a de que o ato censório é uma violência à própria cidadania, ultrapassando os limites da circulação de bens culturais; terceiro, a de que há quase sempre um grande número de ações de resistência à censura aos livros, da parte de editores, escritores, leitores etc.

O livro traz ainda alguns anexos: leis e pareceres, lista de livros censurados etc., o que, no conjunto, faz dele uma referência para os estudos sobre o tema e uma leitura necessária aos pesquisadores da censura cultural no Brasil do século passado.

Maurício Silva –Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Nove de Julho (SP).


REIMÃO, Sandra. Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar. São Paulo, Editora da USP/FAPESP, 2011. Resenha de: SILVA, Maurício. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.24, p.195-197, jan./jul., 2014. Acessar publicação original. [IF].

Tragtenberg: 10 anos de encantamento – VALVERDE (ES)

VALVERDE, Antonio José Romera (Org.). Tragtenberg: 10 anos de encantamento. São Paulo: Educ; Fapesp, 2011. Resenha de: HELOANI, Roberto. Maurício Tragtenberg: 10 anos de encantamento. Educação & Sociedade, Campinas, v.35 n.126 jan./mar. 2014.

O livro Maurício Tragtenberg: 10 anos de encantamento, organizado por Antonio José Romera Valverde, teve sua origem no evento homônimo que ocorreu na PUC-SP, em novembro de 2008. O acontecimento contou não só com a participação de professores e pesquisadores ligados à academia, como também com a presença de ex-alunos, artistas, sindicalistas, além de representantes dos mais variados setores civis da sociedade. Como se explica tão vasta e diversificada confluência? Será devido à genialidade e vastíssima cultura deste grande intelectual e mestre? A sua capacidade de sintetizar e reinterpretar ideias que vão de Weber a Bakhunin, tangenciando e, às vezes, passando por Marx? Decerto, tal fato é de suma relevância, mas não explica tudo. O carisma, o humanismo e o profundo sentimento de solidariedade e compaixão de Maurício Tragtenberg por certo também foram decisivos.

A riqueza do material, organizado neste livro que tenho a honra de resenhar, está relacionada ao tipo de abordagem crítica que Tragtenberg fazia de temas complexos da política, da economia, do mundo do trabalho, do sindicalismo e da defesa de minorias. A crítica independente e a liberdade de pensamento são marcas características desses escritos, um traço muito raro nos dias de hoje.

Os escritos expressam a capacidade que Maurício – como gostava de ser chamado – tinha de transpor seu conhecimento, de forma inteligível e provocativa, para públicos diferenciados. Se Maurício Tragtenberg debruçava-se sobre complexas e alentadas obras clássicas, muitas delas escritas em idiomas estrangeiros, entre eles o alemão, o inglês, o italiano e o francês, com a mesma dedicação e respeito escrevia para o povo e pelo povo em jornais dirigidos à grande massa de trabalhadores, como o Notícias Populares, no qual escreveu por muitos anos uma coluna intitulada “No Batente”, ou mesmo os artigos enviados a veículos como a Folha de S. Paulo e o Jornal da Tarde, voltados a um público mais intelectualizado. Isso dá uma ideia exata do que estamos querendo dizer.

No entanto, devo destacar aqui que Tragtenberg, com sua grande erudição e o amor aos livros, tinha um profundo respeito à inteligência e à capacidade de crítica dos trabalhadores. Naquele contexto, muitos trabalhadores foram movidos a pensar e a refletir criticamente sobre a exploração do trabalho, a política, a economia e a organização sindical. Ao comunicar-se de forma clara com todos os públicos e ao fazer sua opção pela defesa da causa dos trabalhadores, das minorias e dos desfavorecidos, o professor, sem ser professoral, ia se distanciando da recorrente “pedantocracia universitária” e do “salto alto da vida acadêmica”.

Ao mesmo tempo – como já dissemos – , Maurício Tragtenberg colaborou com o jornal Folha de S. Paulo, direcionado a outro tipo de leitor, fazendo história com artigos em que divertidamente colocava Weber e Maquiavel, redivivos, respondendo às suas perguntas, como repórter, no que concerne à realidade do Brasil.

Também como colaborador do O São Paulo e da Folha de S. Paulo (FSP), este grande mestre soube demonstrar que o compromisso com a ética deve estar acima de interesses pessoais ou de questões raciais. Apesar de ascendência judaica, sempre reconheceu a necessidade da criação de um Estado palestino: “[…] Da mesma maneira que defendemos o direito de Israel subsistir como Estado, defendemos o direito dos palestinos construírem seu Estado […]” (O São Paulo, 19 jul. 1982). Ou ainda: “[…] O fato é que sob o nazismo houve o holocausto judaico, isso não justifica haver holocausto de libaneses, drussos, palestinos. O terrorismo israelita no Líbano, com bombas de bilha, de fragmentação, de fósforo, de nada contribui para manter a tradição humanística judaica” (FSP, 21 set. 1982).

É esta figura humana de importância ímpar o centro de reflexão dessa bela obra. Como menciona Antonio Valverde, o livro compõe-se de quatorze capítulos. Treze de análises de aspectos focais da obra deste sociólogo e um depoimento. Logo de início aparece o capítulo “A obra de Maurício Tragtenberg – in memoriam”, do professor da Universidade Estadual de Maringá, Antonio Ozaí da Silva, que realça o compromisso deste intelectual que tratava de temas históricos sociológicos, políticos e educacionais “sempre com o compromisso militante e uma perspectiva política crítica à sociedade capitalista e às concepções autoritárias sobre o socialismo”. É uma análise da obra de Maurício que nos lembra da forte influência do autor em tantos intelectuais, professores e militantes e deságua na “reafirmação de uma concepção de socialismo libertário”.

Doris Accioly e Silva constitui o capítulo “Polifonia e unidade na obra-trajeto de Maurício Tragtenberg”. Neste instigante texto, a autora propõe uma releitura da obra deste mestre, considerando-se a categoria “afinidades eletivas”. Ademais, nos lembra que “A obra de Maurício Tragtenberg espelha alguns dos traços que Ítalo Calvino (1994) definiu como inerentes aos clássicos: a virtude de ser sempre atual e permeável a novas interpretações, podendo ser localizada na genealogia de outros clássicos […]”, e também dá destaque para a profunda coerência de pensamento e ação desse profícuo escritor.

No capítulo seguinte, José Henrique de Faria, no texto intitulado “Burocracia, poder e ideologia”, nos ensina qual era a tese central do grande mestre no que concerne à Teoria Geral da Administração (TGA): esta é uma ideologia! Isto faz com que esta TGA seja “uma teoria dominante”.

Em seguida, Ana Paula Paes de Paula assina um texto cujo título já diz uma verdade em si: “A magia de Maurício Tragtenberg”. Assim, a autora esclarece ao leitor qual a posição de um dos melhores tradutores de Weber no que concerne à burocracia: é como pensador libertário que Tragtenberg procura analisar Weber: a crítica da burocracia que faz se baseando em Weber está ligada ao projeto emancipatório anarquista no qual aposta. Lembra-nos que, além de ser um árduo defensor da autogestão, na figura das organizações horizontais, também segue a tendência anarquista no que concerne ao desenvolvimento de iniciativas de natureza educacional, discutidas por Proudhon, Robin e Ferrer.

Por sua vez, Lucia Bruno, no texto “O político e o econômico na obra de Maurício Tragtenberg”, demonstra como o referido autor nunca se esqueceu da relação entre a esfera do político e a do econômico. Mais que isso, lembra-nos que a ideia de que são os próprios trabalhadores autonomamente organizados que devem conduzir suas lutas nega a ideia de “vanguarda” sempre combatida por Maurício, que terá a coragem de criticar o bolchevismo, mormente na sua vertente estalinista.

Com sinceridade e honestidade intelectual, Maria Ester de Freitas resgata aspectos da obra e vida de Maurício no capítulo “Tragtenberg e a questão ideológica da Teoria Geral da Administração”. Ela afirma que o seu ex-professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) era um docente cuidadoso com os estudantes: dava aulas maravilhosas, não faltava, nem atrasava e, não raro, passava do horário ou continuava aula no corredor com seus discípulos. Era um orientador prestimoso, mesmo quando não era o docente-orientador oficial. Contudo desabafa: “Foi um privilégio e uma honra ter vivido uma época em que podíamos conviver com professores desse porte. A mim parece que vivemos uma onda obscurantista na profissão e na academia, senão pela proibição das ideias diferentes, pela própria definição na base de perfis profissionais aventureiros e mercenários, cujo compromisso é tão somente relacionado com a produtividade a qualquer preço”.

Em seguida, Afrânio Mendes Catani dá início ao seu capítulo com o título: “Walter Rathenau analisado por Maurício Tragtenberg”. Conta-nos a sua história como aluno de Tragtenberg e depois como colega na FGV/SP. Ademais, faz considerações interessantes e pouco conhecidas a respeito de um dos mais importantes empresários alemães que, além de ensaísta social, também era importante filósofo, político e economista em sua época (1867-1922). Maurício demonstrava grande interesse por essa figura ambígua e procurava estudá-la em uma pesquisa na FGV/SP. Este é o foco deste capítulo fascinante.

Em “Travessia”, Antonio Jose Romera Valverde defende a tese de que Maurício Tragtenberg “adentrou estruturas diversificadas de pensamentos e de poros da microfísica do poder para construir uma visão política pontual, aprofundada e sobejamente sintética dos conflitos explícitos e latentes do mundo contemporâneo e, particularmente, do Brasil”.

Evaldo Vieira, em seu capítulo, faz o papel de pescador: “pesca” trechos significativos em algumas obras de Maurício Tragtenberg que permitem ao leitor fazer suas próprias reflexões. Assuntos atuais, tais como vestibular, repetência diploma, mercado, educação política, entre outros. Não é sem razão que o seu capítulo assim é denominado: “Maurício Tragtenberg: assim vale a pena”.

Paulo-Edgar Almeida Resende se conduz por belas memórias e por passagens eruditas no capítulo que bem expressa a coragem do protagonista dessa obra: “Maurício Tragtenberg: ousou saber, ousou dizer”. Resende conta, às vezes em detalhes, a convivência com Maurício, na PUC/SP, dez anos depois.

“Maurício Tragtenberg é um parresiasta contemporâneo”. É assim que Edson Passetti refere-se ao mestre. No capítulo intitulado “Um parresiasta no socialismo libertário”, o autor explica que a parrésia, na antiga democracia ateniense, era uma atitude de homens livres diante da verdade dos governantes. Era a marca de homens que expressavam suas ideias com franqueza, sem medo das consequências, mesmo diante de superiores hierárquicos. O parresiasta era incisivo e, portanto, às vezes, incômodo. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

O texto “Um convite: pensar é resistir”, assinado por Flávia Schilling e Cintya Ribeiro, nos instiga a pensar: “educar é basicamente introduzir um sujeito numa determinada ordem de discurso?” As autoras problematizam no que concerne à educação, liberdade e formação e, brilhantemente, recorrem a um pensador que nunca foi estranho ao mestre Maurício Tragtenberg: Michel Foucault.

Ainda, Gustavo Gutierrez, em seu texto “Maurício Tragtenberg como um autor complexo”, faz alusão àquilo que considera como categorias eleitas por Tragtenberg como capitais, ou seja, burocracia e controle; público, privado e gestão; e, logicamente, marxismo heterodoxo. Assim Gutierrez faz verdadeira varredura epistêmica de um autor que enxergava no construto “heterodoxo” a opção por uma liberdade crítica.

Fechando esta bela obra, Ediógenes Aragão dos Santos nos brinda com um comovente e vívido depoimento. Esta, agora docente da Unicamp, relata que conheceu Maurício Tragtenberg em 1961, em um ginásio estadual, no qual assistia, como ouvinte, aulas de História. Sua admiração foi crescendo por “um intelectual erudito, libertário, solidário com as lutas dos trabalhadores” e acrescenta que não foi por mero acaso que se tornou, como ele, professora de História, formada pela Universidade de São Paulo (USP) em plena ditadura militar, colando grau sozinha, sem a sua turma.

Depois de resenhar tão importante obra, o que posso dizer?

Só me resta acrescentar que a melhor homenagem que posso prestar ao Maurício Tragtenberg – que conheci no mestrado, na FGV/SP, quando tínhamos saborosas conversas – é divulgar o seu pensamento e honrar o seu lugar. Para mim, ter resenhado um texto tão belo e tão justo, historicamente falando, é motivo de alegria, apreensão e orgulho concomitantemente. Espero poder corresponder – nem que seja um pouco – , em minha carreira acadêmica, à imagem de um mestre que, para mim, foi mais do que isso: tornou-se um verdadeiro pai intelectual.

Digo isso, pois, em 1994, quando essa maravilhosa pessoa aposentou-se da Unicamp e da FGV/SP, eu, mediante concurso público, vim a ocupar a vaga outrora pertencente a este grande intelectual e educador. Não sei se mereço tal honra e se tenho competência para essa “démarche“. Contudo, espero não tê-lo decepcionado muito.

Roberto Heloani – Faculdade de Educação e Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP) – Brasil. Contato com o autor: <[email protected]>

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Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil – PINHEIRO (CTP)

PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2011. Resenha de: MELO, Sabrina Fernandes. Nexos entre o modernismo e o neocolonial nas primeiras manifestações preservacionistas da década de 1920. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 12 – 10 de junho de 2013.

Em seu mais recente trabalho Maria Lúcia Bressan Pinheiro – professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de temas relacionados às cidades, à arquitetura e ao patrimônio cultural – aborda questões pouco discutidas ou até mesmo negligenciadas no campo da arquitetura e da história.

O livro Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil, publicado pela editora da USP em 2011, é fruto de indagações antigas da pesquisadora. Tais questionamentos se direcionavam para o neocolonial e suas particularidades como estilo arquitetônico e como movimento cultural, promotor de desdobramentos importantes para lançar bases e promover debates sobre a questão patrimonial brasileira.

A obra de Maria Lucia Bressan tem como objetivo central promover uma ligação entre o modernismo brasileiro, os debates sobre o patrimônio cultural e o neocolonial, onde o denominador comum destas três categorias seria a década de 1920.

Um dos grandes problemas encontrados na historiografia e nas pesquisas sobre esses três temas é a separação e o tratamento individualizado direcionado a cada um deles. A autora defende que eles deveriam ser entendidos em conjunto, por estarem intrinsecamente relacionados.

Todo o livro é direcionado na tentativa de estabelecer um diálogo entre as três categorias que dão título à obra. Nesta perspectiva, o neocolonialismo é visto como a primeira iniciativa, em arquitetura, de valorização das raízes brasileiras e de busca de uma identidade nacional. Maria Lucia Bressan vai à contramão dos paradigmas colocados acerca da arquitetura neocolonial ao apontar novos caminhos conceituais e metodológicos para o entendimento deste estilo arquitetônico no contexto sociocultural dos anos vinte.

Uma das dificuldades enfrentadas pela autora, durante a pesquisa, foi a coleta de bibliografia sobre o tema abordado. Tal constatação foi verificada antes mesmo da escrita do livro, durante seu cotidiano em sala de aula, e, na busca por referências a serem utilizadas nas disciplinas ministradas por ela. Buscando preencher lacunas deixadas pela historiografia, foram utilizadas inúmeras fontes. Estas transitam entre conferências, palestras, cartas, esboços arquitetônicos, imagens, jornais, revistas, plantas de construções etc. fontes mais citadas são as conferências proferidas pelo arquiteto português Ricardo Severo em 1914 na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo e em 1917 no Grêmio da Escola Politécnica de São Paulo, a Revista de Architetura no Brasil (1921- 1926) e a Revista Ilustração Brasileira, uma das primeiras revista ilustradas do país.

Maria Lucia recorre às fontes por meio de citações e transcrições de parte destes documentos. Tal metodologia promove uma aproximação do leitor com a fonte e por outro lado, compromete a fluidez do texto, aspecto ressaltado pela própria autora no decorrer da introdução de sua obra.

Estruturado em sete capítulos, que não seguem uma ordem cronológica, mas transitam entre as três frentes de pesquisa propostas, a obra consegue estabelecer uma comunicação teórica, metodológica e contextual entre neocolonial, modernismo e patrimônio. A comunicação entre os capítulos é feita pela retomada de discussões associadas às fontes já trabalhadas.

No primeiro capítulo, O Pequeno Passado Colonial, a autora articulou as ideias do arquiteto Ricardo Severo ao pensamento de John Ruskin, uma das mais importantes figuras do panorama cultural oitocentista inglês, além de ser considerado como um dos precursores da noção de preservação do patrimônio cultural na Inglaterra.

Através das palestras proferidas por Ricardo Severo – marco inaugural do Movimento Neocolonial no Brasil – a autora traça um detalhado percurso intelectual de Severo e Mario de Andrade ambos afinados com as propostas de cunho patrimonial defendidas pelo inglês Ruskin e inclinados a estabelecer parâmetros próprios para a formação de uma identidade arquitetônica nacional.

As aproximações e afinidades entre arquitetos e intelectuais brasileiros e estrangeiros continuam no decorrer do segundo capítulo, nomeado Severo, Mário e a Emergência de São Paulo no Cenário Nacional. No entanto, como pano de fundo para o aprofundamento desta discussão, Bressan Pinheiro utiliza o contexto da emergência de São Paulo no cenário nacional.

Durante as primeiras décadas do século XX, São Paulo passava por uma fase de efervescência urbana, iniciada pela produção do café e fomentada pelo crescimento da industrialização advindo da Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, intelectuais como Mario de Andrade, Angyone Costa, Plínio Cavalcanti, dentre outros, encontraram um contexto propício para a publicação de manifestos, textos e artigos em diferentes periódicos relacionados à arquitetura da cidade de São Paulo e de outras regiões do país.

Em O Neocolonial e a Exposição de 1922, a autora nos traz uma discussão sobre a influência da comemoração do centenário da Independência em 1922, ocorrida no Rio de Janeiro para a divulgação e para discussão do estilo neocolonial. Apesar da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, ter contado com um espaço para mostra arquitetônica, foi na Exposição do Centenário que o neocolonial ganhou um lugar de destaque.

T0a1l 3ê nfase ocorreu pela construção de pavilhões em estilo neocolonial e pela defesa de sua utilização para formação de uma identidade arquitetônica brasileira, calcada na arquitetura portuguesa. Entretanto, instaurava-se aí um paradoxo. No momento da Exposição de 1922 e do debate direcionado a preservação das edificações de origem portuguesa – consideradas como base para o desenvolvimento da arquitetura nacional – ocorria a demolição da região do Morro do Castelo, região considerada como espaço fundador da cidade do Rio de Janeiro, além de abrigar inúmeras edificações erguidas no período colonial.

Em O Neocolonial e o Ensino de Arquitetura, são traçadas aproximações e diferenças entre a arquitetura neocolonial praticada no Rio de Janeiro, daquela utilizada em São Paulo. Partindo destes apontamentos a autora analisa a inserção dessa nova tendência arquitetônica na Escola Politécnica de São Paulo com o curso de engenheiro arquiteto e no curso de arquitetura da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.

O quinto e sexto capítulos denominados, respectivamente, Lucio Costa e o Neocolonial e Mario de Andrade: Entre o Modernismo e Tradição, dedicaram-se a problematizar as ligações entre o neocolonial e o modernismo através dos nomes que compõem os títulos dos capítulos: Lucio Costa e Mario de Andrade. Neste momento, a autora reafirma sua proposta inicial, a de estabelecer um diálogo entre o modernismo, o neocolonial e o patrimônio. Parte da trajetória intelectual destes dois personagens é usada para compor o cenário em que figurou o diálogo entre essas três frentes de análise.

No último capítulo, intitulado O pensamento preservacionista no Brasil na Década de 1920, a figura de Mario de Andrade foi associada às ideias de preservação do patrimônio nacional. Tais ideias se associavam tanto ao processo de evasão das obras de arte e o papel da Igreja nesta evasão, quanto às iniciativas direcionadas a valorização da arquitetura brasileira por meio da criação de museus nacionais, da elaboração de inventários de arquitetura colonial e das inspetorias estaduais de monumentos nacionais, sendo a primeira delas criada na Bahia em 1927.

O que se apresenta em Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil é um intenso trabalho de pesquisa e uma profícua contribuição para as discussões sobre o patrimônio edificado. Destarte, a contribuição dessa obra se encontra na abordagem inovadora, onde os nexos entre modernismo e Neocolonial culminaram nas primeiras manifestações preservacionistas da década de 1920.

As múltiplas e contraditórias abordagens acerca das ações preservacionistas no contexto da década de 1920, associadas à questão da identidade nacional, revelaram-se como um conhecimento indispensável para o entendimento do patrimônio edificado e das políticas públicas de patrimônio e bens culturais no viés contemporâneo.

Referências

PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2011.

Sabrina Fernandes Melo – Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH – UFSC), integrante da linha de pesquisa Arte, Memória e Patrimônio e bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764) | Patrícia Ferreira dos Santos

Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana, é fruto da tese de mestrado de Patrícia Ferreira dos Santos, defendida em 2009 na Universidade de São Paulo e orientada por Carlos de Almeida Prado Bacellar. Este trabalho se enquadra num amplo movimento de renovação dos estudos sobre a Igreja no mundo português da época moderna e mais especificamente sobre a Igreja no Brasil colônia. A partir de um uso renovado e muitas vezes inédito – já que as fontes, apesar de por vezes de difícil acesso, existem – da documentação, a autora contribui para uma melhor compreensão das lógicas de funcionamento das instituições episcopais e das conflitantes relações com os representantes do poder civil, e com os próprios membros da igreja mineira do período em que governou o seu primeiro bispo, d. fr. Manuel da Cruz (1748-1764).

O livro está dividido em cinco capítulos, tradicionalmente organizados de modo a partir dos temas mais amplos aos mais específicos, dando assim ao leitor informações cada vez mais precisas sobre a problemática em pauta. O capítulo 1, “Jogos de forças: atores e instituições”, sobrevoa o processo de construção das relações Estado e Igreja em Portugal, desde a formação do padroado régio a partir do contexto da reconquista e do modo como a coroa pouco a pouco fortaleceu uma doutrina jurídica enquanto fundamento de sua atuação – e das ordens militares – nas conquistas ultramarinas, até o contexto das tensões geradas pelas reformas postas à obra durante a segunda metade do século XVIII, passando pelo importante e complexo jogo criado pelas reformas tridentinas. O segundo capítulo, “Imbricando forças”, estuda a formação da rede eclesiástica na região mineradora e sua paulatina implementação em paralelo, ou melhor, de modo imbricado, com a implantação da estrutura administrativa civil no que se tornaria a capitania das Minas e o bispado de Mariana. Servem aqui de exemplo – graças à abundância das fontes, como a autora explica em sua introdução – os casos de duas freguesias da região, a de Nossa Senhora da Conceição das Catas Altas e a de Nossa Senhora da Boa Viagem de Curral del-Rei. O terceiro capítulo, “O poder da palavra”, concentra-se na atuação do primeiro bispo de Mariana, d. fr. Manuel da Cruz, no que toca a implementação do aparato administrativo da nova diocese e a atividade de controle (das almas e dos corpos) do prelado, sobretudo por meio das cartas pastorais, importante instrumento de governo. O quarto e o quinto capítulos, “Contendas” e “Batalhas de jurisdição”, se debruçam finalmente sobre os vários episódios de tensão surgidos durante o episcopado de d. fr. Manuel da Cruz, e que, como dito, serve de baliza para toda a obra. Ali são descritas as contínuas trocas de acusações feitas entre o bispo, os fieis, os membros do cabido catedralício e os membros do governo civil em torno de questões de fiscalidade, jurisdição ou honra, sempre dentro da turva paisagem do padroado.

O objetivo do trabalho é contribuir para a compreensão da construção e da efetivação da autoridade episcopal no contexto específico das Minas. Movimento que na verdade resultou, como sempre aponta a autora, em amplos conflitos, não só com instituições e grupos já presentes naquela sociedade, mas inclusive com personagens surgidas apenas com a chegada do prelado, como é o caso do clero capitular. A problemática escolhida é claramente posta na página 101, ao fim da larga parte introdutória do livro, onde Patrícia Ferreira dos Santos se pergunta se a “imbricação de forças, da Igreja, do Estado, da justiça e da religião”, logrou a desejada coesão em prol da administração da capitania.

