Lettera Sulla felicita. a cura Di Angelo Pellegrino – EPICURO (RA)

EPICURO. Lettera Sulla felicita. A cura Di Angelo Pellegrino. Torino: Einaudi, 2012. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista Archai, Brasília, n.10, p.169-170, jan., 2013.

A edição bilíngue grego/italiano da epístula de Epicuro sobre a felicidade, aos cuidados de Angelo Pellegrino, mostra a atualidade do documento grego, assim como sua popularidade, com ressalta, aliás, o próprio organizador da obra. Sua introdução enfatiza que cada geração tem o direito de sua própria tradução e, de fato, mudam os tempos e modificam-se as maneiras de dizer. Afinal, panta rhei, diria Heráclito, tudo muda,  tempora mutantur, nos et mutamur in illis, os tempos mudam e nós com eles. Tudo isso, por si só, já justifica essa nova empreitada. Mas, é mais do que isso, como intui e sugere Pellegrino, em sua irreverência habitual. Epicuro (341-271 a.C.), nascido em Samos e educado em ambiente jônico, em 306 fundou em Atenas a sua escola, denominada de jardim, aberto até mesmo a mulheres e escravos. Foi autor de muitos escritos, em sua grande parte perdidos, mas três cartas foram preservadas: a primeira dedicada à constituição física do universo, a segunda sobre a astronomia e a terceira sobre a felicidade. Esta última continua da mais alta relevância. Vejamos os argumentos de Pellegrino.

Epicuro foi o menos hipócrita e falso dos filósofos gregos, o mais amado e odiado, mas também o mais mal compreendido, segundo o estudioso  e ativista italiano. Ele retoma as ponderações do  pensador grego e enfatiza que o prazer (hedoné) é natural, constitutivo do humano (oikéion), enquanto a dor lhe é estranha (allótrion). Epicuro, cujo nome lembra seu caráter de “camarada, amigo, apoiador”, foi considerado, a justo título, como um benfeitor da humanidade à maneira de Pasteur, Fleming ou Freud, em particular por sua defesa desbragada do prazer. Pellegrino, de maneira original, aproxima o filósofo grego dos modernos teóricos do crescimento zero, a partir da consideração de Epicuro que “a abundância se goza com mais doçura se menos dela dependemos”. O editor ressalta, ainda, como a presença  de mulheres, hetairas e escravos representou uma verdadeira revolução filosófica, ainda que diferente da partilha comunitária dos pitagóricos, mas nem por isso menos radical e relevante.

A tradução original foi o resultado de uma injunção de circunstâncias ao mesmo tempo pessoais e históricas. Pessoais, pois foi em uma tarde de inverno que Pellegrino, nas escavações de Herculano, foi levado à ideia de traduzir a Carta sobre a Felicidade. Bem em Herculano, na vila dos papiros, de onde provieram novas evidências arqueológicas da difusão de Epicuro. Isso coincidia com o fim da guerra fria, com a queda do muro de Berlim, com a Guerra do Golfo e com a crise política de corrupção da democracia italiana, no que viria a ser conhecido como mãos limpas, tudo no início da década de 1990. O mundo mudava de forma abrupta e radical, após décadas de guerra fria (1947-1989) e de contraposição entre ocidente e oriente, capitalismo e comunismo. O  mundo passava a ser unipolar e a China, embora em termos políticos ainda um país comunista, acelerava sua conversão econômica ao capitalismo e ao enriquecimento de seus empresários. Em vinte anos, a China apresenta o maior número de milionários no mundo, a maior consumidora mundial de Ferraris e, talvez, a civilização mais hedonista e interessada  na tradição ocidental, em uma modernização meiji levada a cabo das bases para cima.

Mas, voltando à tradução, sua publicação em janeiro de 1992 acabou por tornar-se um grande  êxito popular, algo bem incomum, em geral e mais ainda, no que se refere à filosofia antiga. Esta republicação, vinte anos depois, atesta que a atualidade da tradução continua válida. Algumas particularidades do texto e da tradução merecem comentário. Em primeiro lugar, polloi, vertido como gente comune, gente comum, uma escolha sintomática, pois a  aversão de Epicuro aos muitos, tradução literal do termo grego, explica a razão última dessa escolha. Os muitos são criticados por serem pouco atentos à educação, daí que gente comum seja mesmo uma boa escolha. Já asebes vertido como irreligioso é algo arriscado, pois o conceito grego refere-se ao respeito ou piedade às forças sobrenaturais. Na tradução das máximas capitais (kyriai doxai), também parte do  volume, há outros termos de difícil versão, como  phronimos (intelligente).

Esta publicação chama a atenção para a  necessidade de uma edição brasileira à altura da relevância da epístola sobre a felicidade de Epicuro. O Brasil, além de ter passado pelas mesmas mudanças dos últimos vinte anos, viveu transformações substanciais recentemente. O tema de felicidade esteve presente no imaginário popular há algum tempo.  Sem medo de ser feliz, lema dos últimos anos, foi e continua a ser um tema hedonista, assim como na China, que leva imensas massas ao consumo.  Conviria, mais do que nunca, uma atenção a Epicuro e à suas reflexões sobre a o bem viver.

Pedro Paulo A. Funari – Professor Titular do Departamento de História e Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Universidade Estadual de Campinas.

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