“A Descoberta do Cotidiano – Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem” – AQUINO (ARF)

AQUINO, Thiago. A Descoberta do Cotidiano – Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem. São Paulo: Edições Loyola, 2018. 178p. Resenha de: SILVA, Marcos. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 22, jul./dez. 2019.

O quadro conceitual que organiza nossas atividades e percepção, que regula nossas práticas, possui ele mesmo um fundamento frágil, gratuito, precário, vulnerável a tantas pressões. É, pois, limitado e finito, porque baseado em nossa forma de vida limitada e finita. Não se trata, aqui, de se recusar fundamentos em nossas atividades teóricas e práticas. Contudo, deve-se enfatizar a compreensão de que estes fundamentos, eles mesmos, não têm fundamento necessário algum. Em outras palavras, o fundamento do fundamento poderia ser inteiramente diferente.

Aquilo que parece ser necessário e auto-evidente, aquilo de que estamos mais convictos, maximamente certos, aquilo do que não abriríamos mão mesmo com forte evidência contrária, o que forma a aparente base sólida para nossas ações práticas e teóricas no mundo, aquilo que dá fundamento à nossa linguagem e constitui o pano de fundo de nossas ações no mundo, aquilo que passa tácito, implícito, sem precisar ser dito e tampouco defendido, é, em verdade, baseado em contingências relacionadas a nosso cotidiano e especificidades biológicas e culturais.

É necessário, para se entender esta racionalidade humana fundante, mas sem fundamento, se partir de nossa maneira peculiar de estar no mundo como agentes engajados em inúmeras práticas, sempre mergulhados em uma cultura e na história, jogados num mundo de envolvimentos diversos, corporificados, finitos e mortais. Agir significa tentar, em última análise, ter bases mais seguras para sobrevivência em um mundo hostil ao invés de simplesmente tentar compreendê- lo intelectualmente.

Heidegger e Wittgenstein, me parecem, partem, em suas filosofias, do reconhecimento radical de nossa finitude e limites. Todo o resto, inclusive o aparentemente definitivo e intocável, marcas tradicionais da lógica e da matemática, deveria refletir a nossa condição humana radicalmente finita e precária. Só podemos entender o tipo de ser que nós somos e o fundamento de nossa racionalidade, se procurarmos entender o tipo de práticas com as quais nos engajamos em nosso cotidiano. A nossa capacidade de linguagem e de cognição teórica deve ser vista como baseada em nossa capacidade prática de fazer coisas correta ou incorretamente, ou melhor, de reconhecer e assumir atividades, nossas e de outros, como corretas ou incorretas a partir de parâmetros e critérios acordados e herdados.

Acredito que pensar os dois filósofos, Heidegger e Wittgenstein, em conjunto e não isoladamente, como que insularizados em tradições divergentes, a continental e a analítica, é urgente para a introdução de um novo pensar e para um novo conceito contemporâneo de racionalidade. Ambos, o pensar e a racionalidade, apontam as filosofias de Heidegger e Wittgenstein, devem ser sensíveis à nossa condição humana e aos desafios da contemporaneidade, sem idealizações filosóficas desencaminhadoras.

A aproximação de dois autores tão centrais, seminais e controversos na filosofia contemporânea requer maturidade e originalidade filosóficas. Algo que um bom livro de filosofia deveria ter e o livro de Thiago Aquino “Descoberta do cotidiano: Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem” mostra sistematicamente.

Em certo sentido importante, filosofia é sempre contemporânea de si mesma e dos problemas de sua época. Thiago Aquino, como um bom contemporâneo de si mesmo, aponta para como devemos pensar, auscultar nossa época, uma vez que não há um fora possível de nossa própria contemporaneidade.

Neste sentido, o livro de Aquino cumpre o papel de estimular discussões tão fascinantes quanto urgentes.

Como Aquino defende, os autores escrevem obras “construídas literariamente de modo a pressupor uma transformação de quem lê como condição de seu entendimento.” p. 121. Acredito que o livro de Aquino possa, através da aproximação, contribuir para a abertura para esta transformação. Aliás, vale notar que a própria aproximação filosófica entre Wittgenstein e Heidegger por si é central, seminal e controversa, como as filosofias dos dois filósofos.

O livro de Tiago Aquino, é um bem-vindo livro: corajoso, instigante e necessário.

A aproximação marca a coragem pelo enfrentamento da cisão histórica de tradições abarcando movimentos filosóficos muitas vezes conflitantes. De fato, o livro cobre um material tanto vasto como difícil de tradições e períodos diferentes dos dois pensadores. É instigante, por aproximar tradições diferentes e indicar o muito que tem para ser feito em diferentes áreas da filosofia que podem ser iluminadas pela aproximação. É necessário, por oferecer, acredito, uma plataforma filosófica, ainda insipiente, mas suficiente para se pensar e avançar em desafios diversos contemporâneos, como em discussões a respeito de lógicas não-clássicas, natureza da computação, neuro-ciências, cognição corporificada, inteligência artificial, psicologia do desenvolvimento, antropologia, política em dinâmicas intricadas culturais e sociais. Tudo isto em um horizonte de racionalidade finita, intramundana e radicalmente contingente. Eu li o livro como um convite tácito para colaboração. A obra mostra o muito que ainda pode ser feito, apesar do diagnóstico negativo, em sua conclusão, sobre alguma convergência radical entre os dois filósofos.

No que se segue apresento três razões para a tempestividade do livro e em seguida apresento quatro problemas para motivar o debate. A primeira tempestividade examina diretamente a cisão entre filosofia analítica e continental; o segundo elemento oportuno trata justamente do próprio trabalho difícil, mas relevante, de aproximação entre Wittgenstein e Heidegger. E o terceiro ponto de tempestividade, gira em torno da relação própria entre linguagem e lógica no fluxo de nossas vidas cotidianas.

Sobre o primeiro marco da tempestividade, acredito que uma das principais ideias que permanecerão com o leitor após a leitura deste livro provocativo é como temas que ocupam muito esforço e tempo de discussões podem se desgatar e ficar ultrapassados, inclusive em filosofia. A intricada distinção entre filosofia analítica e continental que animou muitas das discussões no último século está gradualmente, acredito, perdendo sua centralidade e relevância. Me atreveria a dizer que, hoje, se remete a mais uma divisão ideológica e institucional que a um problema filosófico genuíno.

Além disso, acredito que este enfraquecimento pode ser um sinal para que possamos levantar suspeitas a respeito da própria origem da divisão entre analíticos e continentais. A pouca importância que Wittgenstein e Heidegger devotaram a esta distinção contrasta com o consenso entusiasmado que esta contenda provocou nas últimas décadas. Ela certamente não está relacionada, de modo algum, com questões de geografia. Rigor conceitual, método argumentativo, e discussões pautadas pela natureza da lógica, podem ser características das duas tradições, como o livro de Aquino testemunha. Além disso, a meu ver, a distinção entre analíticos e continentais não é nem suficiente e nem necessária para o filosofar e não representa critério nem exaustivo e nem exclusivo para o que deve importar na filosofia e para o que significa se engajar seriamente com discussões filosóficas.

James Conant (2016), por exemplo, apresenta o seguinte comentário provocativo em um coletânea promovida para unir as tradições: [It is] no more promising a principle for classifying forms of philosophy into two fundamentally different kinds than would be the suggestion that we should go about classifying human beings into those that are vegetarian and those that are Romanian (p. 17).

Há uma certa dose de arbitrariedade na distinção e esta seguiu uma crescente especialização do trabalho filosófico em muitas sub-áreas muito nuançadas de pesquisa. Estes programas de pesquisa motivaram, infelizmente, muito dissenso, desconfiança mútua e barreiras institucionais e acadêmicas para o desenvolvimento de preocupações e problemas comuns entre filósofos praticantes das duas tradições. Há inclusive ataques de grande virulência documentados na historia deste embate no século XX. Estes fatos limitaram, acredito, significativamente, em muitos casos, o alcance e seminalidade de alguns debates filosóficos.

Isto pode e deve ser mudado. Acredito que não é exagero que o livro de Aquino é um livro oportuno com uma espécie de mensagem política tácita. O livro encoraja uma maneira mais pluralista, cosmopolita e tolerante de se fazer filosofia. Também engaja seu leitor em um diálogo frutífero entre filósofos influentes do passado com interlocutores de diferentes tradições. Acredito que a comunidade filosófica brasileira tem muito a se beneficiar com esta abordagem promotora de uma nova relação transversal entre áreas distintas da filosofia, de uma nova relação produtiva entre analíticos e continentais e da profissionalização da filosofia sem sectarismos e mais inclusiva.

Espero que o livro de Aquino possa ajudar a informar e educar novas gerações de filósofos para ver como a distinção entre analíticos e continentais pode ser não-justificada, ultrapassada e, em alguns casos, sem sentido, quando, por exemplo, tentamos investigar diferentes problemas em debates filosóficos contemporâneos robustos, tanto sobre metodologia quanto sobre conteúdos, concernentes à cultura, mente, linguagem, lógica, politica, subjetividade, normatividade e racionalidade. A divisão entre analíticos e continentais não é intransponível. Especialmente sem os diversos manifestos de combate planetário das últimas décadas.

Eu mesmo comecei como um graduando em filosofia fascinado por Kant, Schopenhauer e Nietzsche e, então, me remeti ao (primeiro) Wittgenstein e Frege como referências do como filosofar. Contudo, agora, com o reconhecimento da deficiência debilitante em partes da metodologia e perspectivas da filosofia analítica profissional, sinto a necessidade de voltar para autores da tradição continental, justamente porque alguns estereótipos presentes são maléficos para se abordar demandas de pesquisa naturais sem excessiva institucionalização. De fato, variantes do naturalismo cientifico ingênuo e do realismo acrítico não são e não devem ser as únicas formas de posição intelectual abertas para um filósofo analítico.

O segundo ponto de tempestividade do livro de Aquino é a própria aproximação de Wittgenstein e Heidegger sob a discussão da natureza da linguagem, independente da leitura atenta ou cuidadosa ou não que um filósofo fez do outro.

Aquino discute, a partir da linguagem, os dois pensadores que parecem ter sido responsáveis, respectivamente, nas variantes analítica e continental da filosofia contemporânea, pela assim chamada virada linguistica. Esta virada historicamente reconhece o protagonismo da linguagem no fazer filosófico, tanto como metodologia quanto como objeto de estudo. De fato, há curtos e raros, exemplos de comentários dos dois filósofos um sobre o outro. Apesar disto, o grande reconhecimento de ambos a respeito dos problemas sobre a relação do sentido da linguagem com a estrutura e totalidade do mundo como tal são investigados por Aquino. Estes problemas não são concernentes apenas à linguagem como um fenômeno histórico ou como uma estrutura formal, mas como relacionada à nossa radical finitude, contingência e intramundanidade evidenciada pelo nosso estar linguístico no mundo tão especial quanto cotidiano.

O livro de Aquino mostra como os dois autores compartilham uma visão muito ampla e significativa a respeito das relações tradicionais entre linguagem e mundo que permanecem abertas e conosco ainda hoje. Um texto recente de Livingston (2016), por exemplo, expõe um problema de limite de compreensão, mas aborda a questão a partir do primeiro Wittgenstein e do último Heidegger.

Acredito que Aquino avança no caminho correto ao pensar o Wittgenstein das “Investigações Filosóficas” e o Heidegger de “Ser e o Tempo”.

Esta observação nos permite falar do terceiro ponto oportuno que Aquino traz. A saber, a ênfase na linguagem e lógica na investigação filosófica e como elas são constituídas no e são constituintes do fluxo de nossas vidas cotidianas.

O primeiro local privilegiado de sentido, significado e valor, ou seja, de normatividade, deveria ser o ambiente próprio de nossas vidas cotidianas, ou como, coloca Aquino, de nossa cotidianidade. Isto mostra a conexão explícita entre os conceitos de ser no mundo, de um lado, e de formas de vida e jogos de linguagem, do outro.

Neste contexto, um ponto alto do livro é defender o lugar próprio da lógica na cotidianidade ao recusar a exclusividade da abordagem lógico-formal dos fenômenos linguísticos, porque esta última não apanharia o fluxo da vida onde o sentido é encontrado e construído. Este movimento recupera o logos clássico na vida cotidiana e pavimenta o caminho para se criticar a centralidade do proposicional no filosofar. Outro acerto, a meu ver, está na avaliação dos pressupostos e implicações da relação íntima entre filosofia e cotidiano, articulando meta-filosoficamente o existencial com o pragmático. Afinal, como Goethe no “Fausto” aponta: “No começo era o ato”, ou seja, habilidades práticas situadas e dinâmicas, e não, o conteúdo intelectual estático fora de qualquer relação com o mundo e o corpo.

Aquino defende que esta associação entre filosofia e cotidianidade incorpora uma mudança de atitude por uma decisão metodológica, de caráter existencial (p. 103).

Assim, a tensão filosófica em descoberta do cotidiano como descoberta do que sempre esteve lá é desenvolvida por Aquino a partir da aproximação difícil entre método hermenêutico e método gramatical na terceira parte de seu livro.

Pode-se afirmar que o pressuposto de que as relações básicas entre cotidiano e linguagem estão encobertas para o próprio cotidiano é o impulso primeiro para a justificação da análise e descrição filosófica da vida, servindo também como base para a avaliação da relação do filosofar com a autocompreensão vigente na vida comum. Enquanto pano de fundo não tematizado, a vida cotidiana padece de uma falta de transparência que o discurso filosófico pretende superar. (p. 104) A discussão sobre o papel constitutivo das práticas na linguagem e na lógica promove a recondução do pensamento para o seu lugar de origem, a vida cotidiana, revalorizada agora como locus primário da significatividade. (p. 75) Em consequência disto, qualquer interpretação filosófica que afaste o filosofar do exercício efetivo da linguagem cotidiana, o lugar da lógica, apontado por Aquino, deve ser suspeito, como a abordagem própria de autores que destacam o caráter metafísico da lógica. Aquino aponta que ambos, Heidegger e Wittgenstein, concordam que o fenômeno da linguagem não é suficientemente compreendido quando tematizado unicamente por intermédio da análise de estruturas formais.

Deste modo, os limites e a origem das teorias deveriam ser nossas vidas elas mesmas. Isto evidencia o primado da prática anterior a teorias e a ênfase de indivíduos inseridos num contexto de significado, de linguagem e de instituições antes do filosofar.

É um acerto tempestivo de Aquino a ênfase na semelhança, apesar das diferenças óbvias e do parco conhecimento de que um filósofo tem do outro.

* * * *

O livro possui, no entanto, ao menos, quatro pontos que poderiam ser, acredito, mais bem desenvolvidos. O primeiro a respeito da discussão sobre lógica. O segundo, a respeito das relações entre formas de vida e estar no mundo. O terceiro, a respeito da discussão contemporânea entre assimilacionismo e diferencialismo. E o quarto, a respeito da terapia linguística.

Quanto ao primeiro ponto a respeito da análise da natureza da lógica, vale notar que apesar da originalidade de se dedicar centralmente a ela, Aquino não define o que está chamando de lógica, apenas menciona lógica formal. Contudo, contemporaneamente temos diversos tipos de lógicas formais e formalismos para diversas finalidades diferentes, como a teoria da prova, dos modelos, e da recursão. Isto mostra que a discussão de Aquino ainda pode e deve ser atualizada para trazer atenção de filósofos e lógicos da tradição analitica.

Além disso, há, a meu ver, uma espécie de descompasso técnico entre Wittgenstein e Heidegger para servir como esteio filosófico de críticas à concepção contemporânea de lógica. Aquino trata do lugar da lógica e da recusa de seu caráter metafísico (embora não mencione problemas contemporâneos como revisão de princípios lógicos, normatividade da lógica, e pluralismo lógico). Contudo, o comprometimento de Heidegger com a lógica aristotélica parece inadequado e antiquado para discutir lógica matemática em função da primeira não expressar a complexidade da segunda. Deste modo, Wittgenstein parece estar em melhores condições para uma crítica mais acertada e bem informada da lógica formal.

Ademais, acredito que o expressivismo lógico de Brandom (1994, 2000) poderia ser usado para pensar o fundamento cotidiano da normatividade de nossa lógica, uma vez que Aquino afirma que :De modo recorrente, a lógica é concebida com base na pressuposição de seu valor essencial e de suas promessas de profundidade.

Isso pode ser exibido por intermédio do problema do vínculo entre lógica e ontologia, que não é apenas característico do contexto antipsicologista da época, mas acompanha grande parte da história dessa disciplina. (p. 150). Ora, Brandom mostra, acompanhando em parte o segundo Wittgenstein, que ainda é possível ter profundidade filosófica na lógica formal, apesar de recusarmos seu pretenso fundo metafísico. (Aliás, muito pouco de autores heideggerianos pragmatistas como Dreyfus, Brandom, e Haugeland aparecem no livro de Aquino. Rorty poderia ser mais mencionado).

O segundo ponto que poderia ser, a meu ver, mais bem desenvolvido no livro de Aquino é a relação entre os conceitos de forma de vida e Weltbild. Acredito que em muitos pontos o livro de Aquino pressupõe, mas não explica a associação entre ser no mundo (no sentido existencial e singular) e forma de vida (com ênfase no caráter social, público e biológico). Com efeito, podemos ter discussões existencialistas sem mencionar aspectos sociais e biológicos e discussões naturalistas sem a menção de aspectos existenciais. Além disso, vale notar que vida cotidiana não é o mesmo que estar no mundo e não pode ser identificado tampouco sem explicações com forma de vida. Esta dificuldade aponta outros dois problemas, a saber, a distinção entre forma de vida e cultura (p. 28) e à relação de forma de vida e discussões modais (p. 55) na própria periodização de Wittgenstein. Há no livro de Aquino várias idas e vindas no exame da trajetória filosófica de Wittgenstein, mas Aquino não discute, por exemplo, os tipos de problemas que levaram o primeiro Wittgenstein ao segundo, passando por seu rico período intermediário. Ademais, em várias ocasiões, para tratar do pano de fundo público e cultural do ser no mundo, Aquino usa o “Sobre a Certeza” (como por exemplo, p. 53-54 ou p. 152-55) e não “Investigações Filosóficas”. O conceito de Weltbild do “Sobre a Certeza” me parece mais radical que o conceito de jogos de linguagem na base de nossas formas de vida. Não podemos, em um certo sentido filosoficamente relevante, saltar para fora de nossa imagem de mundo, como poderíamos transitar entre diferentes jogos de linguagem em formas de vida diferentes, mas semelhantes.

Vale notar que no “Sobre a Certeza”, o uso de forma de vida é muito escasso. O conceito principal parece ser o de Weltbild para tratar de conflitos profundos entre imagens de mundo ao enfatizar como somos introduzidos nelas. A pergunta que emerge aqui é: A remissão de Aquino aos textos finais da trajetória filosófica de Wittgenstein é acidental? Não seria o “Sobre a Certeza”, o texto existencialmente importante do Wittgenstein em função do exame do nosso Festhalten em uma imagem de mundo herdada e da investigação da vulnerabilidade de nossas convicções fulcrais e da nossa segurança precária baseadas em crenças sem fundamento último? O terceiro ponto que poderia ser mais bem desenvolvido no livro de Aquino se remete, a meu ver, à distinção contemporânea entre assimilacionistas e diferencialistas.

O primeiro grupo de filósofos defendem a continuidade entre o ser humano e outros animais. Ao passo que a segunda tradição enfatiza a descontinuidade nas características entre seres humanos e animais não-humanos. Neste contexto, as motivações dos dois filósofos, Wittgenstein e Heidegger, parecem ser bem diferentes, ate mesmo antagônicas, como Aquino, ele mesmo, admite. (p. 61). O assimilacionismo de Wittgenstein se baseia na visão de que a linguagem deveria ser pensada como pertencendo a nossa história natural, assim como andar, comer e dormir. A linguagem humana seria uma característica animal nossa e assim como outras características deve ter sido selecionada através de um período muito longo de trocas dinâmicas com o meio e outros indivíduos por trazerem vantagens evolutivas para nossa espécie. Segundo esta visão, estamos em continuidade com outros animais. Não há nada de especial entre nós e outros animais. Afinal, “somos animais primitivos”. Este é um lema do “Sobre a Certeza” (SC 475). Isto parece contrastar frontalmente com uma espécie de anti-assimilacionismo de Heidegger que visa enfatizar justamente a descontinuidade entre homem e natureza. Nesta visão, haveria uma profunda e radical descontinuidade entre seres humanos e outros animais. Afinal, a existência do humano seria uma abertura especial, uma irrupção, uma vez que o mundo dos animais seria carente de significado. Com seres humanos, algo radicalmente novo e irredutível, aparece na natureza.

O quarto ponto que, a meu ver, mereceria mais desenvolvimento trata da própria imagem de terapia e despertar existencial. Aquino descreve, por exemplo, a terapia Wittgensteiniana:

O tema da terapia é, portanto, a fixação em certas expressões, que são frequentemente empregadas e dificilmente dispensadas. A filosofia tradicional demonstra claramente o nível do apego alcançado não apenas rejeitando o abandono ou a substituição dessas expressões por outras menos fascinantes, mas também pela busca contínua de um refinamento do seu sentido, como se a definição ou o esclarecimento fosse um meio de aprofundamento da compreensão. Essa tendência necessita de tratamento, antes de tudo, porque a aparência de profundidade gerada pela expressão linguística é uma ilusão gramatical sustentada por um pathos. (p. 124)

Esta aparência de profundidade parece ser justamente um ponto de crítica Wittgensteiniano que poderia ser direcionado ao Heidegger. O Procedimento terapêutico da filosofia de Wittgenstein, descrito, por exemplo, na p. 138, parece encontrar exatamente na filosofia de Heidegger uma paciente, apesar de Aquino parecer mais simpatico às abissalidades de Heidegger. Dualmente, a análise do discurso filosófico de Wittgenstein, o limitando e regulando, se remetendo ao nosso domínio de línguas naturais e cotidianas poderia ser um bom exemplo de “falatório” não-filosófico para Heidegger. Em certo sentido relevante de filosofia como terapia pela linguagem, poderíamos dizer que: Heidegger e Wittgenstein poderiam ser ambos paciente e terapeuta um do outro.

Referências

BELL, Jeffrey et al. (Eds.). Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016.

BRANDOM, Robert. Making It Explicit: Reasoning, Representing, and Discursive Commitment . Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994.

______. Articulating Reasons. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2000.

CONANT, James. The Emergence of the Concept of the Analytic Tradition as a Form of Philosophical Self-Consciousness. In. JEFFREY A. BELL, Andrew Cutrofello, PAUL M. Livingston (Eds.): Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016. p. 17-58.

HEIDEGGER, Martin. Being and Time. Translated by Joan Stambaugh, revised by Dennis Schmidt. Albany, New York: SUNY Press, 2010.

LIVINGSTON, Paul M. Wittgenstein Reads Heidegger, Heidegger Reads Wittgenstein: Thinking Language Bounding World. In: JEFFREY A. Bell, ANDREW Cutrofello, PAUL M. Livingston (Eds.): Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016. p. 222-248.

WITTGENSTEIN, L., Tractatus logico-philosophicus“ (logisch- philosophische abhandlung). Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1993.

______. “PHILOSOPHICAL INVESTIGATIONS” (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

______. “ON CERTAINTY” (ÜBER GEWISSHEIT). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1969.

Sobre o autor Marcos Silva – Doutor em Filosofia (2012) pela PUC-Rio, com período sanduíche na Universitaet Leipzig, de 2009 a 2011, (bolsista DAAD/CAPES). Pós-doutorado na UFRJ (2012). Pós-doutorado (2014-2015) pela UFC, Professor da UFAL. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. E-mail: [email protected]

Acesso à publicação original

 

 

Dicionário Nietzsche – GEN (CN)

GEN. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016. Resenha de: GRAGNOLINI, Mônica. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.38 n.3 set./dez. 2017.

Celebramos o aparecimento do primeiro dicionário sul-americano da obra de Nietzsche. A particularidade desse dicionário é que remete principalmente às interpretações sobre Nietzsche que tem sido feitas no Brasil, e mais especificamente no âmbito do Grupo de Estudos Nietzsche, criado e dirigido por Scarlett Marton. Com isso, o dicionário é também, ao mesmo tempo, um registro dos modos como tem sido recepcionado Nietzsche em uma parte do âmbito acadêmico brasileiro.

É necessário indicar que no Brasil pululam os nietzschianos, há diferentes grupos de pesquisa e interpretação em distintas universidades, com perspectivas diversas e às vezes antagônicas. A interpretação de Nietzsche, no país irmão, é apaixonante também para estudar o perspectivismo nietzschiano nas formas pelas quais sua obra tem sido recepcionada, o que dá conta do caráter plural de sua filosofia nos modos como é recepcionada. Há muitos “Nietzsches” no Brasil: aqui nos encontramos, nesse dicionário, com um Nietzsche que surge a partir do trabalho de pesquisa iniciado por Scarlett Marton, uma das reconhecidas referências internacionais da obra do pensador, membro do Groupe International de Recherches sur Nietzsche (GIRN). Em 1996 Marton funda “oficialmente” o GEN, e a revista Cadernos Nietzsche. Quem escreve nesse Dicionário as diferentes entradas são seus discípulos e pesquisadores, e, como assinalei antes, as vozes remetem às interpretações nascidas no seio desse grupo de trabalho, que edita sua primeira obra coletiva, afirmando desde o início que um grupo é mais que uma soma de individualidades.

Qual é a peculiaridade do GEN no âmbito dos estudos nietzschianos no Brasil? A introdução ao dicionário se encarrega de indicar o rigor investigativo do grupo: criado em 1989, e oficializado em 1996, o grupo dedicou-se desde o início à leitura das obras de Nietzsche de maneira sistemática e rigorosa. Como se aponta na introdução, Scarlett Marton iniciou o grupo no final dos anos 80, realizando uma série de seminários sobre Assim falava Zaratustra, que se estenderam por cinco anos, dedicados cada um deles, de maneira minuciosa, às partes da obra (incluindo o Prólogo). A partir daquele momento, o grupo começou a trabalhar a obra de Nietzsche com seriedade metodológica, em um Brasil em que, como em outras partes do mundo, Nietzsche não era bem recebido na academia. Era necessário, portanto, criar o “objeto de conhecimento Nietzsche” (p. 19), e estudá-lo de maneira rigorosa, para diferenciar o trabalho de investigação de outras aproximações à sua obra, e “romper com o diletantismo que caracteriza muitas interpretações de Nietzsche” (p. 19). Além disso, o GEN organiza semestralmente os Encontros Nietzsche, nos quais se discutem os trabalhos do grupo.

Os vocábulos estão indicados no original em alemão, e, além disso, estabelecem uma série de reenvios e correlações de um artigo a outro. As entradas são 156, e há 13 outras para a apresentação das obras de Nietzsche. Como se assinala na introdução, existem no Brasil muitas traduções diferentes da obra (não se realizou, como recentemente na Espanha, uma tradução completa da Kritische Studienausgabe), por isso o GEN pretende também oferecer um canon preciso para a tradução dos conceitos. Cada entrada implica uma abordagem genética e conceitual do termo na obra nietzschiana, e uma referência aos diversos modos como o termo é utilizado na obra de Nietzsche. O Dicionário se inicia com algumas páginas dedicadas à vida de Nietzsche, escritas por Scarlett Marton, e na sequência se apresentam as treze entradas dos livros. Marton destaca que Nietzsche não queria ser confundido, e assinala de que maneira diferentes ideologias se apropriaram de seu pensamento (do socialismo ao antissemitismo), fazendo recortes arbitrários de sua obra. Com relação às entradas das obras, assim como ocorre com os conceitos, são escritas por diferentes membros do GEN, e o característico dessas entradas é que a bibliografia indicada só remete às obras do autor do vocábulo, e a outros membros do GEN. Isso responde a essa ideia de rigor antes enunciada, e por isso só especialistas de um tema escrevem sobre esse tema, e remetem ao âmbito de discussão coletiva do GEN.