Para começar a responder a essa pergunta, o capítulo três se debruça de modo bastante original sobre a importância da palavra, ou seja, dos sermões e cartas pastorais, para a implementação do governo episcopal e assim também, de um maior controle do que fazia e pensava a população local. São destaques, a preocupação com o comportamento do clero e com a catequese dos escravos do bispado, questões que revelam a especificidade colonial daquela região, mas também algo da personalidade do prelado. Assim, é também neste capítulo que a autora apresenta a personagem principal e fio condutor do livro, o bispo d. fr. Manuel da Cruz.

É, contudo, nos capítulos seguintes, que se aborda a questão do problema dos inúmeros atritos criados ou sofridos pelo bispo: com seus párocos, sobre a questão da cobrança indevida de emolumentos; com os membros do cabido, pelo controle da nomeação a cargos e por questões de prestígio, contenda que se transformou em grave afrontamento; e, finalmente, com o governo civil, em questões de jurisdição sobre irmandades e sobre os próprios clérigos do bispado, em tempos em que o regalismo se firmava sem nenhuma ambiguidade no mundo português por meio da política pombalina em relação à Igreja.

Enfim, quais seriam as razões profundas de tanta discórdia? A autora, nas suas “considerações finais”, aponta o modo como o bem-estar dos povos e a defesa dos vassalos eram frequentemente mencionados pelos litigantes como fundamentos para as acusações portadas contra o oponente do momento, mas que esses párocos gananciosos, cabido escandaloso, bispo zeloso da sua posição e agentes civis em busca de alargamento de jurisdições, na verdade, não faziam mais do que reafirmar, nessas contendas, as vexações que eles próprios faziam sofrer à população. Ferreira dos Santos aponta assim para uma análise bastante restrita do contexto estudado, mas que ela própria mostra, em outras partes do seu texto, ser mais ampla. Ao descrever os vários litígios que d. fr. Manuel da Cruz esteve implicado, ela chama a atenção para as indeterminações das leis do Reino, causa de muitos conflitos de jurisdição (p. 227). Mais adiante, relembra o quanto a questão do padroado, devido a uma “certa indefinição de limites, papéis e campos de jurisdição” acabou pautando as relações entre a Coroa e a Igreja pela desconfiança (p. 255). Mas é ainda um pouco mais atrás que ela parece chegar mais perto de uma explicação, ao afirmar que “As batalhas de jurisdição […] criaram impasses que forçaram iniciativas de reformulação dos procedimentos e da atuação dos cargos e sua normatização, pela coroa” (p. 221). Tratava-se, assim, de um sistema político e também legal (ou seja: o sistema político e legal específico do Antigo Regime) que se pautava por uma multiplicidade de fontes normativas, e que estava habituado a tratar da administração do seu próprio corpo de modo bastante casuísta. Pode-se avançar a análise para uma tradicional interpretação do ‘dividir para melhor reinar’, mas não me parece que esta seja a melhor solução.

Poderiam ter sido úteis à autora algumas análises sociológicas da história política e religiosa da Europa da época moderna, como, por exemplo, aquelas vinculadas aos conceitos de disciplinamento social e de confessionalização, cunhados por autores alemães dos anos 1980 (ver a síntese que deles fez Federico Palomo, A Contra- reforma em Portugal. 1540-1700, 2006), mas na verdade já existentes, de certo modo, nas leituras da História das religiões de autores como Jean Delumeau (O pecado e o medo, 2003). Do mesmo modo, a “imbricação” entre governo civil e religioso, entre Estado e Igreja, numa sociedade de Antigo Regime que a autora aqui estuda, poderia ter sido melhor compreendida com uma leitura mais ampla dos trabalhos de José Pedro Paiva (alguns deles mencionados por Ferreira dos Santos), como a sua contribuição ao livro História Religiosa de Portugal, de 2000, ou o livro Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777), de 2006. Nestes trabalhos o autor mostra o quanto os poderes civil e eclesiástico estavam interconectados em Portugal. Por um lado, este maior diálogo com a bibliografia poderia ampliar as perspectivas de análise de um governo episcopal tão bem documentado e, por outro, os conflitos estudados seriam ótimas ocasiões para se por à prova, ao nível regional das Minas – ou “micro” das paróquias de Catas Altas e de Boa Viagem –, os conceitos e as análises desenvolvidas pelos autores acima citados.

Bruno Feitler – Professor no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: [email protected]


SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). São Paulo: Editora HUCITEC/ FAPESP, 2010. Resenha de: FEITLER, Bruno. Poder e jurisdição sob o episcopado de D. fr. Manuel da Cruz (1748-1764). Almanack, Guarulhos, n.5, p. 212-214, jan./jun., 2013.

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Magia e Poder no Império Romano: A Apologia de Apuleio | Semíramis Corsi Silva

Semíramis Corsi Silva, autora do livro, é Doutoranda, Mestre e Graduada em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca, onde defendeu a Dissertação de Mestrado: Relações de Poder em um Processo de Magia no século II d.C – uma Análise do Discurso “Apologia” de Apuleio, do qual este livro é fruto.

A obra foi lançada ano passado (Marco/2012), em uma parceria da editora Annablume com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), do qual Silva é bolsista desde sua Iniciação Científica até seu Doutorado, que está em andamento. O livro possui 213 páginas, divididos em quatro capítulos, mais as considerações finais; a autora indaga e elucida sobre a acusação e o julgamento de Apuleio, um autor romano do século II d.C., por prática de magia. É nesse contexto que Silva propõe analisar a acusação e julgamento de Apuleio, um membro da elite do Império Romano no período do Principado, que se casou com uma rica viúva chamada Pudentila da cidade de Oea, no norte da África Romana.

O casamento se concretizou através de uma “negociação” do filho mais velho de Pudentila, Ponciano, que era amigo de Apuleio. Pudentila esteve prometida em casamento a seu cunhado Sicinio Claro (irmão de seu falecido marido), mas acabou casando-se com Apuleio, por intermédio de Ponciano. Após dois anos do conúbio e Ponciano já falecido, Apuleio é acusado pelo filho mais novo de Pudentila, Pudente (irmão de Ponciano, enteado de Apuleio), de ter praticado magia amorosa para conquistar Pudentila, interessado em sua situação financeira. Pudente teve como seu assessor Sicínio Emiliano (tio do acusador e irmão do Sicinio Claro e do falecido marido de Pudentila). A família de seu marido falecido era formada por membros da elite local da cidade de Oea. Quem moveu a ação contra Apuleio foi Emiliano, irmão do falecido marido de Pudentila. Porém, a acusação foi feita em nome do filho mais novo da viúva, Pudente, que não tinha ainda maioridade jurídica e foi assessorado pelo tio.

Visto que o casamento era algo de extrema importância política nesse contexto, servindo como forma de estabelecer alianças entre famílias e sendo fundamental para a carreira de homens públicos, é que podemos contextualizar o enredo que envolve Apuleio, um filósofo aristocrático, adepto ao médio-platonismo, orador, romancista, advogado, decurião e escritor de diversas obras literárias, entre elas o principal objeto de estudo que a autora se propõe a investigar: a obra “Apologia”. Esta fonte documental consiste na transcrição da autodefesa do filósofo, redigida anos mais tarde do desenrolar do processo do qual foi acusado.

Como principal objetivo em sua pesquisa, a autora procura romper com os paradigmas e as visões reducionistas a respeito do mundo simbólico e religioso das sociedades antigas, analisando os motivos, as razões e os conflitos pelos quais o filósofo teria sido acusado e relacionando estes com as questões de disputa e relações de poder que envolvem Apuleio e os acusadores.

Para melhor explicitar sobre como a autora desenvolveu sua pesquisa, na qual o livro é resultado, será apresentada uma síntese de cada capitulo e a proposta que a autora estabelece em cada um deles, através de sua investigação e análise.

No primeiro capítulo denominado: Em Torno de Apuleio, a autora nos apresenta aspectos biográficos de Apuleio que, como a maioria das biografias da antiguidade clássica, há controvérsias sobre seu nascimento, origem e posterior falecimento. O capitulo é dividido em subtítulos que ressaltam a vida e as obras de Apuleio, sua trajetória como um homem público, seu contexto político-geográfico-cultural e a opulência dos personagens que figuram na obra analisada (Apologia), no qual a autora considera estes fatores determinantes para compreender a posição do sujeito na sociedade romana e suas relações de poder.

Em O Discurso Apologia e a Historiografia, segundo capítulo do livro, a autora dedica-se a analisar a obra literária Apologia e inicia uma discussão historiográfica acerca do processo de magia. Ao analisar o discurso Apologia, a autora verifica alguns aspectos do discurso, tais como, possível datação da escrita da fonte, razões da elaboração da obra, denominação do discurso, modificações do discurso pronunciado para o discurso escrito. Em seguida, realiza uma discussão historiográfica a respeito do tema, onde é possível compreender as novas indagações, as críticas feitas à historiografia corrente sobre o tema, as lacunas apontadas nos estudos já realizados e a contribuição de sua pesquisa.

No terceiro capítulo, Magia, Filosofia, Casamento e Poder no Principado Romano, a autora busca enfatizar e analisar os temas que acredita dar subsídios para a sua pesquisa: da magia, da filosofia e do casamento no século II e os seus vínculos com as relações e disputas de poder no Império Romano. Nesta análise, Silva questiona a posição de pesquisadores que refutam a abordagem filosófica de Apuleio e por meio de uma solida discussão bibliográfica, apresenta o papel desempenhado por Apuleio como filósofo médio-platônico. Ainda no capítulo, as práticas mágicas de Apuleio, as relações entre poder e magia, o casamento romano como forma de famílias aristocráticas de Roma contraírem alianças políticas e a situação jurídica e financeira de Pudentila, são refletidas, discutidas e ponderadas pela autora.

É no ultimo capítulo, Acusação e Defesa na Apologia, que consiste na análise detalhada de sua principal fonte, o discurso Apologia. A autora começa citando todos os envolvidos no processo, identifica os pontos de acusação direcionados à Apuleio, para então, agrupá-los em três categorias analíticas que acredita estarem relacionadas aos motivos de acusação: a questão da magia, o papel de Apuleio como filósofo e orador e as acusações relacionadas ao seu casamento com a rica viúva. Para cada categoria é dedicado um subtítulo em que Silva expõe e relaciona, através da analise documental, as motivações, as razões, os conflitos e as relações que se estabeleceram entre Apuleio e os envolvidos no julgamento. Encerra o capítulo com uma investigação minuciosa sobre a estrutura da obra Apologia, na qual é possível compreender que o processo que envolve Apuleio e os seus acusadores é apenas um paliativo das relações e disputas de poder político e financeiro no âmbito do Principado Romano.

Segundo a própria autora, os estudos historiográficos tradicionais que versam sobre as razões do processo, fundamentam-se em mostrar possíveis confusões dos acusadores em relação às práticas místicas de Apuleio, típicas da filosofia médio-platônica, com a magia e razões de interesse de Apuleio e dos acusadores na riqueza da viúva como causa do processo.

Partindo das inquietações do momento presente, Silva nos apresenta a singularidade de sua pesquisa ao expor uma proposta de leitura das motivações da acusação infligida contra Apuleio no âmbito das relações de poder, em torno de algumas características que envolviam o acusado e que estão, conforme a análise de Silva, presentes na acusação, tais como: a representação do filósofo como homem público capaz de desenvolver atividades relacionadas à política neste contexto, as relações da magia com o poder e a política e os casamentos da elite romana como formas de alianças políticas entre famílias. Elementos que até então não tiveram a devida atenção dos pesquisadores sobre o tema e que trás o diferencial da pesquisa de Silva.

A autora faz uso da História Cultural, como sua abordagem teórico-metodológica para realização de sua obra, que fornece subsídios para identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é constituída e pensada. O método que é utilizado em sua análise sobre as representações sociais, tem se constituído nos últimos anos como uma das principais formas de investigação histórica.

Em suma, o livro Magia e Poder no Império Romano é voltado para área acadêmica, mas, particularmente, acredito que qualquer pessoa interessada em temas sobre magia, antiguidade e poder, conseguirão realizar a leitura sem grandes dificuldades. A obra possui um toque de investigação policial associado ao rigor metodológico da pesquisa histórica que, com isso, faz um convite ao leitor sobre as facetas desse Império, que ainda instiga admiração e curiosidade.

Filipe Cesar da Silva – Graduando em História pela Universidade do Sagrado Coração – USC – Bauru/SP. Resenha realizada sob a orientação da Profª Drª Lourdes Madalena Gazarini Conde Feitosa.


SILVA, Semíramis Corsi. Magia e Poder no Império Romano: A Apologia de Apuleio.  São Paulo: Annablume; FAPESP, 2012. Resenha de: SILVA, Filipe Cesar da. Cadernos de Clio. Curitiba, v.4, p.395-400, 2013. Acessar publicação original [DR]

Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo | C. Mafra e R. de Almeida

Qual é a religião de uma cidade? Em um país de uma cultura tão rica e complexa como a nossa, essa pergunta é muito difícil de responder, e, em se tratando das duas nossas maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, a resposta parece impossível de conseguir.

Isso se pensarmos em uma religião, mas, quando ampliamos o leque religioso e deixamos que ele se abra para outras religiões, percebemos uma multiplicidade de crenças. É isso que propõe o livro Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo, uma coletânea do núcleo de antropologia urbana da Universidade de São Paulo que aborda as múltiplas crenças que encontramos no Rio e em São Paulo. Leia Mais

A concepção de matéria na obra de Schopenhauer – BRANDÃO (V-RIF)

BRANDÃO, Eduardo. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2009. Resenha de: SOARES, Daniel Quaresma F. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.3, n.1/2, p.352-358, 2012.

Originado a partir da tese de doutoramento defendida por Eduardo Brandão na Universidade de São Paulo, A concepção de matéria na obra de Schopenhauer pode ser apresentado a partir de duas das suas grandes virtudes, que se intercruzam. Em primeiro lugar, surge neste livro uma interpretação robusta e inovadora acerca da noção de matéria no pensamento schopenhaueriano. Já na Introdução, o autor alude à possível reação de um leitor, que perguntaria: diante de questões mais “nobres e abrangentes” (p. 16) da filosofia de Schopenhauer – tais como a negação da Vontade, a estética e a moral –, por que se deter num tema aparentemente tão “pacífico” e localizado como a matéria? A resposta virá durante todo o livro, e não poderia ser mais clara: justamente porque a concepção de matéria nada tem de pacífica na obra de Schopenhauer. Ao contrário, a matéria será demonstrada como um ponto central de cruzamento, a partir do qual é possível tanto constatar influências pouco conhecidas sobre o pensamento schopenhaueriano quanto lançar luz sobre a articulação de temas capitais para o sistema da Vontade, tais como a relação sujeito/objeto, a metafísica e o argumento de analogia entre homem e mundo.

O suposto caráter não-problemático da concepção de matéria ruirá na medida em que Brandão expõe o modo como tal concepção foi gradualmente alterada e revisada por Schopenhauer, geralmente de modo inconfesso, desde as obras de juventude até o segundo volume de O mundo como vontade e representação. Assim, trata-se justamente de levantar uma suspeita sobre esse aparente ponto pacífico da filosofia schopenhaueriana. Desconfiança que nos leva à segunda das grandes virtudes desta obra. Valendo-se da análise específica da noção de matéria, o autor questiona tacitamente um modo cristalizado de abordagem da filosofia de Schopenhauer. Afinal, talvez por excesso de confiança nas palavras do filósofo (que afirma recorrentemente a unidade a-histórica de seu pensamento), em grande parte dos comentários sobre Schopenhauer ainda é rara a investigação de temas a partir da periodização de seus escritos. Segundo Brandão, no caso específico da concepção de matéria (o que não significa que tal periodização caberia à análise de qualquer questão da filosofia schopenhaueriana), não há como efetuar uma abordagem consequente do tema sem recorrer à divisão histórica dos escritos de Schopenhauer em três períodos: o primeiro engloba a Dissertação de 1813 e a primeira edição de Sobre a visão e as cores; o segundo é constituído pela primeira edição de O mundo como vontade e representação; e o terceiro abrange todas as obras publicadas a partir de Sobre a vontade na natureza (texto no qual começaria a ocorrer a mudança decisiva na concepção de matéria em Schopenhauer).

Assim, o enfoque na questão da matéria teria como função tanto esclarecer o importante (e geralmente desconhecido) papel dessa noção na filosofia schopenhaueriana – apresentando também as (muitas vezes insuspeitas) influências que a constituem –, quanto levantar uma suspeita que cabe a todos nós, historiógrafos da filosofia da Vontade: até que ponto devemos aceitar, confiantes naquele “pensamento único” tão apregoado pelo filósofo, que não há grandes modificações de percurso na filosofia de Schopenhauer? No entrecruzamento entre essas duas facetas (uma relativa ao conteúdo da investigação e outra implícita, metodológica), Eduardo Brandão analisa “as transformações do conceito de matéria ao longo da obra de Schopenhauer” (p. 17) em quatro capítulos.

No primeiro, intitulado O lugar da matéria, o autor procura apontar alguns dos problemas que teriam levado Schopenhauer, em determinado momento de sua trajetória intelectual, a reconfigurar toda a teoria da representação. Mostra-se, por exemplo, que, segundo a letra schopenhaueriana, é preciso identificar forças naturais e Ideias. Porém, o conhecimento das Ideias, como sabemos, é reservado sobretudo ao gênio. Em contrapartida, o terceiro livro d´O mundo demarca nitidamente a separação entre conhecimento estético e conhecimento científico. Sendo assim, como se daria um conhecimento específico de tais forças naturais, conteúdo da metafísica da natureza, que não recaísse num conhecimento estético? Ou seja, nessa configuração “não poderia haver um modus operandi do conhecimento específico da metafísica da natureza” (p. 27). Se, conforme explicitado em Sobre a Vontade na natureza, Schopenhauer almejará uma confirmação de sua metafísica por meio da ciência, como seria possível (dada a separação radical entre ciência e estética) operar essa relação? Assim, seria preciso “encontrar uma relação entre as ciências e a Vontade que não seja de exclusão, […] mas de cooperação” (p. 39).

A tentativa de solucionar tais problemas, entre outros, exigiria uma revisão da teoria da representação, na qual uma renovada concepção de matéria encontrará seu lugar. Segundo Brandão, Schopenhauer perceberá que a Ideia não pode ser estabelecida como o único elo da corrente entre a Vontade e seus fenômenos; afinal, se a função da Ideia é precisa no domínio da estética e da moral, o mesmo não se pode dizer da metafísica da natureza. Com efeito, a matéria poderia ocupar a função de elo entre Ideia e fenômeno, já que é, por um lado, causalidade, e por outro, a instância na qual a Ideia se manifesta. Para conceber essa função, o filósofo precisará ampliar a noção de matéria, conferindo-lhe um estatuto metafísico que ainda não aparecia nos textos de juventude e na primeira edição d´O mundo. À matéria deverá ser conferido um “duplo registro no terreno da objetividade” (p. 63).

Na última seção do primeiro capítulo e no decorrer do segundo, intitulado Os dois lados da matéria, o duplo registro da matéria na filosofia schopenhaueriana será explicitado. Segundo Eduardo Brandão, a partir de 1836 o filósofo de Danzig começa a estabelecer uma distinção entre Materie e Stoff. Ambos os termos deveriam ser igualmente traduzidos por matéria, pois referem-se à mesma noção; porém, tal diferenciação tem a função de ressaltar o duplo ponto de vista schopenhaueriano acerca da matéria. O autor demonstra como a diferença entre Materie e Stoff há muito está presente nos comentários (sobretudo entre os alemães) sobre a filosofia de Schopenhauer. Porém, o papel dessa distinção ainda não teria sido suficientemente utilizado para elucidar as influências recebidas e os debates travados pelo filósofo quando da elaboração do “arcabouço conceitual em que se move a metafísica da natureza” (p. 68). Essa é a tarefa à qual o livro se consagra, e com êxito.

A partir de passagens nas quais Schopenhauer aproxima explicitamente a Ideia, tal como aparece na metafísica da natureza (os graus de objetivação da Vontade), e a noção de forma substantialis, oriunda da tradição aristotélica, Brandão aponta a insuspeita presença de uma vertente aristotélica no interior da noção (supostamente platônica) de Ideia em Schopenhauer. Retomando, à sua maneira, a oposição entre nominalismo e realismo, o filósofo alemão teria procurado esclarecer o estatuto da Ideia (unitas ante rem) e do conceito (unitas post rem). Assim como alguns autores medievais buscaram pacificar a querela entre realismo e nominalismo, Schopenhauer buscaria pacificar conceito e Ideia em sua teoria da representação, a fim de legitimar o modus operandi da metafísica da natureza, que será conduzido pela noção de Materie. Desse modo, mostra-se como, no interior da noção de Ideia schopenhaueriana, sempre dita platônica, esconde-se (após a revisão da teoria da representação) um registro aristotélico. Porém, Brandão alerta que “não se trata de preferir o estagirita a Platão, mas de, no fundo, tentar estabelecer uma coexistência (devidamente camuflada por Schopenhauer) entre ambos” (p. 80). Mostra-se inclusive como a revisão da teoria da representação é também influenciada por Giordano Bruno e Plotino (autores que tentaram, cada um a seu modo, efetuar uma aproximação entre Platão e Aristóteles).

Concomitantemente, o autor de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer ressalta que essa remissão a Aristóteles deve ser tomada com cautela. Afinal, Schopenhauer não faria uso das noções aristotélicas de modo fiel, mas as adaptaria às finalidades de seu próprio pensamento. Assim, tais aproximações deveriam ser sempre consideradas de modo analógico. Além disso, a referência a Aristóteles nunca seria direta, mas intermediada pela escolástica, sobretudo por Suárez.

Ressalvas feitas, Eduardo Brandão demonstra com acuidade as diversas aproximações possíveis entre a concepção schopenhaueriana de matéria e noções oriundas da tradição aristotélica. A Materie poderia ser compreendida de maneira análoga à noção medieval de materia prima, ao passo que Stoff poderia ser aproximada da concepção tomista de materia signata. A Materie seria concebida como análoga à substância (embora retraduzindo a noção aristotélico-escolástica para o interior do idealismo schopenhaueriano), o que permanece na mudança; Stoff, por sua vez, seria concebida como análoga ao acidente, referindo-se aos estados da matéria. Em suma, a Materie seria matéria sem forma e qualidade: uma abstração, um conceito resultante de uma operação da razão, que não é dado na experiência, mas apenas pensado. Ela seria uma atividade permanente in abstracto, um agir em geral. Já Stoff seria matéria formada e qualificada, dada na experiência. Ou seja, matéria intuída, agir em concreto, resultado de uma operação do entendimento. Ainda no horizonte de um referencial aristotélico (sempre permeado pela escolástica), a relação entre Materie e Stoff poderia também ser vista analogamente como uma relação entre potência e ato.

Com efeito, a dupla significação conferida à matéria surgiria para tentar dirimir algumas aporias suscitadas pela primeira edição d´O mundo. Por exemplo: “como uma matéria que é causalidade (portanto, essencialmente mudança) pode, ao mesmo tempo, permanecer numa mudança?” (p. 100). Esse duplo registro permitiria ao filósofo enfim elucidar como a matéria pode ser concebida como o elo de ligação entre a Ideia e o principium individuationis (noção também retirada da tradição aristotélica medieval). Com o par Materie e Stoff, Schopenhauer seria capaz de esclarecer aquela passagem entre Ideia e fenômeno. Afinal, a Materie é a arena da luta dos graus de objetivação da Vontade. Ela cumprirá a função de receptáculo, permitindo essa passagem na medida em que é concebida pelo filósofo de Danzig como aquilo que permanece: “não sendo dada em nenhuma experiência, é pressuposta em todas elas como o sujeito (portador) dos predicados (ou qualidades) que justamente as formas (idéias) ocasionam ao se manifestar nos fenômenos (que são, por sua vez, Stoff)” (p. 143-144). Sem se confundir com um substrato real, a noção de Materie surgiria para articular aquela dificuldade encontrada no cerne da metafísica da natureza.

