Testemunhos, fragmentos, discursos – ANTIFONTE (RA)

ANTIFONTE. Testemunhos, fragmentos, discursos. Edição Bilíngue (grego-português). Prefácio e Tradução por Luís Felipe Bellintani Ribeiro. São Paulo: Edições Loyola, 2008. Resenha de: COSTA, Alexandre. Revista Archai, Brasília, n.6, p.135-138, jan., 2011.

Elogie-se de imediato a feliz iniciativa do tradutor e organizador desta edição, da qual resulta um volume como deve ser para este caso: muito bem prefaciado, ainda que sucintamente, exemplarmente traduzido e apresentado em edição bilíngue. A respeito deste último aspecto, deve- se ressaltar que se trata de uma decisão mais do que ajustada, necessária, visto que uma obra com este perfil, direcionada que é a um público especializado, não teria o menor sentido de ser publicada se não ofertasse, lado a lado com o trabalho de tradução, os textos do autor em seu idioma original, o antigo grego. Dentre os testemunhos, fragmentos e discursos que compõem a edição, há alguns poucos que foram conservados em outras línguas que não o grego, caso do latim e até mesmo do alemão, todos vertidos para o português com igual competência.

Vale também destacar, a título de reconhecimento, que embora os textos sejam de autoria de Antifonte, Luís Felipe Bellintani Ribeiro 1 pode e deve ser considerado o autor, não dos textos, claro está, mas da sua edição, ainda que sua assinatura conste apenas como prefaciador e tradutor do volume. Quem lida com a tradução de textos clássicos sabe perfeitamente bem que a tarefa de traduzi-los para o vernáculo é apenas uma das muitas que têm que ser enfrentadas e concluídas para que se leve a cabo uma empresa de tal natureza e alcance, resultando por isso num trabalho sempre muito mais autoral do que pode parecer à primeira vista. Isto posto, permito- me referir-me a Ribeiro de agora em diante como o autor deste volume dedicado ao que nos restou das obras de Antifonte.

Concluindo as considerações gerais a respeito da edição aqui em análise, deve-se louvá- la também pela preciosa contribuição que presta aos estudos na área de filosofia e literatura antiga em nossa língua, enriquecendo-nos ao oferecer a possibilidade de travar contato mais estreito e mais bem orientado com a obra e com o pensamento de um eminente porém pouco estudado filósofo, sofista e orador grego do século V a.C.

Convém observar que não estamos diante de uma edição crítica na acepção do termo. Os critérios científicos e formais para tanto passam, entre outros aspectos, pelo manuseio direto dos papiros e fontes doxográficas diversas que contêm os textos através dos quais a obra de um determinado autor nos foi legada, ainda que fragmentariamente, como é o caso da imensa maioria dos autores gregos do período em questão,  cujas  obras  originais  foram lamentavelmente perdidas. Nosso acesso a elas, além de se dar por meio de fragmentos, constitui- se por intermédio do que se convencionou nomear por esse motivo tradição doxográfica  indireta. Uma vez mais, quem lida com essa atividade e ofício conhece bem do que se trata, e reconhece, igualmente, que a conclusão de uma edição formalmente crítica redunda num trabalho substancialmente diferente se comparado a este outro gênero, igualmente crítico, em que se apresenta um trabalho de tradução que se permite ser mais audacioso e autoral justamente porque colige e decide tanto a seleção, como a ordem e as possíveis variantes dos textos de acordo com os critérios que considerar os mais acertados. A esse respeito, o autor talvez pudesse ser um pouco mais generoso na explicitação de seus critérios de seleção. Não que não estejam expostos, mas poderiam ser mais largamente considerados.

