Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da metafísica – ANTUNES (EL)

ANTUNES, Jadir. Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da metafísica. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 5, p. 115 – 118, dez. 2018/mai., 2019.

O Capital de Karl Marx é ainda hoje uma obra atual e necessária para interpretação e crítica da sociedade capitalista. Não obstante, trata-se de um texto longo e denso. A obra é composta por três livros divididos em cinco volumes. Vale lembrar ainda que apenas o Primeiro Livro foi publicado por Marx, em 1867, os demais foram editados por Engels e publicados em 1885 e 1894, respectivamente.

Esta é reconhecidamente a obra fundamental de Marx, a qual ele dedicou a maior parte de sua vida para elaboração e a que melhor representa o seu pensamento maduro. Porém, é preciso destacar que não se trata de uma leitura rápida e simples. Sua interpretação exige dedicação e esforço que podem se arrastar por meses, anos e décadas. Por conseguinte, não são muitos os pesquisadores que se arriscam nessa difícil empreitada.

Uma das grandes dificuldades, reconhecida por diversos interpretes e pelo próprio Marx, reside na exposição abstrata da Primeira Seção, intitulada “Mercadoria e dinheiro”, e que compreende os três primeiros capítulos. Esta é considerada a parte mais difícil. Prova disto é que Marx a reelaborou sucessivas vezes. A exposição sobre o problema da interpretação teórica do dinheiro aparece em Contribuição à crítica da Economia Política de 1859, nos Grundrisse, e em O Capital. Na 2ª edição desta última, de 1872, edição revisada, Marx apresentou um posfácio, no qual demonstrou seu descontentamento com o texto original de 1867 e o modificou, suprimiu passagens, sempre buscando aprimorar a exposição, tornando-a mais acessível e compreensível. Todavia, as dificuldades persistiram.

É justamente sobre essa difícil e espinhosa Primeira Seção que o livro de Jadir Antunes se debruça. O autor vem estudando O Capital de Marx desde a sua graduação em Economia, concluída em 1999, passando por mestrado (2002) e doutorado (2005) em Filosofia. O livro Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da Metafísica é resultado destes 20 anos de estudos e pesquisas dedicados ao pensamento econômico e filosófico.

A proposta do livro de Antunes é desvendar o problema em torno da mercadoria dinheiro e, nessa empreitada, apresenta uma interpretação filosófica d´O Capital, demonstrando que a crítica de Marx não é apenas à Economia Política, mas, fundamentalmente, uma crítica à Metafísica. Como salienta o autor: “A crítica de Marx à Economia Política deve ser interpretada de maneira mais crítica, mais radical, mais ampla e filosófica como crítica da Metafísica Moderna, da Metafísica agora encarnada no mercado, na mercadoria e no dinheiro”. (2018, p. 17).

Ao longo de cinco capítulos, a interpretação de Antunes evidencia que a crítica que Marx apresenta em O Capital é uma crítica à Metafísica, ou melhor, aos poderes metafísicos que as relações capitalistas adquirem e se revelam desde a análise da mercadoria. A concepção de que o mundo industrial, racional e científico teria fechado as portas para as especulações metafísicas é rejeitada por Marx. No mundo em que a riqueza aparece na forma de mercadorias e dinheiro, a Metafísica não foi liquidada. Pelo contrário, a Metafísica apenas abandonou o terreno da religião e do pensamento para, sob o domínio da sociedade capitalista, reaparecer pela ação humana sob novas formas. Dessa forma, Antunes nos apresenta uma interpretação original e audaciosa.

Já no início da exposição, ao se discutir o duplo caráter da mercadoria, revela-se a realidade metafisicamente duplicada, invertida e cindida da mercadoria. Para além dos seus aspectos econômicos, materiais, sensíveis e concretos, a investigação sobre a Teoria do valor, apresenta as “tramoias Metafísicas” da mercadoria que arranca o pensamento do mundo visível e concreto, levando-o ao mundo de categorias abstratas e misteriosas. O valor é a realidade destituída de qualquer visibilidade, sensibilidade e naturalidade.

O valor de uso revela um o mundo sensível, material, concreto, da natureza perceptível. O valor de troca e o valor revelam o mundo inteligível, suprassensível, não natural, abstrato e não sensível. A Metafísica duplica essa realidade e a inverte, transformando o além e todos os conceitos suprassensíveis em princípios da realidade que explicam a realidade concreta. A Metafísica ainda autonomiza o mundo inteligível. Cria a ideia de que há um ente abstrato que governa toda a realidade concreta e material.

E assim, desde o duplo caráter da mercadoria, avançando pelo duplo caráter do trabalho, revelando a forma do valor, Antunes, seguindo a letra de Marx e cotejando as duas primeiras edições d´O Capital, avança até a forma dinheiro. Este é entendido como a superação das formas equivalente menos desenvolvidas, como aquele que deu ao mundo das formas relativas da riqueza a sua forma mais acabada.