No terceiro capítulo, intitulado As metafísicas e a matéria, Brandão inicia problematizando a afirmação schopenhaueriana que designa a tábua dos Praedicabilia a priori (apresentada no capítulo 4 dos Complementos) como uma propedêutica aos Princípios metafísicos da ciência da natureza de Kant, demonstrando como é preciso constatar a influência de uma ontologia pré-crítica (de tradição aristotélica) a atravessar o pretenso kantismo alegado por Schopenhauer.

Mas a principal tarefa deste capítulo talvez seja esclarecer o deslocamento fundamental na teoria da representação schopenhaueriana, rematado pelo segundo volume d´O mundo, no qual sujeito e Materie passam a ser apresentados como polos do mundo como representação. Nele, a correlação entre sujeito e objeto seria, de certo modo, transformada na correlação entre sujeito e matéria: polos subjetivo e objetivo da representação, respectivamente. Segundo o autor de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, tal deslocamento traria fortes consequências à metafísica schopenhaueriana, já que a Materie passaria também a ser concebida como a objetivação da Vontade tomada in abstracto. Ou seja, assim como o sujeito (por meio do corpo, objeto imediato) era, desde a primeira edição da obra magna schopenhaueriana, a visibilidade subjetiva da Vontade, a matéria tornar-se-ia – no período final da trajetória intelectual do filósofo – a visibilidade objetiva da Vontade.

Por meio dessa dimensão metafísica da Materie, Schopenhauer teria introduzido no plano da representação o vínculo com a Vontade, viabilizando, assim, como se uma passagem do fenômeno ao em si. Com isso, aproximar-se-ia a possibilidade de uma fundamentação metafísica da natureza. Afinal, “a metafísica da natureza, ao analisar a Vontade do ponto de vista objetivo (na matéria, portanto) tem de ser justamente metafísica” (p. 205). Com efeito, apenas esse novo estatuto da matéria tornaria possível realizar uma confirmação da metafísica pelas ciências, exigência exposta em Sobre a vontade na natureza.

Segundo o autor, esse deslocamento ajudaria também a lançar luz sobre um dos pilares do “pensamento único” schopenhaueriano: a atribuição de um sentido moral ao mundo, estabelecendo a correspondência entre moral e metafísica da natureza. Afinal, se já se afirmava que a mesma Vontade age tanto na ética quanto na natureza, a partir da revisão da teoria da representação seria possível explicar conceitualmente a relação entre elas. Aquilo que para o homem é designado como caráter equivale, na natureza, à noção de força. Tal força, por sua vez, concebida como grau de objetivação da Vontade ou Ideia, manifesta-se na matéria. Neste sentido, um papel fundamental teria sido desempenhado já quando o filósofo instalara a lei de motivação não apenas na quarta classe de representações, como acontecia na Dissertação de 1813, mas como uma das três modalidades da primeira classe (ao lado da causalidade em sentido estrito e da excitação). Essa passagem da quarta classe à primeira teria possibilitado a Schopenhauer estabelecer o solo inicial para vincular moral e natureza, tornando análogas necessidade física e moral.

A partir desse solo, a revisão da teoria da representação efetuaria finalmente uma operação fundamental no interior do sistema da Vontade: conceitualizar o argumento de analogia, que teria sido apresentado de maneira apenas parcial no segundo livro d´O mundo. A formalização conceitual do argumento de analogia encontra suas raízes em Sobre a Vontade na natureza. Nessa obra percorre-se aquele argumento em sentido inverso: ou seja, parte-se das manifestações objetivas da Vontade na matéria e conclui-se por sua manifestação subjetiva. Assim, ao mesmo tempo em que corrigiria a parcialidade da formulação apresentada no segundo livro d´O mundo, o texto de 1836 abriria caminho para o estabelecimento da correlação entre sujeito e matéria, posteriormente explicitada nos Complementos: “além do ponto de vista subjetivo sobre a Vontade deve haver, como correspondente, um ponto de vista objetivo” (p. 230). Na medida em que a matéria aparece como polo objetivo da representação, o argumento de analogia poderia ser finalmente conceitualizado: “e a ideia de analogia se transforma neste reconhecimento de que, assim como se manifesta subjetivamente no sujeito do querer, a Vontade manifesta-se objetivamente na matéria” (p. 236).

No último capítulo, Idealidade e Realidade, trata-se de retirar algumas consequências dos capítulos anteriores. Um resultado importante da formalização da analogia entre natureza e moral refere-se à questão da liberdade: se, do ponto de vista subjetivo, a filosofia schopenhaueriana reconhece a liberdade do fazer, seria preciso (após a revisão da teoria da representação) reconhecer algo análogo do ponto de vista objetivo. Ou seja, assim como o homem possui caráter empírico e inteligível, “cada objeto tem de conciliar liberdade e necessidade” (p. 261). A dupla significação da matéria seria capaz de responder a essa exigência. Afinal, se ser livre é não estar submetido a uma razão suficiente, a Materie – assim como seu correlato, o sujeito – poderia ser considerada livre. Desse modo, “na noção de matéria conciliam-se liberdade (ou seja, indeterminação, idealidade transcendental, através da noção de Materie) e necessidade (determinação, necessidade, realidade empírica, através da noção de Stoff)” (p. 263).

Consciente da meta schopenhaueriana de conjugar idealidade transcendental e realidade empírica, outro ponto crucial deste capítulo é o esclarecimento da posição de Schopenhauer acerca do materialismo. Segundo Brandão, mesmo após as críticas (já presentes na primeira edição d´O mundo) à “petição de princípio” em que recai o materialismo, o filósofo de Danzig poderia reconhecer as pretensões dessa doutrina (que concebe o conhecimento como modificação da matéria) desde que fossem reconhecidas igualmente as pretensões do idealismo (que, por sua vez, concebe a matéria apenas como modificação do conhecimento do sujeito). Diante da questão do materialismo, Schopenhauer apenas seria consequente com sua teoria da representação, que sempre sustentara não haver objeto sem sujeito nem sujeito sem objeto. Com isso, Eduardo Brandão rechaça as interpretações que pretendem apontar um materialismo insidioso que dominaria a teoria do conhecimento de Schopenhauer. Segundo o autor, a revisão da teoria da representação permitiria explicar como a matéria possui tanto realidade empírica quanto idealidade transcendental.

Desse modo, a concepção de matéria na filosofia de Schopenhauer encerraria um ideal-materialismo. E se o materialismo poderia ter suas pretensões reconhecidas desde que reconhecesse a contrapartida idealista, o mesmo ocorreria com o idealismo: por isso, a partir da dupla significação da matéria Schopenhauer procuraria defender o idealismo transcendental kantiano contra o idealismo absoluto de Fichte, Schelling e Hegel. Neste sentido, o autor demonstra como a descoberta da primeira edição da Crítica da razão pura propiciou uma reaproximação de Schopenhauer em relação a Kant. Segundo o filósofo da Vontade, apenas nessa edição Kant professaria um idealismo genuíno, não recaindo em dogmatismo (numa leitura em que Schopenhauer sofreria influência do cético Schulze) e assumindo resolutamente a máxima “não há objeto sem sujeito”. O idealismo que transparece nos Paralogismos da alma, na primeira edição da Crítica da razão pura, teria sido influência decisiva para a revisão da teoria da representação schopenhaueriana, permitindo o estabelecimento da correlação entre sujeito e matéria.

Na Conclusão, Brandão frisa como a noção de matéria é um ponto privilegiado para vislumbrarmos as diversas “tendências” que atuam sobre a filosofia de Schopenhauer. Afinal, a compreensão do ideal-materialismo schopenhaueriano permitiria constatar como o sistema da Vontade incorpora elementos kantianos, pré-críticos e pós-kantianos (em seu combate contra o idealismo alemão). Por último, o autor apresenta ainda um excurso denominado Algumas observações sobre Schopenhauer, Heidegger e Nietzsche, cujo objetivo principal é apontar algumas possíveis consequências de sua obra para a interpretação do pensamento nietzschiano.

Portanto, procuramos apresentar, de modo apenas rudimentar, algumas das principais articulações de A concepção de matéria na obra de Schopenhauer. A exposição de Eduardo Brandão é repleta de minúcias esclarecedoras (tanto sobre a noção de matéria quanto sobre outros aspectos do pensamento schopenhaueriano) e amiúde surpreende pela erudição (sobretudo em relação à filosofia medieval).

A partir de uma tese original e audaciosa, que não teme extrapolar as leituras habituais da filosofia de Schopenhauer, o livro tem a grande virtude de introduzir uma desconfiança sobre a interpretação daquele “pensamento único” como ausência de modificações relevantes no percurso da filosofia schopenhaueriana. A postura de Schopenhauer, que raramente admite mudanças significativas no interior de seu pensamento, acaba por gerar aporias entre diferentes períodos da obra. Por meio da análise da noção de matéria, Eduardo Brandão não se exime de apontar tais aporias, demonstrando como uma leitura cuidadosa é capaz de, se não as dissolver, ao menos compreender sua função.

Daniel Quaresma F. Soares – Doutorando em Filosofia pela USP e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

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Nervos da terra – Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP | Danilo Paiva Ramos

“Nervos da terra” é uma obra que nasce do desejo de Danilo Ramos refletir sobre as tensões e as experiências dos sem-terra do Assentamento Carlos Lamarca, em Itapetininga, São Paulo, implantado no ano de 1998, após inúmeras ações das famílias acampadas, desde 1996.

A história narrada pelo autor traz a marca do sujeito coletivo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a perpassar as histórias e memórias de cada um dos narradores, seja para legitimar a proximidade com o MST ou mesmo para negá-la. Leia Mais

História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) | Glaydson José da Silva

Glaydson José da Silva é historiador com doutorado pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente é professor da Universidade Federal de São Paulo e diretor associado do Centro de Estudos e Documentação do Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica (CPA/UNICAMP). Também é avaliador do Ministério da Educação para fins de reconhecimento de cursos de História. Seus principais temas de pesquisa concentram-se nas relações entre antiguidade e modernidade, nas tradições interpretativas em História Antiga, direcionando para o estudo das leituras acerca do mundo antigo no caso da França contemporânea e extremas direitas.

O pesquisador possui várias publicações dentre artigos e capítulos de livros e participou da organização de diversas obras. O livro História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944), de 2007, recebeu auxílio publicação da FAPESP e trata-se de uma versão revisada de sua tese de doutorado defendida em março de 2005 sob orientação do Professor Doutor Pedro Paulo Funari. A partir de sua leitura notamos como o historiador constrói uma História crítica e analisa como a modernidade pode usar o passado. O estudo das apropriações da Antiguidade no regime de Vichy é a maneira pela qual o autor nos evidencia isso.

O livro está dividido, além da introdução e conclusão, em quatro capítulos, cada um com duas partes e iniciando com um breve prólogo que contextualiza o tema a ser tratado. O assunto geral é o regime de Vichy e o objeto de análise o passado gaulês, romano e galo-romano usado para justificar a dominação alemã e o colaboracionismo francês com a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. As fontes são materiais da época, como livros acadêmicos, livros de vulgarização científica, manuais de História e de Arqueologia, jornais, revistas, discursos, textos oficiais, correspondências, cartazes, moedas e outros.

Como os capítulos iniciam com um pequeno prólogo, possuem bastante autonomia em relação à totalidade da obra. No primeiro Silva realiza uma discussão teórica acerca da instrumentalização do passado e defende ser preciso percebermos que na historiografia do mundo antigo, as imagens e lógicas históricas são produzidas dentro de tradições interpretativas atreladas, mais ou menos, ao contemporâneo.

Nesse capítulo o autor também discute as noções de herança e legado para explicar como se constituem os mitos fundadores, os quais perpetuam valores e imagens da vida nacional, objetivando criar identidades pelo uso da ideia de permanência. Dessa forma, com o intuito de resgatar a memória nacional, a História e a Arqueologia assumem um papel importante: estão a serviço do Estado e permitem qual tipo de memória se pode (re)construir. Essa tradição de apropriação do passado em prol do governo assume dimensões gigantescas no século XIX e continua ainda no XX, principalmente no contexto das duas grandes guerras – do qual Silva retira seus exemplos de instrumentalização do passado, a Itália fascista e a Alemanha nazista.

Silva ainda trata do caso francês a partir do nascimento do herói Vercingetórix na escrita da História francesa após a sua Revolução. O autor reflete sobre como na França a disciplina histórica está atrelada a memórias construídas durante a elaboração da identidade nacional e, também, constitui-se em uma História mitológica – afinal, cria mitos de origem – encontrada principalmente na escola, espaço ideal de divulgação e popularização, e possuindo na política sua primeira finalidade já que são controladas por discursos desse gênero.

O mito consolida-se a partir de 1814 e 1815 com a invasão da França por prussianos e cossacos. Nesse contexto cresce o apelo a Vercingetórix, líder gaulês vencido pelos romanos na antiguidade, que simboliza a luta pela liberdade e é um verdadeiro herói. Segundo o autor, os historiadores e escritores colocam-no em evidência para retornarem a oposição entre romanos e gauleses e, assim, justificar as lutas políticas da época. Novamente em 1870 a França é derrotada pelos alemães e a imagem de Vercingetórix, que se rende diante de César, mas sem ser humilhado, preserva para os republicanos algo essencial: a honra da França vencida. E, também, na primeira grande guerra a imagem do herói gaulês aparece.

No segundo capítulo “A Antiguidade a serviço da colaboração: nas trilhas da memória, a reescrita da História da França dominada (1940-1944)” Glaydson José da Silva contextualiza no prólogo o momento histórico estudado, fornecendo informações importantes sobre o debate governamental francês acerca da derrota. Silva também nos explica o que é a Revolução Nacional (R.N.) e como Vichy torna-se um Estado autoritário, explanando o papel da propaganda na sua legitimação.

O autor termina tal introdução do segundo capítulo nos explicando a importância de seu estudo. A pesquisa desse período da França até as décadas de 1970 e 1980 eram poucas, mas desde então isso mudou. Contudo, questões sobre o colaboracionismo e o estatuto da História e da Arqueologia durante o Regime ainda não foram muito trabalhadas. Dessa maneira, seu livro pretende contribuir com esse domínio tão pouco explorado.

Na continuidade da leitura, observamos o retorno do mito de Vercingentórix. O autor inicia a primeira parte do capítulo explicando o conceito de memória coletiva que surge com os estudos de Maurice Halbwachs e a partir do qual reflete sobre a ideia de um patrimônio histórico e cultural comum aos franceses, amparando a R.N. e o Regime de Vichy. A memória coletiva proporciona as bases necessárias à compreensão da derrota, à justificativa da dominação e à colaboração com estrangeiros.

O patrimônio histórico e cultural comum é buscado por meio da História e da Arqueologia a serviço de um Estado autocrático e, por isso, estão comprometidas com ideologias legitimadoras, pois o governo propõe uma releitura das origens coletivas que atende aos seus próprios interesses. Essa interpretação do passado é baseada em uma ideologia política de fundo revisionista: procura difundir a ideia “de que os gauleses não foram vencidos pelos romanos, mas, sim, beneficiados pela inserção da Gália nos domínios do Império, e que da união desses dois povos nasceram os franceses.” (SILVA, 2007: 91).

A justificativa da dominação tanto romana como alemã, em épocas diferentes, então, é fundamentada em uma ideologia da derrota, ou seja, no entendimento de que os gauleses e depois franceses (mesmo sendo povos brilhantes) mereciam o castigo da ocupação por causa de seus desvios disciplinares. Dessa forma, como nos mostra Silva, a recuperação do passado gaulês para a propaganda de Vichy possui dois aspectos: o de homenagem aos gauleses por sua luta heróica contra as legiões de César e pelo reconhecimento da superioridade romana. E com essa noção de que a associação com o outro (romano ou alemão) propicia o avanço e o progresso, o colaboracionismo também se justifica.

O próximo capítulo do livro nos traz o caso específico de Jérôme Carcopino, historiador, arqueólogo e epigrafista do mundo romano, secretário do Estado e ministro da educação entre 1941 e 1942. No prólogo observamos a preocupação do autor em explicar a discussão que existe em torno desse estudioso em saber se teria sido mais um intelectual do que um político ou se o contrário. Para Silva, sua função no governo não justifica suas escolhas na elaboração do passado, porque a própria função é uma escolha e o importante é notarmos as interfaces entre o historiador e o político na figura de Carcopino. As escolhas desse pesquisador constroem uma História política factual focada nos grandes homens do passado, o que o autor percebe a partir de trechos dos seus escritos. Nesses escritos, também notamos a emissão de juízos de valor a respeito de indivíduos, situações e momentos históricos.

Com essas considerações sobre Carcopino, o autor passa a analisar a partir de Stéphane Corcy-Bebray e outros autores, sua inserção no cenário político vichysta. Carcopino é favorável ao armistício e evolve-se com o colaboracionismo. A partir de 1940 recebe diversas nomeações, como diretor da École Normale Supérieure onde empreende grande reforma: reforço do poder do diretor, exclusão das mulheres e dos judeus, entre outros; ao mesmo tempo em que defende junto ao Regime a manutenção de bolsas para alunos judeus e de advogar em favor de seus amigos e colegas do meio universitário, Mare Bloch por exemplo. É a partir desse estudo da relação de Carcopino com o poder que Silva tece algumas considerações acerca da aproximação de suas obras políticas com as suas obras acadêmicas e realiza uma importe reflexão sobre qual é o lugar dos historiadores da Antiguidade, um dos assuntos abordados no próximo e último capítulo.

No prólogo do quarto capítulo, o autor desenvolve o que é extrema direita e o que é a extrema direita francesa, tratando do caso específico da França no pós-guerra, a qual teria esses grupos de radicalização política como herdeiros do Regime de Vichy. De acordo com o autor, elas são ditas como Nouvelle Droite e são uma resposta ao fracionamento da direita, além de estarem ligadas a uma prática historiográfica na qual a História Antiga é comprometida com ideologias de justificação e legitimação de direitos, desigualdades raciais e de grupo social.

Na sequência, Glaydson José da Silva nos traz as discussões mais recentes, da nossa contemporaneidade, em torno do F.N. e a luta contra os imigrantes e a violência. Para o partido, a imigração se inscreve no mais atual aspecto dos debates identitários na França. Porque gera problemas como: a falta de segurança pública, desemprego, saúde e decadência moral; ocasionando uma noção de crise social advinda da perda de identidade. Portanto, o F.N. defende uma delimitação de fronteiras sólidas, a qual exclua os países não europeus e assegure a proteção contra os imigrantes. A noção tida é, por exemplo, de que Roma caiu ao se unir com os povos instalados aos poucos no Império.

Segundo o autor, atualmente o mito gaulês continua sendo veementemente defendido pelo F.N. A sua juventude nacionalista e racista, um exemplo, orgulha-se em exaltar suas origens gaulesas na internet, em camisetas, prospectos, letras de músicas e outros. E esse uso que o partido faz do passado ainda é pouco estudado. Por isso, Silva propõe a pesquisa de historiadores do mundo antigo nesse campo, combatendo o racismo, o elitismo, a xenofobia e outros discursos característicos de partidos como o F.N. Dessa maneira, convida o estudioso da antiguidade a assumir uma pesquisa, em nossa opinião, de muita relevância, mostrando-nos, com um exemplo bastante atual, a aproximação dos estudos antigos com discursos políticos e ideológicos. Por fim, no fechamento do livro, Silva nos deixa a pergunta: qual lugar a antiguidade ocupa em nossas sociedades?

Essa questão nos permite pensar sobre o ofício do historiador, principalmente o do mundo antigo, e se encaixa nas recentes discussões sobre o presentismo da História. A importância de indagar acerca desse lugar nos permite notar a utilização da História a serviço de certa lógica justificadora e legitimadora de questões identitárias, nacionais, raciais e políticas. Além de nos mostrar a História como um discurso do passado que representa as perspectivas nas quais foi construído.

No Brasil, estudos como esse de Glaydson José da Silva estão, aos poucos, ganhando espaço com a formação de grupos de pesquisa dentro do tema da instrumentalização do passado. Um exemplo é o grupo de pesquisa “Antiguidade e Modernidade: História Antiga e Usos do Passado” formado nesse ano de 2010 e cujos líderes são o próprio Silva e a Professora Doutora Renata Senna Garraffoni.

Mesmo que tenhamos resumido a obra História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) e tecido algumas considerações sobre a sua leitura, destacamos somente aquilo que mais nos interessou. O livro todo possui outras explanações e questionamentos, porém, certamente, a indagação principal é sobre o lugar dos estudos antigos. Para refletir mais profundamente no assunto recomendamos sua leitura integral que, como comenta o Professor Doutor Leandro Karnal na apresentação, não é destinado apenas aos especialistas em Antiguidade, mas “a todos que manifestem alguma preocupação sobre os usos e abusos do passado histórico.” (SILVA, 2007: 16).

Camilla Miranda Martins –  Bolsista PIBIC/CNPq.


SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007. Resenha de: MARTINS, Camilla Miranda. Cadernos de Clio. Curitiba, v.2, p.295-304, 2011.Acessar publicação original [DR]

Memória e diálogo: escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral – MAGALHÃES; SANTHIAGO (HO)

MAGALHÃES, Valéria Barbosa; SANTHIAGO, Ricardo (Org.). Memória e diálogo: escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral. São Paulo: Letra e Voz; Fapesp, 2011. 186 p. Resenha de: CORRER, André Bortolazzo. História Oral, v. 14, n. 1, p. 153-158, jan.-jun. 2011.

Memória e diálogo é resultado da preocupação e dos esforços que vêm sendo empreendidos para fomentar discussões sobre a Zona Leste de São Paulo, sua história e memória, e sobre a prática de pesquisa com narrativas orais e lembranças. Essa preocupação se refl ete nas discussões do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (Gephom), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). Fundado pelos organizadores da obra em questão, no intuito de trazer ao ambiente acadêmico as preocupações com o entorno da universidade, o Gephom desenvolve pesquisas sobre movimentos migratórios na Zona Leste de São Paulo e sobre a história oral enquanto método de pesquisa, entre outros temas. O 1° Simpósio de História Oral e Memória: Memória da Zona Leste de São Paulo, realizado em junho de 2010, na EACH-USP, foi o ambiente de efervescência da obra, sendo que grande parte dos textos nela publicados foram apresentados no evento.

O subtítulo do livro – “escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral” – revela sua primeira peculiaridade: uma divisão entre prática de pesquisa e referencial teórico, que ao fi nal acaba por constituir um todo emaranhado que se complementa e se cruza durante a leitura. Isso concede à obra como nova prática pedagógica que visa aumentar a interdisciplinaridade e quebrar com a prática secular que forma especialistas sem conhecimento do todo. Todas essas questões são apenas lançadas à tona pelos professores, uma vez que o tema ainda tem muito a ser discutido e aprofundado.

O texto do padre Ticão, militante dos movimentos sociais da Zona Leste de São Paulo, busca contar um pouco de sua trajetória e da história da região do ponto de vista dos habitantes locais. Padre Ticão faz uma análise da evolução dos movimentos sociais ao longo das últimas quatro décadas, com o surgimento da Teologia da Libertação, a ditadura militar, o papel da Igreja Católica nos movimentos sociais do período da repressão, a redemocratização da década de 1980. Finalmente, ele apresenta frutos desses movimentos, como a expansão do Sistema Único de Saúde (SUS), os movimentos de moradia, a conquista da universidade na região, além de apresentar as necessidades ainda prementes na região mais densamente povoada do município de São Paulo.

Valéria Barbosa de Magalhães, uma das organizadoras da obra, em seu texto “Memória e história da Zona Leste de São Paulo”, realiza uma refl exão acerca de sua pesquisa atual, enfatizando entrevistas já realizadas com a população da região, em sua maioria migrantes do Nordeste do país. A autora trata de questões sobre o método e sobre a memória regional, destacando a importância desse trabalho nos campi de universidades localizados na periferia.

Uma das características do projeto é seguir a tendência de registro e disponibilização online de entrevistas de história oral, visando privilegiar a articulação “memória-sujeito-identidade”.

