Mercados reproductivos: crisis/deseo y desigualdade | Sara Lafuente-Funes

A ampliação das bioeconomias 1 e dos processos de globalização tem reconfigurado os mercados reprodutivos. Esses processos têm se colocado como estratégias cada vez mais disseminadas de criação de novos modelos de negócios envolvendo a articulação da economia e a capitalização da vida em si, mercantilizando o vivo. Em muitas economias, os mercados assumem um lugar de destaque na área da saúde, sendo crescente a participação de empresas privadas em diferentes segmentos. Leia Mais

Crisis/transformaciones productivas y políticas públicas: la provincia del Chaco en la segunda mitad del siglo XX | E. C Schaller

En los últimos años, los estudios que toman a la economía como ciencia social parten de la premisa que frente a las fallas del mercado, el Estado puede mejorar las condiciones de la sociedad. Esta teoría social económica se reflejan en la obra “Crisis, transformaciones productivas y políticas públicas: la provincia del Chaco en la segunda mitad del siglo XX”. A lo largo de sus capítulos se expone las múltiples vías por las cuales las políticas públicas han cumplido un rol clave en apoyo al sector agrario, en sus despliegues, reconversiones y crisis de ciclos. Asimismo, examinan cómo las intervenciones del Estado han reorganizado el territorio mediante la regulación de las tierras, la administración de expansión de las fronteras, la promoción de empresas y capitales extranjeros y la asistencia a los grupos desplazados. Finalmente, describen las instituciones que se crearon para promover el desarrollo económico del territorio chaqueño. Leia Mais

Ensino de História: tempos de crise, resistências e utopia | História Hoje | 2022

Serie Revolta dos Males de Belisario Franca e Jeferson De Imagem GirosSESC TV
Série “Revolta dos Malês”, de Belisario Franca e Jeferson De | Imagem: Giros/SESC TV

O Ensino de História, seja associado ao trabalho e ao cotidiano docente no chão da escola ou entendido como campo de pesquisas e investigações situado na interface com a educação e a história produzidas na Universidade, vem sendo atravessado, ao longo dos anos, por reflexões sobre crises que impactam sujeitos, práticas, saberes e culturas. Crises que provocam resistências, conflitos, confrontos, assim como alimentam sonhos e utopias. Neste dossiê temático, propomos abordar o Ensino de História a partir dessa perspectiva, reunindo resultados de pesquisas que refletiram a partir desse enfoque e que contemplaram a crise em seus mais variados aspectos: histórias do Ensino de História, formação de professores, materiais didáticos, memórias docentes e discentes; bem como as resistências de todos os tipos, tais como os questionamentos aos modelos curriculares, relações acadêmicas que geram narrativas uniformes, materiais didáticos com propostas restritas, cerceamento ao trabalho docente e perseguição a professores. Em todos há uma preocupação em inscrever a reflexão no tempo presente, que, em função da pandemia da Covid-19 e da crise da democracia brasileira, instaurou novos arranjos nos processos de ensino-aprendizagem de História. Leia Mais

¿Por qué funciona el populismo? El discurso que sabe construir explicaciones convincentes en un mundo en crisis | María Esperanza Casullo

Nunca son suficientes las figuras evocadas para hablar de populismo; ya sea como el fantasma que recorre el mundo, el eterno retorno de una anomalía, una tentación o, incluso, el más peligroso de los virus, un sinnúmero de experiencias política contemporáneas no dejan de ser caracterizadas como populistas. Como es sabido, muchos de estos tópicos han estado siempre a la orden del día, especialmente en Argentina, donde en años recientes la producción académica sobre el tema ha alcanzado un punto álgido de saturación. Es en el más reciente clivaje político argentino, en medio de la caída (electoral) del macrismo y del surgimiento político de Alberto Fernández en 2019, que María Esperanza Casullo cristaliza una particular contribución sobre la cuestión populista. Leia Mais

Endeudar y fugar. Un análisis de la historia económica argentina de Martínez de Hoz a Macri | Eduardo Basualdo || Historia de la deuda externa argentina. De Martínez de Hoz a Macri | Noemí Brenta || Salir del fondo. La economía argentina en estado de emergencia y las alternativas ante la crisis | Esteban Mercante

Los libros que aquí comentamos abordan la política económica reciente de la Argentina y sus principales transformaciones. Endeudar y fugar. Un análisis de la historia económica argentina de Martínez de Hoz a Macri. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018, de Eduardo Basualdo; Historia de la deuda externa argentina. De Martínez de Hoz a Macri. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2019, de Noemí Brenta; y Salir del Fondo. La economía argentina en estado de emergencia y las alternativas ante la crisis. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2020, de Esteban Mercante. Aunque desde disímiles perspectivas, estos trabajos comparten el objetivo de analizar los problemas en torno al endeudamiento en nuestro país y especialmente la inflexión que significó para la política económica la victoria de la Coalición Cambiemos desde 2015. En los tres casos se recupera el pasado reciente con diversos argumentos, lo que nos permite observar varias ópticas en torno a ese pasado. De esta forma, proponemos comentar los principales razonamientos que los autores exponen acerca de las sucesivas etapas históricas analizadas y finalizar con un balance recuperando las diferentes miradas sobre los temas examinados. Leia Mais

Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático – STREECK (C-FA)

STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. Crise e neoliberalismo no capitalismo setentrional. Resenha de: MARINO, Rafael; COSTANZO, Daniela. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan-Jun, 2020.

A partir de uma longa visada, o livro de Wolfgang Streeck, Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, pretende explorar as determinações essenciais da passagem, em meio a crises fiscais e financeiras, de um capitalismo democrático, baseado em um Welfare State e instituições políticas keynesianas, para um capitalismo neoliberal, no qual um regime econômico neo-hayekiano – caracterizado essencialmente por uma máxima desregulamentação econômica e pela proteção frente a qualquer normatização ou correções políticas de massa – impõe um mercado que se pretende imune a qualquer tipo de intervenção democrática. Nesse sentido, uma das teses mais fortes do economista alemão é a de que a crise de 2008 marcaria o possível fim dos adiamentos de conflitos decorrentes da crise do capitalismo democrático, ocorrida na década de 1970. Falamos em longa visada, pois o seu estudo abarca, pelo menos, as transformações do capitalismo e a marcha do capital desde os fins da década de 1960 até a década de 2010. O que acaba por tornar-se um respiro benfazejo em meio às análises políticas e econômicas presentes no mercado das ideias, fortemente pautadas por certo imediatismo e por estudos de curto fôlego.

A base material com que Streeck lida é a do capitalismo de países ricos  notadamente nações europeias, como Alemanha e França, além de nações de outros continentes, como Estados Unidos da América e Japão “como unidade multifacetada, constituída pela interdependência, em meio à dependência coletiva dos Estados Unidos, quanto pelas peculiaridades dos conflitos internos e dos problemas de integração sistêmica” (Streeck, 2018, p. 12).1 A fundamentação teórica que lança mão para cuidar deste material é um amálgama entre marxismo, renovado pela assim chamada novas leituras de Marx (Elbe, 2013), teoria crítica frankfurtiana das crises e as formulações de Michal Kalecki e Karl Polanyi. O que não deixa de também chamar a atenção, dada a preponderância de pesquisas e trabalhos fortemente especializados e centrados em particularismos formais e subjetivos, seja de atores ou mesmo de instituições políticas, nas ciências sociais, principalmente na economia e na ciência política. Não obstante a sua aproximação destas teorizações amalgamadas, Streeck não deixa de ver nelas algumas limitações frente ao material por ele enfrentando, o que serve, sobretudo, para o aperfeiçoamento daquele instrumental e não seu abandono.

Quanto às suas divisões internas, o livro é composto por seis partes, sendo quatro capítulos, um prefácio à segunda edição, de 2015, e uma introdução, os quais procuraremos explorar, mesmo que sumariamente e sem necessariamente seguir a sua ordenação.

No prefácio, Streeck volta-se para a discussão de seus pressupostos teóricos, suas escolhas de caminhos durante a apresentação de seu argumento e a exposição sucinta de alguns de seus achados de maior relevância. Quanto ao primeiro elemento, o referido amálgama crítico e neomarxista permite que o economista alemão veja o capitalismo como uma sequência de crises imanentes ao processo de valorização do valor; o mercado como algo reposto empiricamente a partir do entrecruzamento entre ação estratégica e as lutas distributivas coletivas “nos mercados expandidos, impulsionado por uma dinâmica relação de troca entre espaços de classes e de interesses, de um lado, e de grupo organizados e instituições políticas, de outro, com particular consideração do problema da reprodução financeira do Estado” (Streeck , 2018, p. 9) e o capital como uma espécie de sujeito capaz de assumir estratégias complexas para levar a bom termo sua valorização e expansão. Estratégias as quais operam, por exemplo, via greve de investimentos, como as antevistas por Kalecki (1943), para quem os capitalistas, vendo o pleno emprego e o poderio da classe trabalhadora aumentado, utilizariam-se daquele expediente para o enfraquecimento dos trabalhadores e para a extenuação do poder do Estado. Nesse bojo, o mercado e suas estratégias políticas, deixados por eles mesmos, sem a resistência da classe trabalhadora e de políticas voltadas para desmercadorização, poderiam, tendencialmente, tornar-se um moinho satânico com potencial para destruir a civilidade e a sociedade (cf. Polanyi, 2000).

Já em relação às trilhas percorridas por Streeck, três parecem ser os elementos essenciais. Em primeiro lugar, o capitalismo democrático dos países ricos a que se refere é visto pelo economista como um período de excepcional e específica estabilidade, construída politicamente a partir de uma elite tecnocrática, frustrada com os anos 1930 e “fundada em uma economia de guerra (…) centrada no Estado, que tinha uma coisa em comum com todas as linhas partidárias: profunda e experimentada dúvida sobre a viabilidade e sustentabilidade do livre mercado capitalista” (Streeck, 2018, p. 16). Havia, portanto, uma crise de legitimidade capitalista que exigiu que os capitalistas aceitassem um regime social democrata. Em segundo lugar, esse casamento entre capitalismo e democracia não é natural, pois, dentre outras coisas, ambos operam com formas contrárias de justiça. O capitalismo pratica uma justiça de mercado baseada no desempenho individual, enquanto a democracia se baseia na universalidade de direitos a partir da justiça social. Há, além disso, uma assimetria entre as duas justiças, já que o capital tem mais condições de reagir, podendo impor crises ao conjunto da população e justificar suas reivindicações como condições para o funcionamento do sistema como um todo. Já as reivindicações dos trabalhadores são vistas como perturbações e não como necessidades ao funcionamento do sistema.

Como último elemento distintivo da pista sob a qual o argumento de Streeck se desenvolve, vê-se a ideia de que, a partir do final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, esse casamento forçado entre capitalismo e democracia começou a mostrar suas contradições através de crises que foram seguidamente adiadas de formas distintas até o momento atual. Com, principalmente, três fatores: a) a diminuição do crescimento econômico, antes constante e crescente; b) o clima político desenvolvido a partir das revoltas de 1968, a partir do qual alguns atores políticos, organizações de classe e intelectuais passaram a falar até mesmo na superação do mercado e do capitalismo; e c) a uma revalorização grande do mercado como instância de satisfação e gestão das mais diversas esferas da sociedade. Nesse período, a burguesia, acossada principalmente pelos dois primeiros fatores elencados acima e legitimada pelo terceiro fator, inicia a quebra do que fora duramente acordado por décadas e deixa de financiar essa forma de organização estatal voltada ao bem estar social. Desta feita, criticando a visão de autores como James Buchanan, Gordon Tullock e outros teóricos da chamada public choice, o Estado de Bem-estar social não teria chegado ao fim pela irresponsabilidade fiscal de trabalhadores que votariam pela maximização de seus bens e serviços de seu interesse, mas sim por uma escolha política deliberada dos capitalistas em geral.