Como é a estrutura de cada entrada? Por exemplo, Scarlett Marton escreve a entrada “Vontade de potência” [Wille zur Macht] e assinala a primeira aparição do conceito em Assim falava Zaratustra, e a identificação do termo com a ideia de vida nesse momento. Nesse sentido, se vincula com “vontade orgânica”, e é própria de todo ser vivo. Marton assinala sua forma de proceder a partir da resistência a obstáculos, e indica como a Nietzsche interessava, no contexto das ideias científicas da época, tratar de descrever a passagem do inerte ao vital. Assinala, também, como logo após Assim falava Zaratustra começa a elaborar sua teoria das forças, e o conceito se amplia em relação a tudo o que existe, e não apenas ao orgânico. Analisa também como deve ser entendido na expressão o termo “Wille” e como deve compreender-se “Macht”. Assim, interpreta o conceito como tendência de toda força a efetivar-se, criando novas configurações. Indicam-se os textos de Nietzsche nos quais se pode encontrar referências ao tema, direcionando o leitor a outros vocábulos da obra, como “substância”, “hierarquia”, “força” etc., fazendo uma indicação bibliográfica apenas dos textos da própria Marton. Ou seja, as entradas são delimitadas, específicas, e contextualizadoras, e evitam a dispersão em uma bibliografia secundária volumosa, preferindo a especificidade no trabalho com os conceitos.

André Luis Mota Itaparica, Clademir Araldi, Eder Corbanezi, Eduardo Nasser, Emmanuel Salanskis, Fernando de Moraes Barros, Ivo Da Silva Jr., João Evangelista Tude de Melo Neto, Luís Rubira, Márcio José Silveira Lima, Scarlett Marton, Vania Dutra de Azeredo e Wilson Frezzatti Jr. são os autores das entradas do dicionário. Todos são do Brasil, com exceção de Emmanuel Salanskis, da França. O Dicionário Nietzsche pretende dar conta do trabalho de muitos anos do GEN, e do trabalho pioneiro e formador de sua criadora, Scarlett Marton. De alguma maneira, seus discípulos rendem homenagem a sua mestra, tornando patente o trabalho rigoroso de muitos anos em torno da obra de Nietzsche, bem como as impressões da maneira pela qual Scarlett Marton ensinou a ler Nietzsche a distintas gerações de estudantes, tanto no Brasil, como fora do Brasil.

*Resenha [também] publicada na Revista Instantes y Azares, Año XVI, Nros. 17-18, Otoño-Primavera de 2016, Buenos Aires, Argentina, pp. 288-290. Tradução de Márcio José Silveira Lima

Mónica B. Cragnolini – Professora da Universidade de Buenos Aires, Argentina. Correio eletrônico: [email protected].

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Gênese e estrutura da antropologia de Kant – FOUCAULT (Ph)

FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.Resenha de: SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar y. Foucault e antropologia Kantiana: morte do homem e analítica da finitude. Philósophos, Goiânia, v. 22, n. 1, p.265-273, jan./jun., 2017.

A construção de um ensaio intitulado Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant (FOUCAULT, 2011) seguido da tradução de Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (KANT, 2006) constitui a tese complementar escrita por Foucault em paralelo com a sua consagrada leitura sobre a história da loucura. Texto menor, sem sombra de dúvida, porém de extrema relevância já que é nele que podemos encontrar todo um conjunto de problematizações que se farão presentes em outros momentos de sua trajetória intelectual.1 Em linhas gerais, pode-se afirmar que o projeto longitudinal dessa interpretação, por parte de Foucault (2011) consiste em demarcar como todo pensamento moderno, desde o século XVIII, encontra-se assombrado pelo espectro da antropologia, uma vez que, para Foucault (2011) a emergência da crítica como categoria fundamental do pensamento opera como uma espécie de emblema de passagem do sujeito do cogito em Descartes para a complexa maquinaria do duplo empírico-transcendental.

Entretanto, antes que se prossiga é necessário nos perguntarmos: quais seriam as condições de possibilidade responsáveis por fazer da antropologia o grande sistema epistemológico de nossa modernidade? Inicialmente é necessário afirmar que a antropologia corresponde a toda categoria de pensamento que procura responder a infame pergunta: o que é o homem? Questionamento este que recebera um tratamento crítico desde a publicação de As Palavras e as Coisas até A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2006, 2007) no que se refere a uma problematização sobre o homem como categoria fundamental dos saberes modernos. Mas, é necessário ressaltar que, correlativo a esse projeto, encontra-se a tese de Foucault (2011) de que no horizonte prescrito pela antropologia kantiana vislumbra-se a analítica da finitude como ferramenta para se pensar o tempo presente.

Logo nas primeiras páginas de Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant Foucault (2011) constrói duas problematizações imprescindíveis a esse respeito. A primeira consiste na denúncia de que toda racionalidade ocidental encontra-se atrelada aos problemas desenvolvidos por Kant. A segunda refere-se a imagem concreta do homem como categoria inventada. Habituamo-nos a compreender que foram os homens que criaram o pensamento científico.

A leitura foucaultiana acaba por indicar que foi a ciência quem criou o homem baseada nas contribuições elaboradas por Kant, lançando em torno dessa figura uma série de discursividades que remontam à emergência da modernidade. Para Foucault (2011, p.36)

A Antropologia é pragmática no sentido de que não vê o homem enquanto pertencente à cidade moral dos espíritos (ela seria chamada de prática), nem à sociedade civil dos sujeitos de direito (ela seria então jurídica); considera-o “cidadão do mundo”, isto é, pertencente ao domínio universal concreto, no qual o sujeito de direito, determinado pelas regras jurídicas e submetidos a elas, é ao mesmo tempo uma pessoa humana que traz, em sua liberdade, a lei moral universal (Foucault 2011, p.36).

Ou seja, a importância da antropologia consiste no fato de que ela consiste em ser um livro prescritivo sobre as bases do problema do agir. Ela não está, portanto, interessada em fixar os limites da experiência ética ou descrever as condições de possibilidade de uma doutrina jurídica e política, mas sim demonstrar quais seriam, precisamente, os motivos pelos quais o homem, na modernidade, age em sua liberdade a partir da aplicabilidade de uma lei universal.

Nesse contexto, é a liberdade do ponto de vista pragmático isto é, as razões que nos levam a agir de acordo com aquilo que a sociedade espera de nós sem perder, contudo, a capacidade de exercer o argumento crítico em relação as nossas ações públicas e privadas. Na realidade, o objetivo de Kant seria o de propor um valor universal mediado pela experiência do pensamento e, o que as convenções sociais compreender como correto a partir da constatação, ou melhor, da formulação do problema de que o homem faz, pode e deve fazer constituir-se como ser livre da ação.

Justamente por conta desses aspectos que Kant (2006) desenvolverá ao longo de toda sua antropologia um conjunto de prescrições práticas sobre as ações humanas como as recomendações elencadas em torno da saúde. Uma saúde que se produz no bom uso da liberdade. Observa-se nesse caso como Kant (2006) enfatiza nesse ensaio não a categorização dos grandes sistemas metafísicos, mas as questões concretas que contribuem para tornar a vida humana possível a partir do exercício de uma ética voltada para as possibilidades manifestadas de maneira empírica. A verdadeira antropologia é aquela responsável por fundamentar um conhecimento prático sobre o homem característica fundamental de toda a modernidade. Na realidade, Foucault (2011) parece se interessar muito em apresentar a antropologia de Kant como uma espécie de correlação entre a ciência da época e sua própria experiência filosófica para fazer emergir uma espécie de estética cotidiana do agir. Não por acaso que Kant (2006) irá considerar o prolongamento da existência como uma arte. Contudo, mesmo a minúcia desse prolongamento não é capaz de garantir a vitória do homem contra a morte sendo necessário ao homem gerir as relações entre a ética do agir e as adversidades experimentadas ao longo da existência.

O que ilustra a antropologia como texto prescritivo e daí a riqueza do pensamento kantiano é que ela inaugura um novo estatuto ontológico baseando sua analítica em torno de uma questão que circula sobre as condições de uma época a qual parece emergir uma compreensão prática sobre o homem e sua finitude através da dimensão técnica do trabalho de compreensão em torno da objetivação do sujeito. Em suma, o problema a ser colocado consiste em pensar: o homem é sujeito de liberdade da ação, mas como se pode defini-lo? Esse problema coloca a antropologia diante de alguns desafios. O primeiro consiste em perceber o conhecimento como algo pragmático já que se faz uso dele de um modo generalizado na nossa sociedade. Embora, isso não significa que ele seja algo utilitário convertido em um universal.

Foucault (2011) designa que esse aspecto responsável pela correlação entre antropologia e conhecimento é a junção do que Kant compreende como Können poder e Sollen – dever a partir do desdobramento das práticas sociais cotidianas.

Mas, isso não significa que Kant (2006) pretenda constituir uma espécie de psicologia. A primeira vista Foucault (2011) trata de deixar claro que os projetos que consolidaram a psicologia como ciência referem-se a um projeto radicalmente diferente do formulado por Kant (2006) na sua antropologia, pois para o filósofo alemão os motivos pelos quais o homem apresenta determinados modelos de conduta aceitáveis seriam aqueles pensados sob o ângulo de certo contexto social. A questão seria a explorar o Gemüt natureza2isto é, a maneira pela qual o homem, por meio de suas experiências, constitui-se a partir de sua relação com o mundo e com as coisas. Percebe-se, portanto, como a antropologia acaba por fixar as bases de que é o labor das ideias que se manifestam no campo da experiência, princípio pelo qual deve-se perceber a analítica kantiana não somente como um pressuposto epistemológico mas sim como uma dialética desdialetizada uma vez que ela destina-se a compreender a experiência no próprio jogo dos fenômenos. Nesse sentido Foucault (2011) inclina-se a pensar Kant deslocando seu campo da filosofia da ciência para relacioná-lo dentro de um contexto mais amplo, no caso, os jogos provenientes dos enunciados e da ordem do discurso.

O fato emblemático é que Foucault (2011) considera a antropologia como superação do próprio empirismo científico uma vez que ela sinaliza o conhecimento como um princípio vivificante. Crítica empreendia por parte de Kant dos próprios limites do empirismo compreendido como uma mera fisiologia. De fato, um dos maiores problemas elencados por Kant (2006) foi o de tentar estabelecer todo um esforço para pensar os contornos de sua antropologia a partir de uma nova relação do conhecimento com o problema da experiência.

Uma vez que a antropologia não deve ser lida como uma mera continuidade das teses presentes na teoria do conhecimento, o que está em questão seria a necessidade de um deslocamento que se manifesta na categoria do homem como objeto de estudo a partir da constatação de que a antropologia do Gemüt dedica-se a pensar a condição de possibilidade da experiência no campo da finitude humana.

Não que o Gemüt não esteja presente no contexto da filosofia crítica, mas especificamente na antropologia essa ideia surge como um desafio a ser superado pelo empírico-transcendental.

Se a antropologia inaugura a questão moderna sobre o que é homem já não se trata mais de uma questão que deve ser sustentada somente pela perspectiva do ceticismo filosófico dirigido pelo tribunal orquestrado pela filosofia crítica, mas pelos contornos os quais toda forma de conhecer está inegavelmente sujeita desde a metafísica, até a moral, desde a própria política até a religião. Em torno dessa questão que todo o pensamento moderno encontra-se delimitado.

Foucault (2011) parece interessado em nos mostrar como toda episteme está imersa na antropologia kantiana não conseguindo desvencilhar-se dessa conjetura, por mais radical que posam parecer suas argumentações. Ao propor os limites e as possibilidades do que é o homem, a antropologia acaba constatando que essa figura pode apenas conhecer o fenômeno, ou seja, aquilo que se apresenta sem apreender a coisa em si. Esse modo de pensar se traduz na possibilidade de se perceber quão problemática se torna a analise sobre a questão da conduta humana. Ao tentar solucionar tal problema, a episteme moderna limita-se a descrever características limitadoras mediadas pelos fenômenos aparentes de suas ações e predicados. Por isso, jamais poder-se-á afirmar algo sobre a natureza humana descontextualizada das práticas culturais, históricas e sociais. Contudo, isso não quer dizer que não se possa caracterizar as ações do homem.

Existe nesse conjunto de constatações lançado pela antropologia a estreita relação entre verdade e liberdade. Tal problema é trabalhado por Kant, segundo Foucault (2011), no Opus Postumum: a tripartição entre Deus, o mundo e o homem. Foucault (2011) nos lembra que, para Kant, Deus configura-se como persönlichkeit a personalidade responsável por representar a liberdade em relação ao homem e ao mundo, a própria fonte absoluta. Já o mundo seria o todo, a potência da experiência que se apresenta como extensão do inoperável enquanto que, o homem apresenta-se como síntese dupla, ao mesmo tempo que se configura como aquilo que se unifica em Deus e no mundo, não sendo mais do que um de seus habitantes e um ser limitado em relação a Deus. Abre-se nessa perspectiva o fundamento da ação antropológica cujo efeito seria o de perceber a relação entre verdade e liberdade como um processo de finitude.

Nesse sentido, a interpretação foucaultiana de Kant está inscrita na tentativa de se desdobrar os limites dessa finitude a partir da problematização sobre a modernidade como idade do homem. Conforme aponta Foucault (2011), a maioria dos sistemas de pensamento que julgavam ter ultrapassado a sabedoria do grande chinês de Konninsberg não souberam, delimitar com acuidade o fato de que não se encontravam as voltas com novos problemas, mas simplesmente lidavam com as questões de filiação e de fidedignidade ao pensamento kantiano. Resta, compreender o olhar sobre a filosofia pelos critérios da intempestividade de Nietzsche. Uma empresa de coragem que ousa associar o filosofar a golpes de martelo em torno de problemas delicados sobre os quais nossa modernidade foi fundada. Se ao homem não lhe é facultado o direito de conhecer sobre sua natureza, a filosofia de Nietzsche nos mostrará, segundo argumenta Foucault (2011) que o homem não passa de uma invenção risível dentro do contexto dos grandes sistemas de enunciado, uma invenção que encontra- se em vias de desaparecimento como um rosto desenhado na orla do mar.

Referências

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

____. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

____. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

____. Foucault. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: ética sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 228-233.

KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Notas

1 Em muitas análises do pensamento foucaultiano são reconhecidas as influências de Kant em temas relacionados à morte do homem, a ontologia histórica de nós mesmos e a problemática sobre o apriori histórico. O próprio Foucault reconheceu, sob o pseudônimo de Maurice Florence a, é certamente na tradição crítica de Kant, e seria possível nomear sua obra História Crítica do Pensamento. Ver mais detalhes em: FOUCAULT (2014, p.228).

2 Embora tenhamos traduzido a palavra Gemüt como natureza cumpre ressaltar que podemos encontrar na língua alemã outros significados igualmente relevantes como alma, mente e até mesmo sensibilidade.

Rodrigo Diaz de Vivar y Soler – Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil. Professor do Centro Universitário Estácio Santa Catarina e do UNIBAVE. E-mail: [email protected]

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Nietzsche e o espiríto latino – CAMPIONI (CN)

CAMPIONI, Giuliano. Nietzsche e o espiríto latino. São Paulo: Edições Loyola, 2016. Resenha de: BUSELLATO. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.37 n.3  out./dez. 2016.

À díade que parecia inalcançável, ou seja, os nomes de Colli e Montinari, na Europa, se acrescenta cada vez com mais frequência o nome de Campioni, e isso tem as suas razões de ser. Talvez um dos textos mais importantes de Campioni, que chega aos leitores brasileiros através das Edições Loyola na coleção Sendas

& Veredas, é uma valiosa demonstração. Desejado com previdência e acuidade e coordenado por ScarlettMarton, autora de uma “Apresentação à edição brasileira” (p.10-18) muito bem informa- da, traduzido com bom gosto por Vinicius de Andrade, Nietzsche e o espírito latino não apresenta só um estudo que poderá tornar-se referência para muitos pesquisadores que se dedicam ao pensa- mento do filósofo alemão. Esse trabalho contém algo que vai além do que se pode razoavelmente esperar de uma simples monografia. É o exemplo de uma metodologia, de uma relação peculiar, direta e íntima, com as páginas nietzschianas. Um trabalho de escavação, reconstrução e descobertas que oferece, no seu término, não uma figura-Nietzsche (operação sempre empobrecedora e frequente- mente falsificadora), mas o percurso-Nietzsche.

Esse percurso conduz propositalmente para longe das insalubres leituras rápidas, construídas mais por preconceitos, equívocos e exageros e não pela real necessidade de entender o pensamento de Nietzsche, como acontece aos “muitos que fruem esteticamente e em modo imediato do filósofo na busca de mestres absolutos de sapiência ou profetas do nihilismo” (p. 29). O que aqui se desmente é sobretudo a imagem caricatural e difícil de fazer desvanecer do Nietzsche germânico, o fato de fazer-lhe dizer o “Deutschelandüberalles” fazendo-lhe portar chapéus nibelungos e gritar a chegada de um Übermensch de olhos claros e de farda escura, como o próprio autor já se lamentava em Ecce Homo contra aqueles que apostrofava de “doutas bestas”.

Se a contribuição do texto fosse só essa, seria já um mérito, pois mérito é o fato de corrigir um erro de modo definitivo. Mas a demonstração do espírito latino de Nietzsche contra o mito germânico do Volk não se limita a isso. Reunindo idealmente as testemunhas onde o mestre Montinari mesmo tinha interrompido a sua pesquisa, isto é, iniciando a delinear o horizonte provençal e meridional como a melhor contestação do Nietzsche provincial e nacionalista3, Giuliano Campioni não só devolve o real diálogo através do qual se constituiu o pensamento nietzschiano, mas oferece um vasto panorama da cultura dentro da qual tal pensamento toma precisão, espessura e originalidade.

Esse é um outro Nietzsche em relação às interpretações “que só fazem tecer repetidamente uma discutível trama de filosofemas, sem nenhuma referência concreta à realidade da vida intelectual de Nietzsche”4. Nisso Campioni consegue os próprios resultados com aquilo que hoje, graças também aos seus trabalhos, é conhecido como o método da “escola italiana”, uma abordagem histórica (não historicista), que se move sobre um solo duramente filológico como base propedêutica necessária para uma exegese lúcida e fundamentada, com um cuidado especial para as leituras de Nietzsche, as fontes, a sua utilização frequentemente clarificante de aspectos que, deixados de lado, levam à cegueira – e um aguçado amor pelos detalhes que não derivam de uma supervalorização do fútil, mas de uma exigência pela verdade, como mostra a edição das cartas e das obras que Campioni dirigiu, antecipando – muitas vezes – os aparatos alemães e enriquecendo, nas novas edições dos fragmentos, com notas que são verdadeiros mananciais de referências e fontes.

Também nisso Campioni se revela um magistral aluno de Montinari, o qual advertia que o “mundo de Nietzsche – […] é o mundo de suas experiências, dos acontecimentos e das correntes de pensamento de seu tempo, de suas reflexões históricas e críticas, de suas leituras (e que leitor foi Nietzsche!)”5. Isso não significa, como seguidamente receia-se, subtrair originalidade ao pensamento de Nietzsche fazendo dele simplesmente uma mistura das próprias leituras; mas, ao contrário, exatamente olhando para essas leituras é possível medir, com frequência, o grau de audácia que se perderia desconhecendo o preciso terreno de confrontação no qual Nietzsche cultiva o seu pensamento. Um exemplo ulterior disso, da decisiva importância do extratexto, é a necessidade, para poder enfrentar a filosofia de Nietzsche, mais do que aquela de outros autores, de uma “nítida consciência de que só se pode abarcar toda a complexidade do texto saindo dele” (p. 28).

E é saindo do texto, estudando as leituras com as quais real- mente Nietzsche se confrontou, os autores hoje esquecidos que permanecem em suas páginas, emergem dos resultados historio- gráficos e exegéticos por outros lados inatingíveis. Começando com quanto podemos aprender pelo aprofundamento do confronto com Descartes, que a maioria das interpretações considera emblema de um racionalismo contrário ao gosto de Nietzsche, que sustentaria, pelo contrário, um raptus intelectual instintivo e romântico. O que Campioni mostra e demonstra, a partir da citação que o alemão escolhe como epígrafe da própria obra de libertação das metafísicas schopenhaueriana e wagneriana – uma passagem cartesiana extraída do Discour de laméthode que abre Humano, demasiado humano – é um Nietzsche que se confraterniza com um Descartes modelado através de intermediários como Richet, Ribot, Brunetiére e que exalta o equilíbrio, a clareza e o método, entrincheirando-se do lado de um iluminismo da tolerância, adversário dos fanatismos obscurantistas, que tem o seu mais sereno emblema em Voltaire. Um iluminismo que, para Nietzsche, define uma concepção de clássico que se opõe ao romântico, nutrindo-se de uma tradição que se refaz, uma vez mais, ao sol mediterrâneo do humanismo italiano e conduz à sutileza psicológica meridional, desconhecida na Alemanha, por exemplo, de um Stendhal.

A análise da interpretação cartesiana se oferece como possibilidade de desvelamento de um Nietzsche realmente longe do misticismo germânico irracionalista de algumas interpretações que, apesar de antigas, nolensvolens continuam irradiando distorções, como aquelas “mitológicas” de Bertram ou as “heroicas” de Baeumler, mostrando, ao contrário, uma figura moderada, consequente, amante do “piano” e do “adagio” oferecidos pelo Clássico, um Nietzsche para o qual é evidente “a superioridade do século caracterizado pela ‘razão de Descartes'” (p. 75).

O mesmo semblante nietzschiano, marcadamente mais do lado do equilíbrio do que do excesso, é aquele que emerge da aná- lise do confronto com Renan, que dá condições de embrenhar-se numa selva de questões decisivas do pensamento de Nietzsche como aquelas de caráter religioso, político e sociológico. A leitura que ele faz do francês no curso dos anos, revela-se logo de início bem diferente daquela wagneriana, aliás, distante desta à medi- da que o professor de Basiléia acolhe muitas posições críticas do colega Burckhardt, que revela ser para Nietzsche um verdadeiro antídoto crítico ao germânico wagnerismo centrado sobre o autoritarismodo”Gênio-tirano”(esteéumdecisivoaglomeradoconceitualaoqualCampioni,emparceriacomosaudosoSandroBarbera, dedicou um estudo específico, Il geniotiranno. Ragione e dominionell’ideologiadell’Ottocento: Wagner, Nietzsche, Renan, publicado em 1983 e republicado em 2010).

Aparecem nessa via algumas características claras de Nietzsche e muitas vezes esquecidas, como o antibelicismo e o antinacionalismo que considerava a vitória militar como uma imposição bárbara que não tem nada a ver com o espírito e com a cultura, que é a sua mais alta expressão; ou a tentativa de reagir àquele mesmo vazio que se abria diante da profunda crise que a segunda metade do século XIX conheceu, em relação à qual outros filósofos quiseram indicar a resposta no sentido de massificação, abnegação e sacrifício de si mesmos – solução que Nietzsche pressentiu de longe ser uma perigosa trilha que poderia levar exatamente aos horrores do fanatismo sanguinário que o século XX conheceu.

Desse modo, de um Nietzsche sentado à escrivaninha, com a intenção de meditar e a tomar distância em relação às páginas de Renan, e tendo consigo outros textos esclarecedores (Boueget, Bar- bey d’Avrevilly, Anatole France, Dostojevsky em tradução francesa e mediado por autores também franceses), torna-se possível medir a natureza real, a estratégia filosófica à qual é orientado e o significado sintético-conceitual do famigerado Além-do-homem e apanhar com mais clareza os contornos através da comparação com os devas renanianos, semelhantes ao filosofema nietzschiano, mas só superficialmente. Ambos são tentativas de “dar uma solução superior” a uma crise de nihilismoepocal, mas a tentativa de Nietzsche revela ser mais audaz e cautelosa ao mesmo tempo. Audaz porque rejeita qualquer tendência coercitiva que apele a substitutos metafísicos e violentadores (as “sombras de Deus”, temática crucial que em outras obras Campioni teve o mérito de colocar sob a atenção dos intérpretes), mas também cautelosa porque revela ser uma pro- posta antropológica de um tipo de homem que faça do equilíbrio uma preciosa virtude, conforme a afirmação no fragmento sobre o nihilismo europeu, incompreensível de outro modo, no qual lemos:

“Quais são os homens que se revelam então os mais fortes? Os mais moderados [die Mäßigsten], aqueles que não têm necessidade de artigos de fé extremos, aqueles que não só admitem, mas também amam uma boa parte de casualidade, de absurdidade, aqueles que sabem pensar sobre o homem com uma considerável redução do seu valor, sem por isso tornar-se pequenos e fracos” 6 .

Se a imagem do Nietzsche teutônico ainda permanece, isso se deve a alguns elementos (muitas vezes equivocados) que pertencem ao seu período wagneriano, e que já ele mesmo viu-se obrigado ainda em vida a escrever Nietzsche contra Wagner, na enfastiada tentativa de dissipá-los. Campioni adentra-se assim na tentativa de esclarecer os entornos, abandonados em seguida, e as precoces tomadas de distância em relação ao autor de Parsifal. Faz isso se- guindo os vestígios, totalmente preteridos, da literatura secundária, abordando os temas da “irredutível aversão à cultura romana [latina]” (p.162) wagneriana e oferecendo uma contribuição nova e preciosa aos estudos nietzschianos com a análise da interpretação e da relação que o filósofo alemão manteve com o Renascimento.

É exatamente no ato de valorizar o Renascimento, colocado como continuação do Humanismo e antecipação do Iluminismo, que se desenrola grande parte da oposição nietzschiana à cultura alemã, “a aposição do filorromano Nietzsche com Wagner, o Germânico” (p. 201). A essa tomada de posição concorrem autores específicos com os quais Nietzsche tece um relacionamento “complexo que nada tem de passivo” (p. 233) dos quais, entre tantos, Taine, Burckhardt, Stendhal, Bourget, Gebhart. Com eles, reúne e posiciona os representantes de um espírito latino solar capaz de dissipar o nevoeiro do obscurantismo alemão: Petrarca, Boccaccio, Petronio, Michelangelo, CesareBorgia, o abade Galiani e ainda outros. Não só isso, mas da análise dessas figuras torna-se possível também compreender corretamente alguns dos temidos elementos nietzschianos como a Raubthier, o Gewaltmensch ou a relação com Gobineau, libertando o filósofo de uma imagem que, reduzindo-o “a ser tão somente um ‘professor de energia’ ou um profeta da ‘religião da força’ desemboca imediatamente no grotesco e no mau gosto” (p. 234).

Não terminam aqui os resultados que a pesquisa sobre o Nietzsche “latino” consegue trazer à luz, e são tão numerosos e variegados que seria inútil uma tentativa de resumi-los pretendendo a exaustividade. Esses resultados estendem-se desde a descoberta de fontes até o momento pouco investigadas ou ignoradas (por exemplo: Michelet, Richepin, De Custine, Lemaître, Desprez, Diderot etc.), as quais permitem observar e compreender o que acontece nos bastidores do que Nietzsche coloca filosoficamente em cena, em comparações iluminantes com autores importantes e interpretações que fazem emergir em toda a sua riqueza a meditação nietzschiana (Goethe, Byron, Napoleone, Heine…) e que fornecem uma chave preciosa para entrar nas temáticas construtivas desta cena, como o pessimismo, a morte de Deus, os homens superiores do Zaratustra, aos quais são dedicadas análises impressionantes pela lucidez e pela capacidade explicativa.

Com esse texto Campioni não só inverte, sobre incontestáveis bases histórico-filológicas, a figura – canônica no amadorismo (e não só no amadorismo) – do Nietzsche germânico para oferecer-nos, ao invés, um espírito latino que permeia o autor tornando-o mais profundo, policromático, inteligente e inteligível, dotado de uma apaixonante complexidade que aumenta enormemente o pra- zer de estudá-lo – mas demonstra também que o especialismoniet- zschiano exige como própria condição a saída do especialismo. Re- quer o enfrentamento da longa e por vezes fatigante viagem através do Dédalo de avenidas, ruas e ruelas que constituem a topografia da Cultura em sentido autêntico. Demonstra que, para ler correta- mente uma página de Nietzsche, pode ser necessário ler inteiras estantes de bibliotecas. E ensina, enfim, que grandes resultados podem ser conseguidos também seguindo metodologicamente a cautela e deontologicamente a modéstia; aquela mesma requintada e exigente modéstia que Montinari seguia quando dizia de si mesmo querer “ser um bom ‘trabalhador’, como um bom sapateiro faz bons sapatos”7.