Finalizando a primeira parte da obra, Mauro Alves Bonfi m descreve o projeto “Observatório de memória audiovisual, do CPDOC, núcleo de projetos da Fundação Tide Setubal, criado em 2008. O CPDOC tem por objetivo a constituição de um acervo de depoimentos e fotos dos moradores para a produção da memória local. O autor destaca que o centro busca criar uma referência local, especialmente para os moradores de São Miguel Paulista, incluindo o uso de mídias sociais, de plataformas colaborativas e de audiovisual.

Questões do método: teoria da pesquisa em história oral A segunda parte do livro compreende refl exões teóricas sobre o método – a história oral –, com textos de variados autores da área, entre os quais Leland McCleary, Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, Maria de Lourdes Monaco Janotti, Richard Cándida Smith e Daphne Patai, além do texto de um dos organizadores da obra, Ricardo Santhiago.

O texto de McCleary trabalha com questões de língua e tecnologia e a relação da primeira como veículo narrativo e de comunicação. Passando pela discussão sobre gêneros textuais, o autor trata da entrevista como o mais adequado gênero para a história oral. A história oral acontece no âmbito da oralidade, mas também pode ocorrer em outras linguagens, como o exemplo destacado pelo autor de uma entrevista em libras, a linguagem de surdos.

Além da entrevista, há a transcrição, que se constitui como outro gênero textual, o escrito. Com o advento de novas tecnologias, no entanto, as possibilidades de interação se multiplicaram e inúmeros canais vêm surgindo para registros e bases de dado online, lançando novas possibilidades para o futuro da história oral.

Alice Lang aborda as propostas e perspectivas da metodologia de pesquisa para o estudo do tempo presente, a história oral. Nesse aspecto, avalia as variações da abordagem ao longo do tempo e nos diferentes grupos de pesquisa, com destaque para a história de vida, inspirada por Roger Bastide, e a história oral moderna americana, surgida no Oral History Research Offi ce, de Nova York. Basicamente, a autora identifi ca três tendências, que muitas vezes se imbricam: a história oral voltada para a pesquisa, a dirigida para a criação de documentos sobre o tempo presente e a militante. Em seguida, a partir da experiência do Centro de Estudos Rurais e Urbanos (Ceru), detalha os principais pontos do processo de pesquisa.

O texto de Ricardo Santhiago trata da polêmica questão da tradução na história oral e os problemas que podem ocorrer com a falta de cuidado nesse aspecto, gerando diferentes interpretações sobre posições de pesquisadores estrangeiros na área. Parte de seu projeto de doutorado, o texto passa pela chegada da história oral no Brasil, sua consolidação e variações, e a limitação das traduções nas primeiras décadas. Segundo o autor, grande parte dos textos-chave para o campo da história oral como método de pesquisa ainda não possuem, ou não possuíam até recentemente, tradução para o português.

Nessa abordagem, ele inclui também a crítica a propostas como a de “transcriação”. Richard Cándida Smith é o atual diretor do programa de história oral da Universidade da Califórnia – Berkeley, e trata em seu texto da questão da autoria no âmbito da historiografi a. Constrói seu texto colocando-se do outro lado da entrevista, numa inversão de papéis, uma vez que narra uma experiência que viveu como entrevistado sobre o ativismo estudantil na década de 1960. Cándida Smith destaca que essa inversão de papéis ocorreu apenas 25 anos depois de ter começado a trabalhar com história oral, enquanto entrevistador e pesquisador, o que lhe trouxe uma perspectiva totalmente nova com relação ao seu interlocutor. Diante dessa experiência, ao assumir o centro de história oral, traçou novas metas, como a publicação de todas as entrevistas na internet, o envolvimento dos estudantes nos projetos e o desenvolvimento de uma agenda de investigações temáticas e históricas.

Em “Pensando as implicações do testemunho na história oral”, Maria de Lourdes Monaco Janotti levanta alguns dos problemas existentes nas relações entre os vários tipos de testemunho e a história oral enquanto metodologia. Para tanto, a autora utiliza dois casos clássicos do uso da história oral em acontecimentos de importância política: a obra de Hanna Arendt Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal e o julgamento do general Aussaresses e suas publicações posteriores em forma de entrevista. Dentro dessa análise, trata da questão da interpretação dos testemunhos no interior de cada disciplina e as difi culdades que ainda se colocam no trato com as entrevistas, em especial na sua conversão para o texto defi nitivo.

Finalizando a obra de maneira destacável, Daphne Patai escreve em “Existe vida fora da história oral?” que o desafi o do pesquisador consiste em construir um conhecimento “multifocal, multidimensional, que não privilegie uma só metodologia, por mais sedutora que ela seja” (p. 174). Para além das entrevistas e transcrições, as análises histórica, política, social, econômica, entre outras áreas que se relacionam com a pesquisa, são essenciais para a construção de uma obra. A história oral não basta por si só; portanto, é mais uma metodologia que se complementa com outras formas de pesquisa. Finalmente, a autora destaca que a história oral, segundo sua visão, não necessariamente representa a voz dos oprimidos e nem deveria ser privilegiada com essa fi nalidade, pois, entre outros problemas, corre-se o risco de supervalorizar o papel e a capacidade de atuação do pesquisador.

Memória e diálogo, em seu conjunto, tem uma importância significativa por apontar os rumos da história oral atualmente no Brasil e no mundo, apresentando suas principais características como método de pesquisa. Além disso, por meio de textos de diversos autores, a obra problematiza posições consolidadas a respeito do método, em especial as posições que pretendem conceder à história oral um papel de disciplina acadêmica específica.

Outro fator de destaque é a capacidade de clarear a ideia de que a história oral pode ser feita e usada de diversas formas, para diversos fins e com diferentes temáticas de pesquisa, sem a pretensão e a necessidade de ser superior a outras formas de pesquisa, mas complementar.

Para além das questões metodológicas, a obra é rica por trazer à tona temáticas de discussão fundamentais para a Zona Leste da cidade de São Paulo, como os movimentos sociais, a universidade pública e sua localização, as questões emergentes locais, entre outras. Além disso, lança luz a algumas questões essenciais para a formação histórica e social da região, como a migração, a organização do espaço urbano e a industrialização.

Trata-se de um livro teórico e prático, ao mesmo tempo, conseguindo atingir diversos públicos e interesses, num todo coeso e de agradável leitura.

Uma vez que a história oral constitui-se como estudos sobre o tempo presente, seu uso para tratar dos problemas e desafios da Zona Leste foi muito bem aplicado.

Constituindo-se como leitura atualizada sobre os temas que se propõe a discutir, a obra atinge diversos públicos com interesses específicos. O primeiro deles compreende interessados na história da Zona Leste de São Paulo, em especial aqueles que trabalham com questões de imigração e formação social da região. Ao lado destes, historiadores interessados nas histórias de bairros e municípios, em especial na história da cidade de São Paulo, podem encontrar reflexões importantes. Um terceiro grupo para o qual a obra seria de grande utilidade é formado por pesquisadores, professores, alunos e comunidade da EACH-USP. Visto que a obra se propõe a discutir questões do ensino superior e da origem e construção da história da própria unidade, esses podem encontrar aqui pistas para compreender diferentes aspectos da realidade acadêmica da EACH e sua relação com o entorno.

Finalmente, o livro se destina a iniciantes e pesquisadores de história oral, pois apresenta interessantes debates e posicionamentos sobre o método, suas perspectivas, tendências e possíveis abordagens. É uma leitura importante para quem busca na história oral uma metodologia consistente e válida para pesquisas acadêmicas e extra-acadêmicas.

Rastros de histórias ou as Mortes de José Adelaide Gonçalves1 ALMEIDA, Nilton. Fortaleza Rebelde: cartografia das lutas dos trabalhadores ferroviários em Fortaleza. Fortaleza: Edições SECULT , 2012 História Oral, v. 1, n. 15, p. 255-260, jan.-jun. 2012 1 Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará Um livro pode ser lido de muitos modos. Aqui, a sensibilidade do leitor vai destrinçando os fios da trama a partir dos fragmentos de uma memória da dor nos depoimentos de familiares, filhos, amigos e viúvas dos trabalhadores ferroviários. Observe‑se a dimensão dos textos testemunhais em seu propósito político e educativo: transmitir experiências coletivas da luta política, assim como os horrores da repressão, em um intento de indicar caminhos e marcar com força o ‘Nunca Mais’, como na arguta abordagem de Elizabeth Jelin. Veja‑se, inclusive, como este estudo pode suscitar seguidas reflexões sobre certas grandes ausências nas narrativas, como é o caso das mulheres. Num mundo do trabalho predominantemente masculino, elas terão assumido apenas os papéis prescritos: professoras, escriturárias, assistentes sociais? Na fotografia do III Congresso Nacional Sindical, em 1960, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, numa tomada do palco e da lateral do auditório, muitos engravatados e de paletó, outros em mangas de camisa e nenhuma mulher.

Neste livro, uma diversa cartografia da cidade de Fortaleza. O autor esquadrinha a cidade em direção às estações do trem, aos bairros cortados pelos caminhos de ferro, aos espaços de confraternização e organização da classe, engenheiro Couto Fernandes, em 1919, o Olímpico Football Clube, pois os engenheiros estão sempre à espreita querendo em tudo mandar, até chegar ao Ferroviário, time oficial, da empresa. Mas a história prega peças aos desavisados; o time da empresa vira o Ferrim dos comunistas e anarquistas, da resistência coral proclamada: “nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes”; “nada diminui nossa paixão incendiária, ferroviário, orgulho da classe operária”. O Ferrão com seu grito e seu hino.

A alegria das lembranças é fato notável neste livro. Quando a memória é acionada para lembrar as invenções da política da classe, é com alegria que se lembra a força da novidade do Pacto Sindical no final dos anos 1950.

“Era um movimento bonito e animado”, no dizer de Zé Leandro. A luta era bonita e alegre! Era o tempo dos meetings, dos comicios‑monstro entoando os hinos do Jataí e dando vivas ao Partidão. Como atestam os instantâneos, registrando na fotografia uma celebração coletiva da vitória da classe, até ontem em pé de guerra, no dizer da manchete em vermelho do jornal Unitário, na greve do “fora Humberto Moura”, em 1961: piquetes, dormentes dos trilhos e blocos de cimento virando barricadas, carros de rodas para cima, barraca da resistência; na capital e no interior, como se vê nas fotografias em frente à oficina do Urubu, em Sobral ou no Ipu. Fotografias de gente no plural, encenando os coletivos e a coreografia da luta social.

Aliás, o sentido da luta como festa redentora é recuperado em outras passagens deste estudo. É de se ver a camaradagem, a conversa entre iguais e o dizer‑de‑tudo dos ferroviários ali no bar pertinho do sindicato, espécie de território livre, onde se encontravam e de tudo falavam. Nesse convívio, até os apelidos – o Cajarana, o Catita, o Caboclinho, o Sol Quente, o Sereno, o Macarrão – são os sinais da camaradagem atualizando as conversas. Dali, saíam confiantes para inventar as coreografias do protesto narradas neste livro. Passeatas contra a carestia, de solidariedade aos bancários e estudantes.

É de se imaginar a beleza dos braços dados acompanhando o vozeirão de José Jatahy e o som da radiadora tocando um hino de classe dos ferroviários.

A letra é luminosa, alvissareira, confiante e esperançosa. Num lampejo de memória, o Sereno diz que aquilo era uma época diferente… Era a maior festa… Bastava um grito: pára o trem! E pronto, a greve estava na praça, na rua. Aliás, a greve é rememorada como uma grande festa: da liberdade, do não ao patrão, de quando o trabalhador se manifesta, dá vazão a todo seu sentimento, como na recordação de Batistinha. Afinal, o aprendizado das greves desde os finais do oitocentos aumenta nos começos do novo século.

Ferroviários, marítimos, portuários e o “pessoal agrícola” do Chico Julião mobilizavam‑se em busca de direitos.

Em busca de direitos denegados. É outro mote deste livro. As tricas e futricas da política local emergem neste estudo por dentro das situações de impasse entre a organização dos trabalhadores ferroviários e a direção da RVC. Em alguns casos, a narrativa encaminha o leitor para uma história à maneira de “queda de braço”, como se vê no malogrado episódio da demissão do engenheiro José Walter. Era chegado o golpe civil‑militar. Tempos difíceis e cinzentos. Acabou a festa. Intervenção, demissão, perseguição, prisão. O vocabulário é outro. A desmesura do arbítrio não tem limite: os ferroviários mais à frente das lutas sindicais são proibidos até de passar por perto da empresa. E se pegos andando na estação central, cadeia neles! É a ordem do doutor engenheiro. A vida mudou demais para esses trabalhadores e suas famílias. Casas invadidas, perseguições, prisões, demissões, o cárcere, a vida virada de ponta‑cabeca. O controle, a vigilância, “os alcaguetes estavam por todo lado: disfarçados e traiçoeiros”.

Por dentro desta narrativa emergem outras histórias dos militantes comunistas e de suas vivências no Partidão. Uma visada retrospectiva parece tudo compreender. Mas, bem vistas as coisas, não é assim. Para alguns militantes, a memória traz de volta uma história atribulada, lembrada com algum travo, de divergências, sectarismos, uma linha justa tirada lá em cima, no comitê central. Para outros, é uma história de autoesclarecimento, de aprender a ler, de estudar nas horas vagas para mostrar o valor da classe, de se tornar “jornalista da classe”. Aliás, este livro traz boas passagens para a história do jornalismo no Ceará. E do jornalismo da militância comunista, como aquele praticado por Jonas Daniel em franco combate à ditadura, fazendo funcionar em Croatá uma tipografia, melhor dizer, um mimeografo elétrico adaptado à função manual, donde saía o Voz Operária, a Estudos e Mundo em Revista e, de quebra, uns quantos panfletos, pois a luta também se travava por impresso. Sobre o fato, o jornal O POVO estampa, em abril de 1973: Imprensa comunista desmantelada no Ceará. A notícia, ao modo do jargão policial, indica os “elementos” presos e se fica sabendo que desmantelar é literal, levar tudo: máquina impressora, grampeador industrial, aparelhagem de fundição de chumbo, guilhotina, clichês, latas de tinta – e prender os ‘subversivos’. Rememorando aquele tempo, Dona Nazareth, viúva de Jonas Daniel, é daquelas que “viveu para contar”, e sua memória tem saudades e é alegre: terá valido a (a)ventura de ser comunista. Como é o caso também de Caboclinho Farias. Perguntado como se tornara comunista, responde depressa: por meio da leitura! A comprovar o dito, o processo na polícia traz o rol de sua literatura de formação: desde o manifesto comunista, compêndios de história, manuais de difusão do marxismo‑leninismo, boletins, até recuerdos de suas viagens militantes. Outras boas histórias de dedicados militantes comunistas: Mascarenhas, Zé Maria, Graciano, José Elias, Anário, Zé Duarte, entre tantos, em sua peleja até na cadeia! Este livro nos dá a pensar também sobre o capítulo da história da destruição dos livros nas ditaduras. Esse episódio terrível deve ser contado.

Terá sido uma hora de muita aflição, quando se sabia acuado pela repressão, enterrar ou queimar os livrinhos. Já os meganhas, quando chegam – e a qualquer hora – vão direto aos livros! Livro é prova do crime de pensar. A comprovar essa sanha contra a palavra impressa, estão aí os processos com extenso rol de livros. A ditadura prende os livros, confisca o pensamento, esse um capítulo de grande significado na história social da interdição do livro e da leitura.

Este livro‑documento terá cumprido largamente a tarefa abraçada desde o início da intenção de pesquisa. Tentar juntar os pedaços da história do ferroviário José Nobre Parente, 37 anos, preso, mantido incomunicável, assassinado na prisão. José perdeu a vida duas ou mais vezes: assassinado na prisão e apagado dos registros das vítimas da ditadura civil‑militar – seu processo na Comissão é parcamente documentado. Perde a vida e a memória é chafurdada. Dele se diz: fraco do juízo, é um suicida. Macabra e porca história tantas vezes falsificada nos prontuários de polícia. José, Manoel, Vladimir terão sido – e continuam sendo – as vítimas da tortura. Esse o nome do bicho, sobre o qual pesam os espessos silêncios convenientes da autoridade policial e o esquecimento deliberado e cúmplice da imprensa local. Amnésia e anistia. Quem matou José? É a pergunta que se faz o jornalista e historiador Nilton Almeida. Pinça da manchete de Última Hora, do jornalismo dissidente, constituindo esses desvãos de memórias persistentemente ocultadas e contrastando versões impressas dos terríveis atos da ditadura. Neste ponto, no âmbito do direito à memória, é de se proclamar a necessidade urgente de amplo inventário e divulgação de fontes do acervo dos documentos da polícia política do Ceará, o acervo do DOPS, sob a guarda do Arquivo Público do Estado do Ceará.

Este livro é trabalho meticuloso de um sincero historiador. Comprometido com a faina do ofício, Nilton Almeida tem no arquivo uma oficina e entende a escrita da história como prática laboriosa de desmontar versões oficialmente arranjadas sobre episódios e personagens, nomeadamente esses “notáveis” que nomeiam bairros, avenidas, logradouros, retirando de sua ação sobre os tempos e lugares os conteúdos do arbítrio, da repressão, do mando. Também é esforço bastante bem realizado de sair dos trilhos da história institucional da estrada de ferro em busca das outras histórias dos trabalhadores, de suas famílias, de seu jeito de viver e de aprender a soletrar as palavras da luta social. É também um respeitoso exercício de escuta das memórias do silêncio ou dos papéis oficiais, em particular, das mulheres‑viuvas, algumas de maridos mortos‑vivos. Mulheres que, às vezes, se acostumaram a andar de olhos baixos para não ver o dedo apontando o estigma do marido preso pelo crime de ser comunista.

André Bortolazzo Correr – Mestrando em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (Gephom). História Oral, v. 18, n. 1, p. 241-246, jan./jun. 2015.

A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825) / André R. A. Machado

A obra ora resenhada faz parte da renovação historiográfica nos estudos sobre as mudanças políticas vividas no mundo lusobrasileiro no primeiro quartel dos oitocentos. Durante décadas, debruçados sobre a “questão da Independência” – tema de forte apelo nacional –, historiadores de diferentes matizes obscureceram as alternativas políticas que se apresentavam para o momento. A mesma perspectiva transformou a Revolução do Porto – vitoriosa em agosto de 1820 – numa espécie de “antecedente” da Independência, reação última ao “projeto recolonizador” levado a cabo pelas Cortes portuguesas.

Desde a década de 1990, autores como István Jancsó – mestre de todos nós e orientador da tese que dá origem a este livro – destacavam os pressupostos a serem refutados e sugeriam os caminhos a serem trilhados por um renovado conjunto de historiadores. Em síntese: 1) recusava-se a pré-existência do Estado e da Nação, com a abolição de expressões como “manutenção da unidade”, “restauração das províncias rebeldes”, “separatismo do Norte”; 2) propunha-se a recuperação da dinâmica política a partir das variáveis que afligiam os cidadãos que se movimentavam na nova cena pública, sem o peso de explicações estruturais, como aquelas pautadas na “truculência das Cortes”, na “falência ibérica” e nas “novas necessidades do capital”; 3) recuperava-se a participação dos “homens do comum”, que ganharam vida: anseios, vinganças e frustrações motivaram sua efetiva participação política, perspectiva muito diversa das “massas de manobra”, por vezes denunciadas sob a falsa aparência de criticidade; 4) por fim, convidava-se a uma imersão no conjunto de documentos produzidos dentro e fora da esfera estatal: códices, caixas e latas conviveriam agora com jornais e folhetos, tomados como novos ingredientes de uma política cujo aprendizado se dava também em praça pública.

Pesquisador atento a tais ensinamentos, André Machado os tomou como balizas para a sua pesquisa, sem, contudo, ater-se a receitas prontas, já aplicadas ao estudo de outras províncias. De maneira autônoma, com sólida discussão bibliográfica e conjunto documental, propôs uma história das possibilidades políticas abertas desde a “adesão” do Grão-Pará à Revolução do Porto até o Reconhecimento da Independência.

Tal recorte poderia sugerir uma “História da Independência desde a Revolução do Porto”, perspectiva teleológica e tradicional que encadeou episodicamente esses dois momentos, dando-lhes inteligibilidade. Em direção diametralmente oposta, o autor reserva à Independência – palavra evitada ao longo do texto e substituída pela noção de “novo alinhamento” – um papel absolutamente secundário ante as disputas suscitadas pelas possibilidades advindas do constitucionalismo português. A seu modo, todos eram portugueses, pressuposto que inviabiliza a perspectiva de “projetos nacionais” emersos com o “7 de setembro”, ou, no caso do Grão-Pará, com o “15 de agosto de 1823”.

Essa é a tônica da primeira parte do livro, dividida em três capítulos. Desde as primeiras linhas, o autor compartilha a narrativa com seus personagens, perscrutando as incertezas e a provisoriedade das posições políticas assumidas ao sabor das circunstâncias. A “quebra da mola real das sociedades bem constituídas” – expressão de autoria do bispo do Pará, inspiração para o título do livro e norte para a noção de “instabilidade” construída pelo autor ao longo da narrativa – provocara um dissenso heterogêneo, múltiplo em suas razões e frágil em sua capacidade de construir acordos duradouros.

Tais questões são acompanhadas de uma análise que articula os estratos dominantes da província às relações de poder expressas nos “partidos” que então se organizavam. Sem recorrer a relações mecânicas de classe / partido, conclui que os proprietários de fortuna acumulada recentemente tendiam a ser “mais constitucionais”, forma de atingir postos até então ocupados por figuras ligadas ao ancien régime português. Para o autor, esses grupos “mais constitucionais” se demonstraram, gradativamente, propensos ao “alinhamento” com o Rio de Janeiro, na medida em que seus projetos políticos foram inviabilizados internamente.

Outras razões são apresentadas na explicação para o “alinhamento”, mas seguramente a mais original é a noção de “bloco regional”, rede composta por sólidos laços econômicos e políticos que aproximavam as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Goiás e Mato Grosso.

Construída a partir de certa leitura de Benedict Anderson (Nação e consciência nacional) – autor comumente evocado pela historiografia brasileira nos debates sobre nações como “comunidades imaginadas” –, a noção serve ao autor como mais um importante contraponto ao clássico “Brasil versus Portugal”.

Sem transformar o “alinhamento” do Grão-Pará em mero reflexo dos interesses do “bloco regional”, estabelece conexões entre a inviabilidade de sua manutenção, por exemplo, a partir do “alinhamento” do Maranhão1, em 28 de julho de 1823, decisão seguida pelo Grão- Pará, poucos dias depois.

Destaque-se ainda a alternativa que o autor oferece às explicações pautadas na centralidade das pressões militares para o “alinhamento”, corporificadas na atuação de John Grenfell, inglês que chegou ao Pará em agosto de 1823 e assumiu a incumbência de comandar as forças navais a serviço de D. Pedro I. Trilhando outros caminhos, tangencia o debate sobre o papel das tropas externas: seu foco são as condições “internas” (dinâmica política provincial e interesses do “bloco regional”) que viabilizaram o “alinhamento” da penúltima província da América portuguesa ao Império nascente.

Na segunda parte do livro, composta por dois capítulos, o autor persegue os conflitos que tiveram continuidade com o “alinhamento”, forte indício de que a questão principal não estava aí, mas nas disputas abertas com a “quebra da mola real”. Se projetos políticos “préalinhamento” persistiam, novidades como a Confederação do Equador – também tomada como proposta de um “bloco regional” – traziam novos ingredientes para o campo da política.

Somem-se a esse quadro de instabilidade a crescente participação política de negros e tapuios, grupos que muitas vezes compartilhavam projetos de futuro distintos daqueles levados a cabo pelos “partidos” da província, e a partida de Grenfell, em março de 1824, uma das poucas autoridades minimamente reconhecidas entre os grupos em litígio.

Gradativamente, constrói a “solução brasileira”, tomando como referência a inviabilização de pelo menos dois importantes projetos: a alternativa republicano-regional, fracassada com a derrota da Confederação do Equador, e o realinhamento a Portugal, prejudicado pelo Tratado de Reconhecimento da Independência, assinado em meados de 1825. Paralelamente, apresenta-nos os sucessos obtidos pela junta de Santarém, representação composta majoritariamente por proprietários e comerciantes, que a partir dos primeiros meses de 1824 acumulou vitórias políticas e militares, recompondo os estratos dirigentes da província ante o “perigo maior” de uma nova São Domingos.