Na sua introdução, intitulada “Teoria da crise  no passado e no presente”, Streeck enuncia mais fortemente a sua filiação às teorizações da crise vindas da assim chamada Escola de Frankfurt, passando, de forma inespecífica, por Theodor Adorno, Max Horkheimer, Friedrich Pollock, Jürgen Habermas e Claus Offe. O essencial desta formulação sobre a crise, para o autor alemão, gira em torno de dois aspectos: i) o seu fundamento heurístico, desde o qual é possível ver uma tensão essencial entre a vida social civilizada e suas esferas e uma economia dirigida pelo imperativo de valorização do capital, que tende ao infinito e não possui freios normativos contra a barbarização; ii) o pressuposto de que o mais importante a ser estudado são os processos, em sua historicidade e em suas determinações basilares, e não os estados e momentos; de modo que aí as instituições sociais seriam vistas como engendradas pelo processo social, isto é, seriam provisórias, em permanente debate entre orientações políticas contraditórias e instáveis. Isso, a nosso ver, possibilitou um ponto de arrimo crítico interessante para Streeck, dado que, a partir dessa visão complexificada sobre a totalidade social em movimento, não caiu nas armadilhas da economia e da ciência política mainstream, confinadas ao individualismo metodológico e a uma operacionalização que isola o econômico e o político de outras esferas da vida (cf. Sartori, 2004; cf. Paulani, 2005). Não obstante, Streeck também faz críticas às teorizações frankfurtianas, pois, a seu ver, teriam acreditado demais na capacidade política de legitimação e planejamento do Estado e subestimado o poder do capital enquanto agente político e força social apta a desmobilizar e destroçar formas estatais específicas. Algo que, apesar de nosso acordo quanto a Habermas e Offe, é injusto com os frankfurtianos da chamada primeira geração, como mostraremos ao fim de nosso exercício de leitura crítica.

Já no primeiro capítulo do livro, Streeck repisa a sua crítica apesar de reafirmar sua filiação à teoria crítica frankfurtiana das crises, argumentando que esta teria se transformado em teorias da cultura, do Estado e da democracia, deixando de lado a crítica da economia política, achado essencial de Karl Marx e boa parte de suas teorizações sobre, por exemplo, crescimento, subconsumo e superprodução. Contra isto, o autor alemão propõe que voltemos a olhar o capital como um agente econômico e político voltado à sua autovalorização constante e dotado de forte capacidade estratégica contra o que acha ser uma barreira contra seu desígnio maior: a acumulação. Deste modo, a construção de um capitalismo democrático, durante as chamadas três décadas de ouro após a Segunda Guerra Mundial, deveria ser vista como um momento muito específico no qual o capitalismo e os capitalistas estavam em baixa e aceitaram a fusão, tensa, com a democracia e com a melhoria constante do nível civilizacional da classe trabalhadora. Tudo isso fora aceito pelos agentes do capital como uma forma de reestruturação de sua legitimidade, bem como uma espécie de imposição pela luta entre as classes e não como mudança do ímpeto acumulativo do capital.

Esta crítica de Streeck às ideias de crise de legitimação frankfurtiana deságua num diagnóstico bastante instigante a respeito da crise desta forma de capitalismo democrático em meados da década de 1970, a saber: “não foram as massas que se recusaram a seguir o capitalismo do pós-guerra, acabando com ele, mas, sim, o capital sob a forma de organizações, organizadores e proprietários” (Streeck , 2018, p. 65). Porém, por que essa recusa se deu? Sobre este ponto, as explicações dadas pelo autor aparecem em momentos distintos do texto, o que pode causar certa confusão no(a) leitor(a); além disso, duas delas, ao menos aparentemente, são contraditórias – conforme exploraremos mais adiante. Todavia, Streeck aponta que três seriam as causas. Em primeiro lugar, teria ocorrido o início de certo achatamento da lucratividade do capital, devido, principalmente, aos custos com mão de obra, cada vez mais valorizada, e com os chamados encargos do Welfare State. Em segundo lugar, com as revoltas da década de 1960, mais especificamente, as de 1968, instaura-se um clima político entre segmentos específicos de forças sociais, políticas e intelectuais supostamente voltados à negação e superação do mercado e da mercadoria, deixando os capitalistas extremamente assustados. Em terceiro lugar, nessa mesma década de 1960, assiste-se a uma elevação inédita da legitimidade, em várias camadas da sociedade, das forças do mercado vistas, neste período, como as melhores gestoras de diversas esferas da vida e da política  e ao aumento exponencial do consumismo e sua ideologia, conquistando novos domínios da vida social. Essa nova onda de legitimidade do mercado deu-se, num primeiro momento, a despeito das revoltas de 1968. Todavia, posteriormente, ela se deu utilizando-se, também, das pretensões emancipatórias dos manifestantes quanto à maior autonomia, à criatividade e à possibilidade de novas formas de vida distintas da família de classe média europeia e estadunidense. Deste modo, o desejo de autorrealização e flexibilidade comportamental e libidinal dos revoltosos de 1968 fora capturado por formas de trabalho e ocupação que embaralhavam termos opostos como independência e precariedade, conforme os diagnósticos de Boltanski e Chiapello (2009).

Outro lance argumentativo interessante de Streeck é quando liga a crise  adiada do capitalismo democrático de 1970 aos dias de hoje. De acordo com o nosso economista, tendo em vista os três elementos anteriores, pode-se notar o abandono dos capitalistas (ou dos dependentes do capital) do capitalismo democrático. Não obstante, esse abandono foi algo processual e não peremptório, dado que, ao mesmo tempo em que deveriam lograr a liberalização total da economia e de outras esferas da sociedade, não poderiam perder a sua legitimidade frente aos dependentes de salário em geral. Até porque, sem nenhum tipo de distribuição aos de baixo, o caminho para revoltas de todos os tipos estaria pavimentado. Streeck nota que, andando próximo àquela tendência de desacoplamento frente à regulação democrática, vê-se, entre as décadas de 1970 e 2010, uma contínua diminuição do crescimento econômico das economias centrais cada vez mais estagnadas. Tal diminuição do crescimento econômico fica sem maiores explicações e explicitações causais e de gênese por parte de Streeck – o que também criticamos ao final da resenha.

De toda forma, três seriam as formas de adiamento dos conflitos decorrentes da crise dos anos de 1970: i) inflação; ii) endividamento do Estado e iii) endividamento privado por meio da expansão dos mercados de créditos privados. Todos esses adiamentos, de um modo ou de outro, marcaram derrotas importantes para os assalariados e serão explorados por nós rapidamente  juntamente com as suas consequências para o povo dependente de salários e para a tentativa autoritária do mercado em se livrar de qualquer constrição da democracia.

A primeira forma de adiamento da crise se deu entre as décadas de 1970 e 1980 e foi materializada por meio da inflação. Isso se deu porque já nos anos de 1970 o pleno emprego, pedra angular da democracia no pós-guerra, passa a ser de difícil manutenção, dado que o crescimento econômico resultante do trabalho e do capital deixou de ser sistemático e ascensional. Assim, para evitar uma insatisfação popular generalizada com a não redistribuição dos lucros vindos da produção, o aumento salarial acima do aumento da produtividade fora sustentando por meio de uma política monetária de introdução “de recursos adicionais, que, no entanto, não estavam disponíveis senão sob a forma de dinheiro, não ou ainda não como algo real” (Streeck, 2018, p. 80). Gerando-se, desta feita, inflação. Mas não só. Essa ilusão monetária fora uma miragem de curto prazo, cujo fim fez com que investimentos diminuíssem ou fossem canalizados para outras moedas fora da zona econômica do atlântico norte. Já na metade da década de 1970, os agentes do capital, vendo tal situação de estagnação e inflação, colocaram na ordem do dia, sob a liderança de Reagan, nos Estados Unidos da América, e Thatcher, na Inglaterra, medidas de estabilização neoliberal drásticas. As quais foram um duro golpe nos dependentes de salários, visto que a deflação da economia foi decisiva para recessão e desemprego constantes. Condições importantes para a perda de poder dos sindicatos e da classe trabalhadora. Por conseguinte, a arena da disputa de classes, a partir deste momento, passa a se deslocar do mercado de trabalho e das fábricas, para lugares cada vez mais “abstratos” e inacessíveis ao cidadão comuns.

Essa política econômica “estabilizadora”, localizada no final dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, mostrou-se uma porta de entrada importante, a um só tempo, para uma nova configuração estatal. Com a deflação anterior e o decréscimo no nível de vida, viu-se novamente o perigo da não legitimação do capitalismo tardio frente às camadas médias e populares, fazendo com que Estados e agentes econômicos fossem atrás de outra fonte de adiamento e legitimação, qual seja: o endividamento público. Ao modo da inflação, o endividamento público permite ao governo utilizar recursos financeiros provenientes do sistema monetário, mais especificamente do pré-financiamento de futuras receitas fiscais do Estado via instituições privada de crédito. Recursos que serão de suma importância para pacificação de conflitos sociais provenientes do crescente fosso entre as promessas do capitalismo e sua realização efetiva para a maioria da população. Outro movimento a que se assistiu, juntamente com esse endividamento do Estado, foi o de aumento dos créditos sobre os sistemas de seguridade social, em função, principalmente, da elevada taxa de desemprego e pelo fato de a moderação salarial da classe trabalhadora ter tido como termo de negociação o aumento de parcelas. Ou seja, politicamente, os governos não podiam nem cortar mais direitos do Estado Social nem aumentar impostos, dado que uma ou outra alternativa poderia cutucar onças com varas curtas; fazendo com que recorresse ao endividamento público.

Essa forma de adiamento fora tão sensível que se constitui como um pilar essencial da passagem do que Max Weber, Adolph Wagner, Richard Musgrave e Rudolf Goldscheide concebiam como Estado Fiscal, que expropriou sistematicamente e soberanamente os cidadãos em geral da sociedade civil, a fim de financiar o cumprimento de suas tarefas como interferir no crescimento econômico, redistribuir riqueza e cobrir externalidades negativas do mercado -, para o Estado endividado.Este, para cumprir as suas tarefas e obrigações, passa a contrair empréstimos e deixa de cobrar uma taxa mais elevada de impostos daqueles que se apropriam da maior parte da riqueza socialmente produzida, os chamados dependentes do capital. Assim, Streeck pode afirmar, com dados e fatos, que a crise financeira não foi gerada pelas massas e suas demandas de civilidade, mas sim pelo andar de cima, que, década após década, viu seus rendimentos e propriedades, cada vez mais aumentados, serem cada vez menos taxados. Ou seja, numa movimentação unilateral de classe, deixaram de financiar o Estado social e o capitalismo democrático em prol da valorização do capital. Nesse bojo, a luta entre as classes também ganha outro contorno, passando a ser disputada dentro dos Estados de bem-estar social e não mais na produção, como anteriormente, girando em torno de disputas intraburocráticas e ainda mais distantes dos cidadãos dependentes do trabalho.

Nessa forma de Estado endividado, Streeck identifica propriamente uma nova fase de relação entre capitalismo e democracia. Isso se dá pelo fato de que, como o Estado passa a dever para instituições privadas de crédito, há sempre a desconfiança por parte destas de que o aparato estatal não honre as suas dívidas apesar de ser um devedor deveras lucrativo e seguro -, o que faz com que os agentes do mercado passem cada vez mais a influenciar a política estatal com o intuito de assegurar seus lucros. Por conseguinte, os credores passam a ser uma espécie de segunda raiz constitutiva do Estado, de sorte que as políticas devem responder a dois setores ou povos distintos, a saber: a) o povo do Estado, composto por cidadãos nacionais, portadores de direitos civis, dependentes de serviços públicos, formadores da opinião pública e que expressam sua vontade eleitoral periodicamente  tudo isso em troca de lealdade ao Estado e ao pagamento de impostos; b) o povo do Mercado, formado por investidores – e não cidadãos – internacionalmente integrados, que visam exclusivamente a maximização de seus lucros e que se ligam ao primeiro povo apenas por contratos.

À vista deste quadro, o nosso autor tira algumas consequências importantes da relação entre capitalismo e democracia. Primeiro, o capital ou o povo do mercado deixou de influenciar a política apenas indiretamente, via investimento na economia, e passou para uma ação direta na política nacional ao escolher ou não financiar todo o Estado. Segundo, o povo do Estado, principalmente as camadas mais pobres, por resignação, comparecem cada vez menos às eleições, pois já não veem o que esperar de mudança do partido no governo, visto que a agenda política e econômica da esquerda e da direita pouco se diferenciam e passam a sofrer constrições decisivas do povo do mercado. Com isto, cada vez mais o capitalismo vai se blindando em relação à democracia e suas decisões e a transição neoliberal vai se estabilizando e se alastrando.