Aclamado, por ocasião da sua aparição na França, como algo que entre os estudos nietzschianos revela ser “um acontecimento” (Le Rider); traduzido em alemão e em espanhol, é agora acolhido no Brasil como um estudo que “apresenta uma nova face do autor de Zaratustra; bem mais, torna possível que ele fale outra vez com a própria voz. Haveria maior contribuição para promover o avanço dos estudos nietzschianos?”8

Portanto, é fácil prognosticar ao Nietzsche de Campioni, aqui no Brasil também, uma ampla difusão, como acontece naturalmente aos raros textos capazes de amadurecer nas bases os parâmetros interpretativos com os quais lemos um “clássico”.

Referências

CAMPIONI, G. Il “sentimento del deserto”. Dallepianureslave al vecchio continente. In: F. Nietzsche, Il nichilismoeuropeo. Milano: Adelphi, 2006. [ Links ]

MAZZINO. M. Compitidellaricercanietzscheanaoggi: il confronto di Nietzsche conlaletteraturafrancesedel XIX secolo. In:. CAMPIONI, G. & VENTURELLI, A. La “biblioteca ideale” di Nietzsche. Napoli: Guida Editorial, 1992. [ Links ]

MONTINARI. M. Che cosa ha detto Nietzsche, [1975] , editado por G. Campioni. Adelphi: Milano, 1999. [ Links ]

Notas

2Tradução de Ademir Menin.

3 Cf. o aparato da Edição à seção VII, 1984 e 1986; MAZZINO. M. Compitidellaricercanietzscheanaoggi: il confronto di Nietzsche conlaletteraturafrancesedel XIX secolo. In:. CAMPIONI, G. & VENTURELLI, A. La “biblioteca ideale” di Nietzsche. Napoli: Guida Editorial, 1992, p. 269-282.

4 MONTINARI. M. Che cosa ha detto Nietzsche, [1975], editado por G. Campioni. Adelphi: Milano, 1999, p. 154.

5 Idem.

6Nachlass/FP 5 [71], verão de 1886 – outono de 1887, § 15, datado em 10 junho de 1887 e conhecido como Fragmento de LenzerHeide. Por uma sua interpretação, CAMPIONI, G. Il “sentimento del deserto”. Dallepianureslave al vecchio continente. In: F. Nietzsche, Il nichilismoeuropeo. Milano: Adelphi, 2006, p. 47-60.

7 Carta de M. Montinari a G. Colli, 29 de setembro de 1967.

8 S. Marton, Apresentação à edição brasileira, p. 18.

Stefano Busellato – Pós-doutorando na Universidade do Oeste do Paraná, Unioeste, PR. Correio eletrônico:[email protected]

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Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser – NASSER (CN)

NASSER, Eduardo. Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser. São Paulo: Edições Loyola, 2015. Resenha de: SALANSKIS, Emmanuel. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.37 n.2  jul./set. 2016

Eduardo Nasser publicou recentemente um livro particularmente estimulante e ambicioso intitulado Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser. Fruto de uma tese de doutorado defendida em 2013 (sob o título Epistemologia e ontologia em Nietzsche à luz do problema do tempo), esse trabalho procura retraçar o caminho intelectual que levou Nietzsche a desenvolver uma filosofia do vir-a-ser. Para tanto, o autor recorre ao estudo de fontes, que permite ler as propostas filosóficas de Nietzsche “como respostas para problemas produzidos no contexto intelectual particular de sua época” (p. 25). Mas o livro se esforça para nunca cair numa mera erudição, nem tratar a obra nietzschiana como um mosaico de plágios (p. 26). Eduardo Nasser oferece, antes, uma contextualização impressionante das reflexões de Nietzsche sobre o tempo e o viraser. Destaque especial deve ser dado à análise da refutação da idealidade do tempo na esteira do filósofo russo Afrikan Spir (p. 58-70), bem como à apresentação da teoria dos átomos de tempo, com seus dois “lados” epistemológico e físico (p. 151-153 e p. 173-188, ver abaixo). O título do livro, saliente-se, se justifica por uma tese mais geral que vai além dessas análises específicas. O autor interpreta a filosofia nietzschiana do viraser como uma ontologia, na medida em que “Nietzsche busca no realismo do viraser não somente uma supressão do ser, mas também uma nova forma de recolocar a pergunta pelo ser” (p. 27). À luz dessa “irrupção do ser”, Nietzsche é colocado em perspectiva como um precursor das ontologias antiessencialistas do século XX, especialmente no contexto das chamadas “filosofias do processo” (p. 242-248). Embora eu não compartilhe inteiramente essa leitura ontológica, considero Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser como uma contribuição extremamente original e desafiadora para os estudos nietzschianos contemporâneos. Gostaria de resumir algumas passagens essenciais do livro antes de discutir brevemente sua perspectiva geral.

***

A primeira análise importante, desenvolvida no capítulo 1, diz respeito à “virada realista” que Eduardo Nasser identifica no pensamento do jovem Nietzsche a partir de 1873. Inicialmente, Nietzsche certamente não se definia como um realista. Sabese que ele defendia um idealismo cultural ligado a pretensões educativas e a uma “metafísica do artista” (p. 30-37). O ponto de partida de Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser consiste em mostrar que essa posição era “epistemologicamente [amparada]” pelas leituras neokantianas do jovem Nietzsche: Liebmann, Fischer, Ueberweg, Haym e, sobretudo, FriedrichAlbert Lange (p. 32). Herdeiro dessa tradição transcendental, Nietzsche julgava o conhecimento da “coisa em si” inacessível; enxergava o próprio conceito de coisa em si como “uma categoria oculta“; e concluía, com Lange, que a metafísica não é nada senão uma “intuição poética” (p. 34-35).

Contudo, Eduardo Nasser sustenta que uma “mudança de rumo” advém quando Nietzsche descobre o opus magnum do filosofo russo Afrikan Spir, Denken und Wirklichkeit. O jovem Nietzsche é então exposto à objeção capital de Spir contra a teoria kantiana da idealidade do tempo: contrariamente ao espaço, o tempo não pode ser uma ilusão nem possuir uma realidade simplesmente subjetiva, pois a mera representação de uma sucessão não seria sucessiva e não poderia dar origem à temporalidade de uma sucessão de representações (p. 67). As p. 62-64 fornecem uma excelente contextualização do argumento de Spir na história do kantismo. Depois, o autor bem mostra os sinais de uma incorporação nietzschiana desse argumento. É o raciocínio mobilizado no capítulo XV de A filosofia na idade trágica dos gregos para refutar o eleatismo: ou seja, a postulação por Parmênides, no segundo período de seu pensamento, de um Ser único e imutável, acessível à pura razão, que supostamente tornaria ilusória a nossa experiência sensível de um mundo em viraser (p. 51). Tal ilusão pode ser refutada como autocontraditória. Com efeito, o permanente precisaria ser mutável para suscitar uma aparência de mudança. Nas palavras de Nietzsche: “não se pode negar a realidade da mudança. Se ela for expulsa pela janela afora, volta a entrar pelo buraco da fechadura” (p. 61). Assim, segundo Eduardo Nasser, chega-se a pensar o tempo como “a única propriedade atribuída ao real que sobrevive à inspeção crítica” (p. 240). O que também implica um abandono do idealismo transcendental, enquanto “disfarce usado pelo eleatismo para iludir seus opositores” (p. 70).

Iniciada em 1873, a problematização realista de Nietzsche se manifestaria na obra publicada a partir de Humano, demasiado humano. Estaria subjacente a uma “filosofia histórica” que faz do viraser seu objeto primordial (p. 88-89). Aqui, Eduardo Nasser apresenta uma segunda análise importante. Ele explica que o realismo nietzschiano “requer uma nova perspectiva epistêmica” (p. 95), podendo essa ser caracterizada como um sensualismo (p. 99). O capítulo 2 procura esclarecer o sentido, o interesse e os limites desse sensualismo, sem esquecer de dialogar com comentadores que já abordaram o assunto (como Maudemarie Clark, Mattia Riccardi ou Pietro Gori). Uma distinção elucidativa é feita entre sensualismo e materialismo. Se o primeiro aceita o testemunho dos sentidos enquanto mostram a realidade do vir-a-ser (p. 116), isso não pressupõe “um mundo de coisas, substâncias e átomos”, ao invés do segundo, que vive “à sombra da metafísica” (p. 100). Sendo assim, o sensualismo tem a seu favor “uma consciência filosófica mais apurada” (p. 99). Seria a posição que Nietzsche adotaria enquanto “hipótese regulativa” ou “princípio heurístico” no § 15 de Para além de bem e mal, o que justificaria uma aproximação parcial com o fenomenalismo de Ernst Mach (p. 109-111). Aliás, Eduardo Nasser oferece uma pequena crônica (muito bem-vinda) da aproximação Nietzsche-Mach desde Hans Kleinpeter, discípulo de Mach e admirador de Nietzsche. É verdade que a diferenciação com o materialismo não resolve todos os problemas, o que o autor não dissimula. Por um lado, Nietzsche nem sempre usa a palavra Sensualismus num sentido positivo. O § 14 de Para além de bem e mal fala, por exemplo, do “sensualismo eternamente popular”, que acredita apenas no que “pode ser visto e tocado”, uma atitude fundamentalmente plebeia segundo a axiologia nietzschiana (p. 100). Por outro lado, Eduardo Nasser sugere que Nietzsche não renuncia a buscar causas para as sensações. Ora, isso ultrapassa o âmbito de um “sensualismo monístico”, que excluiria, em princípio, um “conhecimento não sensorial das sensações” (p. 112).

Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser desenvolve uma argumentação interessante a favor de uma interpretação sensualista. Parece-me que essa chave de leitura permanece discutível, notadamente por uma razão que o próprio autor indica: o fato de Nietzsche adotar “um tipo de epistemologia evolucionista” (p. 124). A meu ver, num quadro de reflexão evolucionista, a sensação é menos um dado epistemológico primeiro do que uma interpretação herdada do passado orgânico, que tem uma função vital. Isso quer dizer que a sensação pode ser criticada enquanto interpretação. É justamente o que mostra a excelente nota 61 da p. 104, que enumera três fragmentos póstumos de Nietzsche tratando da falsificação visual do mundo efetivo: o nosso olho é “um poeta inconsciente e um lógico” (Nachlass/FP 15 [9] do outono de 1881, KSA 9.637), que não apenas “simplifica o fenômeno” (Nachlass/FP 26 [448] do verão/outono de 1884, KSA 11.269), mas também constrói a coisidade, ao despertar “a diferença entre um agir e um agente” (Nachlass/FP 2 [158] do outono de 1885/outono de 1886, KSA 12.143). Sabemos que essa distinção Thäter/Thun será colocada em questão pela Genealogia da moral. Todavia, será que tem uma sensação por trás da sensação, ou um “mundo fenomenal profundo” do viraser sob o mundo fenomenal superficial da coisidade (p. 125)? Concordo com Eduardo Nasser quando ele evoca o refinamento dos sentidos ao qual Nietzsche nos convida. Também subscrevo a ideia de que tal aperfeiçoamento tem limites necessários (p. 122-134). Eu simplesmente não tenho certeza de que algo “afeta os sentidos originariamente” (p. 133), na medida em que esse “algo” só poderia existir do ponto de vista de uma interpretaçãoapropriação que o põe (ver abaixo).

Uma terceira análise, talvez a mais notável de Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser, concerne à teoria dos átomos de tempo do jovem Nietzsche (cap. 2-3). Trata-se de uma teorização “em grande medida concentrada num fragmento de 1873” (p. 151), a famosa nota 26 [12] ilustrada por dois esquemas. O autor decompõe esse questionamento em um “lado epistemológico” (p. 151-153) e um “lado físico” (p. 173-188). Em ambos os casos, estamos em presença da postulação de “unidades mínimas de tempo” (p. 151), mas tal suposição pode ser entendida como a de um mínimo sensorial ou de um mínimo físico, sem que exista necessariamente uma discrepância entre as duas acepções: Eduardo Nasser rejeita as “falsas polêmicas geradas em torno do valor objetivo ou subjetivo” do atomismo temporal (p. 173).

Um primeiro lado desse atomismo é sensorial. A esse respeito, o final do capítulo 2 remete à leitura nietzschiana de Karl Ernst von Baer (p. 144-150). O célebre fisiologista russoalemão acredita identificar uma “medida fundamental do tempo”, o batimento cardíaco (p. 146). Pois observa que a velocidade das pulsações condiciona a percepção do tempo, de modo que um coelho, com sua pulsação “quatro vezes mais veloz que a de um bovino”, “possui uma vida mais veloz” (p. 147). Situada entre essas duas temporalidades, a nossa existência poderia ser radicalmente alterada por uma simples aceleração ou desaceleração cardíaca: o mundo poderia nos parecer quase imutável ou, pelo contrário, profundamente efêmero (p. 147-148). Isso permite conceber a pulsação como uma espécie de átomo temporal, o que leva o jovem Nietzsche a dizer que o atomismo temporal coincide com uma teoria da sensação (p. 153). Contudo, Eduardo Nasser sublinha que o “ponto de sensação” não é exatamente um instante: ele já envolve o vir-a-ser, é mesmo “originariamente equivalente ao vir-a-ser” (p. 152). Assim, von Baer aparece a Nietzsche como um aliado do heraclitismo, leitura idiossincrática que transparece no curso sobre Os filósofos pré-platônicos (p. 146).

Mas o atomismo temporal do jovem Nietzsche também possui uma física, esboçada pelo elíptico fragmento 26 [12]. Para esclarecer esse segundo aspecto, Eduardo Nasser remete a uma outra referência científica do jovem Nietzsche, a física dinamista de Roger Boscovich: “é a partir do dinamismo de Boscovich que Nietzsche chega ao seu conceito de força e, consequentemente, à sua visão de mundo” (p. 168). O interesse de Nietzsche pela física boscovichiana dos pontos dinâmicos é muito bem documentado pelo capítulo 3. Mais uma vez, a interpretação nietzschiana se mostra criativa e radical. Pois Eduardo Nasser mostra que Nietzsche abole toda forma de permanência substancial, contrariamente a Boscovich, que ainda admitia pontos materiais imutáveis na sua Teoria da filosofia natural (p. 181-183). Mas a mais espetacular deformação nietzschiana parece ser uma tradução temporal de Boscovich: “os pontos nietzschianos são temporais, diferenças puras” (p. 181), que acolhem “forças absolutamente mutáveis” (p. 182). Daí o estranho saltacionismo temporal do jovem Nietzsche, ilustrado no segundo diagrama do fragmento 26 [12]: tudo se passa como se ocorresse uma ação à distância entre pontos temporais separados, uma sugestão tanto fascinante quanto enigmática (p. 186).

Poder-se-ia ver essas reflexões como ideias en passant, que Nietzsche nunca desenvolveu seriamente na sua obra posterior. No entanto, Eduardo Nasser atribui grande importância a esse momento teórico precoce: “na teoria dos átomos de tempo encontramos o essencial do que pode ser chamado de a visão de mundo hipotética de Nietzsche” (p. 188). Nietzsche teria permanecido fiel ao núcleo dessa física inicial: a busca de uma esquematização temporal da realidade, baseada na convicção de que “somente a mudança pode explicar a mudança” (p. 183). Novos desdobramentos teriam sido incluídos nessa visão de mundo dinâmica, tais como um princípio de continuidade (p. 188-197) e a própria hipótese da vontade de potência (p. 197-202). Seguindo essa linha interpretativa, Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser propõe uma interpretação iconoclasta da vontade de potência como “uma forma de tornar o discurso dinamista […] mais palatável a um público não especializado” (p. 202). Sem dúvida, essa proposta suscitará discussões no contexto da Nietzsche-Forschung.

***

Volto agora à noção paradoxal de “ontologia do vir-a-ser”, que dá sua perspectiva geral ao livro. Gostaria de indicar sucintamente em que sentido Eduardo Nasser reabilita uma problemática ontológica, para depois levantar duas dificuldades, num espírito de amizade nietzschiana.

O autor está bem ciente de que Nietzsche rejeita as ontologias tradicionais, aquelas que podem ser chamadas de “essencialistas” (p. 208). A palavra técnica Ontologia é rara no corpus nietzschiano, mas uma de suas ocorrências corresponde a uma crítica implacável de Parmênides (p. 209). É evidente, portanto, que Nietzsche considera o Ser do eleatismo como ilusório: ele dá razão a Heráclito tal como o entende, desde A filosofia na idade trágica dos gregos até Ecce homo (p. 217). Mas outra questão é saber se Nietzsche não teria também uma concepção ontológica positiva, em virtude de uma espécie de “homonímia do ser” (p. 217-227). De fato, é o que Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser defende: “O ser enquanto essência, enquanto ousia, não é o verdadeiro ser” (p. 219). Assim entendido, Nietzsche prefiguraria em certa medida o questionamento heideggeriano, pace Heidegger em seu curso sobre Nietzsche. Conhece-se a famosa “diferença ontológica”: Heidegger interpreta a história das metafísicas do ente como a do esquecimento de uma pergunta mais fundamental pelo Ser. Nessa direção pósheideggeriana, Jean Granier é citado como um dos intérpretes que reconheceram a “plausibilidade do problema ontológico em Nietzsche”, em seu livro clássico sobre Le Problème de la vérité dans la philosophie de Nietzsche (p. 19-22).

É certo que Nietzsche pronuncia frases do tipo: “o único tipo de ser é – ” (p. 224). Mas será que isso permite atribuir uma ontologia Nietzsche? Vejo dois problemas. O primeiro é mencionado pelo autor no final do capítulo 4: a dessencialização nietzschiana da ontologia “é também a destruição de toda ontologia”, pelo menos enquanto discurso científico (p. 227). O ser não tem mais um conteúdo essencial suscetível de ser caracterizado por um logos, a não ser que Nietzsche não mantenha seu antiessencialismo de modo coerente (a pergunta poderia ser feita à luz de certas formulações sobre a vontade de potência, como a do fragmento 14 [80] de 1888 citada na p. 227: “a essência mais íntima do ser é vontade de potência”; o eterno retorno também levanta interrogações, como mostra o excurso crítico das p. 227-237). Mas talvez Nietzsche tenha uma segunda objeção ainda mais radical contra o discurso ontológico. No âmbito do seu perspectivismo, ele afirma a nãoexterioridade da aparência em relação ao ser. Não tem o ser de um lado e suas manifestações do outro, o que “é” é sempre visto desde uma outra coisa. Assim, não se pode dizer absolutamente falando que A é B, nem mesmo que A existe em si. Eduardo Nasser cita pelo menos dois textos que vão nesse sentido, os fragmentos 2 [149] de 1885/1886 e 7 [1] de 1886/1887 (p. 219 e p. 224). No fragmento 7 [1], Nietzsche coloca aspas na palavra “fenomenal” [Phänomenale], que se deve distinguir do vocabulário propriamente nietzschiano da aparência [Schein]. De fato, não “tem” em Nietzsche um mundo fenomenal objetivo a ser descrito. Parece-me, nesse sentido, que o desafio filosófico não seria mais procurar um ser, mesmo fenomenal, mas sim elaborar critérios para orientar-se metodologicamente nas aparências.

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Essas observações visavam apenas a prosseguir o diálogo com Eduardo Nasser e a agradecer a ele por este belo livro, que vem enriquecer a coleção Sendas & Veredas do GEN. Produto de um trabalho bibliográfico considerável, Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser defende uma interpretação ousada com uma argumentação precisa. Essa obra é uma mina intertextual, que, seguramente, interessará a todos os especialistas de Nietzsche em língua portuguesa.

Emmanuel Salanskis – Doutor em filosofia pela Universidade de Reims, pesquisador no laboratório SPHERE do CNRS e diretor de programa no Collège International de Philosophie, França. Correio eletrônico: [email protected]

Nietzsche em chave hispânica – MARTON (CN)

MARTON, Scarlett. Nietzsche em chave hispânica. São Paulo: Edições Loyola, 2015. Resenha de: MOYA, Gloria Luque. Cadernos Nietzsche, v.37 n.1 São Paulo jan./jun. 2016.

O GEN (Grupo de Estudos Nietzsche), por meio de sua coleção Sendas & Veredas, em sua série Recepção, dirigida pela professora Scarlett Marton, com a intenção de abrir novas frentes de discussão, vem publicando uma série de números monográficos sobre a atualidade da investigação acerca de Nietzsche em diferentes países. Trata-se de acolher as distintas linhas interpretativas que na atualidade se estão levando a cabo em diferentes países com a finalidade de promover uma reflexão sobre a singularidade e especificidade de suas leituras sobre os textos de Nietzsche. Assim, por exemplo, já foram publicados os seguintes títulos: Nietzsche na Alemanha; Nietzsche abaixo do Equador: Uma recepção na América do Sul; Nietzsche pensador mediterrâneo: a recepção italiana; Nietzsche, um francês entre os franceses. E agora este volume, que trata de reunir sob o título Nietzsche em chave hispânica uma série de trabalhos de alguns dos investigadores de maior relevo na pesquisa Nietzsche que se tem feito neste momento na Espanha. Os autores que aparecem no livro são quase todos os filósofos que têm promovido na Espanha os estudos sobre F. Nietzsche nas últimas duas décadas, dando um impulso de enorme importância à Nietzsche Forschung, fundando uma Sociedade espanhola de estudos sobre F. Nietzsche (SEDEN), sobre cujos auspícios se criou uma prestigiosa revista, a Estudios Nietzsche (ano 2000). Uma das contribuições mais significativas dessa sociedade, por seu alcance e sua grande utilidade para a investigação, tem sido a tradução para o espanhol, partindo das últimas correções do texto original em alemão, de grande parte dos escritos e da correspondência de F. Nietzsche: Fragmentos Póstumos (4 vols., 2007-2010, Tecnos: dir. Diego Sánchez Meca); Correspondencia (6 vols., 2005-2013, Trotta, dir. Luis Enrique de Santiago Guervós) e Obras Completas (4 vols., 2011-2016, Tecnos, dir. Diego Sánchez Meca). Essa enorme tarefa que realizaram em tão poucos anos presta certamente uma colaboração inestimável para todos aqueles estudiosos de língua hispânica que se dedicam a estudar a vida e a obra de Nietzsche. A importância dessa contribuição se pode compreender e ampliar no primeiro capítulo do livro, que revela a presença de Nietzsche na Espanha nas duas últimas décadas.

As contribuições que aparecem no livro são significativas tanto em termos de autores, ligados à SEDEN, quanto por aquilo que abordam: Marco Parmeggiani e Fernando Fava, “Nietzsche na Espanha”; Francisco Ares Doz, “Alcance e limites da recepção de Nietzsche no contexto acadêmico espanhol (1939-1975)”; Diego Sánchez Meca, “Vontade de potência e interpretação como pressupostos de todo processo orgânico” e “Nietzsche ou a eternidade do tempo”; Luis Enrique de Santiago Guervós, “A dimensao estética do jogo na filosofia de Nietzsche”; Manuel Barrios Casares, “O ‘giro retorico’ de Nietzsche” e “Niilismo e pós-humanidade na cultura contemporânea”; Joan B. Llinares, “A filosofia da linguagem em Nietzsche”; Remedios Ávila Crespo, “A critica de Nietzsche ao romantismo”; Marco Parmegginai, “Nietzsche: o pluralismo e a pós-modernidade”. Com isso, o leitor português e brasileiro têm a seu alcance um material importante para conhecer o trabalho que está sendo feito na Espanha, ao mesmo tempo em que se informam sobre a recepção de Nietzsche nesse país desde 1939. Desse modo se desenha um novo quadro na recepção de Nietzsche na Espanha e se apresentam aos leitores novas linhas de investigação para além daquelas com que trabalham atualmente. É indubitável que os esforços que leva a cabo o grupo GEN de São Paulo em difundir a pesquisa que se realiza em distintos países contribuem para criar um espaço comum para que a investigação de um dos pensadores mais importantes de nossa contemporaneidade tenha esse caráter universal que seguramente possibilitará um trabalho mais produtivo acerca da interpretação da vida e da obra de F. Nietzsche.

* Este texto também será publicado na revista Estudios Nietzsche 16/2016, da Sociedade Espanhola de Estudos sobre Friedrich Nietzsche (SEDEN). Tradução de Márcio José Silveira Lima

Gloria Luque Moya– Professora da Universidade de Málaga, Espanha. Correio eletrônico: [email protected]

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Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias – MARTON (CN)

MARTON, Scarlett. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias. São Paulo: Edições Loyola, 2014. Resenha de: PIMENTA, Olímpio. Cadernos Nietzsche, v.36 n.1 São Paulo jan./jun. 2015.

Tornar legível a obra de Friedrich Nietzsche e, com isso, fazer com que os pensamentos nela expressos possam ser experimentados por quem os lê é um compromisso dos mais altos no que toca a nós, seus estudiosos brasileiros. Afinal, não obstante a ampla difusão de seus livros e ideias, correlata ao amadurecimento dos estudos nietzschianos no país, resta muito ruído em torno da sua recepção, inclusive nos meios acadêmicos. A responsabilidade filosófica do pensador alemão é ainda hoje contestada; também se discute em que medida as principais formulações que compõem a variadíssima paisagem teórica de seus escritos podem ser consideradas filosoficamente consequentes.

As dificuldades se multiplicam ao se ter em conta que os fins visados pela obra, mas também os meios mobilizados para alcançá-los, são muito diferentes dos que se reconhece como aqueles que legitimam uma filosofia. Não há ali uma ordenação conceitual sistemática, não se persegue a verdade nos termos convencionais, se está sempre a uma distância segura de doutrinas constitutivas de uma dogmática. Não parece assim proveitoso ler Nietzsche como um filósofo entre outros, como um filósofo qualquer.

Programaticamente inteiradas disso, as treze conferências que integram este “Nietzsche e a arte de decifrar enigmas” constroem, com grande felicidade, toda uma rede de caminhos alternativos para a frequentação da obra a que se referem. Se seu propósito é priorizar a análise de como ganham vida as proposições que veiculam os assim chamados conteúdos do pensamento nietzschiano, o perspectivismo que anima as investigações em curso se encarrega de viabilizá-lo de forma muito acertada. Pois um dos aspectos mais notáveis do conjunto desses textos, a par da excelente recensão bibliográfica em que se apoiam, é exatamente a fecundidade heurística do manejo de perspectivas que neles se exercita.

Por si só um tour de force, o tratamento de todos os títulos que compõem a obra preparada para a publicação pelo filósofo produz, assim, resultados estimulantes, principalmente em função dos ângulos escolhidos para a sua abordagem. A evidente familiaridade da autora com o corpus nietzschiano e sua fortuna crítica permitiu-lhe circular no âmbito de cada livro e nos intervalos entre eles através de passagens invisíveis a um olhar menos experimentado. Assim, a tematização de quase tudo o que confere interesse ao universo visado é oferecida ao leitor segundo uma inspiração nitidamente afim à que nele vigora. Por meio da exposição clara e da argumentação rigorosa que acompanham as articulações propostas são iluminadas questões cujo entendimento não é propriamente simples, dado seu caráter enigmático. Na intenção de esboçar possíveis roteiros de leitura, sugerimos a seguir algo a respeito do repertório consolidado pelos estudos reunidos no volume.