Por fim, vale-se de uma apropriada metáfora de Immanuel Wallerstein (Capitalismo histórico & civilização capitalista) para sintetizar as preocupações que o acompanharam por toda a pesquisa. Para o autor citado, crises sistêmicas se assemelham à experiência de passar por vários pontos de bifurcação, que obrigam a sucessivas escolhas e alimentam incertezas na busca pela estabilidade perdida. Os homens do Grão-Pará, em tempos de crise, não escaparam a essa máxima. Já nós, historiadores, talvez sejamos eternos “homens em tempos de crise”: para o nosso conforto, textos como esse demonstram que é possível, diante de cada bifurcação, aprimorar a caminhada.

Marcelo Cheche Galves – UEMA. E-mail: [email protected].


MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825). São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2010. 321 p. Resenha de: MACHADO, André Roberto de A. Outros Tempos, São Luís, v.7, n.10, p.292-205, dez. 2010. Acessar publicação original. [IF].

Arqueologia da repressão e da resistência – América Latina na era das ditaduras (1960-1980) | Paulo A. Funari, Adrés Zarankin e José Albertoni Reis

Nas ciências humanas, acostumou-se a pensar no trabalho do arqueólogo focado exclusivamente em áreas remotas da existência humana, nas quais o registro escrito nem existia e a reconstituição das formas de ser social se realizava dos fragmentos da cultura material. Essa visão, que delimita um período histórico distante como o único tempo estudado pela Arqueologia, vem sendo posta em xeque pelo envolvimento de arqueólogos em pesquisas do passado recente da história latino-americana. Um vigoroso esforço para trazer a público os vínculos entre a Arqueologia e a História Contemporânea – particularmente a que se refere às histórias de repressão no continente latino-americano – é encontrada no livro Arqueologia da repressão e da resistência – América Latina na era das ditaduras (1960-1980).

Organizado por Pedro Paulo A. Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni dos Reis, o livro traz novas dimensões para os estudos sobre as ditaduras militares no continente, apontando a contribuição da Arqueologia no esclarecimento daquilo que a documentação escrita ou oral nem sempre dá conta. Assinala, ainda, a possibilidade de um refinamento no trato com as fontes, na medida em que os estudos arqueológicos podem auxiliar no questionamento das versões deixadas na documentação escrita dos setores dominantes durante esse período, bem como preencher algumas das lacunas encontradas nesses documentos, uma vez que essa ciência tem como recurso o estudo de elementos da cultura material e a busca dos restos humanos dos “desaparecidos”. Leia Mais

História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) – SILVA (AN)

SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, 222p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Os usos e abusos do passado na França durante o regime de Vichy. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 30, p. 301-309, dez. 2009.

[…] todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vêzes […] a primeira como tragédia, a segunda como farsa (MARX, 1969, p. 17).

Nestes termos, Karl Marx (1818-1883), na década de 1850, resumiria sua análise de uma das obras de Hegel. Ao expor o que definiu como a ‘farsa’ (do Dezoito Brumário) de Napoleão III, Marx constataria que: Doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, na unidade de Amambaí.

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram os espíritos do passado, tomando- lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de [se] apresentar[em] e nessa linguagem emprestada (1969, p. 17-8).

Sob circunstâncias diferentes, mas com idéias semelhantes, Jean Chesneaux (1995) destacaria, na década de 1970, em sua análise da história e dos historiadores, tomando de empréstimo o debate do Le Monde de 26 de julho de 1974, que: “Tem-se sempre necessidade de ancestrais quando o presente vai mal” (1995, p.23). Ainda na década de 1970, Georges Duby (1993), com seu livro O domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214 (de 1973), demonstraria como aquela batalha seria recriada e adequada às circunstâncias de cada momento histórico, ao ponto de indicar os ‘choques franco-prussianos’. “Em outras palavras, o autor trabalha como um fato concreto, o enfrentamento entre Filipe Augusto da França e o Imperador Oto IV, a 27 de julho de 1214, foi adaptado a novas situações políticas” (2007, p. 15), dirá Leandro Karnal, ao apresentar a obra de Glaydson José da Silva, História Antiga e usos do passado.

Nos anos 80, Raoul Girardet, ao estudar os mitos e as mitologias políticas, lembrará que: “(…) a cada momento de sensibilidade (…) corresponde (…) uma leitura da História, com seus esquecimentos, suas rejeições e suas lacunas, mas também com suas fidelidades e suas devoções” (1987, p. 98). Neste mesmo período, Eric Hobsbawm (1997), ao enfatizar a maneira pela qual são ‘inventadas certas tradições’, ressaltará que:

(…) por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (…). Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. (1997, p. 9-10)

Discordando de tais argumentos, Stephen Bann (1994) propôs pensar as representações que foram (e são) criadas sobre o passado (europeu do século XIX), com vistas a enfatizar o papel exercido pelos historiadores e pelos lugares de produção da ‘memória social’ como os museus, os arquivos e as universidades, ao serem elaboradas certas leituras sobre o passado.

Usar o ‘passado’ para dar ‘sentido’ às ações no ‘presente’, desse modo, não é algo novo nem na História (dos homens e das mulheres do passado), nem na historiografia (HARTOG, 2003).

Mas a maneira com que o passado é usado para demarcar as ações e as reflexões no presente, de cada momento histórico, senão é ‘nova’ em todos os instantes, ao menos é múltipla. Foi esta direção que os trabalhos de François Hartog acabaram seguindo desde os anos de 1980, quando demonstrou em seu livro O espelho de Heródoto (1999) as diferentes formas de apropriação deste autor ao longo do tempo. Nesse sentido, com seu conceito de ‘regimes de historicidade’, Hartog se preocupou em teorizar de que modo os grupos e as sociedades do passado se apropriavam da história para fazerem diferentes usos do tempo e da relação passado-presente- futuro.

Foi tendo em vista essas questões que Glaydson José da Silva, em seu livro História Antiga e usos do passado (que é uma versão revista de sua tese de doutorado, intitulada Antiguidade, Arqueologia e a França de Vichy: usos do passado, defendida em 14 de março de 2005, no programa de pós-graduação em História da Unicamp, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari), preocupou-se em apresentar uma análise pormenorizada das formas com que a Antiguidade e o passado gaulês, romano e galo-romano haviam sido apropriadas na França durante o Regime de Vichy, que durou entre 1940 e 1944.

Para demonstrar essa questão, o autor estudou e evidenciou a relação de diferentes temporalidades (a da Antiguidade, a do regime de Vichy na década de 1940, e a ação da direita francesa nos anos 80 e 90), para circunstanciar de que modo os passados gauleses, romanos e galo-romano estavam sendo apropriados e usados politicamente, em diferentes momentos, para justificar a ação de grupos e partidos políticos na França durante o século XX. Com isso, o autor revela, de modo didático e inovador, as relações, nem sempre lineares, entre passado e presente, e a maneira pela qual o passado é apropriado para justificar as ações de grupos e indivíduos no presente histórico. Mais detidamente, tenta descortinar a importância da Antiguidade Clássica, para se elaborar um conhecimento mais balizado sobre a História Contemporânea. Em suas palavras: O saber histórico é tomado mais como um espaço de desconstruções que de construções e reconstruções. Busca- se neste trabalho uma compreensão dos meandros, dos escaninhos de um domínio em que a memória e a sua destruição são recorrentes na reconstrução dos acontecimentos históricos, em que memória e esquecimento se ligam e tomam forma atendendo a imperativos circunscritos do tempo presente. (p. 17-8) Com isso, a obra foi dividida em quatro capítulos. Em cada um deles o autor escreveu um pequeno prólogo para apresentar ao leitor o que discutiria no capítulo. Cada capítulo foi dividido em duas partes.

No primeiro capítulo, O caráter moderno da Antiguidade: considerações teóricas e análises documentais acerca da instrumentalização do passado, há uma descrição de como a Antiguidade foi pesquisada nos anos 80 e 90, e a maneira com que o passado é usado em diferentes momentos. Detém-se na forma pela qual o Fascismo e o Nazismo se apropriaram da Antiguidade para justificarem seus projetos nacionais e suas propostas políticas para a Europa nos anos 30 e 40 do século passado.

Essas diferentes antiguidades, ou melhor, essas diferentes leituras da Antiguidade, apontam sempre para o presentismo do pensamento antigo na elaboração das práticas políticas, das doutrinas, dos jogos identitários, enfim, das visões de homem e de mundo no Ocidente. (p. 30) Nesse sentido, evidencia como o regime Vichy, nesse mesmo período, se apoiou no passado gaulês, romano e galoromano, e, em especial, na figura de Vercingetórix, para empreender suas ações políticas. Vale notar que a França não foi o único país Europeu que sucumbiu às ações do Nazismo e do Fascismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e se apoiou no passado para justificar suas ações no presente. Mesmo fora da Europa, esses regimes tiveram forte influência sobre a maneira com que o passado era usado e estudado, e a propaganda política era uma das estratégias para impor o consenso. No Brasil, Getúlio Vargas é um exemplo emblemático de como o Fascismo e o Nazismo serviram de base para que este desenvolvesse estratégias semelhantes de usar o passado e a propaganda política como formas de construir o consenso (GOMES, 1996).

No segundo capítulo, A Antiguidade a serviço da colaboração: nas trilhas da memória, a reescrita da História na França dominada (1940- 1944), o autor demonstra como a História e a Arqueologia romana e galo-romana francesas se moveram e foram usadas durante o período de ocupação alemã no país. Ao discutir a historiografia sobre o Regime de Vichy, o autor mostra como o período é pouco conhecido, mesmo em parte significativa do povo francês. Além disso, ao se ocupar da questão nacional, enfatiza como após a Revolução Francesa os usos do passado romano, gaulês e galoromano foram cada vez mais frequentes na história francesa contemporânea. A partir da análise de manuais de História, artigos de jornal e discursos, o autor reconstitui os diferentes usos que foram feitos, durantes esse período, da figura de Vercingetórix e dos gauleses “pela Révolution National – termo designado pelo Marechal Philipe Pétain para referir-se à retomada à ordem no país após a derrota militar” (p. 20). Destaca ainda como a História e a Arqueologia serviram de base na construção de um consenso, ao serem utilizadas como instrumentos de afirmação e legitimação, quando o regime procurou declaradamente romper com as tradições republicanas do passado francês.

No terceiro capítulo, Jérôme Carcopino – um historiador da Antiguidade sob Vichy, indica a importância deste intelectual com sua obra, e seus estudos sobre a Antiguidade e a maneira com que foi legada à posteridade, em função de sua participação direta no regime de Vichy como ministro da educação. “Durante o Regime Vichy, no período compreendido entre 23 de fevereiro de 1941 e 16 de abril de 1942, Jérôme Carcopino, já à época consagrado historiador, arqueólogo e epigrafista do mundo romano, exerce a função de secretário de Estado, com estatuto de ministro na área de Educação” (p. 127). Para evidenciar essa questão, o autor reconstitui a participação de Jérôme Carcopino no interior do regime e a forma como os estudos clássicos eram produzidos durante esse período.

Ministro de Vichy, Carcopino é o intelectual chamado à ação. Suas posturas face ao Regime se inscrevem na sua trajetória acadêmica, nas interfaces de múltiplas e contraditórias ideologias, diante das quais sempre teve claras as suas opções. Desejoso de ser visto como intelectual e não como político (…), é o intelectual a serviço da política. Sua atuação política não se dissocia de sua obra acadêmica; esta possibilita a compreensão daquela e se apresenta, a um só tempo, como continuidade e ruptura da mesma. O estudo do Regime de Vichy e do papel de Carcopino no mesmo período conduz, inelutavelmente, à atestação do envolvimento do historiador com o colaboracionismo de Estado, com tudo que implica esse colaboracionismo. Mas conduz, também, à necessidade de reflexão acerca da História e do papel do historiador, bem como à irrefutável relação que este mantém com os poderes. (p. 151) Por esse motivo, mesmo os estudos recentes sobre esse importante romanista, na França, levam em consideração, antes de ser analisada sua produção, a sua participação no Regime.

No quarto capítulo, História da Antiguidade e as extremas direitas francesas, a pesada herança de Vichy, revela-se que não apenas as obras de Carcopino foram lidas e interpretadas pela posteridade, de acordo com a sua participação no Regime de Vichy, mas o próprio regime deixou suas marcas na produção histórica francesa, em especial nas extremas direitas. O autor demonstra como os grupos que surgiram no imediato pós-guerra na França, a Nouvelle Droite, a Europe Acton, o GRECE e o Club de l’Horloge, acabaram sendo as matrizes ideológicas dos grupos de direita que foram se formando a partir da década de 1970. Nesse sentido, ressalta-se a participação do Front National na luta contra a imigração, os imigrantes e a Gália, e o papel exercido pela Antiguidade em Terre et Peuple para demarcar e justificar a ‘guerra étnica’, pois a “Antiguidade é, aqui, mais uma vez, um dos principais veículos da ideologia direitista” (p. 21). E: É na França de Vichy, com suas leis racistas que retiram direitos tendo como pretexto a origem dos cidadãos (…) que se inspira o F. N. [o Front National]. (…) A identidade nacional ancorada no mito gaulês permite, assim, o reencontro com o passado ideal, distante e que tem na tradição gaulesa, em sua longevidade, a resposta para os dramas atuais da sociedade francesa. (p. 178-9)

Assim, nessa mesma linha, ainda que com suas peculiaridades, defensor “de uma espécie de enraizamento cultural e de uma fidelidade identitária, o circulo T. P. [de Terre et Peuple] tem a História, desde os gregos e romanos, como testemunha dos fracassos e das derrocadas das sociedades multiculturais” (p. 190). E sobre esse aspecto, o grupo procuraria justificar sua ‘guerra total’, com ênfase nas questões étnicas.

Por suas qualidades, essa obra traz uma bela contribuição para um melhor entendimento de como a História, e certos grupos e sociedades do passado, são utilizados, em diferentes momentos, para justificar as ações no presente. Demonstrando como se utilizou, e também se abusou, do passado gaulês, romano e galo-romano na França durante o Regime de Vichy, e a herança que essas estratégias políticas e intelectuais deixaram para os partidos e grupos de extrema direita no país nos anos 80 e 90, o autor apresenta pormenorizadamente as relações entre História Antiga e História Contemporânea, e destaca que nem sempre as relações entre passado e presente são somente (ou completamente) ‘lineares’, mas sim dependem diretamente das especificidades e circunstâncias de cada momento histórico.

Referências

BANN, S. As invenções da História: ensaios sobre a representação do passado. Tradução de Flávia Vilas Boas. São Paulo: Edunesp, 1994.

CHESNEAUX, J. Devemos fazer tabula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores.

Tradução de Marcos A. da Silva. São Paulo: Ática, 1995.

DUBY, G. O domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214. Tradução de Maria Cristina Frias.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

GIRARDET, R. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GOMES, A. C. História e historiadores. A política cultural do estado novo. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

HARTOG, F. Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Le Seuil, 2003.

___________. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

HOBSBAWM, E. & RANGER, T. (org.) A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante – 2ª edição – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MARX, K. O Dezoito Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq. Mestre em História pela Unesp, Campus de Franca. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, na unidade de Amambaí.

Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920 – CARVALHO (REF)

CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008. 368 p. Resenha de: MELLO, Soraia Carolina. Gênero, artefato e a constituição do lar: o caso paulistano. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 n.1  Jan./Apr. 2009.

Não é novidade, nos estudos historiográficos, a utilização da cultura material como ferramenta para se acessar, observar, analisar e inferir o passado. Também não é novidade a preocupação das ciências humanas com o ambiente doméstico quando seu foco de análise é o cotidiano, e, com o boom dos estudos sobre mulheres e gênero, fica complicado ignorar a feminização dessas esferas, sugerida como natural.

Dialogando com esses aspectos, o trabalho de Vânia Carneiro de Carvalho nos traz, por meio de uma escrita leve e delicada – ainda que densa , o que aparentemente seria uma história da formação e do estabelecimento do gosto por decoração e consumo da incipiente burguesia paulistana. De fato seu livro faz essa história, associando fortemente hábitos de consumo com esforços de distinção de uma classe que, ainda que possa ser enquadrada no que se entende como classe dominante, não é filha de fortes tradições de demonstrações públicas de status.1 Entretanto, durante a leitura percebemos que a escolha das fontes, da teoria e da metodologia no trabalho levar-nos-á por outros caminhos.

Adaptação de tese de doutorado defendida em 2001 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), a obra faz uso da cultura material para além de análises clássicas dos artefatos: seja em seu aspecto puramente funcional, como reflexo de questões maiores alheias aos objetos, ou mesmo com relação à pura e simples representação de status. Acompanhando preocupações atuais no campo, a autora trabalha com o que pode ser chamada de “agência dos artefatos”, sua capacidade de produzir efeitos; de não apenas moldar as pessoas, mas ser parte integrante e necessária de sua constituição. E logo no prefácio se apresenta de forma clara o foco dessa análise: “o relacionamento simbiótico entre objetos domésticos e formação de identidades sociais diferenciadas pelo gênero”,2 lembrando que “tão-só existe objeto para um sujeito”.3

Ao mesmo tempo que a análise dialoga com teorias pós-estruturalistas ou pós-modernas, que podem ser observadas de forma mais marcada não apenas nas análises de gênero (sempre destacando seu aspecto relacional), mas também em preocupações com a corporalidade e a constituição do sujeito de forma mais ampla, a história social, tão forte no Departamento de História da USP, também mostra seu lugar na obra, que parece ser um resultado interessante de uma espécie de “meio-caminho” entre história cultural e social. Sua ampla gama de fontes assim como a interdisciplinaridade – fazendo uso principalmente do urbanismo – vêm nos lembrar disso em vários momentos da leitura, assim como a análise que muitas vezes parece oscilar entre um extremo e outro dessas vertentes.

Dividindo a obra em cinco capítulos, a autora lança um dos aportes de sua análise em “Ações centrípetas e centrífugas: individualidades sexuadas”. Nesse primeiro capítulo, ela diferencia as ações centrípetas masculinas das ações centrífugas femininas. As primeiras definiriam

objetos que “buscam” o centro, no qual se encontra a figura substantiva do homem. Há, portanto, uma hierarquia centralizadora entre pessoas e objetos, na qual os atributos dos objetos nunca sobrepujam o homem, ao contrário, eles servem para desenhar a personalidade de gênero de maneira individualizadora […] (p. 43).

Assim, a masculinidade estaria voltada para a máxima individualização, enquanto a feminilidade estaria no seu oposto, em um fenômeno de despersonalização feminina no qual a mulher estaria em harmonia, de alguma forma fundida, camuflada no ambiente – doméstico – que a rodeia. Nesse sentido, a ação centrífuga feminina significaria “uma forma abrangente e difusa de produção de representações femininas no espaço doméstico, [que] inclui ativamente o corpo na constituição de sua identidade. O resultado disso é uma continuidade entre corpo, objeto e espaço da casa […]” (p. 224).4 Dessa forma, a individualidade da mulher estaria limitada à individualidade da família que ela representa.

No segundo capítulo, “Espaços e representações de gênero: um campo operatório”, descrevem-se os diferentes cômodos de um sobrado ou palacete paulistano da virada do século XIX para o XX, de forma a mostrar, a partir de objetos, fotografias e recomendações de decoração em publicidade e artigos de revistas femininas, a generificação dos ambientes. Sóbrios e confortáveis, de tradição inglesa, os ambientes masculinos como a sala de jantar, o hall e em última instância o escritório se opõem aos ambientes femininos, que copiam a exuberância da decoração francesa, como a sala de visitas e o quarto feminino. A autora ressalta que essa espécie de divisão por gênero da casa não significava necessariamente a limitação de circulação das pessoas pelos espaços, estando muito mais ligada aos valores que se intentava associar a um ou outro ambiente.

Nesse momento da leitura nos surpreendemos com nosso olhar do presente, tão acostumado a buscar pela cozinha quando se fala em ambientes femininos. Diferentemente do que se podia observar nos lares norte-americanos, onde o emprego doméstico não era tão acessível, a cozinha era, no Brasil, um espaço da criadagem no qual não havia interesse em se investir. Isso inclusive devido à herança colonial de desvalorização do trabalho manual, a qual fazia com que as mulheres brasileiras abastadas se dedicassem a bordados e pinturas (além de filantropia, visitas a lojas e cafés, teatros; consumo de uma forma mais ampla), trabalhos considerados artísticos que não as associariam com ex-escravas ou mestiças empobrecidas. Assim, enquanto as mulheres burguesas norte-americanas já consumiam de forma ampla eletrodomésticos variados a fim de amenizar sua difícil função de cuidar de todo o trabalho doméstico sozinhas, a dita modernização da cozinha paulistana se deu muito mais por pressões médico-higienistas e, no caso específico do fogão a gás, por interesses econômicos de uma multinacional distribuidora de energia, como a autora vem tratar nos últimos capítulos.

A corporalidade e sua constituição voltada, reciprocamente, à cultura material são o foco expresso do Capítulo 3: “Representações e ações corporais: a ubiqüidade do gênero”. Por meio de vestígios de formas de descrever, olhar, comer ou sentar-se, a autora busca a construção de subjetividades e a concepção do sujeito dentro de uma visão de mundo muito embasada no romantismo. É o momento do livro em que a literatura como fonte histórica aparece com mais força, a partir de José de Alencar e Machado de Assis. É um momento interessante também para reparar como, na busca por representações e modos de vida fortemente calcados na simbologia, o cotidiano possa ser encontrado na formalidade, quer dizer, observando-se pessoas educadas segundo modos europeus, treinadas desde muito cedo pela etiqueta e envolvidas de forma profunda na autorreflexão, a pose para um retrato, por exemplo, não é uma representação absolutamente ímpar ao cotidiano, digamos assim, real, ainda que o acontecimento de se posar para o retrato não seja regular. Os modos de se mover, de agir, a postura, o olhar, treinados e educados, fortemente generificados, são parte constituinte do sujeito. O olhar da autora sobre o disciplinamento dos corpos no mundo urbano parece ser guiado por Richard Sennett5 e, principalmente, por Michel Foucault.6

Apesar de a pesquisa se concentrar em um grupo social específico, a burguesia paulistana em um recorte temporal também específico, de 1870 a 1920, os documentos mostram que as recomendações sobre moral e costumes, mesmo dentro dessa espécie de micro-cosmo, não eram unívocas. Em oposição à vida de vitrine das conquistas do provedor, fosse ele marido ou pai, levantam-se vozes que clamam pela necessidade de permanência da mulher na casa, onde seria seu lugar natural. Somente em casa ela seria capaz de desempenhar seu verdadeiro papel, muito mais importante que os compromissos sociais com filantropia, nos cafés ou jogos de tênis: zelar pela felicidade familiar. No Capítulo 4, “Casa VERSUS rua: a conspicuidade feminina e o trabalho doméstico”, a autora nos traz descrições da rotina doméstica das mulheres burguesas, percebendo variações no que seria um padrão de comportamento aceitável para essas mulheres.

Já no século XX parece que a racionalização da rotina doméstica ganha muita força em São Paulo, e a figura da esposa burguesa asseada em oposição à esposa colonial preguiçosa é marcante. A tradição colonial é desprezada como barbárie, e a higiene vira ponto forte de preocupação dentro dos lares. Seguindo toda a onda higienista, que tenta resolver os problemas de saúde dos grandes aglomerados urbanos, a decoração das casas começa a sofrer grandes modificações, uma vez que as cortinas pesadas, que não permitiam que o ar circulasse, e a grande quantidade de objetos de decoração dos mais variados, que facilitavam em muito o acúmulo de pó, não eram condizentes com as recomendações médicas. Nessa época, também a cozinha começa a ganhar alguma atenção, em comparação com consultórios médicos. Seu piso de terra batida é substituído por azulejos, assim como todas as superfícies que devem ser de fácil desinfecção; os panos agora são pendurados em ganchos; os alimentos são acondicionados segundo rígidas regras de higiene etc. A cozinha passa a ser entendida como o “laboratório da família”, e cuidados nesse ambiente são então indispensáveis para que a saúde e a felicidade possam estar presentes nos lares. Claro que as mudanças não ocorrem simultaneamente em todas as casas, que eram também diferentes entre si. Como todos os padrões de conduta, essas mudanças fazem parte de um padrão. Porém, é interessante observar como em revistas femininas encontram-se recomendações inclusive para as classes ditas remediadas e desfavorecidas, lembrando que o conforto de quem não tem luxo seriam a ordem e a limpeza.