O dinheiro, enquanto mercadoria das mercadorias, adquiriu poderes misteriosos e fantásticos. De acordo com Antunes: “O ente dinheiro instaura um cosmos no mundo do ente mercadoria, aparentemente ausente na forma geral e desdobrada de valor. O ente dinheiro instaura a vitória completa da Metafísica sobre o vivido, a phisis, a arte e o sensível”. (2018, p. 208). Antunes busca revelar que para Marx, o dinheiro é a expressão mais desenvolvida da Metafísica do capital.

Ao discutir o problema do fetiche, Marx, de acordo com Antunes, busca evidenciar que os homens têm uma relação dupla com o mundo. Ao longo de toda a exposição, o autor elucida que a realidade capitalista está divida sob uma dupla dimensão: a dimensão sensível e natural e a suprassensível e social. A mercadoria e o trabalho apresentam esta dupla e contraditória determinação. Com efeito, é deste caráter duplo, relativo, metafísico e contraditório que surge o fetiche.

O grande objetivo de Antunes em seu livro é demonstrar que O Capital de Marx é um estudo lógico, conceitual, abstrato e filosófico e, em certo sentido, Metafísico. Desta maneira, Marx não estaria interessado em apresentar um estudo empírico sobre o desenvolvimento do capitalismo, mas sim, em investigar e expor sua gênese lógica, ontológico e conceitual. Antunes busca demonstrar que para Marx, o dinheiro surge como resultado necessário e racional da própria mercadoria, como uma forma desenvolvida do ente mercadoria, como forma sensível e desdobrada da antítese entre valor de uso e valor contida no interior da forma mercadoria. O dinheiro aparece então como figura autonomizada e reificada do valor.

Na perspectiva apresentada por Antunes, a análise de Marx não pode ser inteiramente compreendida se resumida aos seus aspectos econômicos. É preciso trazer à superfície o seu conteúdo filosófico. Trata-se de desvendar o enigma da mercadoria e do dinheiro a partir do seu sentido filosófico e metafísico. Assim, a crítica à Economia Política é também uma crítica à Filosofia Metafísica. O livro se destaca por trazer à luz o problema filosófico que, muitas vezes, parece ser menosprezado. Nessa perspectiva, a obra apresentada por Antunes merece a atenção dos estudiosos de Marx. Trata-se de um livro que merece ser lido, discutido e comentado.

Carlos Prado – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor do curso de História da UFMS/FACH.

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O problema da crise capitalista em O Capital de Marx – BENOIT; ANTUNES (EL)

BENOIT, Hector; ANTUNES, Jadir. O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 88-90, dez. 2016/mai. 2017.

Em meados de 2008, as contradições da produção capitalista, muitas vezes escondidas e camufladas pela fumaça do crescimento econômico, vieram à tona com o pedido de concordata do Lehman Brothers. A notícia da quebra de um dos bancos mais importante do mundo abalou as estruturas do mercado. A crise que sempre parecia atingir apenas os países periféricos se instalou no centro do capitalismo mundial. A crise chegou em Wall Street. A quebra do Lehman Brothers foi apenas o estopim de uma crise que ainda se arrasta. Mais uma vez, as ilusões liberais que defendem o livre mercado e o Estado mínimo se desmanchavam no ar.

As esperanças liberais de que a economia se recuperaria rapidamente não se concretizaram. Pelo contrário, diante de medidas provisórias que não alteram a lógica produtiva capitalista, a crise persiste. A economia mundial segue apresentando baixos níveis de crescimento e a desaceleração da economia chinesa é um fator determinante nesse processo. O receituário burguês para a aceleração econômica continua sendo a implantação de políticas de austeridade, que culminam no aumento do desemprego, no arrocho salarial, no prolongamento da jornada de trabalho e no corte de programas sociais. Enfim, na busca de salvar a “economia”, os trabalhadores são os primeiros a sofrer com a ofensiva do capitalismo em crise.

É nesse cenário incerto e de questionamentos à lógica da produção capitalista que a obra de Marx mostra mais uma vez sua vitalidade e atualidade. A crítica à economia política realizada em O Capital é indispensável para se pensar a realidade capitalista, suas contradições e sua superação. E é justamente esse o objetivo do livro de Hector Benoit e Jadir Antunes: O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Em primeiro lugar, temos que dizer que o conceito de crise é um dos principais problemas tratado pelos marxistas ao longo do século XX. E mesmo diante de uma vastíssima produção acerca da questão, o texto de Benoit e Antunes consegue apresentar uma análise original, realmente inovadora e inspiradora, pois lança luz em uma problemática cada dia mais atual e urgente, principalmente para pensarmos a transformação da atual sociedade.