Na passagem da segunda para a terceira forma de adiamento da crise vê-se, além de uma nova forma de preterir a crise (o endividamento privado), a constituição de outra configuração estatal, ainda mais voltada aos interesses do capital e para consolidação do neoliberalismo. Já ao final dos anos 1980 e começo da década de 1990, iniciou-se um movimento dúplice: os governos passaram a se preocupar cada dia mais com o aumento do peso do serviço da dívida no orçamento e os credores, a cada dia que passava, desconfiavam da capacidade estatal para o pagamento das dívidas. Nesse período, sendo os EUA de Clinton a vanguarda do atraso, começaram cortes nos gastos sociais e tentativas de “equilibrar” o orçamento, prática seguida por várias outras nações e incentivada diretamente por organizações como Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Apesar desse processo de liberalização radical dos mercados já vir de duas décadas anteriores, o capitalismo ainda precisava de uma forma de legitimação que, de uma só vez, mobilizasse recursos adicionais para evitar revoltas populares e não permitisse que a procura de capitais pelos países diminuísse, isto é, que a varinha de condão da confiança burguesa não deixasse de tocar as nações centrais. Para cumprir essas duas demandas, a saída da vez fora o endividamento privado, ou o que Colin Crouch chamou de “keynesianismo privado” (Crouch, 2009), injetando uma solvência antecipada no mercado numa segunda onda de liberalização dos mercados de capitais. Deste modo, substitui-se o endividamento público pelo endividamento privado como uma forma de aumentar as reservas disponíveis de recursos para distribuição. Nesse contexto, o papel do Estado mudou novamente, via liberalização do mercado de capitais no sentido de permitir o endividamento irrestrito dos agregados familiares, os quais tentam compensar tanto as perdas salariais de décadas, quanto a destruição das políticas estatais de desmercadorização.

Essa nova forma de adiamento forjou as bases para duas mudanças políticas e ideológicas importantes. Politicamente, vê-se a harmonização total entre a saída política encontrada e os desejos dos agentes do capitalismo neoliberal, harmonizando as necessidades e expectativas de ambos; até porque a desregulamentação das esferas da vida e dos mercados de capitais atingiu ali um nível nunca antes visto. Ideologicamente, operou-se um movimento dúplice: ao mesmo tempo em que surgiram novas teorizações a respeito da eficiência dos mercados desregulados, os quais contariam com agentes racionais que deteriam todas as informações necessárias para agir desde que o Estado não interferisse e desestabilizasse essa dinâmica, foram reabilitadas ideias de autores como o austríaco Friedrich Hayek, cuja proposição da transfiguração de todas as esferas da sociedade em empresas fora importante para imantar a prática de agentes capitalistas.

Nesse mesmo período, a formação estatal ganha outra conformação: passasse do Estado endividado nacional para o Estado de consolidação internacional. Por consolidação, Streeck entende o crescente processo de consolidação do orçamento e das finanças públicas no sentido de restringir direitos e parcelas do Welfare State à população e permitir um ambiente seguro para as movimentações políticas e econômicas do povo do mercado. Desta feita, essa consolidação está intrinsecamente ligada a três outros movimentos importantes: i) redução do Estado ao mínimo funcional à expansão dos mercados, impedindo a intervenção estatal ativa no sentido de regular e mitigar a justiça de mercado; ii) institucionalização de uma economia política internacionalizada e a transformação dos Estados nacionais em entidades não soberanas ajustadas a uma política fiscal decidida por uma diplomacia internacional do capital, cujo ponto de fuga não é a civilidade e sim o da valorização do capital e iii) restrição da capacidade de ação e regulação democrática do povo do Estado, de forma a colocar na ordem do dia uma democracia desdemocratizada e domesticada pelas forças do mercado e não o contrário. Como o Estado de consolidação é um regime internacional, a própria luta distributiva atinge o seu maior nível de abstração e inacessibilidade aos estratos médios e popular, já que o poder passa a se concentrar numa diplomacia financeira internacional e em mercados de capitais blindados à intervenção democrática e política.

Não obstante, em 2008, o keynesianismo privado veio abaixo. Essa forma de endividamento sustentou uma prosperidade enorme do setor financeiro e uma economia afluente, tudo isso sustentado pelo endividamento inaudito e colossal dos agregados familiares. Porém, a estrutura de crédito que permitia esse novo adiamento foi para os ares e o motivo era que todo aquele crédito liberado de modo algum poderia ser efetivamente saldado e boa parte do dinheiro em circulação, na forma de crédito, era fictício e lastreado em nada. Desta feita, os recursos para o adiamento da crise do capitalismo foram, um a um, testados e fracassaram, tornando qualquer saída cara demais para a diplomacia financeira internacional. À vista disto, o economista alemão vê duas alternativas possíveis: ou instaura-se realmente uma ordenação estatal neoliberal internacionalizada e pós-democrática, na qual o totalitarismo do mercado único sobrepujaria totalmente o povo do Estado, ou, a partir das mais variadas resistências populares – como o movimento global Occupy dos 99% –, volta-se a pensar na reconsolidação de democracias nacionais capazes de reinstaurar instituições promotoras de uma justiça social não redutível à justiça do mercado, a exemplo do praticado durante o chamado consenso socialdemocrata, além da repactuação de um Bretton Woods necessário à manutenção da soberania e democracia nacionais. Desta feita, a alternativa pensada por Streeck passaria, necessariamente, pelas seguintes medidas: a) reaproveitamento e revitalização de instituições nacionais, ao modo de parlamentos, bancos centrais, canais de representações popular e instituições de seguridade social socialdemocratas, as quais representariam as diferenças entre os povos e as nações; b) o aumento do espaço de autonomia dos Estados nacionais frente às instituições globais de governança do povo do mercado e c) a reformulação de um acordo econômico europeu, feito Bretton Woods, desde o qual se repactuassem regras para relações econômicas, as quais resistissem ao avanço desenfreado da desregulamentação mercantil. Tendo isso em vista, poder-se-ia argumentar que isto é muito pouco perto do diagnóstico feito pelo próprio economista alemão. Todavia, o próprio Streeck nos adverte que todas essas medidas são formas de ganhar tempo contra a expansão capitalista desmedida e que soluções melhores e mais radicais de ação contra a desdemocratização neoliberal devem ser pensadas com urgência.

Apesar de ser um estudo com elementos e argumentos indispensáveis para compreensão do capitalismo contemporâneo, articulando de modo exemplar a relação entre economia, política e sociedade, algumas críticas podem ser tecidas ao estudo de Streeck, as quais div idimos em teóricas, geopolíticas e de encadeamento interno da exposição.

No primeiro grupo, nota-se uma leitura generalizante a respeito da chamada Escola de Frankfurt ou da teoria crítica, 2 por dois motivos. Em primeiro lugar, a ideia de confiabilidade no caráter controlável do capitalismo, a partir da intervenção estatal e da democracia, é bem mais aplicável ao pensamento de Habermas e, em menor medida, ao de Offe -, para quem o Estado democrático de direito teria plenas condições de domesticar o crescimento capitalista, de modo que os cidadãos teriam aí direitos políticos para tomar parte e direitos sociais de ter parte nos processos decisórios e redistributivos da sociedade (Habermas, 2015). Deste modo, o problema essencial a ser enfrentado é o da continuidade da legitimidade do compromisso em torno deste Estado e os possíveis problemas da intervenção estatal na vida das pessoas; assim, a saída seria apenas a repactuação em torno de arenas políticas e discursivas, para que o princípio da solidariedade e o mundo da vida tivessem condições de sobrepujar os imperativos sistêmicos. Em Adorno e Horkheimer, como podemos ver em vários momentos de suas obras, o poder de mudança regressiva do capital e da forma mercadoria não são deixados de lado em prol de “análises culturais”. Mas sim que, partindo do diagnóstico pollockiano, poderíamos ver outros tipos de dominação menos imediatas determinadas não em sentido fatalista pela lógica da mercadoria (Fleck, 2016; Cook, 1998). Desta feita, a análise que fazem dos rackets não deixa dúvidas sobre a atenção que davam ao econômico e ao político (Adorno, 2003; Horkheimer, 2016). Ademais, se for permitido um reparo adorniano ao trabalho de Streeck, muito mais interessante que o uso da vaga ideia de ideologia do consumismo, seria lançar mão da noção de indústria cultural, dado que ela deveria ser entendida como uma continuação específica e crítica das teorizações sobre fetichismo e reificação de Marx e Lukács, de acordo com Adorno e Horkheimer (2006).Isso se dá porque o caráter de sistema da indústria cultural – composta pelo cinema, rádio, jazz, revistas, esporte, moda e livros de alta vendagem –, seria explicável justamente pela imposição do processo de reificação ao lazer e à cultura, impondo-lhes sua forma mercantil e tornando-as prolongamento do trabalho reificado. Forma reificada que condicionaria fortemente a apreensão da realidade, que passa a ser entendida agora como sistema imutável de leis especializadas e apreendida apenas pela contemplação, conformando uma individuação integrada à totalidade do capital e aos seus desígnios de consumo e manutenção do sistema.

Em segundo lugar, a teorização de Pollock surgiu em contraposição a outras duas. Uma, de origem social-democrata, propugnava a ideia de que as transformações do capitalismo no início do século XX apontavam para a sua estabilização; outra, aventada por figuras do comunismo ocidental, acreditava que estas transformações aprofundavam as contradições internas do capitalismo, apontando para seu colapso ou crise definitiva (Rugitsky, 2015). Contra ambas, Pollock (1973;1982) propõe que inexiste qualquer tendência inelutável de mudança ou colapso automático do capitalismo e que ele não estava passando por uma estabilização, mas sim por uma reestruturação na qual a primazia deixa de ser dos mecanismos do mercado e passa a ser do Estado, cuja política garante a reprodução da vida econômica.

À vista disto, pode-se entender a crítica de Streeck a certa “confiança” no planejamento mediante as reviravoltas do capital, porém é interessante que o economista alemão fale em greve de investimentos, em ação política das classes e na ideia de que as relações econômicas possuem uma fundamentação política, visto que isto não destoa de uma parte importante do diagnóstico de Pollock a respeito da politização do quadro institucional do capitalismo. E mais: o economista alemão havia pensado em duas possibilidades organizacionais para o capitalismo de Estado, o democrático e o autoritário; desta feita não poderíamos estar assistindo, na verdade, a passagem não para um Estado de consolidação, mas sim para um capitalismo de Estado autoritário? É preciso lembrar que o fato de a economia sofrer menos intervenções da democracia não quer dizer que a política saiu de cena, mas sim um tipo de política: a democracia de massas. Podendo restar aquilo que já era antevisto por Pollock, a saber: a força abismal dos dirigentes de grandes conglomerados e empresas, que, na esteira da monopolização acentuada decisivamente nos primórdios do século XX, passam a ser essenciais na vida social, política e econômica da população, pois, de um lado, o seu poder passa a se confundir com o poder estatal e, de outro, os seus prejuízos passam a ser socializados, dado que a sua falência causaria enorme impacto em toda a economia (Rugitsky, 2015, p. 63). Algo que, salvo engano, foi visto sistematicamente após a crise de 2008 em relação a variadas empresas e bancos, como Goldman Sachs e General Motors. Aspecto que poderia andar muito bem de mãos dadas com o processo de “ desdemocratização do capitalismo por meio da deseconomização da democracia ” (Streeck, 2018, p. 55).

Em relação à geopolítica, há duas ausências importantes na argumentação de Streeck: a primeira é a força da União Soviética e o contexto de Guerra Fria, a segunda são os processos de descolonização que assolaram o capitalismo central. Em relação ao primeiro fator, é possível dizer que a URSS, nas primeiras décadas do século XX, mostrou-se  independentemente de se gostar disto ou não  como uma alternativa de organização produtiva e social para a forte e organizada classe trabalhadora do centro e da periferia capitalista. Destarte, esses dois fatores um proletariado empoderado e dotado de uma alternativa de poder  produziram condições muito importantes para a consolidação de uma série de direitos sociais voltados para o bem-estar e para desmercadorização da população (Esping-Anderser, 1991), ou, como dizia Francisco de Oliveira, os direitos do antivalor (1998). Tanto é que Buci-Glucksmann e Therborn (1981) chegaram mesmo a entender o Welfare State como uma espécie de revolução passiva, na qual as classes dominantes passam a acolher uma série de demandas dos trabalhadores, dado que estão pressionadas política e socialmente pela possibilidade real de uma Revolução.