No Capítulo 5, que finaliza o livro, “A felicidade como conforto: bem-estar, domesticidade e gênero”, a autora se volta para os lares não abastados com maior ênfase, e também insiste no que pode ser considerada uma das hipóteses centrais de sua pesquisa: a decoração, a criação de ambientes no lar que transmitam efeitos opostos à vida dura e competitiva na rua, existe para o homem, não para a mulher(!). Questionando o privado como reino da mulher, Vânia Carneiro de Carvalho nos lembra de que o homem não somente se socializa no lar, como a própria constituição do lar como espaço de conforto e paz, de santuário alheio ao competitivo e bruto “mundo lá fora”, existe para servir ao homem. Todo o esforço dessas mulheres abastadas para decorar suas casas, a fim de que nos mínimos detalhes o espaço transmita o que a autora chama de conforto visual, faz parte do papel social e culturalmente designado a essas mulheres como mediadoras.

Dessa forma, levanta-se outra questão de suma importância que é o fato de que a decoração, que faz parte de todo o empenho mediador das mulheres na busca pela produção de felicidade familiar, é parte do trabalho doméstico. E no caso das mulheres observadas nas fontes, é a principal parte. É importante ressaltar esse fator porque as análises muitas vezes não consideram as mulheres abastadas como responsáveis pelo trabalho doméstico, uma vez que são empregadas e empregados que executam esse trabalho em suas casas. Porém, a responsabilidade7 pelo bom andamento do trabalho, pelo perfeito funcionamento do lar, assim como a preparação de eventos importantes para seu meio social (como no caso dos jantares) recaem sobre essas mulheres, que ocupam todo o seu dia com a administração do trabalho dos outros, o consumo e o que hoje chamaríamos de decoração e artesanato.

Falando sobre como as classes médias consumiram mais rapidamente os modelos de decoração mais “limpos” importados dos EUA, por esses serem reproduzidos mais facilmente por seus preços reduzidos, a autora termina o livro nos lembrando do dilema da dona de casa moderna, que precisa se dividir entre os pesados afazeres exigidos pela casa e a boa aparência e delicadeza “necessárias e naturais ao seu sexo”. Apesar de descrições muito interessantes e minuciosas sobre o cotidiano dentro dos lares, alguns pontos de conflito ou dissonâncias como esse poderiam aparecer mais na análise. Não se comenta – ou talvez as referências escolhidas não levantem o tema – sobre mulheres endinheiradas que não se enquadravam muito bem nem como boas donas de casa, nem como consumidoras crônicas. Não se fala em mulheres mais envolvidas com a intelectualidade, ou preocupadas com os direitos civis femininos. Ainda que se comente um pouco sobre as mulheres que trabalhavam como criadas, e um pouco também sobre os lares empobrecidos, em nenhum momento as mulheres de classes ao menos remediadas que trabalhavam, como as que escreviam nas revistas femininas, são citadas (daí talvez o uso comum do termo “mulher” na obra, em vez de “mulheres”). Sua presença e sua relação com os artefatos poderiam enriquecer esse trabalho.

Ainda assim, à sua maneira o livro pode instigar discussões, inclusive atuais, sobre a questão do trabalho doméstico feminino e a associação das mulheres ao espaço privado. Ele também é importante pois nos chama a atenção para a associação das mulheres abastadas com o lar, que muitas vezes é negligenciada por elas não serem “as grandes vítimas dessa situação”, lugar dedicado às mulheres trabalhadoras de dupla ou tripla jornada.

As ricas e numerosas – são 157 – ilustrações do livro nos lembram do cargo ocupado pela autora no Museu Paulista da USP, remetendo-nos à sensação de visita ao museu. A leitura associada às fontes iconográficas parece nos imergir num mundo que, ainda que com referências próximas ao nosso e com preocupações contemporâneas – como é o caso da análise de gênero –, é outro mundo. É como se o livro oferecesse ao/à leitor/a um pouco dos prazeres do ofício de historiador/a, quando encontramos nas fontes uma espécie de pequena janela para espiar do nosso tempo, nunca permitindo anacronismos, mas de maneira apaixonante, esse mundo que deixou vestígios mas não existe mais. Característica comum aos bons livros de história.

Notas

1 Ainda que a questão da ‘falta de tradição’ da burguesia em oposição à aristocracia, nos momentos em que a primeira vem se estabelecendo como classe dominante hegemônica no mundo Ocidental, tenha aspectos profundamente diferenciados no que se refere ao Brasil em comparação à Europa industrializada ou à América do Norte, o fenômeno é de alguma forma comum (p. 220).

2 Ulpiano Toledo Bezerra de MENEZES, 2008, p. 13.

3 MENEZES, 2008, p. 13.

4 Ainda que apresentado no começo do livro, o termo é retomado durante a análise, e essa definição foi retirada do quarto capítulo.

5 Richard SENNETT, 1997.

6 Michel FOUCAULT, 1977.

7 Suely Gomes Costa comenta as responsabilidades das mulheres mais abastadas ao observar como parte dessas responsabilidades pode ser transferida a mulheres contratadas, o que ela chama de “maternidade transferida” (COSTA, 2002).

Referências

COSTA, Suely Gomes. “Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 2, p. 301-309, 2002.         [ Links ]

FOUCAULT, Michel. “Os corpos dóceis”. In: ______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. p. 125-152.         [ Links ]

MENEZES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Prefácio”. In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008. p. 11-14.         [ Links ]

SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997.        [ Links ]

Soraia Carolina de Mello – Universidade Federal de Santa Catarina

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Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – SOARES (VH)

SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP, 2007. Resenha de: MISKULIN, Sílvia Cezar. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, p. 639-642, jul./dez., 2007.

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 analisa com rigor o surgimento da literatura infantil no Brasil e na Argentina, na primeira metade do século XX. O trabalho que agora temos o prazer de ler é fruto da Tese de Doutorado de Gabriela Pellegrino Soares, defendida no Departamento de História da USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Ligia Coelho Prado.

A autora debruça-se sobre a formação da literatura infantil, destacando as semelhanças e diferenças entre os escritores argentinos e brasileiros. Diferenciando-se da literatura produzida para a escola, a literatura infantil constituiu-se em um campo próprio, no qual se buscava a ampliação do público leitor e a democratização do conhecimento por meio das produções e traduções de obras voltadas para o público infantil. O objetivo da pesquisa é compreender os esforços realizados no Brasil e na Argentina para promover a prática de leituras não escolares entre as crianças. As diferenças entre os dois países foram mostradas pelo panorama que Gabriela Pellegrino Soares traçou da rede de ensino primário e de bibliotecas escolares e populares presentes na Argentina desde fins do século XIX, enquanto no Brasil as políticas públicas voltadas à difusão da leitura foram bem mais restritas e efetivaram-se somente no século XX.

Além desta diferença de contexto, Gabriela soube muito bem enfocar o repertório nacional que compunha a literatura infantil em cada um dos países. Na Argentina, muitos escritores se dedicaram a temas nacionalistas e trabalharam em suas obras elementos da história da nação, do folclore e da natureza. Dentro deste grupo a autora apresenta as obras infantis de Ada María Elflein, Alvaro Yunke, Hugo Wast, Rafael Jijena Sánchez, Horacio Quiroga, Guillermo Enrique Hudson e Ana Maria Berry.

Entretanto, o trabalho destaca um outro horizonte na literatura infantil argentina, conformado pela revista Biliken e seu criador Constancio C. Vigil. O objetivo da publicação era a formação da bagagem cultural da criança, que se tornaria no futuro o homem moderno, self-made man. Na revista, ecoavam as idéias da escola nova, que buscava uma progressiva autonomia da criança. Além disso, Biliken era irreverente, jogava com o humor, a imaginação e a estética para valorizar o esforço e a inteligência como forma de ascensão social.

A morte de Constancio C. Vigil em 1954 encerrou uma época na literatura infantil argentina e marcou o recorte cronológico final da pesquisa. Já o recorte inicial do trabalho, 1915, refere-se ao ano de surgimento da coleção “Biblioteca Infantil”, da editora Melhoramentos, a pioneira no Brasil no campo da literatura infantil, que será estudada na segunda parte do livro.

Outro destaque dado por Gabriela Pellegrino Soares à literatura infantil argentina passou pela trajetória de Javier Villafañe, criador do teatro de títeres. Villafañe trabalhava com as dimensões lúdicas, imaginativas e poéticas através da narrativa oral, dialogando também com os princípios da renovação educacional da escola nova. Muitas de suas histórias também acabaram editadas.

No Brasil, o livro enfocou detalhadamente a produção dos escritores Monteiro Lobato e Tales de Andrade. As obras de Tales de Andrade tinham balizas ideológicas, cívicas e educacionais muito bem definidas. A maioria de suas histórias tinha como protagonista uma criança do campo que conseguia, graças aos estudos, tornar-se um “arauto das luzes” em seu meio. Neste caso, o saber letrado significava o progresso para a população rural.

Monteiro Lobato foi um marco no surgimento da literatura infantil brasileira. Ele primou pela elaboração artística nos livros infantis, pois seu objetivo era conquistar novos leitores. Gabriela relaciona as concepções educacionais de Monteiro Lobato com as idéias de Anísio Teixeira, já que Lobato via na escola uma parceira da literatura no projeto de modernização da sociedade brasileira. Anísio Teixeira, por sua vez, foi o introdutor da filosofia de John Dewey no Brasil, que propunha a integração da aprendizagem escolar com as experiências sociais.

Lobato e Teixeira acreditavam que a educação infantil deveria se dar em um “meio purificado”, em que se eliminariam os aspectos nocivos do ambiente social, sem nenhum tipo de violência física ou psicológica. O alvo era incentivar a busca pela melhoria de vida e a integração social das crianças. Em sua minuciosa pesquisa, Gabriela Pellegrino Soares mostrou como as obras de Monteiro Lobato criaram situações de aprendizagem em que se exemplificaram as práticas educacionais de Anísio Teixeira.

A autora também ressalta que os elementos críticos, ateus e irreverentes da obra de Monteiro Lobato encontraram resistências entre certos mediadores culturais, por exemplo, os censores católicos, as autoridades governamentais e até entre certos expoentes da escola nova, como Lourenço Filho e Cecília Meireles.

A segunda parte de Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil enfoca sobretudo as mediações e os mediadores culturais, ou seja, indivíduos e instituições que se dedicaram a criar, divulgar ou circular a literatura infantil. Duas mediadoras foram selecionadas pela autora: Gabriela Mistral, escritora chilena, mas com uma importante atuação no campo educacional argentino e mexicano e, no caso do Brasil, a escritora Cecília Meireles. Gabriela Mistral foi professora no ensino público do Chile por duas décadas e atuou nas reformas educacionais de José Vasconcelos no México. Difundiram-se na Argentina suas perspectivas de educação infantil, muito afinadas com as idéias da escola nova. Além disso, em suas obras criou poesias voltadas às crianças, trabalhando com elementos do folclore, do campo e da cultura popular.

Cecília Meireles participou do movimento escolanovista, além de assumir a direção do Instituto de Pesquisas Educacionais no Rio de Janeiro. Fundou a Biblioteca Popular Infantil em 1934, que se tornou o Centro de Cultura Infantil no Rio de Janeiro, com a promoção de inúmeras atividades culturais. Entretanto, em 1937, foi invadido e fechado por ordem do interventor sob o pretexto de possuir em seu acervo um livro de “conotação comunista”: As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain.

Gabriela Pellegrino Soares também nos presenteia com a apresentação das produções infantis de Cecília Meireles e aproxima sua obra daquela elaborada por Mistral: as duas escritoras valorizavam a sensibilidade e a vivacidade infantis, ao acreditarem que o amor, a alegria e a harmonia estariam no cerne das atitudes voltadas às crianças. O livro não deixa de apontar as diferenças entre elas, já que Cecília Meireles combatia o ensino religioso nas escolas brasileiras, enquanto que Gabriela Mistral tinha uma formação cristã.

Ao destacar instituições culturais que foram mediadoras das leituras infantis, Gabriela Pellegrino Soares elegeu duas bibliotecas modelares: a Biblioteca Nacional de Maestros, de Buenos Aires, cuja seção infantil foi fundada em 1916 por Leopoldo Lugones, e a Biblioteca Infantil de São Paulo, criada em 1935, durante a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, e dirigida por Lenyra Fracarolli.

Ao analisar o acervo, os funcionários e o ambiente das bibliotecas, além da freqüência das crianças às mesmas, o objetivo do trabalho foi constatar como as bibliotecas participaram da criação de repertórios culturais e da construção de atividades sociais junto ao público infantil, ao visar sua formação moral e intelectual e a democratização do acesso aos livros. Na visão da autora, as duas Bibliotecas foram formas de realização de ações de modernização cultural por parte do Estado, perante a sociedade da época, já que divulgaram um determinado repertório e também contribuíram para a internalização de atitudes e de princípios morais e estéticos nas crianças.

Por último, analisa as concepções editorais da Melhoramentos, cuja coleção “Biblioteca Infantil” foi dirigida por Lourenço Filho. Por meio da análise de seus pareceres, Gabriela Pellegrino Soares pode ricamente nos mostrar o papel de destaque que a literatura infantil ocupou nesta editora, já que Lourenço Filho acreditava que as obras infantis deveriam complementar o papel da escola. A autora destacou como o diretor da coleção tinha restrições aos contos de fadas e também as depurações que fazia com os contos da tradição oral popular. Como as obras infantis sempre passavam pela leitura de um educador antes de chegar nas mãos das crianças, o objetivo de Lourenço Filho era conquistar a confiança dos mediadores culturais, para finalmente chegar às crianças de forma criativa e recreativa.

Ao realizar uma extensa e exaustiva pesquisa em diferentes tipos de fontes raramente examinadas,1 o livro de Gabriela Pellegrino Soares proporciona aos leitores do início do século XXI um olhar esclarecedor das concepções intelectuais, educacionais e literárias que guiaram os diversos agentes e instituições que buscaram conformar um campo da literatura infantil no Brasil e na Argentina na primeira metade do século XX. Trata-se de uma contribuição fundamental para pensar as diferenças e semelhanças que certas vezes distanciaram e muitas outras aproximaram a história dos dois países vizinhos na América Latina.

Nota

1 Walter Benjamin dedicou-se em alguns trabalhos a analisar livros infantis. Veja: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004.

Sílvia Cezar Miskulin – Doutora em História pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutoranda em História/ Universidade de São Paulo/ bolsa FAPESP. E-mail:  [email protected]

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Arquitetura Metropolitana | Denise Xavier de Mendonça

“Não há como pesquisar a arquitetura metropolitana à distância. É preciso abordá-la submersa na congestão urbana, inscrita em relações dinâmicas, mensurada com escalas que se modulam em quantidade, extensão e qualidade de variáveis múltiplas. A realidade da arquitetura metropolitana só pode ser percebida em um mergulho. É necessário tornarmo-nos mais um elemento interferente nessa complexidade congestionada”. Este breve fragmento textual pinçado no livro Arquitetura Metropolitana não é somente explicitação metodológica de construção da pesquisa acadêmica realizada por Denise Xavier, mas fundamentalmente o processo inerente e consubstanciado na própria trajetória profissional da autora. Neste sentido, os processos de interpretação e pensamento sobre a arquitetura não são descolados ou indistintos dos processos de produção da sua própria arquitetura. Em ambos processos, Denise Xavier empreende um mergulho comprometido com dimensões do mundo social, que estão absolutamente associados aos denominados idealistas e ingênuos: a dimensão ética, a dimensão estética e a dimensão política.

No mergulho que cada leitor realizar pelas páginas do livro Arquitetura Metropolitana, certamente encontrará o comprometimento da autora com as premissas de um ofício profissional que está na base da estruturação física das cidades: a arquitetura, ou, como em alguns momentos surge no livro, arquiteturas. Uma estruturação determinante das relações simbólicas e de identidades que são constitutivas da vida em sociedade, da vida pública, da vida que deveria se manter repleta de urbanidade: em tudo que esta vida nas cidades aglutina de diferenças e divergências. As arquiteturas selecionadas pela autora para a compreensão do processo de construção da identidade metropolitana da cidade de São Paulo, a partir da década de 1950, estavam absolutamente integradas nesta construção.

O edifício do Jornal O Estado de São Paulo, o Copan, o edifício Itália e o Conjunto Nacional são realizações que não somente exploram qualitativamente as possibilidades formais, estruturais e espaciais específicas de cada empreendimento, mas também proporcionam e ampliam os espaços da vida pública. São arquiteturas cujas concepções não renegaram as dinâmicas urbanas, as relações entre os ambientes públicos e privados, as interações entre os sistemas de áreas livres e as áreas passíveis de edificação. A compreensão destes aspectos é o ponto nevrálgico do trabalho realizado por Denise Xavier nesse estudo: entender que as arquiteturas não estão desconectadas da cidade, que para pensar arquitetura é preciso pensar a produção da cidade – condição ainda pouco enunciada e enfrentada na historiografia da arquitetura no Brasil.

A organização do livro evidencia este entendimento entre a interpretação da produção arquitetônica e a produção da cidade. Nos dois primeiros capítulos, que em verdade entendo como sendo um único, pela problemática central que os amalgama, qual seja, a da construção da metrópole ao longo do século XX, a autora apresenta as bases urbanísticas, econômicas e políticas desta construção. São Paulo metropolitana tem suas origens instituídas na concepção de cidade pensada por Prestes Maia e Ulhoa Cintra em artigos escritos para o Boletim do Instituto de Engenharia, no ano de 1924. A década de 1950 entra no texto como recorte temporal privilegiado, ápice do processo contínuo de mudanças, sobreposições, apagamentos que reflui da dinâmica de uma cidade em movimento. Para a autora, a cidade se reconhece como metrópole, centro econômico propulsor e condensador das ações que instituem o novo, uma nova ordem urbana e uma nova ordem arquitetônica revelada especialmente nos aspecto vertical das arquiteturas analisadas no livro.

Entretanto, capítulo(s) que pouco ainda reverbera(m) a sensibilidade do olhar objetual-arquitetônico-formal da autora, em sua aguda e instigante capacidade de análise das arquiteturas selecionadas, ou melhor, de qualquer outra arquitetura. Este olhar será enunciado no capítulo dedicado à leitura dos projetos. Leitura e não análise, como está proposto na estrutura do livro. Leitura, pois, no mais puro sentido da palavra, aquele em que se lê decifrando significados construtivos e formais de cada palavra em um texto escrito. Portanto, significados construtivos e formais de cada arquitetura desde a sua concepção-representação (aquela delineada cuidadosamente no papel vegetal à nanquim), até sua instauração como elemento constitutivo das dinâmicas da metrópole em construção. No capítulo dedicado ao estudo dos projetos existe uma articulação entre cada uma das arquiteturas, cuja especificidade torna evidente o entendimento das suas relações com a cidade: a articulação pelos sistemas de circulação que articulam a cidade ao edifício em questão. Sobretudo em uma metrópole capitalista efervescente da década de 1950, os indícios de deslocamento, de movimento, estão impregnados em todos os elementos que perfazem a cidade: nos trens, nos carros, nos relógios, nas pessoas, nas ruas, nas avenidas, na infra-estrutura urbana. Os arquitetos autores dos projetos souberam compreender esta informação, esta transformação, esta incorporação no cotidiano da metrópole. Denise Xavier soube realizar uma leitura atenta à interface dos objetos com os sistemas de circulação vertical e horizontal, respectivamente, o sistema que articula as esferas privadas dedicadas ao trabalho, à moradia, ao lazer, à alimentação, com o sistema que agrega aos edifícios uma importante dimensão urbana.

O primeiro sistema estava intimamente relacionado às novas tecnologias construtivas e mecânicas, atuava e atua como elemento estruturante no processo de verticalização das cidades por possibilitar o deslocamento vertical: o elevador – elemento cuja espacialidade e produção industrializada não apresentava maiores distinções nos edifícios. O segundo sistema está associado aos aspectos instituídos de positividade que a vida urbana representava. É distinto formal-espacialmente para cada arquitetura, empreende relações particularizadas e articuladas aos edifícios em estudo com a cidade, e estrutura a inquestionável associação do objeto aos espaços livres: são passagens internas, galerias e verdadeiras ruas que adentram, intercambiam, articulam cidade e arquitetura. Talvez em menor intensidade no edifício do Jornal O Estado de São Paulo, nos outros edifícios a dinâmica urbana adentra sem barreiras, sem receios os espaços de uso coletivo dos edifícios, os “espaços urbanos das edificações”, do urbano arquitetônico. O olhar sensível da autora para a leitura da arquitetura, associado ao procedimento metodológico enunciado naquele texto pinçado do livro – que integra a parte do livro escrita em parceria com Kazuo Nakano –, especialmente quando afirma que “não há como pesquisar a arquitetura metropolitana à distância. É preciso abordá-la submersa na congestão urbana, inscrita em relações dinâmicas, mensurada com escalas que se modulam em quantidade, extensão e qualidade de variáveis múltiplas”, fazem desse capítulo de estudo dos edifícios o eixo convergente e central de todo livro, de toda a narrativa.

Uma narrativa encerrada num texto em que a autora propôs pensar o contínuo do movimento de metropolização pela contraposição destas arquiteturas analisados com edificações que representam o absoluto esvaziamento da vida urbana, da vida pública, da urbanidade: edificações destituídas de uma essência de lugar, espaços controlados, vigiados, consensuais e homogeneizados em sua abstração estéril. A própria narrativa enuncia a distinção pela oposição das experiências possíveis em cada situação. De um lado, a cidade em suas diferenças, seus agentes, suas arquiteturas, seus símbolos, cheiros, luzes, sons, ou seja, a dinâmica que perfaz a vida urbana. Uma cidade que ainda hoje não consubstancia níveis mínimos de qualidade de vida para uma grande maioria dos que nela habita. Entretanto, uma cidade que não esconde as indesejadas diferenças, pois nela estão a perscrutar suas vidas por todos os lugares, sejam praças, viadutos, calçadas, ruas, marquises e favelas.

Por outro lado, espaços que pouca apreensão permitiram aos seus interlocutores na tentativa de mergulhar em suas especificidades. Conjunturas construtivas envidraçadas, muradas e climatizadas que enunciam os novos interesses do capital na metrópole. Para estas conjunturas as cidades são vazios de interligação entre pontos de concentração financeira internacional, circundadas por um conjunto de equipamentos complementares: condomínios fechados, shoppings e aeroportos. A crítica a estas conjunturas é sensivelmente enunciada pela insensibilidade que delas emana. Preocupante é a constatação da transformação e adequação daquelas “arquiteturas metropolitanas” aos preceitos que processam a indiferença e a exclusão com os indesejados que habitam a cidade.

Opor-se a estes processos é parte daquelas três dimensões que perfazem a trajetória profissional de Denise Xavier: a dimensão ética, a dimensão estética e a dimensão política. Seu livro não é algo isolado na ação desenvolvida como arquiteta e urbanista, mas consubstancia e amplia sua inserção crítica na metrópole paulistana em contínua construção. Nesse sentido, seu livro não é sobre um conjunto de edifícios importantes para a história da arquitetura no Brasil, especialmente para a arquitetura paulista. Seu livro trata da construção da cidade, da construção da cidade de São Paulo como metrópole. Sua importante particularidade passa pela compreensão de que a arquitetura é parte da cidade, integra todo o conjunto de dinâmicas com as quais a sociedade se mantém ativa e em transformação.