Para saber a que aspira o projeto filosófico nietzschiano em sua vertente propositiva, o mais recomendado é começar pela leitura dos capítulos 6 e 11, dedicados respectivamente a Assim falava Zaratustra e Crepúsculo dos ídolos. Tendo como norte o problema da transvaloração dos valores, isto é, as perguntas a respeito de se e como uma filosofia afirmativa da existência é viável e pode intervir nos rumos da civilização, estes dois capítulos indicam os elementos centrais para discutir o encaminhamento para elas elaborado pelo filósofo. O horizonte da transvaloração surge, assim, como bastidor mais abrangente para a inscrição da visada geral da obra em sua totalidade, funcionando como ponto de convergência das melhores expectativas que se pode alimentar quanto ao uso autorizado da filosofia de Nietzsche.

Em contrapartida, se se quer perceber sob que condições e em confronto com o quê Nietzsche esgrimiu seu pensamento, cabe examinar as observações feitas nos capítulos 2, 9 e 11 a propósito das Considerações extemporâneas, de O caso Wagner e de O anticristo. Nesta revisão da vertente crítica do projeto nietzschiano, destacam-se a denúncia ao filisteísmo cultural, feição ostensiva da barbárie moderna e sintoma de um tipo de sensibilidade mórbida cujo nome genérico é wagnerianismo; a análise da corrupção dos instintos que domina a psicologia dos homens modernos, genealogicamente vinculada à debilidade afetiva típica de uma espiritualidade educada pelo cristianismo; e por último uma minuciosa restituição das práticas que permitem ao indivíduo manter ou recuperar sua saúde a partir do exercício da leitura.

Para fazer jus à prosa das conferências, assinalemos de passagem que, nelas, os temas vêm à baila longe da forma esquemática que lhes emprestamos aqui. Deve-se considerar sua apresentação como algo mais parecido com a atividade de jogar com um caleidoscópio: embora os mesmos elementos estejam sempre presentes, o que conta para o efeito são as combinações que, nos casos em vista, impressionam muito bem.

Outro grupo de estudos que mantém entre si uma espécie de ar de família é aquele que remete a Humano, demasiado humano, Aurora e A gaia ciência, capítulos 3, 4 e 5. Em comum, partilham a adoção de estratégias mistas de acesso às fontes. Associa-se o cuidado com a letra dos aforismos, patente na restituição muito plausível do encadeamento de determinadas sequências deles, à remissão às influências mediatas e imediatas que atuavam sobre o filósofo à época da redação dos livros.

Quanto a Aurora, a análise se volta para a explicitação das relações entre a epígrafe e as discussões desenvolvidas sob sua égide. Contesta com sucesso alegações posteriores do próprio filósofo a respeito da consumação da transvaloração dos valores, neste livro ainda em processo preparatório. O exame do trecho que vai do anúncio da aliança entre filosofia, história e ciências naturais até o diálogo com a pintura “Transfiguração” de Rafael é deveras fecundo no sentido de estabelecer a contestação mencionada.

Quanto a Humano, demasiado humano, tratou-se de distinguir com precisão as vozes do moralista e do iluminista que nele se ouvem, na esteira da influência de Pascal e Voltaire. O mais curioso, porém, é o arranjo que tornou isso possível. Tomando como fio de ouro o contraste entre duas circunstâncias da condição feminina, as mulheres na órbita doméstica e as mulheres emancipadas, procurou-se aferir a qual dos predecessores caberia remeter o que é dito em certos aforismos, sob a clivagem definida por essas rubricas. O saldo aponta, não sem alguma ambivalência, para um Nietzsche partidário da exclusão feminina do espaço público.

Entretanto, e isto é o que confere um interesse específico ao capítulo, encontra-se também nele uma discussão metodológica assaz desafiadora. Uma vez que diversas declarações de Nietzsche, citadas em conexão com o debate sobre o feminino, parecem pressupor uma base sobretudo biográfica, a autora defende, sem hesitação, que contextualizações dessa natureza não se prestam a iluminar textos filosóficos. Tal posição assegura a Nietzsche o benefício da dúvida em relação ao partido por ele tomado, mas traz consigo um inconveniente ponderável. Afinal, muito do que é demonstrado alhures a favor da vertente construtiva do seu pensamento decorre da admissão do nexo constitutivo entre vivências e reflexão. É certo que, nos exemplos que o capítulo propõe, fica decidido que uma correspondência mecânica entre vida e obra não é um procedimento inteligente, e que tampouco a psicologização de um pensamento ou de uma teoria ajuda a esclarecê-los. Mas isto é pouco diante do grande número de oportunidades em que variações do recurso repudiado são mobilizadas com proveito. De mais a mais, chega a ser muito engraçado, por exemplo, que a solene enunciação cosmológica do eterno retorno apareça temperada pela evocação de certos parentes como principal obstáculo à sua vivência.

Quanto a A gaia ciência, tem-se uma retomada bem sutil da questão do feminino a partir de sua luminosa conexão com a recusa do essencialismo. Seja à moda do realismo positivista, que estipula a existência de fatos naturais evidentes, seja à moda do realismo metafísico, que estipula a existência de verdades eternas evidentes, a idealização de algo como a “mulher em si” deve ser finalmente superada. Em seu lugar, compete prestar atenção aos processos complexos e particulares que ocorrem junto a mulheres em situações e papéis típicos, de modo a que o conhecimento então obtido tenha alguma chance de ser verdadeiro. Aliás, em sendo a verdade mulher, vale estender o procedimento a tudo quanto o que se deseja saber, caso se pretenda ultrapassar as mentiras do saber dogmático. Sob esta luz, talvez faça mais sentido a restrição metodológica manifestada, pois é incrível que um pensador dotado de tamanha perspicácia possa se revelar um pobre misógino.

É digno de registro que, apesar de termos reunido num mesmo grupo os livros do chamado período intermediário, isso não reflete qualquer opção tomada pela obra em tela. Muito ao contrário, os recortes da periodização costumeira são pulverizados pela reflexão que ali se efetua. Embora úteis, de um ponto de vista didático, por demarcarem uma tópica que livra o leitor iniciante da perplexidade, eles são substituídos pela reconstrução genealógica do percurso filosófico do próprio pensador, procedimento muito mais elucidativo.

Nos capítulos 7, 12 e 13 concentram-se ocorrências exemplares do bom uso da implicação entre pensamentos e vivências. Cuidando de esclarecer o modo como Nietzsche propõe uma reformulação dos móveis tradicionais da filosofia em bases experimentais, a investigação sobre Para além de bem e mal firma as vantagens cognitivas e epistêmicas da reflexão atenta à fisiopsicologia. Diante da alegação de uma oposição fundamental entre os valores, própria dos credos hegemônicos no Ocidente, importa menos a obsessão dialética em esgotar as razões a favor e contra sua crença do que investigar a que tipos humanos ela serve. Vê-se na discussão de Nietzsche contra Wagner que são tipos humanos antípodas de Nietzsche, num sentido decisivo: para viver, precisam de forjar crenças estáveis, já que sofrem por suas carências; ao passo que ele deseja criar, à revelia de qualquer fé, por sofrer de modo muito diverso, em função da abundância de interesses, disposições afetivas e recursos que o habitam. Tais colocações suscitam, de direito, a pergunta: mas, afinal, quem é este Nietzsche? Como esclarece a leitura de Ecce homo, não se trata de um sujeito substancial duplicado, como o que responde pelas páginas biográficas do “Discurso do método”, nem tampouco de um eu que dramatiza em si a existência, como o que figura nas “Confissões”. Mais provavelmente, está-se ali às voltas não com um personagem, mas com um topos, um lugar em que se desenrolam toda sorte de vivências, estimuladas pelos mais variados afetos, sob circunstâncias experimentais também proteiformes. Diferentemente do que acontece na seara do dogmatismo, um espetáculo como esse tende a atrair para si os favores da verdade, cumprindo dessa forma inaudita os mais veneráveis desígnios da filosofia.

Tamanha abertura ao que é plural na ordem da investigação demanda uma contrapartida à altura no que diz respeito ao registro e à transmissão do pensamento. Cabe evitar que as ideias convertam-se em dogma, o que só se alcança mediante um uso singular do discurso filosófico. Mais um enigma se esclarece: por fazer parte de um mundo destituído de características cristalizadas, um filósofo precisa de esvaziar sua enunciação de qualquer traço identitário generalizante, o que só se obtém quando se domina a arte de perspectivar os acontecimentos a partir de sua mais enxuta particularização. O texto, então, enquanto comunica um determinado pathos, nada fala da pessoa de seu suposto autor. Ganha o máximo de objetividade na proporção inversa de seu apelo universal. Nessa mesma medida, seleciona seu leitor, evitando que a condição especial das vivências nele tornadas pensamento seja confundida com qualquer lição doutrinal ao alcance de todos.

Os estudos dedicados a O nascimento da tragédia e à Genealogia da moral, capítulos 1 e 8, organizam-se em torno do exame de hipóteses de leitura imanentes relativas às duas obras. Dotados de uma dicção mais marcadamente acadêmica, argumentam, quanto ao primeiro, contra a presença estruturante de uma dialética ascendente no curso do desenvolvimento da exposição; e, quanto ao segundo, contra a impressão de que a exposição teria caráter linear e demonstrativo, constituindo uma espécie de extrato das concepções nietzschianas acerca dos fenômenos morais. Pelas características assinaladas, e também por cuidarem de restituir o principal das posições teóricas expressas pelo filósofo em ambos os livros, funcionam como boas introduções às suas respectivas problemáticas.

Leitor de Scarlett Marton desde a publicação do seminal “Nietzsche: uma filosofia a marteladas” (São Paulo: Brasiliense, 1982), desejo arrematar essa conversa lançando um olhar de sobrevôo ao movimento desenhado por seus escritos mais recentes. Se já havia ficado contente com “Nietzsche, filósofo da suspeita”(São Paulo: Casa da Palavra, 2010), graças à liberdade que se respira ali, considero ter reencontrado agora essa mesma liberdade, acrescida de um elemento novo, que distingue um intérprete original: a invenção.

Olímpio Pimenta   Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Brasil. E-mail: [email protected].

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Nietzsche contra Darwin – FREZZATTI JÚNIOR (CN)

FREZZATTI JÚNIOR., Wilson Antonio. Nietzsche contra Darwin. São Paulo: Edições Loyola, 2014. 2ª edição ampliada e revista. Resenha de: RIBEIRO, Nuno. Cadernos Nietzsche, v.36 n.2 São Paulo jul./dez. 2015.

A relação entre os pensamentos de Nietzsche e de Darwin é complexa e multifacetada. Se, por um lado, encontramos referências a Darwin e ao darwinismo ao longo dos textos de Nietzsche, por outro lado, essas referências não são isentas de críticas. O livro Nietzsche contra Darwin, de Wilson Frezzatti Jr., publicado em 2014 e correspondente a uma segunda edição revista e ampliada, constitui-se como uma incursão pelas complexas relações entre o pensamento filosófico nietzschiano e os conceitos presentes nos escritos darwinianos. O livro encontra-se dividido em quatro capítulos que são precedidos por uma apresentação à segunda edição e por uma introdução e seguidos de uma conclusão.

Na “Apresentação à segunda edição” Frezzatti Jr. apresentanos as vicissitudes e questionamentos que levaram à redação de Nietzsche contra Darwin. O autor explica-nos que essa obra, publicada pela primeira vez em 2001 na decorrência de uma tese de mestrado defendida na Universidade de São Paulo sob a orientação da Professora Doutora Scarlett Marton, se enquadra no intuito originário de estudar a questão da doença e da saúde em Nietzsche, questionamento esse que conduziu, nas palavras de Frezzatti Júnior, a “investigar a presença de Darwin e do darwinismo na obra nietzschiana”. (p.13) O autor destaca também, antecipando os aspectos desenvolvidos ao longo do livro, que o ponto central das censuras nietzschianas à luta pela existência, seleção natural, seleção sexual e desenvolvimento da moral têm o seu eixo numa divergência entre Nietzsche e Darwin a respeito da concepção da vida. Enquanto para Darwin o impulso básico vital é a conservação, Nietzsche apresenta-nos a vida como um movimento de autossuperação contínua. A “Apresentação à segunda edição” relata ainda a importância do livro Nietzsche contra Darwin para posteriores estudos realizados por Frezzatti Jr. relativos ao papel da biologia na filosofia de Nietzsche, nomeadamente no seu livro A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia, publicado em 2006 na sequência do trabalho de doutorado do autor também defendido na Universidade de São Paulo sob a orientação da Professora Doutora Scarlett Marton.

Na “Introdução” ao livro Nietzsche contra Darwin, Frezzatti Jr., passando em revista diversos comentadores do pensamento nietzschiano, discute as múltiplas formas pelas quais se tem filiado o pensamento de Nietzsche ao darwinismo. De acordo com Frezzatti Jr., todas as formas pelas quais se tem filiado o pensamento nietzschiano ao darwinismo partilham de um fundo comum: o carácter genérico da aproximação entre o pensamento de Nietzsche e o de Darwin e a ausência de uma definição aprofundada do que seja o conceito nietzschiano de darwinismo. Com efeito, como nos diz o autor de Nietzsche contra Darwin, o darwinismo “assumiu diversos e vários sentidos conforme o lugar, a época e o autor”. (p.29) Assim, a definição do que seja o “darwinismo” para Nietzsche é uma condição prévia para a compreensão das relações entre Nietzsche e o darwinismo. Frezzatti Junior refere também que outra dificuldade da interpretação das relações entre o pensamento nietzschiano e o darwinismo diz respeito à circunstância de as referências diretas a “Darwin”, ao darwinismo e aos conceitos darwinistas não perfazerem um corpo coeso, sendo que a maioria delas se encontra nos escritos não publicados por Nietzsche. Seguindo a periodização metodológica das obras de Nietzsche apresentada por Marton, o autor refere ainda como facto significativo que mais de metade das referências se encontra no terceiro período da produção filosófica de Nietzsche (1883-1888), o que se constituiria como um indício da importância das considerações relativas ao darwinismo para a consolidação do pensamento maduro nietzschiano. Tecidas essas considerações, a “Introdução” de Nietzsche contra Darwin diz-nos que a discussão dos conceitos que Nietzsche nos apresenta como darwinianos deve ter por base a crítica a dois conceitos: primeiro, a “luta pela existência como conservação” (p.36); segundo, “a seleção natural como mecanismo de progresso da espécie humana”. (p.36)

O Capítulo 1 do livro Nietzsche contra Darwin, intitulado “Darwinismo e darwinismos”, procura fornecer o quadro conceptual a partir do qual se deve entender as considerações de Nietzsche relativas a Darwin e ao darwinismo. O capítulo começa com um esclarecimento relativo ao surgimento do termo “darwinismo”, uma noção que, de acordo com Frezzatti Jr., é mencionada pela primeira vez por Thomas Henry Huxley em Abril de 1860. A sequência do Capítulo 1, partindo de uma contextualização dos antecedentes do evolucionismo e fornecendo um relato do desenvolvimento histórico do “darwinismo”, apresenta alguns dos múltiplos sentidos que o termo darwinismo vai assumindo ao longo do século XIX, dando especial ênfase às noções de darwinismo social e de darwinismo como ideologia dos darwinistas. Frezzatti Jr. assinala também que, apesar de ser possível constatar tanto em Nietzsche como em Darwin a presença de aspectos antimetafísicos semelhantes relativos às ideias dominantes do século XIX (a recusa do criacionismo, do essencialismo, do finalismo e do determinismo newtoniano), porém, esses aspectos dizem respeito a determinações de pensamento muito gerais que não indicam com precisão o que está em causa na especificidade do pensamento de cada um desses pensadores. Assim, é no quadro da compreensão do que Nietzsche entende por darwinismo que o Capítulo 1 de Nietzsche contra Darwin procura fornecer a crítica de Nietzsche a Darwin e ao darwinismo. De acordo com Frezzatti Jr., a crítica de Nietzsche em relação ao darwinismo pode ser sintetizada em duas perguntas, que constituem o mote dos dois capítulos seguintes do livro: “1. Qual é o significado da crítica nietzschiana à luta pela existência de Darwin? 2. Qual é o significado da crítica que Nietzsche faz à seleção natural, seja em relação ao desenvolvimento orgânico, seja em relação ao desenvolvimento da moral?” (p.66)

O Capítulo2 de Nietzsche contra Darwin, intitulado “A crítica de Nietzsche à luta pela existência”, procura fornecer um enquadramento da visão nietzschiana sobre a luta pela existência darwiniana. O eixo central do Capítulo 2 assenta na oposição entre a luta pela vida darwiniana e a vida como autossuperação nietzschiana. De acordo com Frezzatti Jr., embora a noção de luta seja um elemento fundamental tanto no pensamento de Darwin quanto no de Nietzsche, ambos diferem no que concebem como sendo o elemento definidor da noção de luta. Conforme nos diz Frezzatti Jr.: “Ainda que, tanto para o filósofo alemão quanto para o cientista, a vida esteja baseada na luta, esta ocorre por motivos diferentes.” (p.71) Enquanto para Darwin a luta é entendida como luta pela sobrevivência, no sentido da conservação da vida e de produção de descendentes, para Nietzsche a luta ocorre não pela mera conservação da vida, mas antes para afirmação e expansão da força daqueles que combatem. A respeito da noção nietzschiana de luta, Frezzatti Jr. afirma ainda: “A conservação é apenas uma consequência indireta da busca por maior potência pelas forças do organismo: o vencedor desse conflito persiste.” (p.71) Assim, o elemento central da crítica de Nietzsche à luta pela existência de Darwin assenta na crítica que o filósofo alemão faz à noção de conservação subjacente ao pensamento do naturalista inglês. Nietzsche opõe à noção de conservação, como elemento central da luta pela existência, a noção de vontade de potência, como ponto fundamental da definição de luta.

No Capítulo 3 de Nietzsche contra Darwin, intitulado “A vida como superação contra a seleção natural”, Frezzatti Jr. esclarece o significado da crítica que Nietzsche faz à noção de seleção natural. De acordo com o Capítulo 3, a crítica nietzschiana à noção darwiniana de seleção natural tem como alvo a concepção que Darwin apresenta de seleção natural como preservação de variações favoráveis às espécies e recusa de variações desfavoráveis. Para Darwin, a seleção natural consiste na afirmação de que serão selecionadas e transmitidas aos descendentes as características vantajosas que permitem ao indivíduo sobreviver na luta pela vida. É justamente esta ideia da seleção das características vantajosas para a sobrevivência do indivíduo que é rejeitada por Nietzsche. De acordo com Frezzatti Jr., Nietzsche defende que são as características mais frequentes, e não as mais vantajosas, que são transmitidas à geração posterior. Para além disso, outro aspecto fundamental criticado por Nietzsche, que pode ser visto como uma consequência da afirmação darwinista segundo a qual a seleção natural seleciona as características vantajosas, diz respeito à ideia de progresso presente na seleção natural de Darwin. Segundo Frezzatti Junior, “Nietzsche declara que o darwinismo considera os processos evolutivos como progresso: o progresso é uma ‘ideologia darwinista’.” (p.107) O Capítulo 3 de Nietzsche contra Darwin apresenta dois motivos principais subjacentes à crítica nietzschiana da noção de progresso. O primeiro motivo consiste na ideia de que as formas mais elevadas surgidas no seio das espécies sucumbem face à superioridade numérica das outras formas. O segundo motivo assenta na afirmação de que a maior complexidade de uma forma implica a maior probabilidade da sua destruição.

Outro aspecto importante desenvolvido no Capítulo 3 de Nietzsche contra Darwin diz respeito à crítica nietzschiana ao progresso moral defendido por Darwin. Segundo Frezzatti Jr., apesar de a seleção natural darwinista não defender uma estrutura física ideal a ser atingida pelo organismo, o mesmo não acontece no que diz respeito à proposta de Darwin no campo da evolução moral. Segundo Frezzatti Jr., a moral é para Darwin uma qualidade com valor intrínseco. É precisamente neste ponto que Nietzsche se diferencia de Darwin ao pôr em causa, com o método genealógico, o valor dos valores morais. A defesa darwiniana do valor da compaixão, como elemento de conservação das espécies, é para Nietzsche sintoma de decadência, permeada pelo instinto de rebanho que luta apenas pela conservação. A uma moral da conservação de cunho darwiniano Nietzsche antepõe uma moral da criação, entendida como superação dos valores do rebanho e criação de novos valores.

O Capítulo 4 de Nietzsche contra Darwin, intitulado “Nietzsche contra a biologia de sua época: Haeckel, Lamarck e Darwin”, constitui-se como uma novidade na segunda edição desse livro, como clarifica Frezzatti Jr. na “Apresentação à segunda edição”. Esse capítulo encontra-se dividido em duas partes. A primeira parte, intitulada “1. Nietzsche contra Haeckel: aspectos da crítica ao mecanicismo no século XIX”, incide, como o próprio título indica, sobre as críticas que Nietzsche faz às teorias mecanicistas suas contemporâneas. Partindo de uma breve apresentação do desenvolvimento das teorias mecanicistas, com especial ênfase nos princípios mecanicistas subjacentes à filosofia monista de Haeckel, Frezzatti Jr. destaca que a crítica de Nietzsche ao mecanicismo da sua época se sintetiza naquilo que o filósofo alemão denomina de “psicologia grosseira”, a qual, de acordo com o autor de Nietzsche contra Darwin, se apoiaria em duas falsas crenças: em primeiro lugar, a crença na causalidade, isto é, a convicção de que para cada efeito existe algo, um sujeito, que é sua causa; em segundo lugar, a crença na existência de “átomos”, isto é, de unidades últimas e indivisíveis. Estas duas crenças denunciadas por Nietzsche, seriam, de acordo com Frezzatti Jr., subsidiárias dos preconceitos subjacentes à crença no “Eu” considerado como realidade dotada de vontade e unitária. Assim, enquanto a crença na causalidade seria o resultado de uma projeção para o mundo exterior da falsa crença na vontade do sujeito como causa das suas próprias ações, a crença em “átomos” da natureza seria, em contrapartida, resultado da projeção da falsa crença no sujeito como realidade unitária.

A segunda parte, intitulada “2. A construção da oposição entre Lamarck e Darwin e a vinculação de Nietzsche ao eugenismo”, é consagrada à elucidação e desmascaramento de algumas das teses que vinculam o pensamento nietzschiano a teorias eugenistas. Começando com a elucidação dos elementos comuns e de diferenciação entre o lamarckismo e darwinismo, a segunda parte do Capítulo 4 prossegue com a discussão acerca da análise de Claire Richter, na sua obra Nietzsche e as teorias biológicas contemporâneas, relativa à presença das teorias evolutivas no pensamento nietzschiano. De acordo com Frezzatti Jr., Richter defende a presença de um “lamarckismo semi-inconsciente” na obra de Nietzsche, isto é, o autor alemão seria um lamarckista sem o saber, uma vez que não teria lido diretamente as obras de Lamarck (assim como não teria lido também as de Darwin), considerando ao mesmo tempo a impropriedade daqueles que consideram Nietzsche como darwinista. Através de uma detalhada exposição da argumentação de Claire Richter na sua obra Nietzsche e as teorias biológicas contemporâneas, Frezzatti Jr. destaca que a classificação de Nietzsche como lamarckista serve o propósito implícito, presente na obra de Richter, de classificar o pensamento do autor alemão como eugenista, intuito esse que visaria o propósito da própria autora em divulgar ideias associadas ao eugenismo.

Na “Conclusão” de Nietzsche contra Darwin encontramos justamente o desmascaramento da ideia de que o pensamento de Nietzsche seria eugenista. Conforme nos diz Frezzatti Jr.: “Vários excertos da obra do filósofo alemão mostram que sua associação com ideias racistas, antissemitas ou relativas a um ‘arianismo’ ou ‘germanismo’ não passa de um erro grosseiro.” (p.206) Assim, segundo o autor de Nietzsche contra Darwin, os ideais eugenistas de uma raça pura ou superior, seriam do ponto de vista nietzschiano, estratégias de conservação de tipos decadentes. Por outro lado, a ideia de progresso em vista de um tipo ideal fixo que deva ser o ponto culminante do desenvolvimento da humanidade seria igualmente contrária à concepção nietzschiana de vida como autossuperação. O organismo e os seus impulsos, afetos e instintos são movidos pela continua autossuperação, a qual se dá não nível coletivo, mas a nível individual. Desta forma, a proposta eugenista de um tipo fixo a ser alcançado é, segundo Frezzatti Jr., inteiramente contrária ao quadro conceptual presente no pensamento nietzschiano.

Assim, todos os aspectos que temos vindo a expor permitemnos considerar o livro Nietzsche contra Darwin, na sua segunda edição revista e ampliada, como um importante contributo não só para os estudos relativos às relações entre Nietzsche e a tradição darwinista, mas também para elucidação de algumas das mais importantes conexões entre o pensamento nietzschiano e a biologia, abrindo o caminho para futuras investigações, debates e questionamentos sobre essas temáticas.

Nuno Ribeiro – Doutor em filosofia pela Universidade Nova de Lisboa. Atualmente realiza pós-doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Endereço eletrônico: [email protected].

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A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de | Michel Foucault

Resultado de sua aula inaugural no Collège de France em 1970, A Ordem do discurso, constitui a obra no qual Michel Foucault se debruçará, sobre a produção dos discursos que permeiam na sociedade, assim como quem pode atuar na produção dos mesmos. A obra pode ser dividida em duas partes, na primeira, Michel Foucault expõe como se dá a produção dos discursos, os procedimentos que atuam no controle de sua produção, assim como os procedimentos que visam delimitar, os sujeitos que podem atuar na produção discursa. Já na segunda parte, o pensador anuncia como se dará seus trabalhos de investigações no decorrer dos cursos no Collège de France, apontando para aquilo que ele denominará de “conjunto crítico” e “conjunto genealógico”. Exploraremos cada uma dessas duas partes.

Partimos no momento à análise da primeira parte da obra. Foucault percebe o discurso como “reverberação” de uma verdade que nasce diante dos olhos do próprio sujeito. São enunciados materialmente existentes, podendo ser tanto escrito como pronunciado, proposições que adquirem caráter de verdadeiras passando a constituir princípios aceitáveis de comportamento (FOUCAULT:2013). Leia Mais

A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial – MASSIMI (HU)

MASSIMI, M. (org.). A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 298 p. Resenha de: DILLMANN, Mauro. Literatura religiosa e jesuítas no Brasil Colonial. História Unisinos 18(3):645-648, Setembro/Dezembro 2014.

O livro aqui resenhado é uma análise psicológica – mas também histórica – da obra História do Predestinado Peregrino e de seu Irmão Precito escrita pelo padre jesuíta Alexandre de Gusmão2 (1629-1725) e publicada inicialmente em 1682.

Organizado por Marina Massimi, professora titular do Departamento de Psicologia da USP, a obra conta com sete textos, incluindo uma grande introdução escrita pela própria organizadora, quatro textos desta em coautoria com “jovens pesquisadoras” – três alunas do curso de Psicologia da USP, Lidiane Ferreira Panazzolo, Nayara Aparecida Saran e Lívia Tieri Kuga –, com uma mestre em Psicologia pela mesma Universidade – Maira Allucham Gulart Naves Trevisan Vasconcellos – e, por fim, um texto de um pós-doutorando em Cultura Contemporânea na UFRJ – José Eduardo Ferreira Santos.

A literatura investigada é uma novela do padre Gusmão que aborda a peregrinação de dois personagens, um chamado Predestinado e outro chamado Precito, que escolhem diferentes caminhos, percursos de vida, representados, respectivamente, pela viagem do Egito a Jerusalém (o paraíso, a salvação) ou do Egito à Babilônia (o inferno, a condenação), procurando demonstrar metaforicamente que a peregrinação representa o próprio percurso existencial e as escolhas de cada sujeito ao longo da vida.