Já quanto ao segundo elemento elencado, desde o final da Segunda Guerra Mundial e se arrastando pelas décadas de 1950 e 1970, é possível notar um importante processo de descolonização pelo mundo, o que necessariamente implicou na perda relativa de poder político e econômico sobre a periferia do capitalismo mundial, deixando os dependentes do capital nos países centrais preocupados com uma diminuição da lucratividade de atividades organizadas em torno de matérias primas das ex-colônias (Jameson, 1999; Visentini, 2012). Nesse bojo, é notável o caso da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que passou a nacionalizar as reservas petrolíferas e regular seus preços, e que produziu  em represália ao apoio dos EUA a Israel na guerra do Yom Kippur a chamada primeira crise do petróleo (Hobsbawn, 1995, p. 421-447). Com a qual, a partir do aumento proposital dos preços dos barris da referida commodity, a OPEP produziu consequências profundas nas economias centrais, cujos índices inflacionários bateram recordes, e que pode ter ajudado a acender o sinal amarelo das elites nacionais sobre os caminhos que o capitalismo democrático poderia traçar contra seus interesses de acumulação.

Ainda nessa seara, outro fato geopolítico importante, e que não aparece na explicação de Streeck, é a concorrência do que Araujo e Bresser-Pereira (2018) chamam de porções não-ocidentais do mundo no pós-Segunda Guerra Mundial. De acordo com estes autores, na esteira dos processos de globalização e descolonização, o que ocorreu não foi a destruição da forma política Estado-nação soberano, mas sim a sua dispersão e depuração mundial. Com isto, tais países alcançaram condições políticas e técnicas suficientes para controlar os recursos minerais de seus territórios e para dispor de um contingente enorme de mão de obra. Fatores que, combinados, passaram a exercer uma profunda pressão sobre os países desenvolvidos do centro ocidental do capitalismo, a qual “acabou afetando, a partir da década de 1970, o modo de legitimação dos Estados sob o chamado ‘consenso socialdemocrata’ dos anos dourados do capitalismo, os quais, após a Segunda Guerra Mundial, puderam oferecer cada vez melhores condições de vida às suas classes médias e populares” (Araujo; Bresser-Pereira, 2018, p. 556).

Desde o começo, salientou-se que a base sobre a qual o estudo de Streeck se concentra são os países desenvolvidos do centro do capitalismo, não obstante o fato de que considerações de economia geopolítica, como as que expomos, não fazerem parte de sua exposição acaba enfraquecendo seu argumento, dado que não se consegue explicar satisfatoriamente as determinações essenciais da estagnação do crescimento dos países centrais, por exemplo. À vista disso, partiremos para a exposição do que consideramos ser problemático no encadeamento expositivo interno do trabalho do economista alemão.

Conforme dissemos anteriormente, os anos de 1970 são chave para a passagem ao início de um adiamento tríplice da crise do capitalismo democrático e para o baixo crescimento econômico do que era antes o centro dinâmico do capitalismo no atlântico norte. No entanto, apesar da centralidade destes dois processos para o livro de Streeck, há três elementos que tornam essas passagens expositivas insatisfatórias.

Em primeiro lugar, como já dissemos no início deste exercício de leitura, as três causas do início da crise adiada a saber, o achatamento do lucro do capital no centro do capitalismo, a radicalização de alguns setores importantes contra a lógica mercantil e o prestígio da ideologia consumista são expostas de forma disparatada no texto, sem maior imbricamento e coesão entre elas, obrigando o(a) leitor(a) a caçar estas explicações ao longo do livro. Prova disto é que, ao longo dos capítulos um e dois, nos quais ele se debruça sobre os momentos de passagem de um capitalismo democrática mais consolidado para os adiamentos de sua crise, poucas são as vezes em que, ao menos, duas das causas expostas acima sejam apresentadas conjuntamente, de modo que durante quase cinquenta páginas é necessário pinça-las no texto. Ademais, a sua apresentação conjunta e imbricada não se dá durante a argumentação do economista alemão.

Em segundo lugar, apesar de Streeck concentrar-se propositalmente nos países desenvolvidos do capitalismo, algumas determinações de seus insucessos econômicos e políticos devem ser buscadas fora deles. Isso não se coaduna com a ideia de que Streeck seria etnocêntrico ou coisa do gênero (cf. Cariello, 2019), mas, tão somente, pretende-se chamar atenção para uma das lições da crítica da economia política de Marx (1983) reivindicada por Streeck contra as teorizações que esquecem das reviravoltas do capital: o fato de que o capitalismo é um sistema totalizante e que impõe a forma mercadoria e sua lógica em todos os cantos do globo e em todas as esferas da vida. Consequentemente, a exposição, mesmo concentrando-se nos países do centro do capitalismo, deveria prestar atenção em determinações que estão fora dele, pois, de acordo com outro ensinamento dos dialéticos, a primazia do método deve estar no objeto e suas implicações, as quais, no caso do capitalismo, são mundiais, queira-se ou não.

Em terceiro lugar, o economista alemão argumenta que haveria, em meados das décadas de 1960 e 1970, uma tendência contrária ao capitalismo e uma tendência que alargaria a sua legitimidade. À princípio, isto não seria em si problemático, porém a exposição do autor não deixa claro como esses dois termos se apresentam na realidade. A partir do que Streeck escreve, mas não desenvolve satisfatoriamente, poderíamos desdobrar a seguinte linha de raciocínio: ao mesmo tempo que segmentos específicos da sociedade, como parte dos trabalhadores, intelectuais e frações jovem e estudantis, tentavam colocar em xeque o sistema, gestou-se uma hegemonia ainda mais forte de legitimação mercantil, a qual enraizou-se de forma mais eficaz na sociedade. Ademais, essa tendência pró-capitalista pôde, ainda, apropriar-se de boa parte das bandeiras levantadas nos movimentos radicais de 1960 e 1970, convertendo-as aos dogmas do capital, apesar de sua aparência libertária. Desta feita, a luta por formas de vida autônomas e contrárias ao poder da mercadoria, fora funcionalizada como engrenagem de um capitalismo mais, aparentemente, flexível e hype.

Notas

1 À vista disto, não há base para Cariello (2019) chamá-lo de eurocêntrico, como se Streeck, espertamente, não tivesse revelado a base a partir da qual estuda mudanças importantes do capitalismo. Na verdade, Cariello é que nitidamente procura uma forma de atacar as posições de Streeck para elogiar as pretensas qualidades distributivas e civilizatórias do capitalismo. Que as pessoas tenham mais alguns dólares hoje do que o que ganhavam três décadas atrás, qualquer estudo empírico revela, mas Cariello esquece de dizer que as jornadas de trabalho no mundo voltaram a ter um nível de destrutividade poucas vezes visto e que, apesar de ganhos miseravelmente maiores, as desigualdades continuam aumentando de maneira gritante (Cf. Streeck, 2018, p.100; Piketty, 2014).

2 À primeira vista, esta crítica a Streeck pode parecer não essencial. Contudo, de acordo com argumento explorado posteriormente, caso o economista alemão tivesse dado maior consequência aos textos de Adorno e Horkheimer, poderia ter chegado a um diagnóstico e a uma crítica mais contundentes ao capitalismo contemporâneo e ao imbricamento ainda mais acentuado da tendência à reificação das subjetividades e ao poder destrutivo do capital, cujo cerne depõe contra o caráter facilmente controlável do capitalismo.

Referências

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As revoluções africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo: UNESP.

DanielaCostanzo – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Rafael Marino – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Ruptura: a crise da democracia liberal | Manuel Castells

Manuel Castells é doutor em sociologia pela Universidade de Paris, onde leciona nas áreas de Sociologia, Comunicação e Planejamento Urbano e Regional. Estudioso da era da informação, Castells avalia a influência da comunicação em rede nas sociedades conectadas e suas principais transformações no final do século XX. Das suas obras principais, destaca-se a coleção A era da informação, composta por três livros (A sociedade em rede, O poder da identidade e Fim de milênio). Nesta resenha, apresenta-se uma de suas mais recentes contribuições para o debate acerca da Democracia e dos inimigos que a rodeiam, oferecendo uma perspectiva de interpretação que aponta para a ruptura no processo de consolidação das democracias no mundo.

“Sopram ventos malignos no planeta azul”. Assim, Castells abre seu livro de cinco capítulos, montando, inicialmente, o panorama no qual sua contribuição se inscreve. Crises múltiplas, precariedades no mundo do trabalho, fanatismos de toda ordem, restrição das liberdades em nome de uma segurança vigiada – “Fomos transformados em dados” (CASTELLS, 2018, p. 4), diz o autor. A era da comunicação foi convertida em uma era da pós-verdade, em que mentiras são torpedeadas por diversos mecanismos de comunicação e alçadas à categoria de verdades absolutas. Existe, porém, segundo o autor, uma crise ainda mais significativa: o colapso das instituições representativas, que se configura enquanto crise cognitiva e emocional. Nosso modelo de representação e governança, a democracia liberal caiu em descrença e enfrenta hoje a fúria das ruas. Dessa rejeição, surgem figuras políticas que negam a estrutura partidária e aprofundam a desordem mundial ao promover o segregacionismo e o protecionismo. De modo geral, o autor aborda nesse livro a crise da democracia liberal; a ruptura da representatividade entre cidadãos e governos; e os desafios da procura por instrumentos legítimos capazes de sanar esse “furacão sobre nossas vidas”. Leia Mais

Political ecology – food regimes and food sovereignty: crisis – resistance and resilience | Mark Tilzey

In 1998, Giovanni Arrighi wrote an article with a curious subtitle: “Rethinking the non-debates of the 1970’s”. [3] He was referring to the “non-debates” between Immanuel Wallerstein, Robert Brenner, Fernand Braudel and Theda Skocpol, that remained undeveloped. These “non-debates” of the 70’s, especially the one between Wallerstein (with his world-system perspective) and Brenner (with his “Political Marxism” stance), now reemerge in Tilzey’s book, with Tilzey in the role of the “political Marxist” challenging the conceptions of Jason W. Moore and the proposals of his “world-ecology”, as well as Philip McMichael and Harriett Friedman’s conceptions of “food regime” (both developments of Wallerstein’s “world-system” perspective). [4] This is not simply a repetition, to be sure: the return to thematic and methodological questions derives from the rise and intensification of problems and questions in the present, specifically, how to treat ecology/nature and crisis in our historical and theoretical concepts of capitalism in the Anthropocene/Capitalocene era, characterized by repeated economic crashes. These new questions and problems motivate Tilzey’s timely effort. Nevertheless, many “non-debates” remain undebated, including Arrighi’s intervention in them.

The first chapters of Tilzey’s book condense his ontological and methodological premises. Tilzey tries to build an ontology on which his propositions on political ecology and food regimes would be based. In chapter 2, he criticizes Jason W. Moore’s “world-ecology”, claiming that his notion of “double internality” of society and nature is a “flat ontology”. Tilzey opposed a four-level stratification of ontological relations to this: a non-hybrid, extra-human reality, nature (level 1); a hybrid, socio-natural level of trans-historical use-values (level 2); an “allocative” hybrid level, related to class-mediated distribution and historically-specific technologies (level 3); a non-hybrid “authoritative” level, the underlying political dimension in class dynamics in which to seek “structural causality” (level 4) (p. 28). Tilzey claims that the ontology he proposes is better equipped to deal with class relations and the “authoritative dimension” than Moore’s is. This ontology sets the tone of the rest of the book. Despite his critique of Moore’s general approach, Tilzey recognizes his contributions related to the capital’s dependency on “cheap natures” and commodity frontiers.

It is worth it then to make some critical observations on this foundational first chapter. Tilzey’s assertion that Moore proposes a “flat ontology” is problematic. For starters, Moore denies it explicitly.[5] Moore also asserts the differentiation of humans in that “humans relate to nature as a whole from within, not from the outside. Undoubtedly, humans are an especially powerful environment-making species. But this hardly exempts human activity from the rest of nature”.[6] Finally, Moore distances himself from a “flat ontology” by qualifying Nature and Society as “real abstractions”, the “real historical power of ontologic and epistemic dualisms” that are in contradiction with the co-production of humans and nature.[7] Tilzey’s argument on the “flat ontology” of Moore could have been more convincing if he had addressed and criticized these elements of Moore’s work, but they are left untouched, and so his critique appears to be one-sided. Moore uses “value as method”, in which capital, class and nature conflate in a peculiar, historically-specific way, operating in the formation of classes and concomitant organization of historical natures. Sharply separating or hierarchizing them would be a “violent abstraction”, according to this perspective.[8]

Additionally, Tilzey’s conception of dialectics is not very clear. Both Lucio Colletti and Levins and Lewontin are known to support his position (p. 19-29), references that are at opposite ends regarding the methodological and historical statute of dialectics. For Levins and Lewontin, dialectics is trans-historical and imputed to nature itself (like in Engels’ “dialectics of nature”), while for Colletti it is historically-specific to capitalist modernity, including relations with nature but not extended to nature itself and neither to history as such.9 The assertion that Tilzey’s ontology entails “principles that are not specific to capitalism but to all social systems” (p. 24) clearly indicates the adherence to a trans-historical conception of dialectics, though it is not clear whether it is extended to nature as such or not.