Seu estudo é sobre a necessidade de retomarmos a consciência de que o esvaziamento da cidade, a negação da cidade é a negação da própria sociedade como agente transformador. Ao arquiteto cabe a responsabilidade, ou melhor, deveria caber a responsabilidade pela produção de arquiteturas comprometidas com a vida urbana em todas as suas diferenças e antagonismos. Porém, em “Arquiteturas Metropolitanas” constatamos que os processos contemporâneos de construção da cidade estão exclusivamente pautados pelos interesses do capital na (re)produção dos espaços homogêneos e consensuais cuja valorização ocorre pela indiferença ao entorno, à paisagem, à dinâmica da cidade. Uma constatação que deve gerar uma indagação autocrítica que passa primeiramente pela formação dos quadros profissionais no país: qual arquiteto estamos formando, qual arquiteto queremos formar? Certamente a despolitização do processo de formação pautado exclusivamente por sistemas técnico-informacionais contribui intensamente com o esvaziamento dos significados sociais, culturais e políticos da profissão de arquiteto e urbanista, da própria arquitetura.

Como afirmara Christian Topalov, “as ciências da racionalização urbana e das finalidades sociais são radicalmente colocadas em questão pelas ciências da celebração do mercado e da ‘revolução liberar’. Os especialistas de umas e de outras não são do mesmo mundo. Nosso saber está, aberta ou secretamente, a serviço do Estado, o deles está, sem complexos, a serviço da empresa. Quaisquer que sejam nossas inclinações políticas, nossas definições disciplinares ou nossas preferências teóricas, temos talvez algo em comum: os adversários” (TOPALOV, 1991). Em Arquiteturas Metropolitanas, Denise Xavier não se esquivou da necessária crítica aos “adversários” que ela bem sabe quais são. Convém, no entanto, enunciar uma discordância com Denise Xavier, quando afirma que “não há como pesquisar a arquitetura metropolitana à distância”. Não há como pesquisar qualquer arquitetura à distância, pois, como integrante da cidade, seria como pesquisar a cidade estando distante dela, estando deslocado dela. Aliás, o distanciamento é um dos principais instrumento utilizados pelos nossos “adversários” na desconstrução das cidades, na desconstrução da vida urbana, seja ela metropolitana ou não.

Referência

Topalov, Christian (1991). Os saberes sobre a cidade: tempos de crise? In: Espaço & Debates, Revista de Estudos Regionais e Urbanos. Ano XI, n. 34: 37.

Rodrigo Faria – Arquiteto e urbanista, Mestre e Doutor em História pelo Departamento de História do IFCH-UNICAMP, Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade do IFCH-UNICAMP, Becário Fundación Carolina/Universidad Politécnica de Madrid.


MENDONÇA, Denise Xavier de. Arquitetura Metropolitana. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007. Resenha de: FARIA, Rodrigo. Arquiteturas e dinâmicas urbanas na interpretação sobre a construção metropolitana. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]

 

Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia – FEITOSA (AN)

FEITOSA, Lourdes Conde. Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. 168p. Resenha de: SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Anos 90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.361-364, 2006.

Herdeiros da tradição judaico-cristã recebemos a informação primeira de que o sentido da existência humana nos era dado por intermédio do Verbo Divino. Assim, aprendemos com os livros bíblicos o quanto a realidade poderia ser explicada pela palavra.

Então, sob a luz de teorias teológicas, inicia-se a disseminação da teoria hermenêutica, centrada em análises sintáticas e etimológicas, a fim de tornar o texto bíblico mais racional, leia-se, mais científico. Tal processo consumiu séculos de nossa história ensinando-nos a pensar a realidade a partir da escrita literária, empregando imagens apenas como ilustrações embelezadoras das edições.

Somente nas primeiras décadas do século XX, estudos de semiótica e de semiologia contribuíram para o deslocamento de nosso olhar, conformado ao que Derrida chamou de logocentrismo, para enxergarmos a colaboração da produção imagética. Com isso, despertamos para a possibilidade de interpretação dos valores sociais e do contexto histórico representados em inscrições parietais ou em relevos, pinturas em cerâmicas, estátuas e estatuetas, etc.

Nesse sentido, no livro Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, resultado de um longo trabalho de pesquisa de doutoramento, com dados recolhidos em várias bibliotecas do Brasil e do exterior, e ainda de visitas aos sítios de Pompéia, Lourdes Conde Feitosa dedica-se ao estudo crítico sobre as fontes materiais pompeianas, oferecendo ao leitor uma nova abordagem para as inscrições paradoxalmente preservadas pela grande erupção do Vesúvio em 79 d. C., e postas à tona somente no século XVIII.

A autora demonstra salutar ousadia em sua obra não apenas por trabalhar com um corpus pouco explorado pelos estudiosos, mas ainda por retirar análises criativas sobre a sexualidade popular em Pompéia. Outro aspecto interessante deste livro é a junção de fontes literárias com fontes materiais, sem que o entrelaçamento delas pareça complementar as informações apresentadas pela autora. Dividido em cinco capítulos, sua argumentação principia com o capítulo intitulado “Gênero, amor e sexualidade: olhares metodológicos”, em que Feitosa apresenta-nos um balanço historiográfico dos estudos realizados sobre gênero, amor e sexualidade.

Nesse capítulo, a autora questiona teorias e métodos selecionados pelos estudiosos, voltados para a leitura racional dos fatos, centrada na identificação da verdade histórica e, por esse motivo, geradora de uma narrativa histórica totalizante e unificadora. Assim, Feitosa afirma escrever uma “microhistória […] e destacar o heterogêneo, o local e o específico” (p. 24).

No segundo capítulo, denominado “Representações do amor e da sexualidade na literatura acadêmica”, a autora discorre sobre a complexidade semântica da palavra amor, que em sua definição, abarca sentimentos como affectus, dilectio, caritas e eros, como revelam os grafites pompeianos expressos em vocábulos ou em desenhos.

Feitosa delineia o quadro interpretativo dos estudiosos de tais expressões humanas, revelando insuficiências teóricas, constatando a predileção dos estudiosos por análises dirigidas às relações amorosas e sexuais aristocráticas. Nesse sentido, ao estudar as manifestações da sexualidade popular, a autora brinda-nos com uma nova safra de pensamentos descentrados do eixo habitual.

Reflexões sobre a antiga Pompéia Romana constituem a tônica do terceiro capítulo denominado “Pompéia: edificações de um cenário histórico”. Com essa escolha metodológica, a autora remete-nos a aspectos interessantes da vida cotidiana em Pompéia, realçando elementos constituintes da estrutura social e econômica da cidade. Para tanto, Feitosa realiza uma minuciosa leitura das fontes materiais, epigráficas e literárias disponíveis, relatando as particularidades das representações imagéticas dos grafites ou graphio inscripta pompeianos, uma vez que as inscrições podem ser vistas em quase todos os locais públicos e privados da cidade, ou seja, onde havia paredes.

Após a contextualização socioeconômica da sociedade pompeiana, realizada no terceiro capítulo, a autora aponta seus desdobramentos na vida cotidiana de Pompéia, cujas particularidades das práticas populares compõem a temática desenvolvida no capítulo seguinte, nomeado “A expressão popular nos grafites”.

Para distinguir o aristocrata do popular, a autora pautou-se nos conceitos de honestiores e humiliores, recorrentes na literatura latina. Feitosa salienta a origem e a significação social variadas desses vocábulos; em suas palavras: “A tradução literal de honestus (honor – honra, respeito) corresponde aquele que é ‘honrado’, ‘virtuoso’, ‘nobre’, e humilis, ‘o que está no chão’ (humus), ‘o de baixa condição’, ‘o comum’, ‘o modesto’; mas o interessante a ser observado é a conotação adquirida segundo o lugar em que é usado” (p.75).

Encerrando seu percurso, a autora apresenta as inscrições parietais dos populares no quinto capítulo de seu livro, o qual intitulou de “Amor e sexualidade em inscrições parietais”. A autora versa a respeito das constantes inscrições populares sobre suas venturas e desventuras amorosas; como pôde observar durante sua pesquisa nos sítios de Pompéia, Feitosa conclui: “O tema amoroso fazia parte das preocupações cotidianas desses ‘grafiteiros’ e é por meio de suas referências sexo-afetivas que penso na composição do feminino e do masculino, em uma articulação de gênero.

Para essa análise selecionei duas práticas sexuais que, em seu âmago, estão relacionadas à sexualidade masculina e à feminina: a ação de futuere [ter relação sexual com] e de cunnum lingere [praticar a cunilíngua]” (p. 97-98).

Não apenas no último capítulo de seu trabalho, mas ao longo de todas as páginas, Feitosa manifesta sua preocupação com a sexualidade humana. Portanto, o livro Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, de Lourdes Conde Feitosa, representa tanto um movimento de sedimentação dos estudos clássicos no Brasil como a inserção, no mundo das idéias, de um pensamento holístico no tocante à sexualidade dos antigos romanos. Mais um aspecto interessante de seu texto é o tratamento dado à sua temática: a sexualidade dos populares, esquivando-se de análises limitadas pelo olhar moralista bem como de repetições analíticas pautadas em relatos de Plínio, o jovem ou de Tácito, fazendo emergir relatos diversificados e contraditórios sobre a vida cotidiana em Pompéia.

Maria Aparecida Oliveira Silva – Doutoranda em História Social – FFLCH/USP. Bolsista Fapesp. Anos 90, Porto Alegre, v.13, n.23/24, p.361-364, 2006.

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Dicionário Crítico Câmara Cascudo | Marcos Silva

Desde o primeiro momento em que me deparei com o Dicionário Crítico Câmara Cascudo e, depois, à medida que o lia – ou melhor, saboreava cada página – uma pergunta se impunha: que outro escritor brasileiro poderia ser comparado a Câmara Cascudo, seja pelo volume de livros publicados, seja pela impressionante contribuição que deu aos mais diferentes campos do conhecimento? Que outro mereceria a organização de um dicionário para reunir e explicar sua produção intelectual? E, apesar de alguns nomes me ocorrerem, nenhum parecia superar o norte-rio-grandense, tal o inegável impacto de seu trabalho para a cultura brasileira. Como poucos, Cascudo introduziu no cenário nacional o testemunho de uma experiência sertaneja e a cosmovisão de um mundo nordestino, até então muito pouco conhecido e geralmente ignorado pela elite intelectual do país.

A vasta bibliografia de Câmara Cascudo (1898-1986) contabiliza cerca de uma centena de obras e se encontra espalhada pelos campos da história, da etnografia, da antropologia, da literatura, da crítica literária, da cultura popular, da religião, da geografia e, principalmente, do folclore. Como se não bastasse, há ainda um importante detalhe: seja qual for o tema estudado, o texto cascudiano prima por ser também literário. O escritor norte-rio-grandense desenvolveu ao longo de sua produtiva vida intelectual um estilo muito próprio, cujo ponto alto é justamente uma especial habilidade no trato com a linguagem, que resulta sempre em um texto sedutor, leve e singular, pontuado de imagens e de expressões poéticas que encantam o leitor e aliviam com muita sensibilidade a aridez da informação documental. Leia Mais

Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo no Brasil (1917-1964) | Rodrigo Patto Sá Motta

Os trabalhos que discutem com propriedade o anticomunismo no Brasil, em sua maioria, são recentes. A dificuldade de acesso às fontes primárias e a preferência por estudos ligados aos movimentos de esquerda foram os maiores obstáculos para o crescimento desta vertente de pesquisa. No Brasil, ainda não existe uma historiografia consolidada sobre o ideário anticomunista, mas existem trabalhos interessantes e importantes para os historiadores que se interessam pelo tema – como, por exemplo, o livro de Rodrigo Patto Sá Motta. O autor procura estudar o anticomunismo entre 1917 e 1964, concentrando-se nos períodos de 1935-1937 e 1961-1964, alegando haver neles uma maior intensidade das manifestações anticomunistas.

Em relação à década de 1930, o autor identifica o manifesto escrito por Luiz Carlos Prestes – em maio de 1930, onde declarava sua adesão ao marxismo-leninismo e à causa do proletariado – como uma das primeiras influências de relevo no aumento do temor ao comunismo e, simultaneamente, dos sentimentos anticomunistas. Este aumento pode ser constatado, segundo ele, pela considerável expansão na publicação de livros anticomunistas. Além disto, o surgimento de várias greves, em 1934, em algumas capitais brasileiras, contribuiu para a criação de instrumentos repressivos legais, que se tornaram úteis ao governo na medida em que a esquerda ampliava a sua atuação. Entre 1930 e 1935, tais sentimentos estiveram ligados à percepção de que era necessária uma ofensiva em defesa da ordem, intensificada sobremaneira pela tentativa revolucionária comandada pelo PCB, em 1935, e pela Guerra Civil Espanhola, em 1936. Leia Mais

Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea | Pedro Paulo Abreu Funari, Charles E. Orser Júnior e Solange Nunes de Oliveira Shiavetto

Pensar as múltiplas identidades possíveis ao homem implica refletir sobre a interação conceitual entre identidade, discurso e poder no estudo da formação e da organização social. Nesse quadro de interdependência, verificam-se, ao longo da história, práticas políticas direcionadas à construção de discursos normativos e mantenedores do poder pela edificação de identidades, cujas definições interagem com a distribuição dos espaços sociais e geográficos. Tal diversidade espacial retrata a heterogeneidade da ocupação do solo, demonstrando que essa variável deve ser considerada no labor de arqueólogos e historiadores. Sob essa perspectiva, o livro Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea, organizado por Pedro Paulo Abreu Funari, Charles E. Orsen Jr. e Solange Nunes de Oliveira Schiavetto, fomenta o debate a respeito dos usos das fontes materiais e literárias para o entendimento das ações humanas situadas no passado, revelando descompassos entre escritos e espaços, e estimula o repensar dos modelos teóricos acatados por arqueólogos e historiadores.

A primeira parte do livro, intitulada “Identidades e conflitos”, principia com o capítulo “A mulher aborígine nas Antilhas no início do século XVI”, de Lourdes S. Domingues. A autora tece reflexões sobre os anos de 1492 a 1542, período com escassa documentação primária e, por esse motivo, fonte de polêmica entre os estudiosos. O recorte da autora contempla a época em que a Coroa Espanhola promulgou as Leyes Nuevas, as quais, segundo Domingues, influenciaram sobremaneira o processo de construção das identidades das mulheres aborígines do Caribe. Leia Mais

O desvendar do grande livro da natureza: um estudo da obra do mineralogista José Vieira Couto, 1798-1805 | Clarete Paranhos da Silva

O livro de Clarete Paranhos dá uma importante contribuição à história das ciências no Brasil. Ele é resultado das investigações realizadas durante o curso de mestrado da autora no Programa de Geociências Aplicadas ao Ensino, no âmbito do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho apresenta-se estruturado da seguinte forma: uma introdução; três capítulos, cada um deles subdividido, o que torna a leitura mais fácil e agradável; e a parte conclusiva. Logo na introdução, a autora apresenta a sua tese essencial, em consonância com a postura renovada da historiografia das ciências na América Latina, que vê a ciência como uma prática inserida em um tempo e espaço concretos, segundo a qual o mineralogista José Vieira Couto em suas Memórias, resultado das pesquisas na capitania de Minas Gerais, contribuiu para o processo de institucionalização das práticas geocientíficas no contexto colonial, em contraposição à historiografia corrente que afirmava que o Brasil nesse período era um imenso vazio científico. Leia Mais

Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura – WOLF (VH)

WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp/Imprensa Oficial do Estado, 2001. Resenha de: AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Jardim América, o subúrbio jardim em versão brasileira. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.29, p. 157-161, jan., 2003.

São Paulo, a maior metrópole brasileira, é freqüentemente evocada por sua impressionante massa edificada, composta por edifícios altos, espalhada por extensa área, e por sua confusa, densa e violenta periferia. Porém, em meio ao mar de concreto armado e bem longe do caos da periferia, despontam bairros residenciais marcados pela exuberante presença do verde e por casas afastadas das ruas sinuosas e arborizadas. São os bairros-jardins, que dão forma ao núcleo da São Paulo cosmopolita e próspera, a região que os paulistanos simplesmente chamam de Jardins.

Jardim América, Jardim Europa, Jardim Paulistano são hoje símbolo da cidade, talvez exatamente por seu caráter de exceção. Constituem o ambiente que os paulistanos desejariam ver e ter em toda a sua cidade. Surgiram na década de 1910, como uma alternativa para a expansão dos bairros até então ocupados pelas elites — Campos Elísios, Higienópolis e a Avenida Paulista. Caíram no gosto das camadas altas e médias. Foram modelados a partir dos subúrbios-jardins que, ao longo da segunda metade do século XIX, tomaram forma nas cercanias de grandes cidades britânicas e americanas — Londres, Nova York, Chicago. E, por sua vez, serviram de modelo para diversos outros bairros residenciais, enquanto consolidaram-se entre os anos 1920 e 1950 como espaço de vida das faixas mais ricas e dinâmicas da população da cidade. Por tudo isso, foram tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), nos anos 1980, após intensa pressão popular.

Os Jardins vêm despertando a atenção de historiadores, arquitetos e urbanistas. Os historiadores — com destaque para Nicolau Sevcenko, em seu Orfeu extático na metrópole, e para Roney Bacelli, com sua dissertação A presença da Cia. City em São Paulo (1915-1940) e a implantação do primeiro bairro-jardim — interessados nas articulações da constituição dos Jardins com a modernização da sociedade paulista e nas possibilidades que o estudo dessa região abre para a história social e cultural da metrópole brasileira. Os arquitetos e urbanistas — entre eles Hugo Segawa e Dacio Araújo Benedicto Ottoni — fascinados pelas conexões entre o estabelecimento dos Jardins e uma das mais influentes utopias urbanísticas do fim do século XIX, a cidade-jardim proposta em 1898 pelo inglês Ebenezer Howard (1850-1928) como alternativa para as congestionadas cidades européias, numa obra com título eloqüente: Tomorrow: a peaceful pathto social reform1. Fascínio esse amplificado por serem os arquitetos que traçaram o Jardim América, o primeiro dos bairros-jardins paulistanos, os ingleses Raymond Unwin (1863-1940) e Barry Parker (1867-1947), os mesmos que, sob a liderança de Howard, conceberam e implantaram acerca de 70 quilômetros ao norte de Londres, a partir de 1903, a primeira garden city britânica, Letchworth. E por serem eles, também, os arquitetos que, entre 1903 e 1907, projetaram Hampstead, um bem sucedido garden-suburb nos arredores de Londres, já sem vínculos com Howard mas incorporando muito da experiência por eles desenvolvida em Letchworth.

Cidade-jardim, subúrbio-jardim e bairro-jardim são concepções urbanísticas surgidas a partir dos anos 1850 como respostas aos problemas decorrentes da rápida urbanização que marcou a Europa e a América do Norte no século XIX. O subúrbio-jardim pode ser entendido como o desdobramento de configurações urbanas que desde a Antiguidade estiveram presentes na cidade ocidental: chácaras e casas de campo nos arredores das cidades, possibilitando aos privilegiados a fuga dos densos ambientes urbanos. No século XIX, o desenvolvimento de estradas de ferro e linhas de bonde tornou viável o estabelecimento dos espaços de vida de grande número de pessoas em subúrbios cada vez mais distantes dos centros urbanos, expandindo as cidades. A Garden city de Howard foi, por sua vez, desdobramento desse processo de expansão urbana, propondo a criação de comunidades autônomas e de crescimento controlado, integrando campo e cidade. Com o subúrbio jardim, arquitetos britânicos e americanos também buscaram associar campo e cidade, porém sem pretenderem a autonomia característica da garden city. O subúrbio-jardim deve, assim, ser entendido como extensão da grande cidade, enquanto a cidade-jardim coloca-se como uma nova cidade, distinta da metrópole à qual se articula. Por fim, o bairro jardim surgiu da aplicação do modelo do subúrbio-jardim a contextos essencialmente urbanos, como no caso de São Paulo.

O primeiro bairro-jardim paulistano, o Jardim América, é o objeto do livro de Silvia Ferreira Santos Wolff. Longe de fazer a história de um bairro, a autora constrói seu objeto a partir de uma inquietação. Como pesquisadora do Condephaat, Silvia Wolff constatou que o processo de tombamento dos bairros-jardins e os mecanismos legais adotados em 1985 para a preservação desses bairros visavam sobretudo a conservação da paisagem urbana, do verde, das ruas e das praças. Ou seja, a preservação do espaço urbano. Quanto à conservação dos edifícios, pouca coisa, quase nada. Ora, sabemos que o traçado e a paisagem urbana dependem do modo como os edifícios configuram o espaço da cidade. Seria possível, portanto, preservar o espaço urbano sem conservar a arquitetura que o constitui? Por que a arquitetura do Jardim América (e de outros bairros, como o Pacaembu) não despertou maior interesse do Condephaat?

Para responder a essas questões, Silvia Wolff repassou em sua tese de doutoramento em Arquitetura, desenvolvida na USP sob orientação do Professor Carlos Lemos, o estabelecimento do Jardim América, empreendimento imobiliário comercial, distante das concepções utópicas da cidade-jardim e próximo ao subúrbio-jardim anglo-americano. Considerando que a arquitetura das casas do Jardim América vem sendo pouco estudada, por ser ela produção arquitetônica de transição entre duas produções mais valorizadas no campo da arquitetura — o ecletismo classicizante das últimas décadas do século XIX e a arquitetura modernista que se tornou hegemônica na paisagem paulistana após a Segunda Guerra Mundial —, Silvia Wolff levou a cabo um extenso levantamento arquitetônico das edificações do Jardim América com base no acervo do arquivo da Cia. City, empresa responsável pela implantação desse bairro-jardim. Levantamento que, apoiado por cuidadosa revisão da concepção urbanística da cidade-jardim e do subúrbio-jardim, é o ponto alto do trabalho e traz contribuições para pesquisadores interessados no estudo das grandes cidades brasileiras e nos modos de vida de seus habitantes.

A pesquisa histórica desenvolvida por Silvia Wolff nos arquivos da Cia. City deve ser destacada, pois aponta caminhos instigantes para arquitetos e historiadores que, tomando a produção arquitetônica como produção cultural, procuram lançar novas luzes sobre as transformações urbanas, especialmente desvelando as convergências e conflitos entre os interesses privados e o poder público na acelerada expansão das cidades brasileiras, no século XX. Conhecida como Cia. City, a City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited foi organizada em 1911, com escritórios em São Paulo, Londres e Paris, associando o arquiteto Joseph Bouvard e o banqueiro Édouard Fontaine de Laveleye, ambos franceses, a um grupo de investidores e proprietários de terras nos arredores de São Paulo, integrantes da elite paulista e com acesso franco à cúpula político-administrativa do estado. Cincinato Braga, político paulista, Horácio Belfort Sabino, advogado e proprietário de terras, e Victor da Silva Freire, professor da Escola Politécnica e diretor de Obras Públicas da Prefeitura de São Paulo, estiveram ligados ao início da atuação da Cia. City. Lord Balfour, presidente da São Paulo Railway Co. e governador do Banco da Escócia, também fazia parte da primeira diretoria da empresa. Com os capitais reunidos, a Cia. City comprou aproximadamente 12 km² de terras nas vizinhanças das áreas que já vinham sendo ocupadas pelas camadas altas da sociedade local. Constituída, a companhia iniciou a urbanização de partes dessas terras e a venda dos lotes, entrando no movimentado mercado imobiliário paulistano. Ainda hoje a Cia. City é atuante nesse mercado e seu sucesso derivou, em grande medida, das estratégias inovadoras e bem traçadas que marcaram seus primeiros anos. Estavam entre essas estratégias, por um lado, técnicas de venda a prazo dos lotes, de financiamento da construção das casas e de seleção dos compradores e, por outro lado, a busca de soluções urbanísticas que tornassem diferentes e atraentes seus loteamentos.

Isto explica a contratação, em 1913, de Raymond Unwin e Barry Parker para a elaboração do projeto do Jardim América e a vinda do segundo a São Paulo, em 1917, para conduzir a implantação do bairro-jardim. Em Londres, Unwin e Parker projetaram a concepção básica do loteamento, lançando mão do know-how acumulado nos projetos da cidade-jardim de Letchworth e do subúrbio-jardim de Hampstead. Em São Paulo, entre 1917 e 1919, Barry Parker desenvolveu o projeto, participou dos trabalhos de urbanização, definiu padrões urbanísticos para o Jardim América, influenciou a legislação urbanística da cidade (através de contatos com o diretor de obras da Prefeitura, Victor da Silva Freire) e estabeleceu padrões arquitetônicos para as casas do bairro-jardim, projetando algumas delas, inclusive. O levantamento da passagem de Parker por São Paulo é outro ponto destacado no trabalho de Silva Wolff e, sem dúvida, interessa aos historiadores e arquitetos que estudam as grandes cidades brasileiras.