No presente caso, esse aspecto autoral revela-se especialmente acirrado, já que ninguém sabe exatamente ao certo quem foi e quantos foram Antifonte, o que obriga o autor a fazer uma série de decisões capitais, tornando o seu “corte”e a sua relação com o conjunto dos textos algo consideravelmente pessoal. Ele terá que decidir, por exemplo, quem é Antifonte ou qual dentre os possíveis Antifontes será ou não incluído na obra, sem que possa, no entanto, contar com informações efetivamente seguras a esse respeito e sem poder ter, por conseqüência, a pretensão da última palavra, por mais versado possa ser no assunto. Quanto a isso, diga-se logo, a sensibilidade de Ribeiro para este delicado problema que o autor expõe sintética porém agudamente no prefácio é novamente exemplar.

Por essa razão o prefácio é quase que integralmente dedicado à consideração desse problema, uma vez que precede à própria necessidade de apresentação da vida e da obra de Antifonte, afinal, como fazê-lo se não há qualquer consenso acerca de quem tenha sido? Diante disso, o autor argutamente participa ao leitor do incrível leque de possibilidades a respeito, tomando a igualmente arguta postura de quem sabe que, por vezes, aprofundar o problema requer precisamente não querer solucioná-lo a todo e qualquer custo, o que exige o difícil exercício de abandonar a nossa costumeira ânsia por soluções definitivas e pretensamente incontestes. Ribeiro não “fecha”um Antifonte, abre-o praticamente em todas as suas possibilidades, enriquecendo-o. Essa postura é tão fundamental quanto determinante para o desenho da obra, posto que os textos que poderiam ou não fazer parte da edição ficam definidos de acordo com essa decisão. Caso se decidisse exclusivamente por este ou aquele suposto Antifonte, a edição poderia resultar num volume de texto muito inferior àquele que apresenta. A decisão do autor favorece, portanto, a diversidade e a extensão do material que nos oferece à leitura.

Para que se tenha uma ideia da complexidade do problema, uma rápida consulta ao  The Oxford Classical Dictionary inteira-nos da existência de três distintos Antifontes, apresentando-os portanto em verbetes diferentes, mas, em todos eles, zela por indicar a possibilidade de que sejam um e o mesmo Antifonte. Daí que o prefácio presta-se sobremaneira à problematização dessa pergunta pela vida e pela obra do autor a quem o volume se dedica. Ficamos sabendo que essa pluralidade construiu-se historicamente em conformidade com os vários e desencontrados testemunhos doxográficos, muitos deles constando da primeira grande parte da edição, em que o leitor encontrará o melhor modo de tatear tamanha pluralidade.

Neste ponto, sublinhe-se a fluidez que o autor revela nesse pedregoso terreno. É que por esse motivo a atual literatura especializada divide-se em duas correntes principais: a dos separa-tistas, que distinguem pelo menos mais do que um Antifonte, e a dos unitaristas, que defendem a ideia de se tratar de um único autor desdobrado em vários afazeres e múltiplos talentos. A questão torna-se ainda mais aguda quando se atenta para o fato de que, sendo Antifonte um ou vários, é certo que uma dessas faces é a de um sofista, o que tenderia a favorecer a corrente separatista, plural, dada a noção que geralmente carregamos a propósito da sofística e de sua heterodoxia.

Em meio a esse mar de incertezas, Ribeiro não cede a nenhuma dessas duas linhas e finca os seus pés na decisão que beneficia a sua edição com o máximo de liberdade e pluralidade textual, tal como referi acima. Afastando-se da obsessão por definir quem foi ou quem foram Antifonte, o autor escolhe todos eles a um só tempo, afinal, se o problema mostra-se de fato insolúvel, o que legitimaria este ou aquele corte? Sobre Antifonte fica-nos apenas a certeza de que foi figura(s) absolutamente fascinante(s), desde orador a logógrafo; desde mestre de retórica a intérprete de sonhos; desde poeta trágico a sofista, passando ainda pela quase inaudita função de logoterapeuta, aquele que defendia poder curar as pessoas de suas mazelas e tristezas através do discurso. Digo “quase inaudita”pois parece que Empédocles, a crer em seu próprio testemunho, já fazia o mesmo 2.