In the next chapter, Tilzey uses his proposed ontology to discuss the origins of agrarian capitalism, “combined and uneven development” and the first agricultural revolution in Britain. Regarding the origins of agrarian capitalism, Tilzey defends a Brennerian position of a British origin of capitalism with specific “social-property relations” (with fully commodified land and labor), contrasting with the world-system perspective which proposes a West European (and American) origin based on for-profit production of commodities under different labor regimes in a world market, the “commodification of everything”.[10] The presentation of world-systemic perspectives on the origins of capitalism is oversimplified as the “Braudel-Wallerstein-Arrighi school”, when actually there are significant differences between these three authors’ view on the transition from feudalism to capitalism (p. 48-9). A discussion of these differences would have been important, especially because Arrighi claims to have incorporated Brenner’s critique of Wallerstein in his version of the theory of transition.[11] Though Tilzey rejects the world-systemic conception of core-periphery relations, he recognizes the crucial importance of cotton plantations in the American South for the Industrial Revolution (or, more generally, the interaction between English capitalism and the “external arena”). To conciliate both positions, he uses a theory of “combined and uneven development” based on Trotsky and more specifically on Anievas and Niasanciglu. It should be noted that what Anievas and Niasanciglu propose as “combined and uneven development” is a trans-historical ontology that is projected back to the time of hunter-gatherers.[12]

The combination of the reference to Levins and Lewontin when referring to dialectics and Anievas and Niasanciglu in relation to uneven and combined development indicate that there seems to be a tension in Tilzey’s theoretical framework: on the one hand, an attempt to specify capitalism in such a way that only England would initially comply; on the other, the use of analytical methods that lack historical specificity to deal with “nature” and the “external”, non-capitalist world. Contrasting with this trans-historical methodological choices, for example, Moishe Postone and Lucio Colletti would argue that dialectics and the dialectical method are historically-specific to capitalist modernity; and in the world-system perspective, core-periphery relations are historically-specific to a capitalist world-economy (which is not necessarily coincident with the whole globe, but comprises the states that are integrated in a single, large-scale market) that arose in the sixteenth century and will become extinct in the future. This world-economy would constitute an integrated market comprised of several states, with a scale and level of integration that characterize it as qualitatively very different from any exchange that might have occurred between groups of hunter-gatherers [13].

One passage reveals this difficulty in using a combination of historically-specific and trans-historical categories: “through the institution of slave plantation in the colonies, capitalists were able to reduce significantly the costs of constant capital in the form of raw materials” (p. 71, emphasis mine). The reader should note that while “constant capital” is a historically-specific category, “raw materials” is trans-historic; the historically-specific category would be “circulating capital”. There is no difficulty here for the world-system perspective, especially if considering Dale Tomich’s concept of “second slavery”. [14] But for the “social-property relations” approach, characterizing slave-produced cotton as “circulating capital” might be inconsistent, as that would mean that slave production was already subsumed under the law of value and the dynamics of the organic composition of capital. But if it was not produced as circulating capital from the beginning (which is difficult to accept, as the relation between Mississippi Valley plantations and English factories was systematic, instead of contingent) then we remain with the difficult question of defining where, between the plantation in the American South and the factory in Britain, this trans-historical “raw material” was converted into a historically-specific “circulating capital”, thus mediating the organic composition of capital and counteracting the profit rate’s falling tendency (a mediation that Tilzey correctly admits as being key for the Industrial Revolution). The problem does not seem to be solved by attributing this “raw material” to level 3 in Tilzey’s ontology, as “class” is still a historically indeterminate category (contrary to value).

The rest of the book is an “application” of the ontological premises presented in the first two chapters. Chapters 4 to 6 are dedicated to the discussion of food regimes. Tilzey characterizes them as the first or British liberal regime (1840-1870), the second or imperial regime (1870-1930), the third or “political productivist” regime (1930-1980) and the neoliberal regime. Tilzey proposed the first regime as a complement to the others that were previously proposed by Friedmann and McMichael. Here, in accordance with his proposed ontology, the emphasis is on class politics, class fractions and how they shape what he calls the “capital-State nexus”. For Tilzey, the “Polanyian” approach of Friedmann and McMichael regarding the State (the “double movement”) obliterates the “state as comprising the condensation of the balance of class forces in society” (p. 113). One of the best moments of the book is the explanation of the different interests of American corn, cotton and wheat famers and how this class-fractional struggle shaped state policies and food regimes (ch. 5).

In Part 2 (chapters 7 and 8), Tilzey discusses “crisis and resistance”. Tilzey’s previously defined ontology implies that crises are always “political” or legitimacy crises; an objective crisis of capitalism is out of question a priori (as well as the possible transition to a less democratic social order). In this respect, he distances himself from other authors for whom alienation plays a central role in crisis theory and that do consider the possibility of some kind of “regressive” transition, such as Moishe Postone or Robert Kurz, and is at least in this regard (crisis necessarily as crisis of legitimacy) in agreement with a non-Marxist scholar like Wolfgang Streeck.[15] In his exposition in chapter 7, Tilzey identifies as contradictions of neoliberalism the general falling rate of profit due to the rising organic composition of capital and the rising cost of raw materials. It should be noted that he characterizes the falling rate of profit with the “power of capital over labor” (p. 200), in line with the posited priority of the “authoritative” level of his ontology. But here, perhaps this ontology produces another one-sided result. The falling rate of profit is the result of mechanization not only in a struggle of capitalists against workers but also in a struggle among capitalists (competition for efficiency); besides, the tendency itself is an objectified outcome that is not “authoritatively” planned. This is part of a dialectic of subjectivity and objectivity peculiar to capitalism that seems to be obliterated by Tilzey’s ontology. In relation to the food regime in particular, Tilzey develops the idea that food and financial crises are different manifestations of the neoliberal social disarticulation, which combines a crisis of under-consumption (level 4 of the ontology) with increasing costs of raw materials (levels 3 and 4).

Again following his ontologies of class and combined and uneven development, Tilzey analyzes peasant “resistance” movements as assuming three different forms: what he calls “sub-hegemonic” (reformist), “alter-hegemonic” (progressive) and “counter-hegemonic” (radical). The sub-hegemonic movement is represented by the “Pink Tide” in South America and its focus on the combination of extractivism and social policies, with peasants appealing to indigenous identities. Alter-hegemonic movements are represented by small commercial farmers, mostly in core countries, that demand regulation and protection against the market. Peasant movements, mostly those in the “global South” and among subaltern classes whose demands include the socialization of means of production (land), are counter hegemonic. It can be seen that the existence of, or potential for, reactionary movements is overlooked, as the ontology does not seem to be equipped with the necessary analytical tools.[16]

Part 3 (chapters 9-13) is dedicated to country case studies, which includes Bolivia, Ecuador, Nepal and China, in which the author tries to trace the commonalities and differences between them (Brazil is not included). Some of the best moments of the book appear here, such as when Tilzey explains the difference between recent peasant movements in Bolivia and Ecuador, on the one hand, and their weakness in Chile and Peru, on the other, based on their different class structures and histories. The last chapter is political-normative, advocating a “food sovereignty” based on peasant communal production using a “resilient” food production system grounded on agroecological methods.

It is clear throughout the book that Tilzey makes great effort to be consistent with his proposed ontology of “Political Marxism”. Nevertheless, the one-sidedness of this ontology (despite the inclusion of “ecology” in lower hierarchical levels), which one could characterize as an extreme form of politicism (or a “violent abstraction”), might produce one-sided analyses, like a critique of Moore that ignores his use of “real abstractions” and a theory of crises that overlooks objectified tendencies (or is inconsistent by taking them into account). Additionally, the trans-historical elements of the ontology used to conciliate the supposed exceptionality of Britain and the intense relations with the “external arena” might generate problems of consistency and historical specification. But the approach can also produce useful sociological and class dynamics analyses and insights. The reader’s evaluation of this ontology will ultimately shape his or her broad evaluation of the book. Hopefully Tilzey’s book will be only the first of many to address the many “non-debates” that are still untouched, some of them barely scratched in this review and that include vitally important questions such as the concept of capitalism, its historical origins and its future demise.

Notas

3. ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the modern world-system: rethinking the non-debates of the 1970s. Review, 21, n. 1, 113-29, 1998.

4. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system I: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Berkeley: University of California Press, 2011 [1974]; BRENNER, Robert. The origins of capitalist development: a critique of neo-Smithean Marxism. New Left Review, I, 104, p. 25-92, July-August 1977; MOORE, Jason W. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. New York: Verso, 2015; FRIEDMANN, Harriet; MCMICHAEL, Philip. Agriculture and the state system. Sociologia Ruralis, XXIX, no. 2, p. 93-117, 1989.

5. MOORE, Jason W. op. cit, p. 39.

6. Ibid., p. 46. Emphasis mine.

7. Ibid., p. 47.

8. Ibid., ch. 2. SAYER, Dereck. The violence of abstraction: the analytical foundations of historical materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987.

9. LEVINS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Harvard: Harvard UP, 1985. COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel. Trans. R. Garner. New York: Verso, 1973.

10. WALLERSTEIN, Immanuel. Historical capitalism. New York: Verso, 2011.

11. Inspired by Braudel, Arrighi proposes an interstitial transition based on Italian city-states, which would include competition for mobile capital, thus addressing Brenner’s critique that competition was not a part of Wallerstein’s model. See ARRIGHI, op. cit.

12. ANIEVAS, Alexander; NISANCIOGLU, Kerem. How the West came to rule: the geopolitical origins of capitalism. London: Pluto Press, 2015, p. 46-7.

13. COLLETTI, op. cit. POSTONE, Moishe and REINICKE, Helmut. On Nicholaus’ “Introduction” to the Grundrisse. Telos, 22, 130-148. WALLERSTEIN, Immanuel. Op. cit.

14. On “second slavery”, see TOMICH, Dale W. Through the prism of slavery: labor, capital and world-economy. Lanham: Roman & Littlefield, 2004.

15. POSTONE, Moishe. The current crisis and the anachronism of value: a Marxian reading. Continental Thought and Theory, 1, no. 4, p. 38-54, 2017. KURZ, Robert. The crisis of exchange value: science as productivity, productive labor and capitalist reproduction. In Marxism and the critique of value, ed. N. Larsen et al, p. 17-76. Chicago: MCM’, 2014 {1986}; STREECK, Wolfgang. How will capitalism end? New Left Review 87, p. 35-64, May-June, 2014.

16. Critical Theory could be helpful, but it seems to be far from Tilzey’s theoretical commitments

Referências

TILZEY, Mark. Political ecology, food regimes, and food sovereignty: crisis, resistance, and resilience. Cham: Palgrave MacMillan, 2018. 394 pp.

ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the modern world-system: rethinking the non-debates of the 1970’s. Review, 21, n. 1, 113-29, 1998.

WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system I: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Berkeley: University of California Press, 2011{1974}; BRENNER, Robert. The origins of capitalist development: a critique of neo-Smithean Marxism. New Left Review, I, 104, p. 25-92, July-August 1977; MOORE, Jason W. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. New York: Verso, 2015; FRIEDMANN, Harriet; MCMICHAEL, Philip. Agriculture and the state system. Sociologia Ruralis, XXIX, no. 2, p. 93-117, 1989.SAYER, Dereck. The violence of abstraction: the analytical foundations of historical materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987.

LEVINS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Harvard: Harvard UP, 1985. COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel. Trans. R. Garner. New York: Verso, 1973.

WALLERSTEIN, Immanuel. Historical capitalism. New York: Verso, 2011.

ANIEVAS, Alexander; NISANCIOGLU, Kerem. How the West came to rule: the geopolitical origins of capitalism. London: Pluto Press, 2015, p. 46-7.

COLLETTI, op. cit. POSTONE, Moisheand REINICKE, Helmut. On Nicholaus’ “Introduction” to the Grundrisse. Telos, 22, 130-148. WALLERSTEIN, Immanuel. Op. cit.

TOMICH, Dale W. Through the prism of slavery: labor, capital and world-economy. Lanham: Roman & Littlefield, 2004.