O livro que é o objeto dessa resenha foi lançado pela primeira vez em 2009, no rastro do surgimento da crise. O título era O movimento dialético do conceito de crise em O capital de Karl Marx. Mas não foi apenas o título que se alterou, segundo os autores, o texto passou por uma revisão e ampliação, tornando-se mais sintético e assumindo uma forma definitiva. Nessa nova edição, o livro também conta com um prefácio escrito por Benoit que apresenta o cenário no qual essa problemática foi pensada e também com uma apresentação assinada pelo professor Plínio de Arruda Sampaio Júnior, do Instituto de Economia da Unicamp. Esses dois textos contribuem para enriquecer ainda mais essa nova edição.

O problema em torno das crises já foi objeto de investigação de diversos estudiosos marxistas. Contudo, a questão permanece sem uma conceituação que seja amplamente aceita. Não se chegou a um veredicto sobre esse tema. Muitos autores investigam esse conceito buscando encontrar uma passagem na obra de Marx onde ele apresentasse a “causa” das crises. É por meio dessa noção de causalidade de base empirista que autores clássicos como Kaustky, Luxemburgo, Hilferding, Grossman, Sweezy, Mandel, entre outros, apresentam a questão. Assim, a chave para entender a crise seria identificar a sua causa primeira. Nesse debate, alguns defendem que a causa seria a desproporção entre o departamento produtor de meios de produção e o departamento de meios de subsistência, outros falam da lei da queda tendencial da taxa de lucro e outros ainda lançam a ideia de que a causa é a superprodução.

Mandel foi um dos autores que se dedicou a essa problemática e lançou uma nova luz à questão quando questionou essas teorias monocausais, apresentando uma concepção multicausal, ou seja, apresentando uma teoria que englobava as diversas causas em um único movimento, estabelecendo assim, um encadeamento multicausal. A contribuição de Mandel foi relevante, mas ele também permaneceu preso à noção empirista de “causa”. E é aqui que podemos destacar a produção de Benoit e Antunes, pois a teoria lançada por eles rompe com essa concepção empírico-factual da crise. A proposta de ambos busca expor o conceito de crise a partir da dialética expositiva de O Capital, a partir do seu modo de exposição (die Darstellungsweise).

Essa leitura também rompe com a tese defendida por Rosdolsky, de que Marx não deixou uma teoria sobre as crises, de que essa seria uma lacuna em sua obra. Para Benoit e Antunes, Marx deixou sim uma teoria sobre as crises. A questão é que ela não se desenvolve em um capítulo determinado ou passagem específica de O Capital, pois é desenvolvida ao longo de todos os três tomos desta obra, exposta juntamente com o conceito de capital. Os autores defendem que Marx não abandonou a ideia de elaborar o conceito de crise, ele o fez em todo o percurso dialético-expositivo de O Capital. Nessa concepção, tal conceito aparece enquanto possibilidade ainda no Livro Primeiro, desde o primeiro capítulo, quando se trata da mercadoria e da contradição entre valor de uso e valor. A crise já está ali enquanto pressuposto.

Os autores não estão buscando as manifestações empíricas da crise, mas o seu conceito. E tal desenvolvimento conceitual é encontrado a partir da dialética. Abandona-se a noção de causalidade e se apresenta a noção de modo de exposição.  Não se trata de uma visão fragmentada, mas de conjunto, pois o conceito de crise é apresentado ao lado do próprio conceito de capital, a partir da própria mercadoria.

O livro está dividido em três capítulos que representam os três tomos de O Capital e os três grandes momentos da exposição dialética. O primeiro capítulo apresenta uma análise das contradições potenciais e abstratas do capital na esfera da produção de mais-valia. No segundo capítulo se investiga essas contradições na esfera da circulação. Somente no terceiro capítulo, quando se avança para o livro terceiro, é que se realiza a conversão das possibilidades formais e abstratas de crise em realidade.

Vale destacar que a perspectiva apresentada por Benoit e Antunes não é apenas dialética, mas, também, revolucionária. Compreendem que junto com o desenvolvimento dos conceitos de capital e de crise também está o desenvolvimento das classes em luta. Os autores não se esquecem do permanente conflito irreconciliável entre capital e trabalho. Ele não está ausente, mas presente, desde o início. Assim, abre-se um caminho para o desenvolvimento de um projeto político de superação do capital, justamente a partir do conceito de crise. Afinal, a crise é o momento em que as contradições encobertas do capital se revelam e a luta de classes emerge na cena política de forma mais clara. A crise significa a abertura de um novo caminho para a construção de uma alternativa para além da sociedade produtora de mercadorias.

A partir dessa análise surge uma mudança substancial na interpretação do problema das crises em Marx. Ao deixar de lado a perspectiva empirista e causal e desenvolver o conceito de crise a partir do modo de exposição, a obra de Benoit e Antunes se mostra extremamente original e significa uma importante inovação na investigação dessa problemática. Trata-se, sem dúvida, de uma contribuição original e que merece ser discutida e analisada por todos os interessados no trabalho de superação do estado de coisas dado.

Carlos Prado – Universidade Federal Fluminense (UFF).

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