Quanto ao trabalho de tradução propriamente dito, o autor revela grande intimidade com o idioma de origem dos textos, deixando exalar de suas versões para o português notória fluência na língua a que se propõe traduzir, do que resulta um trabalho de homogênea excelência ao longo de todo o extenso material apresentado, dividido em três partes: testemunhos, fragmentos e discursos. A seleção desse material revela também notório entusiasmo pelo autor a quem se dedica e considerável fôlego. Assinale-se ainda a boa qualidade do texto em português, elementos que nem sempre andam juntos em matéria de tradução, a saber, (1) a proficiência na língua a ser vertida e (2) a correção de forma e a agradabilidade de estilo na língua para qual os escritos são vertidos.

Alguns senões, contudo, devem ser referi- dos, todos muito mais formais do que de conteúdo: a) a opção de entremear os textos de Antifonte com comentários seus, seja para esclarecer algum termo ou situação, seja para aclarar o teor de uma determinada tradução ou para aludir este ou aquele problema de caráter filosófico, fazendo-os constar ali entre parêntesis, parece-me solução não-satisfatória; o uso de notas de rodapé deixaria não só os textos de Antifonte visualmente mais limpos como estilisticamente mais fluidos, assim como legaria ao leitor maior liberdade quanto a ler e quando ler os referidos comentários; b) sente-se a falta de índices que só enriqueceriam a edição, não como se fossem um desnecessário artigo de luxo, mas porque auxiliam efetivamente o estudioso que ambiciona empreender um mergulho mais incisivo nos escritos apresentados; neste sentido, um índice onomástico e um índice dos termos gregos mais relevantes seriam de grande apreço, e (C) apesar da boa qualidade do prefácioaqui justamente elogiado por conseguir brevidade e agudeza simultaneamente –, o grau de complexi- dade das questões em torno ao estabelecimento da obra de um autor tão rico quanto controverso mereceria  uma  introdução,  em  que  se ampliassem e se aprofundassem o sem-número de questões e de problemas de interesse, inclusive de conteúdo genuinamente filosófico, como a questão da oposição entre phýsis e nómos que, não contando com um maior número de páginas, viu-se obrigado a quedar-se um tanto espremido em meio às poucas páginas do prefácio. Se esta constitui uma das poucas reticências à edição, por outro lado só o é porque o autor dá claras mostras que poderia fazê-lo melhor e mais extensamente; qualidade e entusiasmo não lhe parecem faltar.

Por fim realço novamente a sábia opção por ampliar ainda mais a já ampla figura de Antifonte: a definição do autor pela indefinição acaba tornando ainda mais fascinante e plural um personagem já sempre plural e fascinante. Quem é Antifonte? Também não sei, estão aí os textos! O que, por sua vez, exige encerrar esta resenha com um misto de solicitação e incentivo que tal um segundo volume, dedicado à interpretação dos diversos escritos do(s) múltiplo(s) Antifonte(s)?

Notas

  1. Professor do departamento de filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro.
  2. EMPÉDOCLES, B112, 8-12: “venerado sou por homens e mulheres, que me seguem, aos milhares, querendo saber por onde é o caminho ao lucro, alguns carentes de oráculos, outros com doenças de todo tipo, consultam-me para ouvir minha palavra de cura, longamente traspassados de graves dores.”

Alexandre Costa – Doutor em filosofia pela Universidade de Osnabrück, Alemanha. Publicou dois livros sobre o pensamento e a obra de Heráclito de Éfeso: Heráclito: fragmentos contextualizados (Edição brasileira: Rio de Janeiro, Difel, 2002/Edição portuguesa: Lisboa, INCM, 2005) e Thánatos: da possibilidade de um conceito de morte a partir do lógos heraclítico  (Porto Alegre, EDIPUCRS, 1999)..

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