POSTONE, Moishe. The current crisis and the anachronism of value: a Marxian reading. Continental Thought and Theory, 1, no. 4, p. 38-54, 2017. KURZ, Robert. The crisis of exchange value: science as productivity, productive labor and capitalist reproduction. In Marxism and the critique of value, ed. N. Larsen et al, p. 17-76. Chicago: MCM’, 2014 [1986]; STREECK, Wolfgang. How will capitalism end? New Left Review 87, p. 35-64, May-June, 2014.

Daniel Cunha – Binghamton University. Binghamton – New York – United States of America. PhD candidate in Sociology under the supervision of Jason Moore, in Sociology, Binghamton University. Email: [email protected]


TILZEY, Mark. Political ecology, food regimes, and food sovereignty: crisis, resistance, and resilience. Cham: Palgrave MacMillan, 2018. Resenha de: CUNHA, Daniel. Nature, Food, Crisis: New Problems, Old Debates. Almanack, Guarulhos, n.20, p. 282-286, set./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

Platon, Parménide et Paul de Tarse – FATTAL (RA)

FATTAL, M. Du bien et de la crise. Platon, Parménide et Paul de Tarse. Paris: l’Harmattan, 2016. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista Archai, Brasília, n.20, p. 355-360, Maio, 2017.

Michel Fattal is a member of the International Plato Society, lecturer since 1994 at the Université de Grenoble Alpes, a specialist on ancient and mediaeval philosophy. M. Fattal has published so far nineteen books and more than forty articles, most of them dealing with philosophical theories about logos, including the Pre-Socratics, Plato, Aristotle, the Stoics, Plotin, Saint Augustine, and the medieval reception of the Greek philosophy. “e academy of moral and political sciences awarded him the Charles Lyon-Caen Prize, rewarding him for the publication of Platon et Plotin, Relation, Logos, Intuition  (Paris, l’Harmattan, 2013). Michel Fattal is thus a most distinguished scholar and now he publishes a fine book on the good and the crisis, linking Plato, Parmenides and Paul of Tarsus. As is his style, Fattal builds his argument using short items, each from two to four pages each, on specific subjects, easing the task of the reader. Even though learned and fond of etymological turns, all the Greek quotes are transliterated in Latin letters and translated into French, so that even lay readers may understand his stand. “e volume also puts together papers to be delivered in 2016 in Brasília and Bologna.

The two key concepts are “to put together”(sundein) and “crisis”(krisis). Crisis comes from the Greek krisis, separation, and the verb krino means to split apart, and then to decide, to judge. From Parmenides to Paul o f Tarsus, krinein implies a norm or criteria for choosing what to do and what to avoid doing. Parmenides already proposed that critical reason, or logos, splits apart truth and opinion. Michel Fattal aims thus at studyi ng the critical logos of Parmenides and the noncritical logos of Paul of Tarsus. He starts by considering how the good is relational (desmos) at the Phaedo (99c5-6):

99 ξ τὴν δὲ τοῦ ὡς οἷόν τε βέλτιστα αὐτὰ τεθῆναι δύναμιν  οὕτω  νῦν  κεῖσθαι,  ταύτην  οὔτε  ζητοῦσιν οὔτε  τινὰ  ο ἴ ονται  δαιμονίαν  ἰσχὺν  ἔχειν,  ἀλλὰ ἡγοῦνται τούτου Ἄ τλαντα ἄν ποτε ἰσχυρότερον καὶ ἀθανατώτερον καὶ μᾶλλον ἅ παντα συνέχοντα ἐξευρεῖν, καὶ ὡς ἀληθῶς τὸ ἀγαθὸν καὶ δέον συνδεῖν καὶ συνέχε ιν οὐδὲν ο ἴ ονται. ἐγὼ μὲν οὖν τῆς τοιαύτης αἰτίας ὅπ ῃ ποτὲ ἔχει μαθητὴς ὁτουοῦν ἥ διστ ̓ ἂν γενοίμην: ἐπειδὴ δὲ ταύτης ἐστερήθην καὶ οὔτ ̓ αὐτὸς εὑρεῖν οὔτε παρ ̓ ἄλλου μαθεῖν οἷός τε ἐγενόμην, τὸν δεύτερον

99c the power which causes things to be now placed as it is best for them to be placed, nor do they think it has any divine force, but they think they cannd a new Atlas more powerful and more immortal and more all-embracing than this, and in truth they give no thought to the good, which must embrace and hold together all things. Now I would gladly be the pupil of anyone who would teach me the nature of such a cause; but since that was denied me and I was not able to discover it myself or to learn of  it from anyone else.

It is thus the good that embraces (sundei) and holds together (sunechei) everything. Plato (Phd. 99c5) puts together under a single article (to) agathon and deon, the good and necessary at once, considering that the verb deo  means to happen and to put together. “e good (agathon) is necessarily to put together. At the Phaedo the good is self-su cient as it is principle (arche) and cause (aitia), being thus relational cause and causal relation. Participation (methexis) means also to put together (metechein), so that the good is a bond at the heart of the human language. Fur- thermore, Fattal argues that in the Phaedo Plato ad- dresses not only the study of the vertical relationship, a hierarchical one, linking the sensible and the forms, but also the horizontal links that the forms establish among themselves, later developed in the Sophist. “e Phaedo extends the principle of mutual exclusion of direct contraries to indirect ones, proposes the rule of inclusion or inference enabling forms to be related to each other.

Michel Fattal turns then to Parmenides and to the origins of the crisis, especially his Poem (8 Fr. 50-52):

[50] Ἐ ν τῷ σοι πα ύ ω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθε ί ης· δόξας δ’ ἀπὸ τοῦδε βροτε ί ας μ ά νθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκο ύ ων.

50 Here shall I close my trustworthy speech and thought about the truth. Henceforward learn the opinions of mortals,  giving ear to the deceptive ordering of my words.  (English translation by John Burnet, 1892).

The goddess of the Poem is at the same time thea (goddess) and aletheia  (truth), urging the disciple to avoid opinion and preferring truth. So much so, that Parmenides, for the first time in western philosophy, considers that reason, or logos, has a function in relation to truth and critical assessment, enabling late r Greek philosophy to establish ontological and gnose o- logical hierarchies.

All those are the necessary steps conducing to a di¬erent Pauline reason, or logos, for it is a pneumatic one. Fattal concludes the study by focusing at th e First Letter to the Corinthians, dated around 56 AD and particularly comments a key excerpt:

Paul, 1 Corinthians 2, 14-16

14 ψυχικὸς δὲ ἄνθρωπος οὐ δέχεται τὰ τοῦ πνεύματος τοῦ θεοῦ, μωρία γὰρ αὐτῶ ἐστιν, καὶ οὐ δύναται γνῶναι, ὅτι πνευματικῶς ἀνακρίνεται·

15 ὁ δὲ πνευματικὸς ἀνακρίνει [τὰ] πάντα, αὐτὸς δὲ ὑπ ̓ οὐδενὸς ἀνακρίνεται.

16 τίς γὰρ ἔγνω νοῦν κυρίου, ὃ ς συμβιβάσει αὐτόν; ἡμεῖς δὲ νοῦν χριστοῦ ἔχομεν.

14 But a natural man does not accept the things of the Spir- it of God, for they are foolishness to him; and he cannot understand them, because they are spiritually appra ised.

15 But he who is spiritual appraises all things, ye t he himself is appraised by no one.

16 For who has known the mind of the LORD, that he will instruct him? But we have the mind of Christ.

New American Standard Bible

Paul proposes a spiritual conversion of the nous, intel- ligence, reason, intellect, so that the human being gets a superior understanding or judging capacity, and as such the spiritual human being discerns and judges (ankrinei) everything. This is thus the result of the conversion of the physical to the spiritual, enabling the spirit (pneuma) to foster critical discernment. Those proposals result also from the conflicts within the Corinthian church and they establish a non-critical reason or logos, in opposition to the critical one of Parmenides. The criteria proposed by Paul are spiritual, beyond and above the material world. Michel Fattal finisches the volume by questioning what he defines as nihilist approaches countering classical metaphysics, notably those thinkers of suicion, such as Freud, Nietzsche and Marx. Fattal does not consider that Freudian Subconscious, Nietzschean Der Wille zur Macht or Marxian infrastructure could explain and define humans, human values and conscience. Paul’s reason or logos, on the other hand, broadens human apirations, as it draws its strength from God, from love (agape), a superior grace. Michael Fattal concludes by stating that Paul’s methodical and dialectical reason or logos is valid for humans in any time. Michel Fattal relates classical ontology to Christian reasoning, opposing critical and non-critical, physical and spiritual reason pledging for the eternal value of a spiritual approached grounded on love. Not all modern scholars will agree wit his stand, but the main strength of the volume is in te in-depth analysis, of philosophical concepts from ancient to modern times.

Pedro Paulo A. Funari Du bien et de la crise. Platon, Parménide et Paul de Tarse Universidade Estadual de Campinas (Brasil). E-mail: [email protected]

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O problema da crise capitalista em O Capital de Marx – BENOIT; ANTUNES (EL)

BENOIT, Hector; ANTUNES, Jadir. O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 88-90, dez. 2016/mai. 2017.

Em meados de 2008, as contradições da produção capitalista, muitas vezes escondidas e camufladas pela fumaça do crescimento econômico, vieram à tona com o pedido de concordata do Lehman Brothers. A notícia da quebra de um dos bancos mais importante do mundo abalou as estruturas do mercado. A crise que sempre parecia atingir apenas os países periféricos se instalou no centro do capitalismo mundial. A crise chegou em Wall Street. A quebra do Lehman Brothers foi apenas o estopim de uma crise que ainda se arrasta. Mais uma vez, as ilusões liberais que defendem o livre mercado e o Estado mínimo se desmanchavam no ar.

As esperanças liberais de que a economia se recuperaria rapidamente não se concretizaram. Pelo contrário, diante de medidas provisórias que não alteram a lógica produtiva capitalista, a crise persiste. A economia mundial segue apresentando baixos níveis de crescimento e a desaceleração da economia chinesa é um fator determinante nesse processo. O receituário burguês para a aceleração econômica continua sendo a implantação de políticas de austeridade, que culminam no aumento do desemprego, no arrocho salarial, no prolongamento da jornada de trabalho e no corte de programas sociais. Enfim, na busca de salvar a “economia”, os trabalhadores são os primeiros a sofrer com a ofensiva do capitalismo em crise.

É nesse cenário incerto e de questionamentos à lógica da produção capitalista que a obra de Marx mostra mais uma vez sua vitalidade e atualidade. A crítica à economia política realizada em O Capital é indispensável para se pensar a realidade capitalista, suas contradições e sua superação. E é justamente esse o objetivo do livro de Hector Benoit e Jadir Antunes: O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Em primeiro lugar, temos que dizer que o conceito de crise é um dos principais problemas tratado pelos marxistas ao longo do século XX. E mesmo diante de uma vastíssima produção acerca da questão, o texto de Benoit e Antunes consegue apresentar uma análise original, realmente inovadora e inspiradora, pois lança luz em uma problemática cada dia mais atual e urgente, principalmente para pensarmos a transformação da atual sociedade.

O livro que é o objeto dessa resenha foi lançado pela primeira vez em 2009, no rastro do surgimento da crise. O título era O movimento dialético do conceito de crise em O capital de Karl Marx. Mas não foi apenas o título que se alterou, segundo os autores, o texto passou por uma revisão e ampliação, tornando-se mais sintético e assumindo uma forma definitiva. Nessa nova edição, o livro também conta com um prefácio escrito por Benoit que apresenta o cenário no qual essa problemática foi pensada e também com uma apresentação assinada pelo professor Plínio de Arruda Sampaio Júnior, do Instituto de Economia da Unicamp. Esses dois textos contribuem para enriquecer ainda mais essa nova edição.

O problema em torno das crises já foi objeto de investigação de diversos estudiosos marxistas. Contudo, a questão permanece sem uma conceituação que seja amplamente aceita. Não se chegou a um veredicto sobre esse tema. Muitos autores investigam esse conceito buscando encontrar uma passagem na obra de Marx onde ele apresentasse a “causa” das crises. É por meio dessa noção de causalidade de base empirista que autores clássicos como Kaustky, Luxemburgo, Hilferding, Grossman, Sweezy, Mandel, entre outros, apresentam a questão. Assim, a chave para entender a crise seria identificar a sua causa primeira. Nesse debate, alguns defendem que a causa seria a desproporção entre o departamento produtor de meios de produção e o departamento de meios de subsistência, outros falam da lei da queda tendencial da taxa de lucro e outros ainda lançam a ideia de que a causa é a superprodução.