Esta novela do padre Gusmão – dedicada ao peregrino e missionário Francisco Xavier Apóstolo do Oriente (1506-1552) – se configura, segundo Massimi (2012, p. 52), enquanto um compêndio da visão antropológica e dos saberes psicológicos elaborados pela Companhia de Jesus na América Portuguesa, cujo enredo é a peregrinação como figura alegórica da vida. Os dois personagens, Predestinado e Precito, aspirando à felicidade, iniciam sua peregrinação; o primeiro em direção a Jerusalém, em busca da salvação, segue com sua esposa, a Razão, com a qual tem dois filhos, Reta Intenção e Bom Desejo; o segundo segue em direção à Babilônia, em busca de satisfações materiais, com sua esposa Própria Vontade e seus filhos, Mau Desejo e Torta Intenção. A intenção de Gusmão, segundo Massimi e Panazollo (in Massimi, 2012, p. 203), ao intitular seu livro como a história de um Peregrino, servindo aos propósitos contrarreformistas, era a de recuperar fiéis perdidos, no sentido de atrair leitores, uma vez que alguns anos antes, em 1678, John Bunyan, um autor protestante, publicou O Peregrino.

Podemos incluir o livro de Gusmão, analisado por Massimi e outros, na categoria que chamamos “manuais de devoção”, obras da literatura religiosa moderna destinadas a difundir a doutrina cristã e os modelos de comportamento moral esperados para a vida virtuosa, a boa morte e a salvação da alma. Em um dos textos (O percurso de Predestinado Peregrino: encontros, lugares e imagens edificantes na História de Alexandre de Gusmão) do livro, as autoras, Lidiane Ferreira Panazzolo e Marina Massimi, reconhecem a obra do padre como “uma espécie de manual de conduta provavelmente utilizado nos colégios jesuítas” (p. 204). Na conclusão deste artigo, as autoras destacam que “havia poucos exemplares originais do livro”.

Pude constatar, em um prévio levantamento nos catálogos de arquivos de Portugal e do Brasil, a existência de edições de 1682, 1685 e 1728. Na Biblioteca Nacional de Portugal, constam três exemplares de 1682, formato livreto de mão, como quase todos manuais de devoção do final do século XVII e do século XVIII, com 15 cm, impresso na oficina Miguel Deslandes; quatro exemplares microfilmados da edição de 1685, publicada pela oficina da Universidade de Évora, e um exemplar de 1728, indicando ser de quarta edição, impresso à custa do mercador de livros Domingos Gonçalves na oficina de Felippe de Sousa Villela. Por esta mesma oficina e mesma edição, existem exemplares na Biblioteca Joanina, em Coimbra, e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, indicando ainda pertencer à Coleção da Real Biblioteca, o que demonstra o sucesso da obra no período e a circularidade da mesma entre a América Portuguesa.3 Além da interessante análise psicológica com enfoque histórico, o livro tem o mérito de apresentar a íntegra da obra analisada, transcrita com português atualizado, facilitando o acesso e a consulta deste documento para outros pesquisadores e interessados em geral. Além disso, as autoras “traduziram” o texto do padre Gusmão em dois interessantes anexos para a compreensão do texto.

Um deles é uma árvore genealógica dos personagens, o outro são dois mapas com descrições, rabiscos, setas e desenhos literalmente feitos de modo manuscrito, esquematizando a peregrinação de cada um dos personagens.

Ainda que uma estratégia didática e criativa das autoras, tal espécie de “mapa conceitual” poderia ter sido feita com melhores recursos gráficos, podendo manter a mesma diagramação do manuscrito, a fim de apresentar ao leitor uma melhor compreensão e leitura analítica.

Na construção da novela, em que Gusmão aborda a prática da peregrinação como a busca de um sentido de vida, as autoras identificam influências de Inácio de Loyola (Exercícios espirituais) e de Antônio Vieira (sermão Undécimo do seu dia). Loyola estaria presente no exemplo do uso pedagógico que fez de imagens para veicular a mensagem cristã e para agir na subjetividade do leitor, especialmente na memória e na imaginação, de modo a facilitar a meditação (Massimi, 2012, p. 24). Já Vieira destacaria o mundo em que se anda, a peregrinação, designando-a como “aquisição de experiência da qual se tira um ensinamento, uma moral”, diferenciando-a do desterro, um simples caminhar sem aprendizagem alguma (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 222-223).

A obra do padre Gusmão foi entendida como uma “metáfora da existência humana”, imagem muito empregada no período moderno para “comunicar conceitos”, pois as alegorias atuavam como “dispositivos retóricos” (palavras eficazes na ação do dinamismo psíquico dos destinatários) capazes de provocar atividades sensitivas e imaginativas (Massimi, 2012, p. 18, 23, 28). O uso destas alegorias, metáforas e recursos retóricos estaria de acordo com a pretensão do padre de “mover a curiosidade do leitor”, muito comum nas obras devotas do período moderno.

Essa “novela alegórica” estabelece uma relação de diálogo com o leitor, enquanto manual de instrução para ser (re)lido inúmeras vezes, que exemplifica os “requisitos para chegar à salvação” com suas dificuldades e riscos, tornando-se “mais próxima da vivência dos leitores” (Panazzolo e Massimi in Massimi, 2012, p. 207). A eficácia da proposta apresentada pelo padre estaria na disposição do leitor e na importância que o mesmo atribuiria à leitura (passatempo ou proveito), de modo que somente a leitura “para proveito” seria de grande “lição espiritual” (Massimi, 2012, p. 46).

O livro organizado por Massimi é uma contribuição à História do Brasil, especialmente à historiografia do período colonial, por considerar e interpretar a sensibilidade religiosa jesuíta no contexto de expansão da moral tridentina e da retórica dual barroca (paraíso-inferno, salvação-condenação, verdade-mentira, bem-mal), bem como as práticas de leitura dos manuais de devoção e sua circulação pela América Portuguesa, como se percebe, sobretudo, nos elucidativos textos de Marina Massimi (Texto introdutório) e de Nayara Aparecida Saran e Massimi (A peregrinação como percurso anímico: o percurso da Palavra e do Entendimento). No entanto, não há muitas referências ou exploração do contexto colonial em si, sobretudo em relação aos aspectos sociopolíticos, econômicos ou culturais da Colônia, das cidades por onde possivelmente o texto tenha circulado, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife. Além disso, é possível dizer que os primeiros textos do item “Leituras da novela à luz da história dos saberes psicológicos e da história da cultura”, destacado no sumário, são construídos com repetição dos argumentos, que podem ser encarados como reforço intencional na análise da obra de Gusmão.

Na análise que empreendem do manual do padre Alexandre de Gusmão, o objetivo parece ser plenamente alcançado, qual seja, o de destacar a pretensão do manual de “evidenciar a importância do cuidado de si” e os “efeitos do descuido”, enfatizando o “conhecimento da pessoa e prática de orientação” do sujeito (Massimi, 2012, p. 34). É nesse sentido que, ao longo de todos os textos, os autores enfatizam a importância atribuída pelo padre Gusmão ao processo do desengano, que implicava o uso consciente da razão, à confiança na razão para atingir um entendimento considerado verdadeiro da realidade e para ordenar a vontade,4 levando ao discernimento. Esse processo de desengano seria facilitado na prática do exame de consciência e nas demais práticas religiosas, como a confissão, já que eram acompanhadas de recursos culturais como imagens sagradas, pinturas, músicas, etc.5 Na novela de Gusmão, “Desengano” seria um personagem que “fixa os olhos na verdade” (Massimi, 2012, p. 42, 48), e o desenganado seria aquele que reconhecesse a enganação do mundo, que conseguisse visualizar as virtudes do céu desvinculando-as das aparências e prazeres imediatos do mundo terreno (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 230).

No artigo A experiência corporal na História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito, a relação corpo e alma foi abordada por Lívia Tieri Kuga e Marina Massimi para enfatizar as metáforas do corpo que remetem aos sentimentos dos personagens (coração, olhos, carne, vestimentas/trajes e corpo/alma), baseadas na filosofia clássica e escolástica (Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), de modo a demonstrar que as escolhas feitas em vida modificam não apenas o espírito, mas também o corpo de cada um. As autoras elaboraram um interessante índice ao final do capítulo, na medida em que referenciaram todas as expressões, metafóricas ou não, em que aparecem as estruturas corporais, como, por exemplo, “coração a ouvir”, “disse em seu coração”, “coração humilde”, etc.

Esse vínculo corpo/alma aparece ao longo dos textos que compõem o livro. Massimi destacou as “dimensões do dinamismo” do sujeito que seriam o corporal, o psíquico e o espiritual. O corporal estava no “gesto físico de peregrinar”, cujo movimento se vinculava aos estudos dos corpos e às teorias médicas acerca dos temperamentos.

O espiritual, o “núcleo temático central da novela”, uma vez que a leitura implicaria “envolvimento” e atitudes espirituais como a devoção – o apelo ao “devoto leitor” – estava no aprendizado de virtudes divinas, como a piedade, a obediência e a perseverança. Por fim, o dinamismo psíquico relacionava-se ao “funcionamento das potências da alma, suas operações, suas doenças e seus remédios”. As potências principais eram o entendimento e a vontade, cujo cultivo era de fundamental importância para o “bem viver” e para identificar as “enfermidades” da alma (Massimi, 2012, p. 34-37).

Massimi destaca que, no século XVIII, foi comum a presença do médico espiritual para a ordenação da vida pessoal dos fiéis, a partir da obra de Cláudio Acquaviva (1543-1615), Normas para a cura das enfermidades do ânimo (1600), que definiu os “vários tipos de doenças espirituais e de remédios para cada doença”; daí, então, o rótulo de medicina da alma muito recorrente na literatura jesuíta.

A atuação jesuíta, aliás, estaria vinculada à medicina do ânimo, à pregação e à pedagogia. Por “medicina da alma” a autora entende “um conhecimento do ser humano e de sua dinâmica psicológica que visa à adaptação deste ao contexto social de inserção” (Massimi, 2012, p. 50).

Marina Massimi assina outro texto com Maira Allucham Goulart Naves Trevisan Vasconcellos, que analisa outra obra que trata de peregrinação. Trata-se do Compêndio narrativo do Peregrino da América, escrito pelo padre Nuno Marques Pereira (1652-1728) e publicado em 1728.6 As autoras indicam a “grande circulação” e as várias reimpressões do manual do padre Pereira, nos anos de 1731, 1752, 1760 e 1765, mas não indicam quaisquer informações sobre os arquivos em que se encontram.7 No entanto, destacam que utilizam a sexta edição, publicada pela Academia Brasileira de Letras em 1939. A novela de  Pereira conta a viagem de um peregrino da Bahia a Minas Gerais no início do século XVIII. O Compêndio teria a finalidade de instruir e divertir o leitor por meio de contos e instruções de “como se deve viver para manter corpo e alma saudáveis e salváveis” (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 263). Para persuadir quanto aos preceitos de bem viver, Nuno Pereira buscava seus argumentos na Sagrada Escritura, em São João Crisóstomo e em Santo Agostinho.

Tal como a novela de Gusmão, a peregrinação é tanto o percurso geográfico percorrido pelo personagem principal – o Ancião – quanto o caminho existencial que conduz à eternidade (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 267), no qual era oportunizado ao homem o conhecimento de si e o desenvolvimento de virtudes.

Vale uma descrição um pouco mais apurada sobre a obra de Nuno Pereira – embora ocupe apenas um artigo do livro – para demonstrar a proposta do livro, que é a de apresentar os saberes dos jesuítas no Brasil Colonial. Se havia, no Compêndio, uma relação entre o bem viver e o bem morrer, da mesma forma havia doenças do corpo e da alma. A tristeza era um mal que, por exemplo, traria efeito na saúde do corpo, levando muitas vezes à morte súbita (uma má morte). As paixões eram empecilhos ao uso prudente da razão, e a demasiada tristeza levaria a doenças como lepra, sarnas, magreza, etc., cujos remédios variavam entre conversas, cheiros, ar do campo ou do mar e música. Aconselhava-se alimentação moderada, sono adequado, consumo de vinho, exercícios físicos, penitência, paciência, jejuns e disciplina. A salvação ou condenação da alma após a morte era determinada pela conduta na existência mundana (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 271-278). O Compêndio, tal como A novela História, recebeu infl uência dos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola e se apoiava nos escritos de Tomás de Kempis.8 O último artigo a integrar o livro organizado por Massimi é de José Eduardo Ferreira Santos (Peregrinos e viajantes: o homem em movimento, rumo ao destino, através da cultura popular e da música brasileira), um pequeno texto que, exceto por tratar de um tema em comum – a peregrinação, tomada genericamente como sinônimo de viagem e de romaria – destoa do objetivo geral da obra.

O texto de Santos busca identificar o peregrino/romeiro/ viajante na “cultura brasileira”, especialmente na música popular, o que é feito não sem algum juízo de valor, como ao se referir à canção “A triste partida”, de Luiz Gonzaga, destacando ser “muito famosa” e “belíssima”, que “revela uma das características mais complexas do homem moderno, que é a perda de suas raízes ocasionada pelas difíceis condições sociais” (Santos in Massimi, 2012, p. 288-289).

A obra organizada por Marina Massimi atinge plenamente os objetivos propostos, demonstrando a contribuição de autores da Companhia de Jesus no contexto luso-brasileiro da Idade Moderna para a “criação de formas, de métodos e de justificativas de um tipo de conhecimento da subjetividade e do comportamento humano” que deram origem à psicologia moderna (Massimi, 2012, p. 17).

Mesmo sem seguir uma perspectiva metodológica estritamente histórica, o livro é uma importante refl exão e contribuição à atual historiografia dedicada às práticas de leitura e à circulação, no Brasil, de obras religiosas editadas e publicadas inicialmente em Portugal da época moderna, bem como voltada à análise dos discursos cristãos para instruir a vida devota, para conduzir o fiel no caminho do bem viver, para exemplificar as condutas morais que garantiriam uma boa morte e uma eternidade feliz.

Referências

DAVIS, N.Z. 2001. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo, Companhia das Letras, 300 p.

DELUMEAU, J. 1989. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo, Pioneira, 301 p.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2013. Os sete pecados capitais e os processos de culpabilização em manuais de devoção do século XVIII. Topoi, 14(27):285-317.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2012. “A Vossa graça nos nossos sentimentos”: a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII. Revista Brasileira de História, 32(63):83-118. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882012000100005 PERIER, A. 1724. Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma, Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 439 p.

WITTMANN, R. 1999. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: G. CAVALLO; R. CHARTIER (org.), História da leitura no mundo ocidental. São Paulo, Ática, vol. 2, p. 135-164.

Notas

2 Alexandre de Gusmão nasceu em Lisboa em 1629 (português, embora a autora se refira ao mesmo como “baiano” [p.18]), foi diretor do Colégio do Menino Jesus de Belém em Cachoeira do Campo, próximo a Salvador, na Bahia, local onde viveu e morreu em 1724. Foi autor de inúmeras outras obras sobre a “arte de viver”, como Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia [1685]; Escola de Belém, Jesus nascido no Presépio [1678]; Menino Christão [1695]; Maria Rosa de Nazaret nas montanhas de Hebron, a Virgem nossa Senhora na Companhia de Jesus [1715]; Eleição entre o bem e o mal eterno, O corvo e a pomba da Arca de Noé no sentido alegórico e moral [1734] (Massimi, 2012, p. 18).

3 É possível conferir os catálogos on-line em: http://www.bnportugal.pt; http://www.uc.pt/bguc; http://www.bn.br/portal.

4 Considerando que o público leitor (e ouvinte) das obras manuais de devoção era, em grande medida, feminino, é importante considerar a observação feita pela historiadora Natalie Davis para as características atribuídas às mulheres na França do século XVI. Elas eram caracterizadas com o termo “imbecillité”, que designava “a fraqueza mental e de vontade” (Davis, 2001, p. 126). Sobre a difusão maior da leitura entre o público feminino e para as instruções voltadas às mulheres, ver Wittmann, 1999, p. 143; Fleck e Dillmann, 2012, e Eliane Cristina Deckmann Fleck, Mauro Dillmann. “Remédios para amansar a fera”: as regras para o bem viver e as orientações para os mal casados viverem em paz em um manual de devoção do século XVIII (texto inédito).

5 Reflexões sobre o “desengano” parecem ter sido foco comum de muitos jesuítas, principalmente daqueles dedicados à pregação e à conversão. Um exemplo interessante, nesse sentido, é a obra do jesuíta italiano Alexandre Perier, que no final do século XVII atuou no Brasil, publicando em Lisboa, no ano de 1724, um manual que leva no título a palavra “desengano”. Alexandre Perier, Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma: Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 1724. Uma análise desta obra pode ser conferida em Fleck e Dillmann, 2013.

6 As autoras indicam a influência da obra de Gusmão em Nuno Marques Pereira, mas destacam que teria sido retomada “quase cem anos depois”, quando, na verdade, entre a primeira edição de História do Predestinado Peregrino [1682] de Gusmão, e o Compêndio [1728], de Pereira, não chegou a se passar meio século.

7 No catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi possível localizar quatro exemplares, dois de 1760, um de 1767 e um de 1939. Todavia, a obra continuou sendo editada, considerando que no Acervo da Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo/RS, existe edição de 1988 pela Academia Brasileira de Letras.

8 Tomás de Kempis (1379-1471) era alemão, autor da obra A imitação de Cristo, uma das que conheceu extraordinária difusão no início do período moderno, segundo Delumeau, e que recebeu impressão em diversas línguas, “umas sessenta vezes antes de 1500” (Delumeau, 1989, p. 77).

Mauro Dillmann – Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande. Campus São Lourenço do Sul Rua Marechal Floriano Peixoto, 2236, Centro 96170-000, São Lourenço do Sul, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos – DOMINGUES (SS)

DOMINGUES, Ivan. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Edições Loyola, 2012. Resenha de: SILVA, Evaldo Sampaio da. O grau zero da diferença? Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 3, p. 591-9, 2014.

Quando publicou O grau zero do conhecimento, Ivan Domingues se defrontava admiravelmente com um objeto ao qual iria destinar toda a sua carreira desde então, a saber, o problema da fundamentação das ciências humanas, não por acaso o subtítulo dessa obra inaugural. Oriundo de uma tese de doutorado defendida na Sorbonne, o livro era inspirado por uma senda aberta sobretudo por As palavras e as coisas, cujo autor, Michel Foucault, Domingues teve a oportunidade de acompanhar in loco em dois cursos ministrados no Collège de France. Os cursos, intitulados “Le souci de soi” e “L’usage des plaisirs”, foram ministrados por Foucault, respectivamente, em 1981 e 1983, na cátedra de História dos Sistemas de Pensamento. Em 1982, Domingues também teve a oportunidade, no mesmo Collège de France, de acompanhar o último curso que Claude Lévi-Strauss ministrou, antes de sua aposentadoria, na cátedra de Antropologia social. Mas Domingues (1991) não pretendia simplesmente dar continuidade ao instigante programa de estudos entrevisto por Foucault, senão subvertê-lo em seu próprio solo conceitual ao propor que a noção de episteme – moderna – que surge das investidas genealógicas e arqueológicas do mestre francês não seria apenas uma, mas várias, e que, por isso, quanto às ciências humanas cultivadas entre os séculos XVII e XIX, poderíamos discriminar pelo menos três estratégias discursivas epistemicamente díspares, no caso, a “essencialista”, a “fenomenista” e a “historicista”. A estratégia essencialista se edificaria em torno da metafísica e do método lógico-metafísico (Port Royal) e metafísico-matemático (Spinoza); o discurso fenomenista fora instituído pela física, sobretudo com o método empírico-dedutivo (Montesquieu) e o matemático-experimental (Smith); já a terceira estratégia discursiva viria a lume dos estudos históricos conduzidos pelo método positivo-comparado (Bopp) e dialético-hipotético-dedutivo (Marx). Para justificar tais desconfianças, empreendeu-se ali uma leitura ampla e erudita por áreas como a economia, a linguística, a política e a história. O resultado foi “um ensaio sobre as diferentes formas de pensar que conformaram a Episteme moderna” (Domingues, 1991, p. 9) no qual se buscou explicitar, com base naquelas estratégias discursivas e seus respectivos métodos, o nascimento do “espírito geométrico”, do “espírito positivo” e do “espírito histórico”, os quais representam as distintas e irredutíveis figuras de pensamento que constituíram as ciências humanas no período. Dessas figuras de pensamento, o espírito ou consciência histórica, com sua inclinação relativista e niilista, instauraria uma conjuntura na qual o problema mesmo da fundamentação do conhecimento e, por conseguinte, da fundamentação das ciências humanas, cai em descrédito, sendo preciso doravante pensá-lo em “bases absolutamente novas” (1991, p. 10).

Após alguns trabalhos nos quais aquilatou e repercutiu as conclusões daquela primeira grande investida (por exemplo, O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, de 1996, reeditado posteriormente em francês em 2000), Domingues publica o Epistemologia das ciências humanas, Tomo I: positivismo e hermenêutica, fruto de sua tese de habilitação para o cargo de Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Se a obra O grau zero visava o problema da fundamentação das ciências humanas quando de sua “pré-história” moderna e concluía pela necessidade de uma reconsideração de toda a problemática, chegara o momento oportuno de procurar tal reconsideração nos paradigmas e modelos das ciências do homem no século XX. Nesse ínterim, tratou-se ali das “formas de racionalidade e estratégias discursivas” (Domingues, 2004, p. 17) pelas quais Émile Durkheim (o “positivista”) e Max Weber (o “hermeneuta”) delinearam duas das principais vias das chamadas “ciências sociais” e, por conseguinte, de como a concretização destas contribui decisivamente para repensar a questão fundacional. Obteve-se assim um estudo de fôlego no qual o leitor se depara com duas concepções paralelas de “construtivismo social”, a saber, o projeto durkheimiano para instaurar a sociologia como ciência empírica autônoma, especialmente com seus estudos sobre o suicídio, e o projeto weberiano para fundar a sociologia como uma “ciência compreensiva objetivante”, principalmente com suas pesquisas de sociologia da religião. Mas o fio condutor para tal investigação adveio de “uma pequena e instigante passagem de Lévi-Strauss segundo a qual o grande desafio das ciências humanas é pensar a diferença”, ou seja, conciliar no pensamento fenômenos irredutíveis e por vezes conflitantes. Isto levou o epistemólogo à conjectura de que, no domínio do social, “a diferença é primitiva e a identidade derivada” (cf. Domingues, 2004, p. 22). Por tal conjectura é possível esclarecer, sob nova chave de leitura, por que o primado da categoria de identidade impediu as principais estratégias discursivas (essencialista, fenomenista, historicista) que permearam a pré-história das ciências do homem de responderem apropriadamente ao problema do fundamento e como isso levou essa questão a cair em descrédito. Além disso, auferir as várias maneiras distintas de tratar a diferença, a oposição e a contradição no âmbito do social permite ao epistemólogo enfim pensar o problema da fundamentação das ciências humanas em bases absolutamente novas. Para tanto, cunhou-se um repertório de conceitos e perguntas que lhe permitiram apreciar e comparar as doutrinas daqueles protagonistas das ciências sociais, tais como as chamadas tipologias das formas de racionalidade (que discriminam as articulações dicotômicas, triádicas, ramificadas etc., pelas quais são discutidas a diferença e a diversidade social), o tripé metodológico descrição / explicação / interpretação (que permite ponderar as dificuldades de ajuste entre o discurso, a teoria e a pesquisa empírica), a noção de objetividade nas ciências humanas proposta ou apenas pressuposta pelas abordagens examinadas (e como aquela as conduziu à condenação dos expedientes introspectivos e a tratar os fenômenos sociais como um conjunto de “formas objetivadas”) (2004, p. 17-9). A rigor, essa empreita sequer exigia que um Weber ou um Durkheim se comprometessem inteiramente com a primazia da diferença quanto às ciências do homem, sendo o suficiente que naqueles se encontrassem elementos apropriados para justificar conceitual e historicamente essa orientação.

Com Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos, Domingues alcança o ponto nevrálgico de sua iniciativa epistemológica através de uma leitura abrangente e penetrante do maior antropólogo francês. Previsto inicialmente como o segundo tomo de Epistemologia I – e enfim escrito e publicado de modo independente –, este novo trabalho continua o projeto de refletir sobre a fundamentação das ciências humanas a partir do primado da diferença, porém tomando por objeto uma disciplina em particular, a antropologia, ou, mais precisamente, a antropologia estrutural. Mas por que, após um livro dedicado às estratégias discursivas exemplares das protociências humanas e outro concentrado nas principais abordagens positivistas e hermenêuticas das ciências sociais, Domingues escreve um terceiro ato que consiste em um estudo tão somente da antropologia estrutural de Lévi-Strauss? Em primeiro lugar, porque, como dito, fora uma passagem de Lévi-Strauss que fornecera a gazua para adentrar nas abordagens positivistas e hermenêuticas, sendo ele, portanto, uma referência primordial no percurso ora ensejado. Em segundo lugar, porque, como se verá a seguir, a urdidura do livro pretende mostrar como a antropologia estrutural lévi-straussiana – da qual a análise dos mitos representa o coração selvagem do sistema – parece fornecer ao epistemólogo o caminho mais fecundo, a despeito de seus obstáculos e riscos, para a fundamentação das ciências humanas.

O cerne de Lévi-Strauss e as Américas é composto por uma introdução de caráter programático e metodológico, seis capítulos temáticos e uma breve conclusão. A introdução repõe o problema da fundação das ciências humanas e, se é verdade que em nada contradiz ao programa geral redigido nos prefácios dos trabalhos anteriores, alcança um esclarecimento metódico superior. Novas perguntas sobre a questão fundacional incitam à distinção entre o “fundamento histórico ou arqueológico” (archaios), diacrônico e facultado à história ou sociologia da ciência, e o “fundamento epistemológico ou arquitetônico” (arché), conduzido pela ideia de princípio ou ponto de partida e da alçada da epistemologia da ciência (p. 15). Enquanto a história ou sociologia da ciência estudam as instâncias sancionadoras de um campo disciplinar sobretudo em seus aspectos públicos e institucionais, à epistemologia cabe inquiri-las em função do âmbito conceitual e sincrônico. O exame epistemológico dessas instâncias sancionadoras quando de uma ciência empírica requer uma atenção não apenas para o seu modus cognoscendi, porém igualmente para seu modus operandi (cf. p. 11), uma vez que a coerência interna do discurso precisa ser equilibrada com os procedimentos pelos quais os cientistas levam adiante suas pesquisas e assim constituem seus procedimentos de prova e contraprova. Daí que o problema da fundação das ciências humanas tenha por objeto um discurso científico e não somente proposições ou cadeias linguísticas, o que incita o epistemólogo a adotar uma via alternativa e polêmica àquelas comumente franqueados pela filosofia analítica, o positivismo lógico ou a filosofia da ciência de orientação popperiana. Dissonante ao exame “externalista” das instâncias sancionadoras públicas e institucionais ou às análises “internalistas” das proposições e das cadeias linguísticas, a pergunta pela cientificidade de uma ciência humana conduz a um estudo sobre como a coerência (conceitual) de um campo disciplinar se constitui em meio aos procedimentos pelos quais os próprios cientistas ratificam instâncias sancionadoras (históricas). Uma tal epistemologia histórica e conceitual da ciência se aproxima de autores como Bachelard, Canguilhem, Kuhn e permite refletir tanto o percurso já concluído por Domingues em trabalhos anteriores quanto aquele porvir, a saber, o estudo da cientificidade da antropologia estrutural.