Em resumo, o livro de Silvia Wolff, deve ser entendido como um trabalho que, desenvolvido a partir do campo da arquitetura e do urbanismo, situa-se na fronteira entre o campo da história e o campo da história da arquitetura e do urbanismo. Lançando mão do método histórico para o estudo da produção arquitetônica e da cidade, a autora traz uma importante contribuição à história social e cultural de São Paulo.

Por fim devemos elogiar a qualidade da edição e o modo como os numerosos desenhos, mapas, fotos e reproduções de peças publicitárias, pertencentes ao acervo do arquivo da Cia. City, estão associados ao texto, especialmente na parte dedicada ao levantamento e análise da arquitetura do Jardim América. Porém, não podemos deixar de lamentar a ausência de um glossário dirigido aos leitores menos familiarizados com os termos usualmente empregados na arquitetura e urbanismo. Num trabalho de fronteira, como esse de Silvia Wolff, é sempre útil lembrar que nem todos os dicionários comuns explicam o que vem a ser um traçado hipodâmico ou uma sash window.2

Notas

1 Amanhã: um caminho pacífico para a reforma social. Em 1902, essa obra seria reeditada com o título: Garden cities of tomorrow — Cidades-jardins de amanhã. Para os interessados, vale consultar a tradução brasileira, editada em São Paulo, em 1996, pelas editoras Hucitec e Annablume, reeditado em 2002.

2 Traçado hipodâmico é nada mais que o velho traçado em tabuleiro de xadrez, no qual ruas se cruzam ortogonalmente definindo quarteirões retangulares. O termo evoca Hipódamo, o grego que, no século VI a.C., teria sido o primeiro a propor esse traçado regular. Sash window é um tipo de janela comum nas casas inglesas, com duas folhas envidraçadas (sash) que podem ser levantadas ou abaixadas com facilidade, lembrando o funcionamento de uma guilhotina. Daí vem o termo brasileiro: janela de guilhotina.

Tito Flávio Rodrigues de Aguiar – Arquiteto. Doutorando em História, UFMG.

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Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa – JANCSÓ; KANTOR (HE)

JANCSÓ, István; KANTOR, Íris. (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Hucitec; Edusp; Fapesp, 2001. 2v. 992p. (Coleção Estante USP – Brasil 500 anos, 3). Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. História & Ensino, Londrina, v.8, p. 157-160, out. 2002.

A ligeira mulata, em trajes de homem

Dança o quente hmdu e o vil batuque;

E aos cantos do passeio inda se fazem

Ações mais feias, que a modéstia oculta.1

o poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga em suas Cartas Chilenas aludiu ao lundu e ao batuque, respectivamente, canto e dança, muito populares nas festas mineiras do século ‘I’11 como ele, alguns historiadores observam as festas, ou melhor, as manifestações da cultura popular como um lugar de subversão, de transgressão à norma disciplinadora do poder. Gonzaga, por ser aristocrata e moralista, vê a festa como uma grande promiscuidade, onde se misturam brancos, negros e mulatos, chegando mesmo a comparar Vila Rica em festas (atual Ouro Preto) às cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra.

Ao historiador, seguindo uma tradição herdada da Sociologia e da Antropologia, ficou a percepção que as manifestações populares nos dão acesso às experiências cotidianas de segmentos da população que ficaram por muito tempo silenciados. Daí o fascínio pela festa, um cenário privilegiado para observação do universo cultural dominante e, também, ambiente onde se encontra mesclado elementos próprios da cultura popular, com suas tradições, seus símbolos e suas práticas, constituindo-se num espaço de grande sociabilidade.

Assim, entender esse espaço, mostrar pesquisas que estão em andamento e fazer um balanço da produção recente sobre as festividades na América portuguesa e, conseqüentemente, suas implicações na formação da nacionalidade e da cultura nacionais, são os objetivos da edição da coletânea Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, organizada pelos professores e historiadores István Jancsó e lris Kantor.

O livro, fruto de um seminário internacional realizado na USP em 1999, reúne 49 artigos escritos por pesquisadores brasileiros e portugueses, que se preocuparam em compreender as manifestações coletivas (festas, cerimônias, ritos, atos de sociabilidade, etc.) que influenciaram na construção de nossa identidade nacional. Segundo os organizadores, as festas são um dos pontos principais da imagem que o brasileiro faz de si mesmo e do estrangeiro sobre o país. Para grande parte da população, elas significavam um instrumento fuga ao controle exercido pelo Estado absolutista, com o qual sempre tivemos uma relação de sofrimento e de antagonismo. O Estado criado por nossas elites nunca foi um instrumento de harmonia, mas sim de desagrega1ção, pois jamais ele foi utilizado como mecanismo de identificação e de libertação.

Comu as festas coloniais nem sempre tinham a mesma dinâmica nem os mesmos objetos de pesquisa e, portanto, não podiam ser abordadas da mesma forma e através dos mesmos instrumentos analíticos, a obra pode ser dividida em três grandes momentos: um primeiro que trata das festas religiosas ligadas aos jesuítas e a catequese dos indígenas; um segundo período ligado ao processo de consolidação da sociedade urbana desde fins do século XVII e durante a centúria seguinte, notadamente em Minas Gerais. Isso se explica devido à urbanização ocorrida ao longo do setecentos, resultado de uma extensa rede de centros urbanos, e à diversificação da economia através do comércio, do artesanato, da mineração (do ouro e de diamantes), da agricultura e da pecuária. Somam-se a esses dados ainda o contingente populacional, a estrutura administrativa e a constituição de um mercado consumidor interno.

Nas sociedades urbanas, muitas festas, seguindo o modelo ditado pela metrópole, cultuavam o rei e/ou se dedicavam aos ritos processuais católicos, como as celebrações da Semana Santa, do Triunfo Eucarístico e do atual “Corpus Christi”. Mas, ao lado destas festividades, tínhamos também a existência de um número quase que incontável de festas de caráter popular.

Nas interessantes “subversões e inversões da ordem festiva”, uma das divisões do livro que pode ser incluída nesse segundo momento, nota-se que conhecemos muito pouco das festas de caráter político não oficial que integravam o cotidiano das vilas coloniais. Um exemplo dessas curiosas celebrações jocosas que utilizavam signos de poder ocorreu em 1732, quando desafetos do governador dom Lourenço de Almeida promoveram-lhe enterro simbólico, por ocasião de sua partida da capitania de Minas Gerais, enquanto outros celebraram uma missa paródica pela sua alma que, julgava-se, ardia no inferno.

Outras formas de resistência à ordem festiva e social vieram através da circulação de cartas e sátiras anônimas que insuflavam a população à rebeldia, ou ainda através da existência de representações teatrais, como a “Serração da Velha” -cerimônia caricata que ocorria na época da Quaresma, onde um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada, ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro. A Velha representava uma entidade maléfica (3 morte) ou algo grotesco que perturbava a felicidade ou dificultava a conquista legítima de alguma coisa. Nesses casos, a festa era um “lugar por excelência capaz de tornar realidade uma das exigências básicas dos protestos: a mobilização popular, que constituiu recurso imprescindível da prática amotinadora a fim de garantir poder de pressão às suas exigências” (p. O terceiro momento é o das “festas na corte portuguesa”, período que se inicia com a transmigração da família real lusitana para o Brasil e vai até a nossa Independência. Nesse instante, as festas tornaram-se mais seletivas e as músicas se apresentaram com novos elementos funcionais, técnicos e estéticos, devido à importação de novos instrumentos musicais e a enriada de novos ritmos na corte dom João Além dos dois volumes que compõe a obra, encontra-se encartado no primeiro exemplar um belo CD com 26 músicas que acnrnpanharam o universo sonoro festas na América portuguesa, desde as tradiçôes medievais, no século XIII, até as práticas indígenas, religiosas e afro-americanas do século XVIII. A apresentação coube ao historiador e músico Maurício Monteiro c a direção artística à Ana Maria Kieffer.

Referências

GONZAGA, Tomás Antônio. Carta 6ª: Em que se conta o resto dos festejos. In: Cartas Chilenas. Edição organizada por Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.143.

André Figueiredo Rodrigues – Mestre em História Social / FFLCH-USP.

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Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide | Fernanda Arêas Peixoto

Je leur donnai le feu,la flamme et tous les artsdont une flamme est l’aliment.André Gide (1925)

Os estudos do pensamento social no Brasil têm um lugar já consolidado na formação das ciências sociais no país. Com a institucionalização dos centros de pesquisa e pós-graduação, a partir da década de 1960, cristalizaram-se grupos polarizados nos principais centros universitários. O livro Diálogos brasileiros, da antropóloga e professora da Unesp/Araraquara Fernanda Arêas Peixoto, trata de uma trajetória intrinsecamente relacionada à formação da vertente paulista, notadamente no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), com a análise da fase brasileira do sociólogo e ensaísta francês Roger Bastide (1898-1974).

Mesmo para quem não se interessa especificamente sobre os temas particulares focalizados por este autor, a leitura de sua obra é relevante sobretudo no que se refere à reflexão sobre as relações entre teoria, metodologia e prática social, consubstanciadas em sua obra Antropologia aplicada, publicada na França e no Brasil em 1971, 17 anos depois que ele passou a ocupar o cargo de professor e pesquisador em prestigiadas universidades francesas, como a École Pratique des Hautes Études, a Sorbonne e o Institut de Hautes Études de L’Amérique Latine (Queiroz, 1978, p. 223). As constantes referências nessa obra às suas interlocuções brasileiras são uma demonstração da relevância de sua estada no Brasil para redefinir seu referencial teórico e constituir um lugar de indagação sobre a verdade e sobre a importância da experimentação para a análise em ciências sociais. Na sua fase brasileira, em contato direto com os professores, pesquisadores, produtores de cultura e outros interlocutores, ele colocou em prática o que chamou seu papel de “questionador” à procura dos caminhos para “entender a resposta dos fatos” (Bastide, 1971, p. 193), deixando como legado não uma receita metodológica única, mas investidas dentro da prática sociológica e antropológica que ainda hoje servem como parâmetro para a pesquisa inter e intradisciplinar. Leia Mais

Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922) / Ana L. Martins

A utilização de jornais e revistas como fontes no trabalho de pesquisa é algo corriqueiro no fazer historiográfico. Vez por outra recorremos a eles para verificar dados, analisar discursos, relacionar idéias dominantes de um período ou personagem que buscamos conhecer. Poucas vezes, no entanto, vemos esses veículos de comunicação no centro da cena. A busca dos significados de sua criação e dos detalhes de suas relações com a cultura e sociedade da época não é tratada com o rigor necessário, sendo subdimensionada na pesquisa.

A historiadora Ana Luíza Martins resolveu inverter essa lógica. Centrando foco na imprensa periódica das quatro primeiras décadas da República, através do estudo específico das revistas, a pesquisadora acabou compondo um verdadeiro painel da cultura e dos meios literários e jornalísticos paulistanos entre os anos de 1890 e 1922. O resultado pode ser conferido em Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922), produto de sua tese de doutorado na USP.

Utilizando-se de uma narrativa prazerosa, a autora busca recompor para nós, como num quadro, as condições conjunturais que permitiriam o florescimento e consolidação das revistas. Um dos méritos do trabalho, aliás, é essa recomposição, pela riqueza em detalhes. O que vemos é uma São Paulo, em plena virada do século, no compasso do desenvolvimento de sua agricultura movida pelo café e de uma indústria e comércio emergentes. A velocidade das transformações no espaço urbano corria no ritmo de trens e vapores e, mais tarde, no das rotativas, de onde surgiriam, em cores, as páginas de dezenas de títulos de revistas.

Estas traziam em seus textos e ilustrações a idéia de progresso e “civilidade”, profundamente inspiradas pelo periodismo francês. Muitos dos títulos, nos primeiros tempos, eram produzidos por brasileiros da elite agrária em seus escritórios em Paris. Essa relação foi fundamental para a divulgação de hábitos e produtos em voga na França, através da publicidade. A realidade das casas reais européias, o embevecimento com os hábitos aristocráticos e a vida elegante e refinada da nobreza, em permanente lazer, serviam como alimento para o panorama Belle Époque vivido em São Paulo. A cidade era assim vendida como a “Capital Artística”, a “Paulicéia”. O papel couché e a arte, presente nas riquíssimas gravuras, procuravam dissipar os rastros de tensão entre as classes e os conflitos urbanos em um espaço que se pretendia saneado e ordenado.

Num país onde 80% da população ainda era analfabeta, São Paulo destacava-se pelos investimentos públicos na esfera escolar, embora para a maioria da população, isso não representasse mais que aprender a ler, escrever e contar. O “saber ler” era chave para a participação do “cidadão” nas decisões políticas e no mundo da informação. Sem a presença de uma indústria livreira e com a dificuldade de acesso e entendimento dos jornais, “paladinos da verdade”, a revista com seus textos leves, ligeiros e profusão de ilustrações e gravuras, depois fotografias, seduzia pelo encanto da leitura facilitada e atraente, feita para entreter. Não era à toa que as revistas eram chamadas de “sorriso da sociedade”.

Do ponto de vista da história da imprensa brasileira, a pesquisa de Martins é de fundamental importância por recuperar um momento de transformações no fazer jornalístico. Isso se dá tanto no plano das condições estruturais para o desenvolvimento industrial – produção de papel, formação de pessoal qualificado para o trabalho em oficinas gráficas, estratégias de divulgação e venda dos produtos – como também no campo das representações ideológicas sobre esse fazer.

As contendas entre literatos e jornalistas são situadas nesse contexto de mudanças. O trabalho nas redações feito, em grande parte, por escritores, exigia a adaptação a um regime mais rígido de horários e novas formas de texto. A figura do jornalista boêmio dava lugar ao profissional disciplinado, apto a responder às necessidades de produção de um mercado competitivo e, a partir dali, remunerado.

O debate estimulante entre jornalismo e literatura no Brasil pode encontrar ali o seu elo perdido, uma vez que estamos tão acostumados a pensar essa questão, através da bibliografia norte-americana. A autora relata como a mercantilização imposta aos jornais vai gerar um mal-estar entre os literatos.

Subjugados em sua arte pelo “vil metal”, estes vão procurar nas revistas a maneira de se expressarem com integridade, obtendo a qualificação e o reconhecimento desejados como artistas e não como “operários da notícia”.

O trabalho de Ana Luíza Martins também nos fornece pistas para pensar a questão da linguagem jornalística propriamente dita, a partir da contribuição literária das revistas aos campos da reportagem e opinião. Mas a forte presença dos escritores e poetas nas revistas não estava retratada apenas nos contos, crônicas e sonetos publicados pelas ilustradas. Está também na publicidade e propaganda que estabelecia relação direta do comércio e indústria com essas publicações, afinal “o reclame é a vida do comércio”.

Quem imaginaria Olavo Bilac como um dos nossos primeiros publicitários, divulgando em sonetos as vantagens do xarope Bromil? A revista era a embalagem ideal para a divulgação de bebidas, medicamentos e novidades tecnológicas da indústria em seu começo.

O papel das revistas como formadoras e mesmo educadoras da sociedade paulistana pode ser depreendida do escrutínio feito pela autora nas bibliotecas de três importantes colaboradores das revistas e agitadores culturais nesse momento: Eduardo Prado, Lima Barreto e Mário de Andrade. Imbuída dos instrumentos da história da leitura, ela esmiúça e analisa as várias formas de consumo e utilização dessas publicações para os interesses de grupos culturais diversos na cidade de São Paulo, nos dando uma idéia do ecletismo desse veículo de comunicação. Ficamos sabendo que, para muitos dos intelectuais da época, as revistas ocuparam um papel tão importante quanto os livros.

As várias imagens de São Paulo, unificadas pela idéia do progresso e modernidade, nas publicações destinadas à agricultura, ciência, comércio, agremiações literárias, ligas de operários e ao público feminino, são cuidadosamente analisadas na pesquisa. O livro nos brinda ainda com ilustrações de capas, anúncios e gravuras, retirados de algumas das publicações estudadas. Estes elementos gráficos e artísticos só vêm somar informações ao texto denso e bem trabalhado de Ana Luíza Martins nessa que, sem dúvida, pode ser considerada obra de referência na história da imprensa brasileira.

Ana Rita Fonteles Duarte – Universidade Federal do Ceará.


MARTINS, Ana Luíza. Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp / Fapesp / Imprensa Oficial do Estado, 2001. Resenha de: DUARTE, Ana Rita Fonteles. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.2, 2002. Acessar publicação original. [IF].

O rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América: 1640-1720 | Rodrigo Bentes Monteiro

Publicado em 2002, O rei no espelho, de Rodrigo Bentes Monteiro, parte da análise de movimentos de caráter contestatório, ocorridos em Seiscentos e Setecentos, nas possessões americanas de Portugal, a fim de perscrutar as relações entre os vassalos sediados em diferentes regiões da América portuguesa e o Estado metropolitano, em momentos de crise política no âmbito europeu.

O autor parte da assunção de que, no tocante ao Brasil, há de fato possessões coloniais, não possessão, pois, adotando a formulação de Ilmar Rohloff de Mattos referente à noção de região, concebe social, política e economicamente a colônia americana como conjunto de enclaves de colonização lusa na América e busca, a partir de tal assunção, compreender como as diferentes realidades regionais implicaram formas diferenciadas de relacionamento entre vassalos e Coroa. Leia Mais

Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945 | João Fábio Bertonha

A emergência e afirmação de regimes políticos autoritários, impulsionados por idéias e princípios antidemocráticos, constituíram duas das características mais evidentes do entreguerras, a tal ponto que o “breve século XX” de Eric Hobsbawm já tinha sido batizado de “século das ideologias” por diversos historiadores que o precederam. Nesse conjunto de regimes autocráticos, o regime fascista inaugurado por Mussolini representou, sem dúvida, um paradigma do antiliberalismo, representando — tanto do ponto de vista prático como teórico — o protótipo do que ele mesmo chamou de “Estado totalitário”, termo depois estendido por Hannah Arendt para cobrir a modalidade soviética de poder político absoluto. Muitos historiadores e cientistas políticos, entre eles François Furet de O passado de uma ilusão, consideram aliás que o fascismo se desenvolveu especificamente em reação ao bolchevismo, dele retirando entretanto diversos elementos substantivos e formais, pois que combinando o estatismo do planejamento socialista e o monopólio do poder pelo partido único com uma ideologia anticapitalista e supostamente igualitária, como no caso da ideologia marxista. Leia Mais

Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915) | Carlos José Ferreira dos Santos

A primeira impressão que o livro de Carlos José suscita é de espanto. Será possível que ele pretenda refutar a imensa influência da imigração européia no crescimento e na transformação da cidade de São Paulo entre fins do século XIX e início do XX? Mais especificadamente, será que ele pretende negar a esmagadora presença física e cultural dos italianos na população paulistana e o seu papel decisivo na industrialização e nas lutas operárias daquele momento, conforme décadas de trabalho historiográfico tem demonstrado? [1]

Essa impressão se desvanece com facilidade na leitura do trabalho. Longe de negar o poder do dilúvio italiano que mudou profundamente a vida da cidade naquele período, ele procura anexar a este contexto um dado novo e relativamente pouco explorado: a presença de uma população de trabalhadores pobres nacionais, via de regra negros, que deram uma contribuição decisiva à vida da cidade daqueles anos, mas que permanecem escondidos nas brumas da História. Leia Mais

“Ide por todo Mundo”: A Província de São Paulo Como Campo de Missão Presbiteriana 1869 – 1892 – BENCOSTTA (RBH)

BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. “Ide por todo Mundo”: A Província de São Paulo Como Campo de Missão Presbiteriana 1869 – 1892. São Paulo: FAPESP, 1996. Resenha de: ALMEIDA, Vasní de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

A publicação de Marcus Bencostta é resultado de um estudo rigoroso sobre a educação protestante e as transformações econômicas e sociais ocorridas na região de Campinas (SP), na segunda metade do século XIX. É um trabalho cativante que também trata a educação pelo viés da modernidade, conceito muito discutido nos círculos políticos e intelectuais a partir de 1850. Apesar de abordar um colégio protestante, o autor deixa bem claro que não se trata de um estudo sobre a educação e sim de “uma compreensão da presença religiosa dos missionários presbiterianos em Campinas como integrantes da sua Igreja no Brasil”1.

Há uma grande tendência no meio acadêmico, quando se pesquisa a educação protestante no Brasil, em analisá-la em oposição ao ensino católico, muitas vezes enveredando pelos antagonismos atraso e progresso, conservador e liberal, científico e humanista e assim por diante, principalmente quando se trata de escrever sobre a modernidade do final do Império e início da República. Nesse sentido, logo no prefácio da obra Augustin Wernet alerta que a afinidade entre a elite progressista paulista e o ensino católico existiu de forma acentuada, prova disso foram os colégios organizados por várias ordens religiosas, sempre sob a orientação da alta hierarquia romana. Porém, esse não foi o caso de Bencostta, antes procurou analisar a educação presbiteriana no contexto da formação de uma intelectualidade progressista que procurava respostas à novas situações que surgiam no ambiente econômico e social daquela região em transformação. Bem mais do que se comprometer com as questões internas do presbiterianismo, este trabalho carrega uma preocupação com os padrões modeladores de condutas presentes em uma determinada região, onde diferentes atores sociais compõe e se contrapõe no jogo das representações simbólicas. No entanto, ele não se furta de buscar na cosmovisão calvinista a postura desses evangélicos a frente de uma instituição de ensino que recebia apoio de expressivas personalidades públicas campineiras. Da mesma forma que traça os contornos sócio-econômico e cultural da cidade, suas escolas, sua vida artística e seus projetos de desenvolvimento urbano, procura na organização da igreja mantenedora do Colégio Internacional a herança teológica e eclesiástica que permeavam a consciência de seus dirigentes. É a difícil arte de colar as representações religiosas a outros elementos que se interagem na construção da identidade regional. Essa é uma das contribuições da obra, mesmo que o autor não tenha “este trabalho como exercício de pesquisa em história regional”2.

Uma outra contribuição que esse trabalho traz é a que diz respeito à relação existente entre uma instituição de ensino e o grupo religioso que a dirige, ou melhor, entre o proselitismo que este último exige e liberdade religiosa que os diretores missionários pregam. Bencostta aborda com precisão a contradição existente entre a obrigação de cumprir a promessa de formar cidadãos nos preceitos liberais e democráticos e a de preparar líderes que assumissem o projeto religioso da Igreja. O que se percebe quando se analisa as propostas educacionais confessionais é que a posição dos responsáveis pelo seu funcionamento tem que estar carregada de muita flexibilidade. Há os compromissos externos e os internos, há dois mundos distintos aos quais esses educadores necessitam prestar contas; um é a sociedade com a qual se comprometeu e que em maior ou menor quantidade recebeu apoio, outro é composto pela hierarquia da religião responsável por esse modelo de educação. Além de impregnar de religiosidade o ensino, é ela quem dá a palavra final da necessidade ou não da existência de uma escola em um determinado espaço geográfico. É preciso se identificar com a linguagem da sociedade que se abriu para sua proposta de ensino e não desafinar com o grupo religioso em que se está comprometido. Foi essa relação que Bencostta percebeu na prática dos diretores do Internacional:

Por um lado, Morton utilizou de um discurso político-cultural junto à intelectualidade campineira, que procurou identificar a proposta do colégio como inerente ao mundo civilizado que o Brasil desejava participar. E, por outro, Lane valeu-se do discurso religioso e missionário em sua visita à Igreja Presbiteriana Americana ao expor a necessidade de transmissão dos preceitos do protestantismo através de uma educação escolarizada3.

Não há como negar que os interesses de componentes sociais distintos, num mesmo espaço geográfico se fundem, se sobrepõem e sofrem desfigurações, em nome do relacionamento que mantêm sua existência. No entanto, cada segmento social preserva, explícita ou implicitamente, o seu próprio, o seu jeito particular de ser.

Notas

1 BENCOSTTA. Marcus Levy Albino, op. cit. p.17.

2 Idem, p.17.

3 Idem, p.77.

Vasní de Almeida

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