Mandel foi um dos autores que se dedicou a essa problemática e lançou uma nova luz à questão quando questionou essas teorias monocausais, apresentando uma concepção multicausal, ou seja, apresentando uma teoria que englobava as diversas causas em um único movimento, estabelecendo assim, um encadeamento multicausal. A contribuição de Mandel foi relevante, mas ele também permaneceu preso à noção empirista de “causa”. E é aqui que podemos destacar a produção de Benoit e Antunes, pois a teoria lançada por eles rompe com essa concepção empírico-factual da crise. A proposta de ambos busca expor o conceito de crise a partir da dialética expositiva de O Capital, a partir do seu modo de exposição (die Darstellungsweise).

Essa leitura também rompe com a tese defendida por Rosdolsky, de que Marx não deixou uma teoria sobre as crises, de que essa seria uma lacuna em sua obra. Para Benoit e Antunes, Marx deixou sim uma teoria sobre as crises. A questão é que ela não se desenvolve em um capítulo determinado ou passagem específica de O Capital, pois é desenvolvida ao longo de todos os três tomos desta obra, exposta juntamente com o conceito de capital. Os autores defendem que Marx não abandonou a ideia de elaborar o conceito de crise, ele o fez em todo o percurso dialético-expositivo de O Capital. Nessa concepção, tal conceito aparece enquanto possibilidade ainda no Livro Primeiro, desde o primeiro capítulo, quando se trata da mercadoria e da contradição entre valor de uso e valor. A crise já está ali enquanto pressuposto.

Os autores não estão buscando as manifestações empíricas da crise, mas o seu conceito. E tal desenvolvimento conceitual é encontrado a partir da dialética. Abandona-se a noção de causalidade e se apresenta a noção de modo de exposição.  Não se trata de uma visão fragmentada, mas de conjunto, pois o conceito de crise é apresentado ao lado do próprio conceito de capital, a partir da própria mercadoria.

O livro está dividido em três capítulos que representam os três tomos de O Capital e os três grandes momentos da exposição dialética. O primeiro capítulo apresenta uma análise das contradições potenciais e abstratas do capital na esfera da produção de mais-valia. No segundo capítulo se investiga essas contradições na esfera da circulação. Somente no terceiro capítulo, quando se avança para o livro terceiro, é que se realiza a conversão das possibilidades formais e abstratas de crise em realidade.

Vale destacar que a perspectiva apresentada por Benoit e Antunes não é apenas dialética, mas, também, revolucionária. Compreendem que junto com o desenvolvimento dos conceitos de capital e de crise também está o desenvolvimento das classes em luta. Os autores não se esquecem do permanente conflito irreconciliável entre capital e trabalho. Ele não está ausente, mas presente, desde o início. Assim, abre-se um caminho para o desenvolvimento de um projeto político de superação do capital, justamente a partir do conceito de crise. Afinal, a crise é o momento em que as contradições encobertas do capital se revelam e a luta de classes emerge na cena política de forma mais clara. A crise significa a abertura de um novo caminho para a construção de uma alternativa para além da sociedade produtora de mercadorias.

A partir dessa análise surge uma mudança substancial na interpretação do problema das crises em Marx. Ao deixar de lado a perspectiva empirista e causal e desenvolver o conceito de crise a partir do modo de exposição, a obra de Benoit e Antunes se mostra extremamente original e significa uma importante inovação na investigação dessa problemática. Trata-se, sem dúvida, de uma contribuição original e que merece ser discutida e analisada por todos os interessados no trabalho de superação do estado de coisas dado.

Carlos Prado – Universidade Federal Fluminense (UFF).

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[DR]

 

Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis – SANCHEZ; ROELANTS (NE-C)

SANCHEZ, Claudia; ROELANTS, Bruno. Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2011. Resenha de: SINGER, Paul. O capital e a armadilha da dívida. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.93, Jul, 2012.

Em Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis, Claudia Sanchez e Bruno Roelants analisam a transformação que o capitalismo sofreu pela globalização da economia mundial que coincidiu com o triunfo da contrarrevolução neoliberal no chamado Mundo Livre, num momento em que a Guerra Fria se aproximava de seu auge e também do seu fim, no final dos anos 1970. Os autores também oferecem uma análise da presente crise econômica internacional à luz das mudanças trazidas pela Terceira Revolução Industrial – a da informática e da internet -, que tornaram possível a hegemonia do capital financeiro em plano mundial, matriz de crises sucessivas que lhe são inerentes. O que aparece às classes dominantes como “sociedade do conhecimento” se torna exclusão, principalmente pelo desemprego, para os trabalhadores.

Enquanto a série de crises iniciada em 2007 tem atraído todas as atenções, um capitalismo de novo tipo surge da penumbra, produto da desregulação do capital financeiro e de nova onda de privatização dos principais serviços públicos que, por sua essencialidade para a sobre vivência dos mais pobres, serviços sociais porque deveriam ser acessí veis a todos. A sua privatização, agora justamente nos países mais afetados pela crise e, portanto, pelo desemprego, exclui do uso desses serviços os menos aquinhoados, aprofundando a desigualdade e, por tanto, a injustiça social o que explica a expansão mundial dos “indignados”, em sua maioria jovens que percebem que o capital financeiro, simbolizado por Wall Street, e suas crises lhes roubam um futuro que as conquistas democráticas das gerações anteriores deve riam ter-lhes assegurado.

A redução dos controles nacionais das trocas comerciais e da movi mentação dos capitais especulativos entre os países afiliados à omc e ao fmi removeu os obstáculos à centralização global dos capitais. Atualmente, cadeias internacionais de produção e distribuição de bens e serviços, interligadas por conglomerados financeiros, dominam segmentos inteiros da economia mundial, o que explica a subserviência de governos nacionais democraticamente eleitos às exigências do capital financeiro global, representado por agências intergovernamentais como o fmi e o Banco Central Europeu.

O livro procura descrever a trajetória que está sendo construída pelas crises sucessivas, implicando maior destruição do que geração de riqueza. Essa trajetória é composta por três armadilhas que se fecham sequencialmente, aprisionando os que se endividaram porque acreditaram que a oferta de crédito pelos bancos jamais seria interrompida.

A primeira armadilha é a do consumo. Nos EUA, a renda da população trabalhadora estagnou, sem interrupção, no entanto, do crescimento do consumo. Entre 1992 e 2000, o crescimento do pib se baseou principalmente no aumento das compras a crédito de moradias e automóveis. Em 1990, a soma das dívidas das famílias nos EUA era igual a 85% de sua renda;dez anos depois a soma das dívidas já era igual a 101% de sua renda. Em 2007, quando estourou a crise, as dívidas das famílias comprometiam 139% de suas rendas. A desregulamentação financeira permitiu que o povo “prosperasse” enquanto o país se desindustrializava. Quando a demanda por imóveis e automóveis naturalmente se esgotou, a armadilha do consumo aprisionou milhões de famílias, muitas das quais foram duplamente punidas: perderam o trabalho e os bens adquiridos.

A segunda armadilha é a da liquidez. Quando a crise se desencadeia, os empréstimos cessam, inclusive entre os bancos, porque ninguém mais confia em que eles serão pagos no vencimento. A quase bancarrota dos maiores bancos acarreta a paralisação do crédito, ou seja, quase todas as compras têm de ser pagas imediatamente com dinheiro. Ora, como ninguém tem dinheiro porque a crise acarreta forte queda das atividades com as quais os consumidores ganham seu dinheiro, o volume de compras se contrai. Os que ainda ganham tratam de guardar o seu dinheiro em casa, embora lá ele não renda:o pânico sobrepuja a cobiça. O meio circulante é entesourado, portanto deixa de circular, exceto o pouco dinheiro gasto com compras de bens e serviços indispensáveis.

Os efeitos conjugados das armadilhas do consumo e da liquidez compõem a terceira armadilha: a da dívida. São suas vítimas não só os consumidores que se endividaram, mas todos os outros que tomaram empréstimos para investir. Nos EUA, a hegemonia financeira fez com que o recurso às dívidas se generalizasse:a informática tornou a participação nas operações da Bolsa muito fácil, de modo que a especulação financeira virou um esporte de massas. “Pela primeira vez na história da humanidade”, afirmam os autores, “a especulação é a principal fonte de geração de renda. As firmas de Wall Street haviam assumido dívidas num total equivalente a 32 vezes o seu capital próprio. ”

A financeirização (isto é, o crescimento não só do volume de dinheiro manipulado pelo setor financeiro como também da influência e, sobretudo, do poder econômico e político dos bancos e fundos de investimento) deslocou o controle das empresas dos diretamente interessados – acionistas, assalariados, gerentes, fornecedores e clientes – para os credores, que frequentemente assumem o papel de controladores do capital acionário da empresa. Os credores, no entanto, não participam diretamente da vida da firma e tampouco têm interesse em sua continuidade. Quando se tornam controladores, o seu único objetivo é recuperar o que emprestaram e o máximo de ganhos adicionais. Por causa disso, o controle de empresas da economia real – industriais, agropecuárias, comerciais e prestadoras de serviços à população – pelo capital financeiro acarreta muitas vezes o seu fechamento prematuro.

O processo se acentuou em 1992, quando o governo dos EUA pediu aos fundos de pensão (que estavam subcapitalizados) que tratassem de reestruturar e extrair o máximo de lucro de qualquer empresa no exterior em que haviam investido. A ocasião era propícia, pois a crise do endividamento externo nos países em desenvolvimento, particularmente nos da América Latina, os havia forçado a abrir suas economias e suas empresas recém-privatizadas à aquisição por estrangeiros. Os bancos da tríade EUA, Europa e Japão participaram ativamente dessa globalização, engajando-se em fusões e aquisições. Os bancos que não se lançaram nessas empreitadas logo foram adquiridos por outros1.

Criou-se assim uma nova contradição:a concentração do capital, frequentemente por iniciativa do capital financeiro, fez com que surgisse uma nova classe de firmas consideradas grandes demais para falir. São firmas de tal forma interligadas financeiramente que se alguma das maiores falir leva consigo todas as demais. Isso se verificou na prática em setembro de 2008: a quebra do banco Lehman Brothers contagiou os maiores bancos de investimento, fazendo com que a crise financeira, até aquele momento restrita aos EUA, se alastrasse pelo resto do mundo. A epidemia de falências só não ocorreu porque os governos nacionais injetaram trilhões de dólares nos bancos para salvá-los.

A submissão de uma parte cada vez maior das empresas a capitais financeiros, para os quais elas não passam de veículos para a obtenção de ganhos especulativos de curto prazo, as torna mais vulneráveis às crises produzidas pelo fechamento das armadilhas do endividamento. Para o bem comum, no entanto, toda empresa deveria ser controlada

por aqueles diretamente interessados em sua continuidade e em sua robustez produtiva, comercial e financeira. Um indício dessa mudança de opinião é a recente concessão do Prêmio Nobel de Economia a Elinor Ostrom, notória defensora da tese de que a administração dos recursos que são propriedades comuns da coletividade deve ser confiada a quem está realmente interessado em sua preservação, ou seja, à própria coletividade. Ela constata que “falta uma teoria adequadamente especificada da ação coletiva pela qual um grupo de interessados pode se organizar voluntariamente para reter os resultados de seus esforços”.

Sanchez e Roelants oferecem elementos para a construção dessa teoria mediante o estudo de quatro cooperativas, que são exemplos representativos de ações coletivas voluntariamente organizadas e que obtêm êxito em se resguardar das crises engendradas pelos excessos especulativos dos capitais financeiros. Embora distintos, os quatro casos são bastante representativos de diferentes facetas do cooperativismo contemporâneo.

O primeiro é o de uma cooperativa de mergulhadores e pescadores localizada em Natividad, uma pequena ilha na costa do México, em que moram cerca de oitenta famílias, que vivem da captura de abalones, um marisco muito raro e valioso. Criada em 1942, a cooperativa explora áreas marítimas por concessão do governo. Nos anos 1980, a corrente marítima El Niño aqueceu as águas nessas áreas, o que reduziu o estoque de mariscos, levando à superexploração das reservas de abalones tanto pela cooperativa como pela pesca ilegal de gente de fora. No fim da década a cooperativa conseguiu controlar as práticas predatórias e evitar se envolver numa corrida por ganhos em curto prazo. Adotou uma abordagem científica ambiental e contratou um biólogo. Durante a crise, a assembleia de sócios da cooperativa decidiu fechar uma zona marítima à pesca por quatro anos. Graças à cessação da pesca, os abalones se reproduziram. Quando a pesca nessa zona foi retomada, a cooperativa obteve mais benefícios do que havia sido esperado.