Enquanto metadiscurso, a epistemologia reivindica que seu discurso-objeto tenha obtido certa estabilidade em sua prática teórica e institucional, a despeito de seus antagonismos. Constata-se que “houve um tempo (…) em que a antropologia foi considerada uma disciplina exótica e uma espécie de chiffonière das ciências humanas” e que, posteriormente, “já consolidada e com bastante lastro, a disciplina ganhou aura de prestígio e o status de ciência-piloto das ciências humanas” (p. 18). Que tal prioridade se tenha obtido sobretudo pela contribuição de Lévi-Strauss ratifica que o problema da fundamentação seja então posto em particular para essa disciplina-piloto e sob a perspectiva de seu mais destacado representante. Como nos seus primórdios a antropologia estrutural competia com a antropologia social britânica (cujos principais expoentes eram Malinowski e Radcliffe-Brown) e a antropologia cultural americana (com Boas, Kroeber, Tylor, Löwie e Morgan), dedica-se um primeiro capítulo (“O estruturalismo e as ciências humanas”) a explicar como o paradigma estrutural impactou as ciências humanas e, em particular, a antropologia lévi-straussiana. Retoma-se, inicialmente, a distinção entre a noção de “estrutura”, já registrada em francês desde o século XVI a partir do latim structura, que significava “construir, edificar e erigir (sentido próprio e figurado), e também, desde os tempos romanos, empilhar ou dispor em camadas”, e a noção de “estruturalismo”, que “ao incorporar novas e importantes significações, como disposição, forma, ordem e organização, chega às ciências humanas e sociais” (p. 27-8). Desse modo, pode-se resguardar a anterioridade e independência da noção de estrutura quanto ao estruturalismo, o que permite equilibrar a flutuação semântica deste termo e recontar o seu surgimento por três etapas: a proto-história, que, nos anos 1940, associa correntes díspares e sem relação direta umas com as outras, como a Gestalt, o Círculo linguístico de Praga ou a Escola formalista de Copenhague; a fase histórica, que registra a consolidação e apogeu do paradigma estrutural entre os anos de 1950 e 1980 e teria como marco regulador As estruturas elementares do parentesco, de Lévi-Strauss, bem como um conjunto de artigos e estudos de Jakobson no campo fonológico e literário; o pós-estruturalismo, cuja origem nos anos 1980 é uma consequência do lento e gradual processo de esgotamento e declínio institucional do paradigma que se seguiu ao “maio de 1968” (cf. p. 30-1). Após diferenciar nessa conjuntura quatro paradigmas estruturalistas (a saber, linguístico, antropológico, psicanalítico e semiótico-literário), Domingues discute como Lévi-Strauss constitui o paradigma antropológico por uma apropriação bastante peculiar da linguística estrutural e como tal apropriação obteve tanto êxito que, em seguida, a própria linguística estrutural será substituída pelo paradigma antropológico, como disciplina modelo e única capaz de conduzir o ambicioso projeto então em voga de unificação das ciências do homem. Para certificar como Lévi-Strauss transpõe para a antropologia os operadores da linguística estrutural, o capítulo reserva suas últimas seções a ilustrar como essa apropriação original ocorre de modo exemplar no estudo das estruturas do parentesco e dos mitos.

Uma vez dilucidado como se desenvolveu o paradigma estrutural a partir da noção mais ampla e anterior de estrutura, bem como se firmou o estruturalismo antropológico com base no paradigma estrutural das ciências humanas, o segundo capítulo, “Lévi-Strauss, a etnologia e a fundação da antropologia estrutural”, revela como o antropólogo francês encontra nos componentes que definem o programa estruturalista das ciências humanas – o “construtivismo epistemológico”, o paradigma da linguagem, o “modelo” e o tripé (metodológico) descrição/explicação/interpretação – uma alternativa às abordagens antropológicas de cunho social e cultural, afastando-se destas a tal ponto que se poderia falar mesmo de uma “refundação” desse campo disciplinar. A originalidade de Lévi-Strauss estaria em retomar temas tradicionais das antropologias concorrentes, tais como a análise do parentesco e da organização social, bem como do mito e das religiões primitivas, sob a hipótese de que “a estrutura será o elemento comum e o traço de união que permitirá ao antropólogo operar o diverso das comunidades humanas, reconhecendo as diferenças que as apartam e as semelhanças que as aproximam” (p. 94). Mais precisamente, em vez de buscar a cientificidade dos estudos do parentesco e dos mitos pelo inventário das gêneses e repertoriar as mudanças que estabelecem as funções das coisas, trata-se antes de “descobrir e evidenciar as estruturas que as abrigam e subjazem à diversidade dos fenômenos”. Como a noção de estrutura se constitui acima de tudo enquanto um sistema de diferenças e oposições, Lévi-Strauss não visará, portanto, a busca por semelhanças e sim “a tarefa de analisar e interpretar as diferenças” (p. 95). Diante de tais procedimentos, pode-se explicar como a antropologia estrutural conquista para a ciência um conjunto de temas até então difusos e mesmo disputados por diversas áreas, dentre os quais os sistemas mitológicos e as representações religiosas dos povos primitivos ocupam lugar de destaque. Enquanto tradicionalmente se recusou aos mitos qualquer racionalidade ou uma suposta racionalidade facultada pela sociedade ou pela natureza, Lévi-Strauss consegue com o paradigma estrutural obter “a chave [para a análise científica] do mito no próprio mito, em cuja base ele vê o trabalho do pensamento simbólico, em um processo que se passa por inteiro no interior do pensamento” (p. 151).

Ao garantir ao mito, ou, melhor dizendo, aos sistemas mitológicos, uma lógica interna que lhes atesta inteligibilidade própria e enfim torná-los objeto de investigação científica, Lévi-Strauss assegura a efetividade das ciências humanas num âmbito no qual até ali qualquer procedimento racional parecia arbitrário e extrínseco. Por isso, o terceiro capítulo, “A análise estrutural dos mitos: vias e variantes”, é decisivo para indicar como a antropologia estrutural tem no exame dos mitos a pedra de toque para a fundamentação das ciências humanas. Trata-se de elucidar em pormenor como LéviStrauss faz “ciência de uma coisa tão disparatada, em que a imaginação e o arbitrário” parecem se impor sobre “a lógica e a regularidade (…) onde imperam o tudo pode e as histórias contadas dão lugar a um verdadeiro breviário da estupidez humana” (p. 139). Após reconstituídas as mais influentes concepções sobre o estatuto do mito desde a Antiguidade até o estruturalismo francês, classificam-se e hierarquizam-se os vários trabalhos de Lévi-Strauss quanto ao tema, reconstituindo-se a intenção e os resultados por ele obtidos em seu itinerário. Para melhor precisar tais intenções e resultados, o quarto capítulo, “Um mito paradigmático: A Gesta de Asdiwal”, toma como exemplar uma série de formulações e reformulações do antropólogo francês em torno de um estudo alentado, inicialmente objeto de um curso proferido na École Pratique. A vantagem epistemológica de tomar a Gesta como paradigma e não, por exemplo, as Mitológicas, principal obra de Lévi-Strauss no estudo dos mitos, deve-se a que aquela, diferente da extrema fragmentação do corpus desta, oferece um mito completo e suas variantes, o que permite ao epistemólogo melhor avaliar a fecundidade e as adversidades da antropologia estrutural. Trata-se, portanto, de uma prioridade arquitetônica, a qual autoriza lançar luz sobre trabalhos historicamente anteriores e até mais relevantes, porém menos fecundos epistemologicamente.

Os quatro primeiros capítulos constituem o primeiro arco do livro, seguindo uma direção que vai do mais geral para o particular – da noção de estrutura ao estruturalismo, do estruturalismo ao estruturalismo nas ciências humanas, deste ao estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss, e deste último a um estudo paradigmático de LéviStrauss, a Gesta. Os capítulos seguintes traçam outro arco no qual se trata de pensar a singularidade archeológica do que fora até aqui obtido, e assim a questão fundacional retorna ao primeiro plano em definitivo. O quinto capítulo, “As dualidades fundadoras da antropologia estrutural: o caso do sistema mitológico ameríndio”, para além das intenções e resultados manifestos pelo antropólogo em seus estudos sobre os sistemas mitológicos, oferece uma interpretação do pensamento lévi-straussiano segundo a qual este opera primordialmente com díades e instala um conjunto de operações binárias, mas também mediações pelas quais incorpora tríades e figuras mistas, extrapolando assim o binarismo inicial e constituindo enfim um “sistema aberto e plural” (p. 255). A hipótese de Domingues é que a maneira pela qual Lévi-Strauss articula essas categorias epistemológicas subjacentes, já avultadas quando do estudo de Weber e Durkheim no Epistemologia I, permite mostrar e justificar a superioridade da antropologia estrutural para “pensar a diferença”, de modo que seu exame oferece, no âmbito epistêmico, as tais novas bases para o problema da fundamentação das ciências humanas.

O sexto capítulo aborda “O impacto da obra de Lévi-Strauss: legados, críticas e caminhos”, complementando as incursões conceituais do capítulo anterior por um balanço das repercussões da antropologia lévi-straussiana, em especial dos principais desafios por ela enfrentados. Nesse ponto, alguns apreciadores e adversários do eminente antropólogo francês são trazidos à baila e suas contribuições avaliadas, as quais auxiliam o epistemólogo na tarefa de indicar os limites e as carências do projeto antropológico-estrutural. Dentre esses, merecem destaque as críticas de filósofos como Claude Lefort, para quem “Lévi-Strauss é um platônico [que] despreza a história e apreende na sociedade regras em vez de comportamentos” (p. 365); Paul Ricouer, segundo o qual Lévi-Strauss “esvazia o sentido dos mitos [e] professa um estranho kantismo” ao “instalar um sistema de categorias sem o sujeito transcendental” (p. 365); e Jacques Derrida, que acusa a antropologia lévi-straussiana de “logocentrismo” (p. 366). Por outro lado, há antropólogos da escola anglo-saxã, como Edmund Leach, para quem os métodos de Lévi-Strauss conduzem para “onde tudo é possível e nada é verdadeiro”, apreciação que é complementada pelo influente Rodney Needham, o qual vê nas categorias que vigoram nas Estruturas elementares do parentesco uma “generalização abusiva” (p. 367-8). Afora o debate mais amplo da obra de Lévi-Strauss, Domingues documenta o conflito especializado para com hipóteses e trabalhos específicos, como o “mito de Édipo” e, obviamente, as Mitológicas e A gesta de Asdiwal.

As virtudes e vícios do projeto antropológico-estrutural dão azo para um balanço final que confirma a fundação da antropologia – e, por conseguinte, das ciências humanas – e aponta os novos desafios que lhe são reservados. Em primeiro lugar, a despeito do fim da “moda estruturalista”, a obra de Lévi-Strauss parece ainda conservar o seu vigor, de modo que Domingues, rejeitando alguns seguidores do mestre francês, como Eduardo Viveiros de Castro, que o leem como um “pós-estruturalista” avant la lettre, defende que Lévi-Strauss manteve-se sempre fiel a sua orientação original, sendo, portanto, um “estruturalista da velha e boa cepa” e, seguramente, o último “epígono” e “fortaleza” do movimento (cf. p. 80). Em segundo lugar, para além dos estudos dos chamados povos primitivos e da temática do selvagem, a antropologia se volta agora para outras linhas de pesquisa, tais como a antropologia simbólica (Geertz), a antropologia da performance ou pragmática (V. Turner), a antropologia desconstrutivista pós-moderna (J. Clifford e G. Marcus) e a antropologia cognitiva (D. Sperber). Sem dúvida essas novas vias também se preocupam em “pensar a diferença”; todavia, parece que aqui há um dissenso quanto ao significado dessa máxima que chega às raias da antonímia. Se para essas antropologias recentes pensar a diferença significa tratar de assuntos e/ou grupos restritos e até marginalizados, para Lévi-Strauss a diferença precisa ser cogitada num âmbito mais primordial. A consequência direta disso é a contraposição consciente que o antropólogo francês entreviu entre seu projeto de “aderir às coisas mesmas” pela busca do “sentido virtual e de posição” e a empreita pós-moderna de perquirir o “sujeito” e o “sentido por trás dos sentidos” (cf. p. 395-6). Para o epistemólogo, essa bifurcação da antropologia – e, por que não dizer, das próprias ciências humanas – encena as variantes pelas quais os pensadores procuraram lidar com a diferença irredutível dos fenômenos humanos. Uma hipótese que Domingues não escancara, mas também não disfarça, é que essas linhas pós-modernas – sobretudo hermenêuticas segundo a avaliação de Lévi-Strauss – descenderiam justamente do abandono da questão fundacional após o advento do espírito histórico, já apresentado no desfecho de O grau zero. Assim, acompanhar a antropologia estrutural lévi-straussiana significaria caminhar junto daquele modo de pensar a diferença que ainda conserva consigo a relevância da questão fundacional.

Lévi-Strauss e as Américas é o desenlace de uma trilogia iniciada com O grau zero do conhecimento e seguida por Epistemologia das ciências humanas. Embora cada um desses trabalhos possa ser lido separadamente, a sua conjunção constitui o audacioso projeto de fundamentação das ciências humanas cumprido por Ivan Domingues nas últimas três décadas. Felizmente, a sensação do leitor não é a do esgotamento, porém a constatação das peças dispostas sobre o tabuleiro à espera de um vindouro lance inaudito. O livro prova que Domingues deixou o melhor para o final. Uma última consideração, talvez extemporânea. Com a consolidação da pesquisa filosófica de pós-graduação no Brasil – da qual o professor Domingues é parte efetiva no plano acadêmico e institucional –, o novo desafio (nem tão novo assim) é consolidar uma produção filosófica local e que ouse desbravar caminhos para além dos cânones da metrópole ideal. Há quem pense que isso significa fazer história da filosofia de pensadores nacionais, tratar de temas ditos “regionais” ou buscar desesperadamente por gêneses “tupiniquins”. Falta aqui alcançar a sagacidade de um Machado de Assis, o qual, numa fórmula célebre, atestara que um pensador pode ser “homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (Assis, 1979, p. 804), espezinhando aqueles que “só reconhecem espírito nacional nas obras que tratam de assunto local” (p. 803). Ora, assim como Lévi-Strauss não deixa de ser francês ao escrever os seus Tristes trópicos, no qual reflete antropologicamente sobre suas experiências com os índios brasileiros, Domingues não deixa de ser brasileiro ao refletir epistemologicamente sobre Lévi-Strauss. Ou seja, tanto como pareceu atual e pertinente aos europeus o que um antropólogo teria a dizer sobre os ameríndios, para nós é atual e pertinente ouvir o que um epistemólogo tem a dizer sobre o olhar antropológico projetado em nossos conterrâneos. A questão, portanto, talvez não seja de base “histórica ou arqueológica” (archaios), mas quem sabe “epistemológica ou arquitetônica” (arché). Nesse sentido, o projeto epistemológico que culmina com Lévi-Strauss e as Américas não estaria também a nos ensinar um caminho para o nosso amor à sabedoria?

Referências

COUTINHO, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. 4v.

ASSIS, M. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: Coutinho, A. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979. v. 3, p. 801-9.

DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1991.

_____ O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras, 1996.

. _____. Le fil et la trame: refléxions sur le temps et l’histoire. Paris: L’Harmattan, 2000.

_____. Epistemologia das ciências humanas. Tomo I: positivismo e hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2004.

_____. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Loyola, 2012.

Evaldo Sampaio da Silva – Departamento de Filosofia. Universidade de Brasília, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche – VALLS (RFMC)

VALLS, Álvaro. O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: PAULA, Marcio Gimenes de. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.2, p.177-179, n.1, 2014.

O ano de 2013 marcou uma efeméride significativa no universo kierkegaardiano: a data do bicentenário de nascimento do autor dinamarquês. Em decorrência disso, mas não apenas por isso, muitos eventos significativos foram realizados em vários locais onde existe o interesse pela pesquisa kierkegaardiana. Nesse sentido, o mercado editorial brasileiro brindou o leitor interessado em Filosofia e na obra do pensador de Copenhague com duas instigantes obras do professor Álvaro Valls, célebre tradutor de Kierkegaard e um dos pioneiros na pesquisa desse autor em solo brasileiro. Uma dessas obras foi, na verdade, publicada em 2012 (Kierkegaard cá entre nós, resenhada logo a seguir).

A primeira obra, O crucificado encontra Dionísio – estudos sobre Kierkegaard e Nietzsche, é fruto de anos de trabalho e de uma pesquisa com mérito reconhecido por inúmeros colegas e também pelo CNPQ, que a financia. O pesquisador gaúcho congrega aqui, em seus doze capítulos, treze ensaios sobre Kierkegaard e Nietzsche. Talvez, por receio de ser excessivamente cobrado por alguns nietzschianos, o pesquisador parece deixar claro, logo de saída, que não é um especialista na obra do pensador alemão, mas apenas um leitor interessado e que, num dado grau desse interesse, Nietzsche se encontra com o autor estudado por ele há alguns anos, a saber, Kierkegaard.

Ironia e melancolia é o primeiro ensaio da coletânea e dialoga com as teses de Kierkegaard desde o Conceito de Ironia, passeando ainda pela temática da melancolia em autores brasileiros como Machado de Assis, Gregório de Mattos e o compatriota gaúcho do autor, Moacyr Scliar. Trata-se de um muito curioso diálogo que atravessa o frio da Dinamarca, chega até os trópicos e dialogo ainda com temas já mencionados por autores como os paulistas Paulo Prado e Mário de Andrade.

O texto que se segue, denominado Sócrates oscilando entre Kierkegaard e Nietzsche é uma curiosa interpretação da figura do pensador de Atenas pelas lentes de Nietzsche, talvez mais conhecidas do público brasileiro. Com efeito, trata-se também da interpretação do conceito da ironia socrática e a percepção de como essa tornou-se central para a obra kierkegaardiana. Trata-se de uma tentativa de mostrar, ao menos em nuance, as múltiplas faces de Sócrates na obra do autor dinamarquês, comparando-a com o modo nietzschiano de entendê-las. O ensaio que se segue, Ironia socrática e Ironia kierkegaardiana, aprofunda um pouco mais tal questão, fazendo um mergulho filosófico.

Já o texto Heiberg e Brandes, críticos contemporâneos de Kierkegaard e Nietzsche, investiga dois desses autores, talvez ainda pouco conhecidos no Brasil, mas que foram importantes para o hegelianismo dinamarquês (Heiberg) e para a divulgação cultural da obra de Kierkegaard na Europa (Brandes). Ambos foram estudiosos de temas de estética e valem efetivamente uma aproximação. Brandes foi, inclusive, amigo particular de Nietzsche com quem trocou inúmeras correspondências e, numa delas, recomendou-lhe a leitura de um psicólogo dinamarquês profundo: Søren Kierkegaard. Tal fato foi, infelizmente, impossibilitado pela doença de Nietzsche e dele, ao que parece, temos apenas esse registro. A ética dos discursos kierkegaardianos é o tema do quinto ensaio da obra de Valls. Nele, o autor, fortemente influenciado pela interpretação de Henri-Bernard Vergote, começa pela pergunta de como se deve ler a obra kierkegaardiana, comprendendo-a, na esteira do pensador francês, como ironia do inicio ao final. Tal tom, serve para modular também aquilo que Vergote denominará como segundo percurso kierkegaardiano. O momento onde o autor dinamarquês parece se aliar aqueles que, segundo alguns podem supor, seriam seus adversários como Feuerbach e outros críticos do cristianismo. Contudo, tais autores tornam-se seus aliados na crítica à cristandade e na tentativa de articulação de um novo conceito: o de cristicidade ou tipicamente cristão. Tal segundo percurso tem uma ligação também com aquilo que se denomina de segunda ética, isto é, a ética tipicamente cristã, diferente da ética grega do bem e do belo. Tal discussão aqui iniciada é ainda mais aprofundada, especialmente ao levar em conta As Obras do Amor (e alguns outros discursos kierkegaardianos), no ensaio seguinte denominado Estética, ética e religião nos discursos de 1847.

A discussão ética também será o tema do texto apresentado no capítulo sétimo, O amor dos poetas e o que se torna dever. Aqui, bem ao gosto kierkegaardiano, Valls aponta, a partir de duas obras centrais do autor dinamarquês (Temor e Tremor e Obras do Amor) em que implica uma ética do dever de amar e em que ela se difere de uma ética do dever racional kantiano. O diálogo com as teses do pensador alemão são excelentes e o ensaio vale não apenas pelo que aponta, mas especialmente pelas lacunas que ele deixa em aberto, pistas possíveis para uma investigação de maior fôlego. Nesse mesmo sentido, O Elogio do amor desinteressado, texto que vem logo a seguir, faz o aprofundamento do mesmo tema dentro da análise das Obras do Amor.

Nietzsche reaparece no ensaio seguinte, Sobre a saúde e a doença. Trata-se de uma discussão que busca resgatar uma função muitas vezes negligenciada da filosofia: a cura, o cuidado, a preocupação com temas de vida e de morte. Valls convida, para essa discussão que se encaixa muito bem também nas discussões contemporâneas de bioética, inclusive, o filósofo Michel Foucault.

Os dois próximos capítulos, Temor, Medo e Angústia I e II, trabalham com um tema bastante caro aos estudos kierkegaardianos. O autor busca, através de uma leitura atenciosa de O Conceito de Angústia, aproximar conceitos éticos importantes em Kierkegaard e em Nietzsche, compreendendo ainda tais inquietações dentro do contexto da antiga literatura dinamarquesa. O mesmo Conceito de Angústia será, não fortuitamente recuperado no ensaio final, que tem o significativo título Enfim, ler o Conceito de Angústia.

Já o penúltimo ensaio do livro de Valls, Um leitor de Nietzsche avant la lettre, é, talvez, um dos mais provocativos e instigantes da obra. Nele, o professor nos apresenta um Kierkegaard que, talvez, teria sido “nietzschiano” antes mesmo de Nietzsche, recuperando muito de suas críticas, notadamente aquelas feitas ao cristianismo.

Por todos os motivos elencados, penso que não faltam boas razões para ler a obra de Valls que mais do que nos provocar, parece que nos desperta o apetite, serve como um aperitivo filosófico, preparatório para os que estiverem dispostos a um banquete.

Marcio Gimenes de Paula

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Desconstruir a metafísica? – AUBENQUE (FU)

AUBENQUE, P. Desconstruir a metafísica? São Paulo: Edições Loyola, 2012. Resenha de: ENGLER, Maicon Reus. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.3, p.242-245, set./dez., 2013.

A publicação das conferências de Pierre Aubenque, ministradas durante os anos em que dirigiu a Cátedra de Metafísica Étienne Gilson (1997-1998), representa sem dúvida um acontecimento digno de nota no meio acadêmico brasileiro. Isso porque esse livro, conquanto despretensioso, tem o mérito de ir de encontro a duas tendências que parecem ser as dominantes nos estudos atuais de metafísica: a primeira, que toma a superação desse “estilo” de pensamento como um fato histórico irrevogavelmente assentado e que viceja tanto entre pós-modernos quanto entre filósofos analíticos; e a segunda, que continua a desenvolver pesquisas sobre metafísicas do passado sem levar em conta as críticas lançadas contra tal empreendimento e, mais do que isso, sem pretender qualquer modificação do presente estado de coisas. O primeiro polo desdenha o estudo histórico por si mesmo e crê que a filosofia deva tratar primordialmente de temas do presente. Esforçam-se os seus ontólogos por abarcar as conquistas da física quântica e da neurologia, julgando que a ciência moderna tornou obsoletas as reflexões sobre o ser, ao passo que os estudiosos de ética e de política, temendo a tirania de uma razão absoluta, proclamam que aquilo que fazem “não é metafísica”, declaração que por si só os exime de outras reflexões sobre esse problema. O segundo polo, por sua vez, vive num nicho temporal confortavelmente isolado, no interior do qual o pensamento de um filósofo desfruta de autonomia e relevância intrínsecas, sem que quaisquer mudanças históricas minorem o possível valor de suas ideias. Para esses estudiosos, o escrutínio da história apresenta-se como algo neutro e objetivo, que não é afetado pelo que se passa no tempo presente e que tampouco o afeta. Eles tomam as divisões acadêmicas da filosofia como secções próprias do pensamento, embora a sua preocupação para com a história devesse impedi-los de cometer tal erro. Assim, para usar de uma imagem, pode-se dizer que, de um lado, estão os intelectuais que vivem na crista da onda histórica e que, como a água da superfície, também se agitam e deixam levar pelas marés mais sutis e os ventos mais caprichosos; de outro, temos os intelectuais que vivem muito abaixo da superfície e que não têm a pretensão de agir sobre ela, tampouco acreditando que algo vindo de cima possa incomodar o seu paciente trabalho de escafandrista. Aparadas as arestas do excesso que toda tipificação ideal acarreta, esses parecem ser dois veios claramente identificáveis na filosofia hodierna, quando se tenta pensar a questão da superação da metafísica.

Conhecido por outras obras que já se tornaram clássicos da filosofia – como os estudos sobre a ética e sobre a metafísica de Aristóteles –, Aubenque tem a vantagem e a autoridade para “nadar” entre esses dois extremos e, de modo dialético, propor aproximações, releituras e guinadas de inegável alcance teórico. Ao primeiro grupo acima, sugere que a metafísica é algo que sobrenada à tentativa de superá-la, porquanto tal tentativa seja apenas mais um dos vários projetos que brotam de seu interior; ao segundo, mostra que o exame de um pensador do passado pode alterar a nossa apreciação dos mais candentes problemas do presente, ademais de estar inegavelmente conectado com o que se passa em nossos dias. O livro propõese a investigar de forma sucinta um projeto que medrou na segunda metade do século XX e, aparentemente, não oferece nenhuma resposta clara para a pergunta que levanta em seu título (p. 9); contudo, ao longo de suas páginas sobressai-se a tese susodita de que a superação da metafísica é um projeto nascido da própria metafísica, que já se fazia presente em Aristóteles (p. 9), e que possui, portanto, apenas a aparência de iconoclastia (p. 11).

O primeiro capítulo trata da história crítica da metafísica elaborada por Étienne Gilson e comenta algumas posturas que esse intelectual compartilhava com Heidegger. Aubenque mostra que Étienne pensava o ser como a um juízo pressuposto por todos os demais juízos; logo, o ser não era um conceito, mas tinha a função de dar as condições de possibilidade de toda a objetivação e, destarte, fazer com que os entes existissem (p. 13-14). Como Heidegger, Gilson teria percebido que o erro recorrente da metafísica consistiu em tentar falar do ser, ao mesmo tempo em que o substituía por algum ente privilegiado; em vez de metafísica, elaborava-se assim uma ontoprotologia que tratava do Uno, de Deus, do Bem, do mundo ou do Homem. Para Gilson, esse processo realizava a essencialização da existência e lembrava os movimentos antevistos pelo diagnóstico heideggeriano, de acordo com o qual a maneira de proceder da metafísica ontoteológica levava ao esquecimento do ser e a sua redução à entidade (p. 20). A divergência entre os dois autores estaria na cura que propõem a esse “mal”: enquanto que Heidegger visava sair da metafísica através da poesia, do mito e da mística, pelo menos em uma das fases de seu pensamento, Gilson acreditava que era possível superá-la a partir de seu interior (p. 21). Esse tema retorna no segundo capítulo, onde Aubenque traz à baila filósofos como Platão e Aristóteles e explica como eles, não obstante as respostas que deram ao problema, já tinham percebido o passo em falso do pensamento que substitui o ser pelo ente e cai, assim, nas teias da ontoteologia (p. 27). O capítulo concentra-se mais em Aristóteles e estuda as suas respostas para a pergunta sobre o ser, bem como a sua dificuldade de erigir uma ciência sobre algo que não era propriamente um gênero e, pois, desrespeitava uma condição básica de sua concepção de ciência (p. 29). Aubenque defende que Aristóteles tentou criar uma ciência dos princípios e causas supremas e, com isso, transformou a metafísica ora em hiperfísica, ora em teologia. A partir das suas respostas, os autores medievais teriam usado o conceito de analogia para falar dos demais entes em relação ao ente supremo, popularizando uma metafísica baseada em diversos graus de ser (proporcionalidade). Assim, a doutrina de São Tomás de Aquino sobre a analogia teria sido o principal fator para o esquecimento da diferença ontológica na história do Ocidente (p. 38).

No terceiro capítulo, o autor aborda a superação neoplatônica da metafísica, levada a termo através da proeminência conferida ao Uno. Segundo Aubenque, o fato de ser impossível que o Uno receba quaisquer predicados, estando acima das categorias, torna-o imune à posição de um superente que tomaria o lugar do Ser (p. 43). Seria um erro dos intérpretes modernos crer que o Uno seja um substituto para o Ser; na verdade, Plotino usaria de metáforas inteligíveis para assinalar aquilo que nem ao menos é real, dado que esteja acima do Ser (p. 44). Tampouco seria o Uno o primeiro motor imóvel, uma vez que também não é possível atribuir-lhe causalidade (p. 46). Com o pensamento sobre o Uno, em suma, Plotino teria tentado fugir do afã de substituir o Ser por um superente. Essa problemática continua a ser discutida no quarto capítulo, que elucida as reflexões de Heidegger em torno da superação da metafísica. Heidegger, como se sabe, foi o responsável pela crítica da metafísica ontoteológica, que se esquece da pergunta pelo sentido do ser e passa a questionar qual seria o ente mais ente de todos (p. 49). O autor ilustra também o sentido da Destruktion empregada por Heidegger, que consistia na remoção das camadas de pensamento solidificadas pela tradição, camadas essas que faziam da pergunta pelo sentido do ser algo evidente (selbstverständlich) (p. 53). Apesar de Heidegger possuir um apreço pela ideia de “origem”, o qual será depois criticado por Derrida em virtude de suas conotações metafísicas, ele não estaria interessado, com essa destruição, num retorno aos gregos, como pensaram alguns de seus adversários, mas na tentativa de remover os pilares da tradição ontológica do Ocidente, dentro da qual o ser, sendo desde sempre apreendido como presença, não pôde aparecer como acontecimento ou temporalidade extática (p. 56-57). No começo, o peso de Nietzsche sobre Heidegger tê-lo-ia levado a pensar que esse processo de entificação do ser começara com Platão; com o tempo, todavia, ele teria admitido que ele já estava presente em Parmênides, por conta de sua tese de que o ser e o pensar são a mesma coisa (p. 58).

O quinto capítulo comenta a proposta de desconstrução da metafísica ensaiada por Derrida, a qual seria, na visão de Aubenque, a mais radical de todas (p. 61). Derrida teria percebido que não se pode ao menos dizer que a metafísica é falsa, uma vez que os critérios de verdade e falsidade vigoram em seu interior e são ainda, pois, critérios de índole metafísica. Destarte, baseando-se na libertação da escrita do logocentrismo, um acontecimento do século XX cujo epifenômeno é a linguística estrutural (p. 63), Derrida proporia o usufruto da liberdade de sentidos no interior dos textos, sem a pressuposição de um sujeito como substrato ou de um significado transcendental e primeiro (p. 65). Esse trabalho seria desempenhado pelo “conceito” de differánce, a verdadeira alavanca da desconstrução. Sem ser um princípio ou uma hipóstase, a differánce seria a maneira de manter sempre aberta a possibilidade do pensamento, tal como ocorre no âmbito da escrita, que também não tem começo nem fim, não remete a um significante último e se dirige, ao contrário, a significantes indefinidamente disponíveis (p. 66-67). O projeto de Derrida consistiria, assim, numa subversão interna dos conceitos da metafísica, ou, para utilizar a metáfora de Aubenque, na destruição de uma casa que usasse o material procedente do desabamento dessa mesma casa (p. 69). Essa abertura indefinida para o questionar, que não pretende chegar a lugar algum, recorda a leitura que o próprio Aubenque faz da Metafísica de Aristóteles, leitura essa que perpassa o último capítulo do livro, o qual, em forma de questão, discute uma possível volta ao pensamento do Estagirita. Junto de suas respostas ontoteológicas, que fariam do ser ora um hiperente, ora o próprio Deus, Aristóteles teria tentado criar uma ciência cujo escopo era discutir o ser enquanto ser, reconhecendo de antemão que ele não se exprime de um só modo e tampouco constitui um gênero (p. 78). Não obstante conferisse sentido primordial à substância, Aristóteles não reduziria o ser a ela, dando uma resposta catalográfica que faria jus à polissemia do ser e à exuberância de seus acidentes (p. 80). O sentido focal da ousía também não seria um dado pronto, mas algo a ser buscado continuamente pelos pensadores; como a substância não é um gênero, o projeto da metafísica seria desde o seu início, portanto, reconhecidamente aporético e dialético, apresentando assim a primeira forma de sua autossuperação. Para Aubenque, esse é o verdadeiro sentido da preposição “metá” que nomeia essa “ciência”: a ideia de que a metafísica inclui em seu desenvolvimento a sua própria superação e deve dirigir-se sempre para além de si mesma (p. 82).

O livro ainda dispõe de um apêndice onde Aubenque, sem tencionar qualquer exaustão, fornece alguns princípios hermenêuticos para a elaboração de uma história crítica da metafísica. De acordo com sua visão, a história da metafísica é diferente da história da filosofia em geral; ela é, na verdade, a história das pré-compreensões do sentido do Ser. Contudo, segundo a tese de Heidegger, a história dos diferentes lógoi sobre o Ser é a própria história do Ser (p. 86), de modo que a metafísica e a sua história se confundem. Por conseguinte, não há pura historiografia e tampouco pura filosofia, como comentado acima. Ademais, Aubenque julga que a questão do esquecimento seria outra categoria indispensável em tal estudo, dado que o ser se oculte ao mesmo tempo em que se revela. Ele seria mais um dos mecanismos da metafísica que deveriam ser autonomizados e isolados para melhor compreensão (p. 92). Por fim, conviria que fossem deixados de lado os contextos em que as metafísicas surgem e a tese historicista de que elas são um efeito do seu tempo, para evidenciar que, ao revés, cada metafísica gera o seu tempo, no sentido de que possui influência determinante sobre os mais variados âmbitos, como o político, o artístico, etc. (p. 93-95).

Assim, o apêndice fornece algumas teses fundamentais sobre como se deve olhar para a história da metafísica. Como dito no início, o livro de Aubenque vem em boa hora e pode contribuir para que se aprofundem as discussões e linhas de pesquisa sobre metafísica no meio acadêmico brasileiro. Nesse sentido, ele desempenha papel similar a outros livros que propõem novas leituras da modernidade e contemporaneidade baseados em estudos de autores antigos. Apesar de alguns lapsus attentionis1, a tradução de Aldo Vannucchi é fluida e de agradável leitura, contribuindo ainda mais para que se aprecie a importância da obra.

Maicon Reus Engler – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

Epistemologia da virtude: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol I; Conhecimento reflexivo: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol II – SOSA (Ph)

SOSA, Ernest. Epistemologia da virtude: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol I. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: FILHO, Waldomiro Silva. Pessoas epistemicamente virtuosas. Philósophos, GOIÂNIA, v.18, n. 2, p.293-312, JUL./DEZ, 2013. SOSA, Ernest. Conhecimento reflexivo: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol II. Trad. Cecília C. Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: SILVA FILHO, Waldomiro. Pessoas epistemicamente virtuosas. Philósophos, GOIÂNIA, v.18, n. 2, p.293-312, jul./dez, 2013.

1. Vou começar com uma citação um pouco longa: SÓCRATES. […] Estamos seguramente em acordo que o homem bom está absolutamente obrigado a fazer o que é bem, não é assim? MENON. Sim.

SÓCRATES. E eu suponho que estamos certos em concordar que eles nos farão bons se guiarem corretamente nossos assuntos. Certo? MENON. Sim.

SÓCRATES. Mas que a boa orientação seja impossível sem conhecimento, parece que não estamos certos em concordar.

MENON. O que queres dizer? SÓCRATES. Vou explicar. Se alguém conhecesse o caminho para Larissa […] para lá partisse e mostrasse para outros o caminho, não os estaria guiando bem e corretamente? MENON. Sim.

SÓCRATES. Bem, o que dizer de alguém que, tendo uma crença correta sobre qual o caminho, mas jamais o tendo percorrido e não tendo conhecimento disso? Ele também não guiaria corretamente? MENON. Sim.

SÓCRATES. E enquanto ele apenas acredita corretamente aquilo que outra pessoa conhece, ele poderá ser também um bom guia, assim como alguém com conhecimento, porque seu pensamento está correto, mesmo que não tenha conhecimento.

MENON. Sim, ele será.

SÓCRATES. A crença verdadeira, então, é tão bom guia quanto o conhecimento quando se trata de garantir a correção da ação. E isso é o que agora mesmo negligenciamos no exame sobre que tipo de coisa era a virtude, dizendo que somente o conhecimento é o bom guia de nossas ações. De fato, todavia, também a simples crença verdadeira o é.

MENON. Sim, aparentemente é.

SÓCRATES. Logo, em nada a crença verdadeira é menos proveitosa do que o conhecimento.

MENON. Sim, exceto nessa medida, Sócrates, aquele que tem conhecimento sempre será bem sucedido, ao passo que aquele que tem uma crença verdadeira às vezes estará certo e às vezes, errado.

SÓCRATES. O que você quer dizer com isso? Aquele que sempre tem uma crença verdadeira não acertará sempre enquanto tiver crenças verdadeiras? MENON. Eu acho que ele é obrigado a estar certo. Isso me faz perguntar, espantado, Sócrates, sendo assim, por que afinal o conhecimento é muito mais valorizado do que a crença verdadeira e em que um é diferente da outra.” (PLATÃO 2005, 97a-d)

Este fragmento do Ménon de Platão condensa um assunto de grande relevância para o pensamento antigo e que parece ser negligenciado pela epistemologia moderna até os nossos dias, qual seja, o problema do valor do conhecimento.

Em geral, a epistemologia tem se ocupado com a definição de conhecimento, com tentativas de estabelecer aquilo que seria requerido a uma crença para que se torne conhecimento e em se desvencilhar de terríveis ameaças céticas.

Notemos, entretanto, que neste trecho do Ménon, Platão não está preocupado com a verdade da crença (pois, no diálogo, tanto aquele que simplesmente acredita, pela sorte ou adivinhação, quanto aquele que sabe tem crenças verdadeiras); ele, do mesmo modo, não está preocupado com a diferença entre ter uma simples crença e ter conhecimento; ele nem mesmo está preocupado com a possibilidade de algum gênio maligno lhe estar enganando… O que Platão/ Sócrates nos chama a atenção é para a questão: por que, para um filósofo e para um homem comum, o conhecimento é mais valioso do que a simples crença? Se prestarmos atenção, esta pergunta, a rigor, não é uma pergunta estritamente epistemológica, mas uma pergunta que remete ao campo da ética e da ação – e não é por acaso que ela nasce justamente no interior de um diálogo dedicado às virtudes.

A obra de Ernest Sosa tem significado uma contribuição original e instigante à epistemologia contemporânea exatamente porque enfrenta essa questão platônica e oferece uma nova direção para velhos dilemas em Teoria do Conhecimento.

O livro Epistemologia da Virtude de Sosa foi publicado originalmente em inglês em 2007 como resultado das prestigiosas John Locke Lectures proferidas por ele em Oxford entre maio e junho de 2005 (SOSA 2007a). Ao lado de um segundo volume intitulado Conhecimento Reflexivo de 2009 (SOSA 2009a), Epistemologia da Virtude constitui o caminho mais direto e límpido para a compreensão das ideias de Sosa sobre a natureza e o valor do conhecimento.

Recentemente, as Edições Loyola publicou uma tradução dos dois volumes (SOSA 2007b; 2009b). Destaque para a belíssima capa que reproduz a edição original.

2. Sosa nasceu Ernesto Sosa num dia de junho de 1940 na histórica Cárdenas na Ilha de Cuba, mas teve toda a sua educação nos Estados Unidos, onde frequentou, como estudante ou professor, as mais destacas universidades (GRECO 2005, p.2287). Na sua carreira acadêmica, Sosa escreveu sobre uma variedade de assuntos, incluindo artigos influentes em metafísica, filosofia da linguagem e filosofia da mente – tópicos acerca dos quais, como editor, publicou obras de grande relevância1. Porém, sua grande contribuição é no campo da epistemologia, disciplina que, ao lado de autores como Alvin Goldman, Linda Zagzebski, Fred Dretske, entre outros, ajudou a redefinir as fronteiras e vocabulários (GRECO 2004b; Sosa 2010).

Grosso modo, se fôssemos apresentar numa frase aquilo que caracteriza a posição epistemológica madura de Sosa, poderíamos dizer que, para ele, o conhecimento deve ser entendido como algo produzido pelas virtudes intelectuais de uma pessoa. Enquanto a análise clássica do conhecimento esteve centrada na natureza da crença, para Sosa, a epistemologia deveria estar centrada nas habilidades e no caráter do agente (BATTALY 2008, p.4-5). Com isso, o conhecimento deveria deixar de ser analisado em termos de representação e de crença verdadeira justificada e passar a ser interpretado como uma forma de performance bem sucedida.

E performance significa algum tipo de ação que visa um fim – e no caso da atividade epistêmica, esse fim não poderia ser outro senão a verdade. Há conhecimento se a performance da pessoa é apta, ou seja, é o resultado de competências da pessoa, numa palavra, é resultado das virtudes da pessoa.

A partir de Ernest Sosa, Linda Zagzebski e Jonathan Kvanvig, retomando uma tradição que remonta a Aristóteles (LEAR 1988; Annas 2011), passou-se a considerar seriamente duas coisas: a) que adquirir conhecimento tem alguma relação com o fato do agente ter uma habilidade para alcançar a verdade e b) que o interesse crescente pelo valor epistêmico causou aquilo que Wayne Riggs (2006) chama de “value turn” na epistemologia contemporânea. Os filósofos que defendem a relevância das “virtudes” concordam que virtudes intelectuais expressam um tipo de “excelência cognitiva”.

Entretanto, a despeito disso, não há consenso sobre a Epistemologia da Virtude ou mesmo acerca do que é uma virtude intelectual (BAEHR 2008, p.469). Seguindo uma fórmula apresentada por Guy Axtell (2000) e amplamente aceita, a epistemologia da virtude se organiza em duas posições distintas: a Epistemologia Confiabilista da Virtude (associada a Sosa e Greco) e a Epistemologia Responsabilista da Virtude (associada a Zagzebski e Kvanvig). Tratarei aqui apenas da perspectiva de Sosa2.

3. Mas, para compreendermos o sentido da posição de Sosa é importante, mesmo que abreviadamente, esboçar o cenário do debate epistemológico onde ela se insere. Entre as décadas de 60 e 80 do século passado, as discussões epistemológicas, em geral orbitavam ao redor de duas disputas: a primeira era acerca da estrutura do conhecimento e mobilizava filósofos que defendiam, de um lado, uma posição fundacionista e, do outro, uma posição coerentista; a outra disputa era acerca da natureza do conhecimento e opunha externistas e internistas (POLLOCK & CRUZ 1999).

A disputa entre fundacionistas e coerentistas visava encontrar uma boa resposta ao desafio cético estabelecido por aquilo que ficou conhecido como o “trilema de Agripa”.

Que pode ser apresentado assim (SEXTUS EMPIRICUS 2000 HP, 164-169)3: a) ou nossas crenças não estão fundamentadas em nada; b) ou nossas crenças são fundamentadas em outras crenças que por sua vez são fundamentadas em outras crenças, numa cadeia infinita; c) ou nossas crenças são apoiadas por outras crenças de um sistema fechado, num circulo vicioso. Nesse quadro, o coerentismo seria aquela posição que aceita (mesmo que só parcialmente) a terceira afirmação do trilema, como é o caso do holismo epistemológico de Quine e Davidson. Para esses autores, somente uma crença pode justificar outra crença; uma crença depende de uma rede holística de crenças, um sistema coerente internamente. Já o fundacionismo aceitaria a primeira afirmação do trilema, ou seja, que há certas crenças que não estão fundamentadas em nada, mas podem servir para sustentar todo o sistema.

Diante disso, Sosa cria a seguinte imagem: parece que o conhecimento ora pode ser visto como uma pirâmide – que teria uma fundação sólida que suporta toda a estrutura – ora pode ser pensado como uma jangada – onde as várias partes se sustentam mutuamente (SOSA 1980)4.

Já a disputa entre internismo e externismo5 pode ser resumida assim: o internismo epistemológico concebe que a racionalidade epistêmica está sustentada naquilo que o agente tem acesso cognitivo direto e autorizado; o próprio conceito de justificação é interno e imediato no sentido de que uma pessoa deve descobrir diretamente, pela reflexão, o que está justificado a acreditar (CHISHOLM 1982; BONJOUR 1998; 2003); já o externalismo epistemológico afirma que a racionalidade não está sustentada necessariamente naquilo que o agente tem acesso cognitivo; a natureza e a sociedade provêm tudo aquilo que precisamos para ter conhecimento e o melhor e mais confiável meio para chegar à verdade não necessita ser discriminado e acessado cognitivamente pelo agente (GOLDMAN 1979). A versão mais elaborada do externismo é o confiabilismo, segundo o qual uma crença é justificada se somente se é produzida ou sustentada por um processo confiável que tenda a produzir mais crenças verdadeiras do que crenças falsas, mesmo que o sujeito não esteja consciente disso ou que não seja capaz de explicar as razões que tornam essa crença verdadeira (GOLDMAN 2012).

Todas essas posições, fundacionistas e coerentistas, externistas e internistas, abordam aspectos relevantes da vida cognitiva das pessoas. O problema, porém, é que normalmente os defensores dessas posições estão inclinados a refutar as outras posições, mesmo que encerrem ideias intuitivamente relevantes: poderíamos deixar de lado a ideia de que somos seres naturais e que o modo como nos inserimos nele tem um papel constitutivo nas nossas vidas mentais? Poderíamos também recusar a ideia de que a reflexão joga um papel central nas nossas vidas?

4. A epistemologia da virtude lança uma nova perspectiva sobre essas disputas. Seu ponto de partida está no fato de que se prestarmos a devida atenção à própria noção de conhecimento veremos que ela envolve necessariamente um acontecimento cognitivo que deve ser creditado ao agente, uma vez que, de fato, não podemos atribuir conhecimento a uma pessoa se ela se encontra no estado de ter uma crença verdadeira simplesmente pela sorte (PRITCHARD 2010, p.55). Por isso, Sosa (1985, 1991a, 1991b) argumenta que conhecimento requer crença verdadeira produzida por algo que está relacionado com as habilidades e competências, naturais ou aprendidas, da pessoa e que lhe permite buscar e alcançar a verdade – numa palavra, requer que a pessoa tenha certas virtudes intelectuais.

Como eu disse no início, o sentido de virtude está diretamente associado a uma perspectiva em ética. A ética da virtude, diferente de outras teorias morais, muda o foco da avaliação ética, deslocando a atenção da natureza da ação e do bem moral para, distintamente, investigar o caráter do agente: a ética da virtude nos fala acerca do que é uma pessoa virtuosa, que qualidades e excelências uma pessoa virtuosa deve ter (ANNAS 1993; 2011; HURSTHOUSE 1999). Por isso, é uma ação boa aquilo que normalmente uma pessoa virtuosa faz. Do mesmo modo, uma epistemologia voltada para a virtude em vez de se ocupar com aquilo que torna uma crença justificada e imune à ameaça cética, irá se dedicar a entender as virtudes e vícios intelectuais das pessoas: é conhecimento aquilo que normalmente uma pessoa virtuosa faz.

5. Podemos dizer que a epistemologia da virtude integra dois pontos: a) a ideia de que o conhecimento é uma performance (uma performance apta) e não uma representação e; b) é possível conceber dois tipos de conhecimentos, o conhecimento animal e o conhecimento reflexivo (SOSA 2010).

A ideia de performance apta é crucial porque o conhecimento deve ser o resultado do trabalho, do esforço, da pessoa e não do acaso. Lembremos do caso do caminho de Larissa no Ménon: há uma pessoa que afirma ser aquele o caminho para Larissa, mas disse isso sem saber, por adivinhação, chute; e há uma pessoa que sabe, pois já fez esse caminho outras vezes, domina os mapas etc. Esse aspecto de que há algo que deve ser atribuído ao trabalho da pessoa faz toda a diferença. Nesse sentido, Sosa (2007a, p.22-43) usa o exemplo de um arqueiro lançando sua fecha para o alvo para ilustrar o fato de que uma das exigências que poderiam ser solicitadas para o conhecimento é o fato de que o agente cognitivo deve realizar um tipo específico de performance baseada em certas habilidades. Esse exemplo envolve três elementos: α) accuracy (precisão, correção); β) adroitness (destreza, habilidade) e γ) aptness (aptidão, competência) (SOSA 2007a, p.22-3): A crença é um tipo de performance que almeja um primeiro nível de sucesso se é verdadeira (ou precisa, correta [accurate]), um segundo nível se é competente (ou hábil, destra [adroit]) e um terceiro se sua verdade manifesta a competência do agente da crença [believer] (i.e. se é apta).” (Sosa 2011, p.1; cf. também Sosa 2007a, p.23).

Uma vez que este arqueiro realmente é hábil, então não é meramente uma questão de acaso que ele atinja o alvo.

Espera-se que ele acerte o alvo em certas situações que devem envolver o ambiente (a posição em que se encontra, a luminosidade, a velocidade do vento, não estar sob o efeito de uma droga etc.) e a sua performance. Assim, ele acerta o alvo por causa de sua aptidão e não por causa de algum outro fator qualquer (SOSA 2007a, p.28).

Aquilo que se aplica ao arqueiro, deve se aplicar também ao agente cognitivo. Um agente cognitivo não deveria ser alguém que formou uma crença verdadeira ao acaso, mas alguém que tem uma crença verdadeira em uma variedade de circunstâncias relevantemente semelhantes e que envolve suas habilidades para formar crenças verdadeiras.

No caso do arqueiro, o que é requerido para que o tiro seja apto é que ele seja preciso [accurate] porque é hábil [adroit], bem-sucedido porque competente (SOSA 2007a, p.29). Ou seja, para que uma crença seja conhecimento, não é requerida uma invulnerabilidade ao erro, mas aptidão (SOSA 2007a, p.41). É claro que mesmo sendo apto, o arqueiro pode errar o alvo (o vento soprou forte demais, ele foi dopado sem seu conhecimento por seu adversário etc.).

Assim também é claro que, mesmo apto, um sujeito pode formar uma crença falsa. O requisito para acreditar com aptidão não é, por exemplo, que a crença seja verdadeira, mas que o agente acredite corretamente, onde se entende corretamente como um exercício da competência nas condições apropriadas. Para qualquer crença correta, a correção dessa crença é tributável a uma competência somente se a crença deriva do exercício dessa competência em condições apropriadas para seu exercício e esse exercício nessas condições não produziria muito facilmente uma falsa crença (Sosa 2007a, p.33)6.

Quando uma realização, prática ou intelectual, é creditável a um agente, isso se deve a uma aptidão (para uma competência ou habilidade ou virtude) instalada no agente, cujo exercício é compensado pelo sucesso no seu ato ou atitude. (Sosa 2007a, p.86)

Uma vez que este arqueiro realmente é hábil, então não é meramente uma questão de acaso que ele atinja o alvo. Espera- se que ele acerte o alvo em certas situações que devem envolver o ambiente (a posição em que se encontra, a luminosidade, a velocidade do vento, não estar sob o efeito de uma droga etc.) e a sua performance. Assim, ele acerta o alvo por causa de sua aptidão e não por causa de algum outro fator qualquer (Sosa 2007a, p.28).

Aquilo que se aplica ao arqueiro, deve se aplicar também ao agente cognitivo. Um agente cognitivo não deveria ser alguém que formou uma crença verdadeira ao acaso, mas alguém que tem uma crença verdadeira em uma variedade de circunstâncias relevantemente semelhantes e que envolve suas habilidades para formar crenças verdadeiras.

No caso do arqueiro, o que é requerido para que o tiro seja apto é que ele seja preciso [accurate] porque é hábil [adroit], bem-sucedido porque competente (Sosa 2007a, p.29). Ou seja, para que uma crença seja conhecimento, não é requerida uma invulnerabilidade ao erro, mas aptidão (Sosa 2007a, p.41). É claro que mesmo sendo apto, o arqueiro pode errar o alvo (o vento soprou forte demais, ele foi dopado sem seu conhecimento por seu adversário etc.).

Assim também é claro que, mesmo apto, um sujeito pode formar uma crença falsa. O requisito para acreditar com aptidão não é, por exemplo, que a crença seja verdadeira, mas que o agente acredite corretamente, onde se entende corretamente como um exercício da competência nas condições apropriadas. Para qualquer crença correta, a correção dessa crença é tributável a uma competência somente se a crença deriva do exercício dessa competência em condições apropriadas para seu exercício e esse exercício nessas condições não produziria muito facilmente uma falsa crença (Sosa 2007a, p.33)7.

Quando uma realização, prática ou intelectual, é creditável a um agente, isso se deve a uma aptidão (para uma competência ou habilidade ou virtude) instalada no agente, cujo exercício é compensado pelo sucesso no seu ato ou atitude. (Sosa 2007a, p.86)

6. Aqui surge uma distinção crucial para Sosa entre “conhecimento animal” e “conhecimento reflexivo” (Sosa 2004).

Como vimos, as crenças são um caso especial de performance, performances epistêmicas: quando uma crença é corretamente atribuída à competência exercida nas suas condições apropriadas, isto conta como apta e como conhecimento de um tipo, conhecimento animal (Sosa 2007a, p.93). Aqui, o adjetivo animal não tem qualquer conotação negativa; serve apenas para enfatizar o sentido natural do processo de aquisição de conhecimento e tem como paradigma o conhecimento perceptivo que é adquirido passivamente.

O conhecimento animal requer crença apta sem, porém, requerer uma crença apta defensável, ou seja, uma crença apta que o sujeito acredita de modo apto que ela é apta e cuja aptidão do sujeito pode ser defendida contra dúvidas céticas (Sosa 2007a, p.24).

Como vimos no início, o confiabilismo, enquanto uma forma de externismo epistêmico, declara que o fato de que o agente cognitivo não sabe como ele faz para formar crenças verdadeiras e nem mesmo faz alguma ideia de que seu procedimento é confiável, não o impede de ter conhecimento; conhecimento não exigiria razões. A epistemologia da virtude tem uma inclinação externista e confiabilista e aceita que um agente tenha conhecimento animal se e somente se a sua crença é apta, ou seja: a) a crença é verdadeira, b) é produzida por virtude intelectual, c) o sujeito obtém a verdade porque sua crença foi produzida por suas virtudes intelectuais. Uma crença é verdadeira porque é outorgada à competência do sujeito; ele não chega à verdade por acidente (SOSA 2007a, p.92), mesmo que isso não exija reflexão e crenças meta-cognitivas (se verificarmos nossas vidas, nos daremos conta de que muito do que conhecemos não temos como exercer alguma autoridade epistêmica nem sabemos como justificar por meio de razões).

7. Mas, por outro lado, a epistemologia da virtude também aceita a relevância de algo como uma consciência intencional, pois o agente que está consciente do modo e do meio como que ele forma suas crenças (ou seja, ele tem o cuidado de evitar o erro e toma as evidências disponíveis em conta), será mais virtuoso e, com isso, mais confiável do que alguém que não tem essa atitude. Podemos pensar que para ter conhecimento não é suficiente confiabilidade, é preciso também ter boas razões para pensar que se é confiável. Assim, podemos admitir que a pessoa epistemicamente virtuosa exerce excelências externas (está envolvida em processos confiáveis providos pela natureza, pelas suas virtudes perceptivas, pela sociedade) e excelências internas (um agente seria virtuoso se ele tivesse bons motivos disponíveis para apoiar o que ele acredita).

Para Sosa, o conhecimento reflexivo requer não apenas crença apta, mas uma crença apta que também pode ser defendida como sendo apta (SOSA 2007a, p.24; 2011, p.67- 95). Nas situações onde o agente tem uma crença apta, mas não pode estabelecer por que ela é apta (por exemplo, o caso do caleidoscópio que conta com uma pessoa que manipula a luz), o que lhe falta não é conhecimento reflexivo. O conhecimento reflexivo é adquirido ativamente como resultado de um inquérito intencional; exige que o agente realize ações intelectuais voluntárias: pensando evidências, formulando hipóteses, avaliando objeções, considerando alternativas, formulando conjecturas, como no caso da ciência, da filosofia etc. (ROBERTS & WOOD 2007). Por isso, o conhecimento reflexivo vai além do conhecimento animal (mas isso não significa que é melhor do que ele) e requer também uma apreensão apta de que a crença é apta (SOSA 2007a, p.108).

O conhecimento animal não requer que o agente cognitivo tenha uma “perspectiva epistêmica” acerca das suas crenças, uma perspectiva a partir da qual ele endossa a fonte da sua crença e que ele pode estabelecer que tal fonte é confiável para produzir a verdade (SOSA 2009a, p.135). O conhecimento reflexivo requer essa condição adicional e aceita a ideia de “graus” de conhecimento – pessoas conhecem coisas melhor do que outras pessoas. A aquisição reflexiva de conhecimento implica em perseguir um objetivo guiado pela própria inteligência, curiosidade, interesse, informação e deliberação.

8. Por fim, como Sosa responde à pergunta de Platão/ Sócrates acerca do valor do conhecimento? O conhecimento é mais valioso do que a simples crença porque é expressão das virtudes intelectuais de uma pessoa. Uma pessoa tem conhecimento se ele chega ao conhecimento porque sua crença foi produzida por suas virtudes intelectuais; o agente chegou à crença verdadeira por causa das suas próprias virtudes e, assim, merece crédito por isso (SOSA 2011, p.4).

Na minha opinião, essas ideias contidas no livro Epistemologia da Virtude são uma boa inspiração para voltarmos nossas atenções para o valor do conhecimento e para o lugar que a reflexão ocupa nas nossas vidas cognitivas. Não porque Sosa esteja certo – e talvez não esteja, seus críticos não cansam de indicar erros, imprecisões, obscuridades8 –, mas porque isso é uma boa razão para continuarmos fazendo investigações filosóficas.

Notas

1 Entre essas publicações, destaque para Sosa & Tooley (1993), Kim & Sosa (1996; 1999) e Lackey & Sosa (2006).

2 Em outro lugar discuto alguns pontos da Epistemologia Responsabilista da Virtude, especialmente o tema do “valor do entendimento” em Zagzebski e Kvanvig (Silva Filho 2013b).

3  São cinco os modos de Agripa: desacordo, regresso ao infinito, relatividade, hipótese e circularidade (sobre o trilema, ver Williams 2001, p.58-68).

4 Aqueles que aceitam “b” defendem uma posição chamada de infinitismo (Klein 1999), mas isso não interesse ao escopo desta resenha.

5  É importante não confundir internismo/externismo em epistemologia como a disputa internismo/ externismo em filosofia da mente e semântica filosófica. Em filosofia da mente, o problema orbita em torno de estabelecer a natureza do conteúdo de expressões oblíquas que envolvem termos psicológicos como “penso que”, “imagino que” etc. O externismo defende que os conteúdos dos estados mentais intencionais de um sujeito, como pensamentos e crenças, dependem lógica ou conceitualmente do entorno físico e social externo a esse sujeito: se eu penso ou acredito que há água no copo esse meu pensamento depende do fato de que há água no copo. O que determinaria, ao menos em parte, o conteúdo dos nossos pensamentos e crenças – usemos o jargão filosófico e falemos de atitudes proposicionais – são as relações que o sujeito mantém com o mundo externo. Para o internismo, os conteúdos são determinados inteiramente por propriedades intrínsecas do sujeito (Goldberg 2007; Kallestrup 2012. Eu dediquei um livro às consequências desse debate para a noção de racionalidade (Silva Filho 2010).

6 Isso serve para resolver o problema de Gettier – que crenças podem ser verdadeiras e justificadas, mas, mesmo assim, não ser conhecimento – e o problema do valor do conhecimento – qual a diferença entre crença verdadeira e conhecimento? Para Sosa, crenças podem ser verdadeiras e justificadas sem serem aptas, ao passo que para constituir conhecimento, a crença deve ser apta, não somente verdadeira e justificada (Sosa 2007a, p.33).

7  Isso serve para resolver o problema de Gettier – que crenças podem ser verdadeiras e justificadas, mas, mesmo assim, não ser conhecimento – e o problema do valor do conhecimento – qual a diferença entre crença verdadeira e conhecimento? Para Sosa, crenças podem ser verdadeiras e justificadas sem serem aptas, ao passo que para constituir conhecimento, a crença deve ser apta, não somente verdadeira e justificada (Sosa 2007a, p.33).

8 Em outro lugar discuto criticamente alguns pontos da epistemologia de Sosa (Silva Filho 2013a).

Referências

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Waldomiro Silva Filho – Pesquisador do CNPq e Professor Associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. E-mail: [email protected]

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Testemunhos, fragmentos, discursos – ANTIFONTE (RA)

ANTIFONTE. Testemunhos, fragmentos, discursos. Edição Bilíngue (grego-português). Prefácio e Tradução por Luís Felipe Bellintani Ribeiro. São Paulo: Edições Loyola, 2008. Resenha de: COSTA, Alexandre. Revista Archai, Brasília, n.6, p.135-138, jan., 2011.

Elogie-se de imediato a feliz iniciativa do tradutor e organizador desta edição, da qual resulta um volume como deve ser para este caso: muito bem prefaciado, ainda que sucintamente, exemplarmente traduzido e apresentado em edição bilíngue. A respeito deste último aspecto, deve- se ressaltar que se trata de uma decisão mais do que ajustada, necessária, visto que uma obra com este perfil, direcionada que é a um público especializado, não teria o menor sentido de ser publicada se não ofertasse, lado a lado com o trabalho de tradução, os textos do autor em seu idioma original, o antigo grego. Dentre os testemunhos, fragmentos e discursos que compõem a edição, há alguns poucos que foram conservados em outras línguas que não o grego, caso do latim e até mesmo do alemão, todos vertidos para o português com igual competência.

Vale também destacar, a título de reconhecimento, que embora os textos sejam de autoria de Antifonte, Luís Felipe Bellintani Ribeiro 1 pode e deve ser considerado o autor, não dos textos, claro está, mas da sua edição, ainda que sua assinatura conste apenas como prefaciador e tradutor do volume. Quem lida com a tradução de textos clássicos sabe perfeitamente bem que a tarefa de traduzi-los para o vernáculo é apenas uma das muitas que têm que ser enfrentadas e concluídas para que se leve a cabo uma empresa de tal natureza e alcance, resultando por isso num trabalho sempre muito mais autoral do que pode parecer à primeira vista. Isto posto, permito- me referir-me a Ribeiro de agora em diante como o autor deste volume dedicado ao que nos restou das obras de Antifonte.

Concluindo as considerações gerais a respeito da edição aqui em análise, deve-se louvá- la também pela preciosa contribuição que presta aos estudos na área de filosofia e literatura antiga em nossa língua, enriquecendo-nos ao oferecer a possibilidade de travar contato mais estreito e mais bem orientado com a obra e com o pensamento de um eminente porém pouco estudado filósofo, sofista e orador grego do século V a.C.

Convém observar que não estamos diante de uma edição crítica na acepção do termo. Os critérios científicos e formais para tanto passam, entre outros aspectos, pelo manuseio direto dos papiros e fontes doxográficas diversas que contêm os textos através dos quais a obra de um determinado autor nos foi legada, ainda que fragmentariamente, como é o caso da imensa maioria dos autores gregos do período em questão,  cujas  obras  originais  foram lamentavelmente perdidas. Nosso acesso a elas, além de se dar por meio de fragmentos, constitui- se por intermédio do que se convencionou nomear por esse motivo tradição doxográfica  indireta. Uma vez mais, quem lida com essa atividade e ofício conhece bem do que se trata, e reconhece, igualmente, que a conclusão de uma edição formalmente crítica redunda num trabalho substancialmente diferente se comparado a este outro gênero, igualmente crítico, em que se apresenta um trabalho de tradução que se permite ser mais audacioso e autoral justamente porque colige e decide tanto a seleção, como a ordem e as possíveis variantes dos textos de acordo com os critérios que considerar os mais acertados. A esse respeito, o autor talvez pudesse ser um pouco mais generoso na explicitação de seus critérios de seleção. Não que não estejam expostos, mas poderiam ser mais largamente considerados.

No presente caso, esse aspecto autoral revela-se especialmente acirrado, já que ninguém sabe exatamente ao certo quem foi e quantos foram Antifonte, o que obriga o autor a fazer uma série de decisões capitais, tornando o seu “corte”e a sua relação com o conjunto dos textos algo consideravelmente pessoal. Ele terá que decidir, por exemplo, quem é Antifonte ou qual dentre os possíveis Antifontes será ou não incluído na obra, sem que possa, no entanto, contar com informações efetivamente seguras a esse respeito e sem poder ter, por conseqüência, a pretensão da última palavra, por mais versado possa ser no assunto. Quanto a isso, diga-se logo, a sensibilidade de Ribeiro para este delicado problema que o autor expõe sintética porém agudamente no prefácio é novamente exemplar.

Por essa razão o prefácio é quase que integralmente dedicado à consideração desse problema, uma vez que precede à própria necessidade de apresentação da vida e da obra de Antifonte, afinal, como fazê-lo se não há qualquer consenso acerca de quem tenha sido? Diante disso, o autor argutamente participa ao leitor do incrível leque de possibilidades a respeito, tomando a igualmente arguta postura de quem sabe que, por vezes, aprofundar o problema requer precisamente não querer solucioná-lo a todo e qualquer custo, o que exige o difícil exercício de abandonar a nossa costumeira ânsia por soluções definitivas e pretensamente incontestes. Ribeiro não “fecha”um Antifonte, abre-o praticamente em todas as suas possibilidades, enriquecendo-o. Essa postura é tão fundamental quanto determinante para o desenho da obra, posto que os textos que poderiam ou não fazer parte da edição ficam definidos de acordo com essa decisão. Caso se decidisse exclusivamente por este ou aquele suposto Antifonte, a edição poderia resultar num volume de texto muito inferior àquele que apresenta. A decisão do autor favorece, portanto, a diversidade e a extensão do material que nos oferece à leitura.

Para que se tenha uma ideia da complexidade do problema, uma rápida consulta ao  The Oxford Classical Dictionary inteira-nos da existência de três distintos Antifontes, apresentando-os portanto em verbetes diferentes, mas, em todos eles, zela por indicar a possibilidade de que sejam um e o mesmo Antifonte. Daí que o prefácio presta-se sobremaneira à problematização dessa pergunta pela vida e pela obra do autor a quem o volume se dedica. Ficamos sabendo que essa pluralidade construiu-se historicamente em conformidade com os vários e desencontrados testemunhos doxográficos, muitos deles constando da primeira grande parte da edição, em que o leitor encontrará o melhor modo de tatear tamanha pluralidade.

Neste ponto, sublinhe-se a fluidez que o autor revela nesse pedregoso terreno. É que por esse motivo a atual literatura especializada divide-se em duas correntes principais: a dos separa-tistas, que distinguem pelo menos mais do que um Antifonte, e a dos unitaristas, que defendem a ideia de se tratar de um único autor desdobrado em vários afazeres e múltiplos talentos. A questão torna-se ainda mais aguda quando se atenta para o fato de que, sendo Antifonte um ou vários, é certo que uma dessas faces é a de um sofista, o que tenderia a favorecer a corrente separatista, plural, dada a noção que geralmente carregamos a propósito da sofística e de sua heterodoxia.

Em meio a esse mar de incertezas, Ribeiro não cede a nenhuma dessas duas linhas e finca os seus pés na decisão que beneficia a sua edição com o máximo de liberdade e pluralidade textual, tal como referi acima. Afastando-se da obsessão por definir quem foi ou quem foram Antifonte, o autor escolhe todos eles a um só tempo, afinal, se o problema mostra-se de fato insolúvel, o que legitimaria este ou aquele corte? Sobre Antifonte fica-nos apenas a certeza de que foi figura(s) absolutamente fascinante(s), desde orador a logógrafo; desde mestre de retórica a intérprete de sonhos; desde poeta trágico a sofista, passando ainda pela quase inaudita função de logoterapeuta, aquele que defendia poder curar as pessoas de suas mazelas e tristezas através do discurso. Digo “quase inaudita”pois parece que Empédocles, a crer em seu próprio testemunho, já fazia o mesmo 2.

Quanto ao trabalho de tradução propriamente dito, o autor revela grande intimidade com o idioma de origem dos textos, deixando exalar de suas versões para o português notória fluência na língua a que se propõe traduzir, do que resulta um trabalho de homogênea excelência ao longo de todo o extenso material apresentado, dividido em três partes: testemunhos, fragmentos e discursos. A seleção desse material revela também notório entusiasmo pelo autor a quem se dedica e considerável fôlego. Assinale-se ainda a boa qualidade do texto em português, elementos que nem sempre andam juntos em matéria de tradução, a saber, (1) a proficiência na língua a ser vertida e (2) a correção de forma e a agradabilidade de estilo na língua para qual os escritos são vertidos.

Alguns senões, contudo, devem ser referi- dos, todos muito mais formais do que de conteúdo: a) a opção de entremear os textos de Antifonte com comentários seus, seja para esclarecer algum termo ou situação, seja para aclarar o teor de uma determinada tradução ou para aludir este ou aquele problema de caráter filosófico, fazendo-os constar ali entre parêntesis, parece-me solução não-satisfatória; o uso de notas de rodapé deixaria não só os textos de Antifonte visualmente mais limpos como estilisticamente mais fluidos, assim como legaria ao leitor maior liberdade quanto a ler e quando ler os referidos comentários; b) sente-se a falta de índices que só enriqueceriam a edição, não como se fossem um desnecessário artigo de luxo, mas porque auxiliam efetivamente o estudioso que ambiciona empreender um mergulho mais incisivo nos escritos apresentados; neste sentido, um índice onomástico e um índice dos termos gregos mais relevantes seriam de grande apreço, e (C) apesar da boa qualidade do prefácioaqui justamente elogiado por conseguir brevidade e agudeza simultaneamente –, o grau de complexi- dade das questões em torno ao estabelecimento da obra de um autor tão rico quanto controverso mereceria  uma  introdução,  em  que  se ampliassem e se aprofundassem o sem-número de questões e de problemas de interesse, inclusive de conteúdo genuinamente filosófico, como a questão da oposição entre phýsis e nómos que, não contando com um maior número de páginas, viu-se obrigado a quedar-se um tanto espremido em meio às poucas páginas do prefácio. Se esta constitui uma das poucas reticências à edição, por outro lado só o é porque o autor dá claras mostras que poderia fazê-lo melhor e mais extensamente; qualidade e entusiasmo não lhe parecem faltar.

Por fim realço novamente a sábia opção por ampliar ainda mais a já ampla figura de Antifonte: a definição do autor pela indefinição acaba tornando ainda mais fascinante e plural um personagem já sempre plural e fascinante. Quem é Antifonte? Também não sei, estão aí os textos! O que, por sua vez, exige encerrar esta resenha com um misto de solicitação e incentivo que tal um segundo volume, dedicado à interpretação dos diversos escritos do(s) múltiplo(s) Antifonte(s)?

Notas

  1. Professor do departamento de filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro.
  2. EMPÉDOCLES, B112, 8-12: “venerado sou por homens e mulheres, que me seguem, aos milhares, querendo saber por onde é o caminho ao lucro, alguns carentes de oráculos, outros com doenças de todo tipo, consultam-me para ouvir minha palavra de cura, longamente traspassados de graves dores.”

Alexandre Costa – Doutor em filosofia pela Universidade de Osnabrück, Alemanha. Publicou dois livros sobre o pensamento e a obra de Heráclito de Éfeso: Heráclito: fragmentos contextualizados (Edição brasileira: Rio de Janeiro, Difel, 2002/Edição portuguesa: Lisboa, INCM, 2005) e Thánatos: da possibilidade de um conceito de morte a partir do lógos heraclítico  (Porto Alegre, EDIPUCRS, 1999)..

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Observações filosóficas – WITTGENSTEIN (Ph)

WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações filosóficas. Trad. por Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2005. Resenha de: PORTO, André. Philósophos, Goiânia, v.14, n. 2, p.209-217, jul./dez., 2009

Reza a “versão oficial” da história da filosofia, do final do século XIX para cá, que o ponto de separação entre as duas grandes tradições filosóficas do século XX – a tradição analítica e a fenomenológica – teria se dado após a publicação da resenha de (FREGE, 1997) à Filosofia da Aritmética de (HUSSERL, 2006). Daí em diante, segundo a versão normalmente aceita, essas duas tradições teriam tomado caminhos divergentes e até opostos. Tentativas (tímidas) de reaproximação só teriam começado a se dar no final do século XX.

De certa forma, o volume Observações Filosóficas, publicado em tradução brasileira em 2005 pela Loyola, desmente essa versão oficial. Nessa obra (e no Big Typescript), ambas do assim chamado “período intermediário” de Wittgenstein, encontramos o autor se aproximando de temas tradicionais da filosofia moderna tais como o problema do Idealismo e do Solipsismo3 e, mais surpreendente ainda, se aproximando de temas caros à fenomenologia de Husserl, como o problema da temporalidade da experiência imediata. Não exageremos a convergência. Para Wittgenstein, ainda se trata de “esclarecer a gramática” desses vários tipos de proposições e não de “descrever a estrutura da subjetividade imediata”, como em Husserl. Ainda assim, é difícil de não se perceber uma agenda de questões comuns entre, digamos, as famosas Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo, de Husserl (HUSSERL, 1994), e os capítulos V e VI das Observações Filosóficas, de Wittgenstein.

Esse surpreendente envolvimento do filósofo com temas advindos do coração da filosofia da consciência parece, por vezes, ter produzido reações estranhas nos seguidores do autor do famoso argumento contra a linguagem privada. Até onde vai o conhecimento desse resenhista, o primeiro volume que se dedica diretamente à exegese desse material foi publicado apenas em 1995, por David Stern (STERN, 1995). E até os dias de hoje, não parece exagero dizer-se que o trabalho de análise mais aprofundada dessas ideias ainda se encontra em seus estágios iniciais4.

Até mesmo do ponto de vista de acesso bibliográfico, o trabalho dos comentadores estava, até há bem pouco tempo, dificultado. A publicação em inglês de Philosophical Re-marks data 1975. Mas a obra fundamental do período intermediário, o monumental Big Typescript, só foi efetivada em 2005. Antes disso, tínhamos apenas o estranho pastiche chamado de Philsophical Grammar.5 Ora, naquela obra, ape-nas uma das duas partes (a parte II), trás textos extraídos do Big Typescript. O resto do material, incluindo temas como Idealismo, Fenomenologia, Tempo da Memória, foram deixados de lado. No lugar deles, encontramos uma reconstrução, feita por Rush Rhees, a partir de várias revisões diferentes de Wittgenstein do material do Big Typescript, algumas delas contemporâneas ao Livro Azul! (VON WRIGHT, 1982, p.50; STERN, 1996). Além disso, o acesso aos outros numerosos manuscritos do período só foi viabilizado de forma mais geral a partir da publicação (em alemão) de (WITTGENSTEIN, 1999) e da Edição Berger (WITTGENSTEIN, 2000). Tem-se por vezes a impressão de que os executores do testamento de Wittgenstein hesitavam em tornar público esses embaraçosos envolvimentos de seu mestre com a famigerada filosofia da consciência6.

Passemos ao texto de Wittgenstein. As Observações Filosóficas são a reunião, um tanto apressada, dos resultados das pesquisas filosóficas do filósofo, de seu retorno a Cambridge em Janeiro de 1929, até Maio de 1930. Como nos informa Rhees, nessa última data o Conselho do Trinity College solicitou a Russell um parecer sobre os progressos de Wittgenstein, com vistas à renovação de sua bolsa de pesquisador (WITTGENSTEIN, 2005, p.287). O texto das Observações Filosóficas é fundamentalmente uma reunião e organização do material filosófico constante de 4 cadernos manuscritos por Wittgenstein, os manuscritos 105 até 109 com vistas a esse parecer. No material original, não havia nenhuma marcação de interrupção no texto. A organização atual em capítulos, e o sumário detalhado que encontramos no início da obra (WITTGENSTEIN, 2005, pp. 11-33) foram feitos por Rhees, mas já estão consagrados pela comunidade filosófica. De fato, eles ajudam muito a visão sinóptica da obra, tão cara a Wittgenstein7.

Em uma famosa carta a Schlick, Wittgenstein afirma que havia retornado a Cambridge e à pesquisa filosófica para “trabalhar sobre o espaço visual e outros assuntos”. (WAISMANN, 1979, p.17) A observação nos dá uma chave para uma das linhas de desenvolvimento principais da obra. Como muito do que ocorre nesse período intermediário, as origens da preocupação de Wittgenstein com o espaço visual estão no Tractatus. Como sabemos, segundo aquela obra, por trás de nossas proposições ordinárias se esconderia uma intrincada forma lógica, complexas estruturas puramente verofuncionais de proposições elementares, não passíveis de ulterior análise. Essas proposições elementares, por sua vez, projetariam estados de coisas atômicos, eventos mínimos do espaço lógico tractariano.

Pois bem. Uma mutação filosófica importante que abre o período intermediário é a definição, por Wittgenstein, da natureza desses eventos mínimos, os estados de coisas. 8 Em 1929, esses eventos mínimos são claramente determinados como sendo fenômenos, ocorrências em nossos espaços sensoriais. Daí o interesse de Wittgenstein no espaço visual como espaço fenomênico por excelência. Dada essa mutação, o processo de análise preconizado pelo Tractatus transforma-se então em descrição fenomênica. É isso que encontramos nos primeiros manuscritos de Wittgenstein na época (MS105 e 106) e no famoso artigo de Wittgenstein Some Remarks on Logical Form de Junho de 1929: o uso extensivo de coordenadas para empreender uma descrição fenomenológica com a “correta multiplicidade” e assim fornecer uma análise (ainda final) das proposições ordinárias. (WITTGENSTEIN, 1993, p.31)

Rapidamente, a própria possibilidade de se postular uma análise assim é posta em dúvida por Wittgenstein. Ao invés de encontrarmos a linguagem primária (fenomênica) postulada por Wittgenstein como resultante da análise lógica das proposições ordinárias (chamada na época de linguagem secundária), essas duas linguagens ganham independência uma da outra. A linguagem primária mantém com a secundária apenas uma relação na verificação: os conteúdos da linguagem ordinária fisicalista (secundária), uma vez restringidos às suas implicações estritamente fenomênicas, dariam lugar a expressões da linguagem primária que, por sua vez, seria então verificada ou falseada pela experiência.

O projeto original de Wittgenstein tem uma série muito rápida de desdobramentos e alterações, no período. O problema das coordenadas desencadeia uma longa investigação, na filosofia da matemática, sobre os números irracionais e sobre a noção de número em geral. Por sua vez, o abandono da ideia de uma única sintaxe lógica em prol de uma multiplicidade de gramáticas lógicas independentes oferece a Wittgenstein uma nova maneira de tratar os problemas fundamentais da filosofia da consciência que mencionamos no início dessa resenha: o problema da subjetividade, da temporalidade, etc. O período intermediário é muito rico e de extraordinária importância para se aquilatar corretamente, não somente o período final, maduro, da filosofia de Wittgenstein, mas, como antecipamos, para lançar uma nova luz sobre as relações entre a filosofia analítica e fenomenológica no século XX.

Uma nota sobre a tradução brasileira. Infelizmente, como tantas vezes acontece em nosso país, a presente tradução deixa a desejar em muitos aspectos. Uma primeira deficiência decorre do fato dessa tradução ser indireta. Ao invés de usar o texto original, em alemão, empreendeu-se uma tradução da versão inglesa (WITTGENSTEIN, 1975). Ora, a tradução de 1975 não prima pela precisão, tanto na escolha dos termos equivalentes, mas até mesmo do trabalho editorial geral: há uma frase interia do parágrafo 48 do original alemão que foi omitida, por descuido, na versão inglesa (a omissão foi repetida na versão brasileira).

As deficiências da tradução inglesa foram multiplicadas na brasileira. Tomemos como exemplo, os termos alemães Bild e Vorstellung. Na Nota do tradutor do texto inglês para o português, no final do volume (WITTGENSTEIN, Observações Filosóficas, 2005) os tradutores corretamente elegem a tradução de Bild por afiguração (proposta consagrada na tradução do Tractatus do professor Luiz Henrique dos Santos). Porém, em parte seguindo as opções de seus colegas ingleses, os tradutores brasileiros traduzem Bild algumas vezes por imagens [figurações]. A confusão atinge o clímax quando o termo Vorstellung também é traduzido por imagem e até mesmo por imagens [figurações]! Assim, por exemplo, temos o trecho:

Sabemos o que é uma imagem [figuração], mas as imagens [figurações], com certeza, não são nenhum tipo de imagem [figuração] (Sic) (WITTGENSTEIN, 2005, p.66).

Notas

1 Esses temas já tinham sido enunciados nos parágrafos 5.6 do Tractatus, mas é nesse período intermediário que eles recebem uma atenção não dividida por parte de Wittgenstein.

2 Em nossa língua, temos o importante trabalho do professor Bento Prado Neto (PRADO NETO, 2003).

3Traduzido em Português como (WITTGENSTEIN, 2003).

4 Von Wright é taxativo em classificar esse material como sendo de “valor intrínseco menor” (VON WRIGHT G., 1984, p.13).

5 Uma divisão em capítulos e seções do Big Typescript, semelhante a das Observações Filosóficas, é feita diretamente por Wittgenstein.

6 Ou a explicitação de uma definição que já estava implícita no Tractatus, segundo alguns autores.

7 Essa confusão tem início na tradução inglesa, que verte o termo Bild algumas vezes por image ao invés de Picture.

REFERÊNCIAS

FREGE, G. (1997). Review of E.G. Husserl ‘Philosophie der Arithmetik’. In: M. BEANEY, Frege Reader (pp. 224-226). Oxford: Blackwell.

HUSSERL, E. (1994). Lições para uma fenomenologia da Consciência Interna do Tempo. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.

HUSSERL, E. (2006). Philosophy of Arithmetic. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.

KENNY, A. (1976). From the Big Typescript to the Philosophical Grammar. In: G. H. VON WRIGHT, Essays on Wittgenstein in honour of G. H. von Wright (pp. 41-59). Amsterdam: North Holand.

PRADO NETO, B. (2003). Fenomenologia em Wittgenstein: Tempo, Cor e Figuração. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

STERN, D. (1996). The availability of Wittgenstein’s Philosophy. In: H. SLUGA, & D. STERN, The Cambridge Companion to Wittgenstein (pp. 442-76). Cambridge: Cambridge University Press.

STERN, D. (1995). Wittgenstein on Ming and Language.  Oxford: Oxford University Press.

VON WRIGHT, G. (1984). A Biographical Sketh. In: N. MALCOLM, Ludwig Wittgenstein, a memoir (pp. 3-20). Oxford: Oxford University Press.

VON WRIGHT, G. (1982). The Wittgenstein Papers. In: G. VON WRIGHT, Wittgenstein (pp. 35-62). Minneapolis: University of Minesota Press.

WAISMANN, F. (1979). Wittgenstein and the Viena Circle. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (2003). Gramática Filosófica. São Paulo: Edições Loyola.

_____. (2005). Observações Filosóficas. São Paulo: Edições Loyola.

WITTGENSTEIN, L. (1974). Philosophical Grammar. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (1975). Philosophical Remarks. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (1993). Some Remaks on Logical Form. In: L. WITTGENSTEIN, Philosophical Occasions, 1912-1951 (pp. 28-36). Indianapolis: Hacket Publishing Company.

WITTGENSTEIN, L. (2005). The Big Typescript. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (1994). Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp.

WITTGENSTEIN, L. (1999). Wiener Ausgabe Studien  Texte: Band 4: Bemerkungen zur Philosophie. Bemerkungen zur philosophischen Grammatik . Nova Iorque: Springer.

WITTGENSTEIN, L. (2000). Wittgenstein’s Nachlass: The Berger Edition. Oxford: Oxford University Press.

André Porto – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UGF), Goiânia, Goiás. E-mail: [email protected]

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João José Reis – Professor da UFBA. Autor de Amorte é uma festa (Companhia das Letras, 1991) entre outros livros.

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