O biólogo da cooperativa propôs que ela investisse em reservas marítimas, tendo em vista assegurar que no futuro houvesse disponibilidade de abalones, pepinos-do-mar e caracóis marítimos. A proposta foi aprovada e a cessação da pesca em determinado espaço reduziu a receita anual da cooperativa em 300 mil dólares, mas os membros esperam que o sacrifício seja compensado no futuro. As concessões de pesca deverão ser renovadas em 2012, e os membros da cooperativa têm bons motivos para esperar que consigam a renovação, o que lhes permite planejar a longo prazo a preservação das áreas de pesca e o desenvolvimento da cooperativa.

O segundo caso estudado é o da Ceralep, uma empresa francesa de pequeno porte fundada em 1921 que produz isoladores de cerâmica. Em 1973 ela se fundiu com outro importante produtor e desde então se tornou a única companhia na França que produz isoladores cerâmicos muito grandes. Em 1989, a Ceralep foi adquirida pela firma suíça Laufen, que a revendeu em 1993 à austríaca Ceram. Essas transações sucessivas fizeram a Ceralep passar por três controladores de diferentes nacionalidades no espaço de vinte anos. Tanto os suíços como os austríacos tentaram debalde se apoderar da tecnologia dos isoladores cerâmicos.

Em 2001, a Ceralep passou a ser controlada pela firma estadunidense ppc Insulators, que começou a agir de forma estranha:demitiu o diretor, mas atendia sem hesitação os pedidos de aumentos salariais dos empregados. A produção caiu muito e os trabalhadores não tinham o que fazer, o que os envolveu num clima extremamente desmoralizante, que se agravou quando os empregados descobriram que a ppc Insulators planejava fechar a Ceralep. É preciso compreender que o fechamento de uma firma que funcionava com êxito há oitenta anos deve ter sido um evento trágico para seus empregados, muitos dos quais passaram grande parte de suas vidas nela e certamente não viam qualquer perspectiva de emprego em outra firma2.

Os operários decidiram resistir à liquidação da empresa. Impediram diversas tentativas de remoção de máquinas bloqueando a entrada de caminhões na fábrica. Estas ações impediram efetivamente os controladores de fechar a firma, levando-os a entregar, em 2003, uma petição de falência, o que possibilitou mais tarde a compra da massa falida pelos empregados. Estes imediatamente escreveram uma carta aberta ao promotor distrital, ao síndico da falência e ao prefeito do departamento de Drôme denunciando que a administração e os acionistas tencionavam quebrar a empresa e condenar os 150 operários e o tecido econômico e social do distrito de Saint-Vallier.

Começou então uma batalha para evitar a destruição da Ceralep. Os trabalhadores se mantiveram unidos e contaram com a ajuda da União Regional de Cooperativas Operárias e da gente simples da comunidade: 802 pessoas doaram um total de 50 mil euros para integrar o capital de giro da futura cooperativa; o fundo francês Socoden de solidariedade das cooperativas operárias emprestou 100 mil euros; o banco cooperativo Crédit Cooperatif também contribuiu até que o milhão e meio de euros necessário para estabelecer a cooperativa fosse reunido.

Os apoios obtidos que ajudaram a impedir o fechamento da Ceralep e asseguraram sua continuidade na forma de um empreendimento cooperativo autogestionário confirmam a veracidade das afirmações contidas na carta aberta dos trabalhadores: a ameaça do fechamento da Ceralep de fato condenaria não só os 150 operários da empresa como também o tecido econômico e social da região.

Todas as autoridades públicas da região, da municipalidade e a associação de municipalidades apoiaram o projeto dos operários, dando-lhe uma ajuda substancial. A racionalidade da Ceralep foi distorcida por investidores absenteístas em ininterrupta sucessão, que se tornaram controladores à distância e trataram a firma como uma ficha trocável numa cadeia global de suprimentos. Esta racionalidade levou a firma à bancarrota. Uma vez removida a causa, a companhia na forma de cooperativa está indo bem, pois o controle foi entregue aos diretamente interessados.

O terceiro caso estudado no livro em exame é o do Grupo de Cooperativas de Crédito Desjardins, que é a mais importante instituição financeira da província canadense de Québec e a sexta maior do Canadá. Com ativos no valor de us$ 155,5 bilhões, é um dos principais atores financeiros e econômicos da nona maior economia do mundo. Desjardins é também o maior empregador privado de Québec com 39 mil empregados e está entre os maiores empregadores do Canadá, com um total de 42 mil empregados no país. Apesar de todo esse poderio econômico, financeiro e empresarial, Desjardins não procura maximizar o retorno sobre o investimento dos acionistas, mas assegurar serviços satisfatórios para os seus 5,8 milhões de membros proprietários, dos quais 5,4 milhões em Québec, que constituem 70% da população da província.

O Grupo Cooperativo Desjardins, criado há 110 anos para atender às necessidades financeiras de pequenos agricultores, produtores e assalariados, é formado por 481 cooperativas de crédito locais autônomas, que em conjunto o possuem e controlam. Os autores se detêm na história do Grupo Desjardins porque se trata de um dos maiores conglomerados financeiros do mundo que, num período em que o capital financeiro se globaliza e conquista incontrastável hegemonia na economia capitalista mundial, se mantém fiel à sua missão cooperativa e a seus membros-clientes pertencentes às classes trabalhadoras, sem com isso perder a competitividade.

O Grupo Desjardins conseguiu democratizar e descentralizar os serviços financeiros, tornando-os acessíveis a todas as classes e os difundindo pelas comunidades locais de Québec. Fez com que várias gerações de quebequenses aprendessem a agir coletivamente para desenvolver suas economias locais e adquirissem através de suas caisses scolaires os conhecimentos básicos de como poupar. Atualmente, 6 258 presidentes e membros de diretorias das cooperativas de crédito locais aprenderam como um banco funciona e são responsáveis pela sua supervisão.

O grupo desenvolve uma oferta integrada de crédito a meio milhão de negócios, que são seus clientes. Para alcançar tais resultados, teve de construir delicado equilíbrio entre as imposições da concorrência financeira e os seus objetivos sociais e entre a segurança financeira de longo prazo de seus membros e as aspirações de curto prazo de seus membros dos mesmos. Ao fazer isso, Desjardins se opõe às armadilhas do consumo e da dívida analisadas acima. Na realidade, não gera risco sistêmico, mas apoia o desenvolvimento econômico e social de longo prazo e promove a igualdade e a confiança.

A estruturação das caisses num agrupamento horizontal desencadeou um forte potencial econômico e social; em vez de permanecerem estruturas isoladas, como eram no começo e poderiam ter permanecido, as cooperativas de crédito locais do Grupo Desjardins conseguiram criar um dos maiores grupos financeiros da América do Norte, sem perder sua capilaridade e continuando totalmente dedicadas à prestação de serviços ao cidadão local e aos negócios locais. A tendência a um excesso de fusões foi controlada, o perigo de que as subsidiárias – seguradoras, fundos de capitalização e fundos de investimentos regionais – pudessem aumentar sua influência em termos de gestão tecnocrática foi igualmente evitado por uma série de reformas de governança sucessivas que incrementou o controle sobre as subsidiárias.

Ao expandir a lógica cooperativa de priorizar a base das cooperativas locais para um sistema tão amplo como a província de Québec, com seus quase 8 milhões de habitantes, Desjardins foi o promotor de uma mesoeconomia, tendo sido por mais de um século um dos principais atores no desenvolvimento de comunidades locais em Québec, além de ter desempenhado um papel-chave na estabilidade financeira do Canadá. Além disso, contra as assimetrias de informação, que muitos interessados sofrem, como é o caso de clientes de grandes instituições financeiras, onde a confiança dos clientes está sendo superada por arranjos opacos e segmentados de contrapartes, Desjardins não apenas nutre a noção de um movimento de proprietários-clientes ao qual se dedica, mas fornece aos últimos informações sobre o grupo de negócios, textos de discussão para ajudá-los a formar opinião na tomada de decisões e lhes oferece treinamento para ajudá-los a administrar suas cooperativas locais. A história de Desjardins também demonstra que crises sucessivas, como a Grande Depressão de 1929, várias crises nos anos 1980 e 1990, e a atual crise global, em vez de ameaçar a existência do grupo de fato a reforçaram, além de lhe dar oportunidade de realizar inovações institucionais e melhorar sua missão fundamental: a de servir seus membros.

O quarto e último caso teve por objeto o Grupo Corporativo Mondragon. Trata-se de um grupo horizontalmente integrado por mais de 110 cooperativas industriais, de serviços, finanças, distribuição, educação e pesquisa, centrado na cidade de Mondragon, na região basca da Espanha. Em 2010, era um grande conglomerado produzindo eletrodomésticos, máquinas-ferramentas, componentes de computadores, mobília, instalações de escritório, materiais de construção, transformadores, componentes de automóveis, moldes para ferro fundido, sistemas de resfriamento, equipamento médico, alimentos e outras manufaturas. Desenvolve uma série de atividades de serviços como engenharia, urbanismo, pesquisas em setores industriais, nanotecnologia, e compreende uma grande cadeia de supermercados, um banco e uma universidade. É considerado o maior complexo cooperativo do mundo, sendo a maior organização empresarial do País Basco e a sétima da Espanha.

A criação do Grupo Corporativo Mondragon foi inspirada pelo padre José Maria Arizmendiarreta, que em 1941, aos 26 anos, tornou-se pároco de Mondragon, dois anos após a guerra civil que havia ensanguentado a Espanha, na qual combateu ao lado dos republicanos. A pobreza reinava em Mondragon, cuja única grande empresa era uma metalúrgica que oferecia uma escola profissional para os filhos de seus operários. O jovem pároco tentou convencer a família proprietária da empresa a abrir a escola aos demais jovens da cidade, mas não teve êxito. Partiu então para a fundação de outra escola profissional, aberta a todos os moradores de Mondragon. Para obter os recursos necessários o padre promoveu uma campanha bem-sucedida de contribuições entre a população, recebendo apoio de 15% de seus moradores.

A nova Escola Politécnica foi a matriz do complexo cooperativo: cinco ex-alunos adquiriram – também com a ajuda da população – uma empresa falida, que se tornou a cooperativa ulgor, fundada em 1956. O padre ajudou na empreitada e desde então passou a ser uma espécie de orientador espiritual da cooperativa. Um dos princípios adotados foi limitar o tamanho da cooperativa para que a autogestão da mesma pudesse contar com a participação consciente de todos os sócios. Quando a ulgor passou a crescer, estimulada pela demanda por seus produtos, partes dela se separaram e foram transformadas em novas cooperativas: a Arrasate, fundada em 1958, fabrica máquinas-ferramentas; fundadas em 1963, a Copreci produz componentes de fogões domésticos e industriais e a Ederlan produz peças fundidas. As três eram parte da ulgor e continuaram vendendo quase toda sua produção para esta última.

As cooperativas desmembradas foram unidas à cooperativa matriz, formando todas uma cooperativa de segundo grau; nesta os excedentes das cooperativas singulares são somados e redistribuídos por igual a cada uma, o que facilita a formação dos preços que as cooperativas fornecedoras cobram da cooperativa matriz pelos produtos que lhe fornecem. Quarenta e cinco por cento dos excedentes são colocados em um fundo de reserva destinado principalmente a financiar novos investimentos3.

Essas regras colocam os interesses da coletividade claramente acima dos interesses individuais, tanto das cooperativas singulares como dos sócios. A elas deve ser atribuída a notável coesão que permitiu ao grupo se desenvolver notavelmente ao longo dos últimos 55 anos. Com o aumento do número de cooperativas, o grupo criou instituições de apoio, na forma de cooperativas de segundo grau cujos sócios são as cooperativas singulares. Em 1959, por insistência do padre Arizmendi, foi criada a Caja Laboral Popular – uma cooperativa de crédito que hoje é o grande banco do grupo, cuja divisão empresarial incuba as novas cooperativas4.

Os órgãos de direção de cada cooperativa de segundo grau são formados por representantes dos trabalhadores da própria cooperativa e dos trabalhadores das cooperativas singulares, geralmente em proporções iguais. Em 1969, a Caja promoveu a fusão de nove pequenas cooperativas de consumo, dando origem à Eroski, hoje a maior empregadora do grupo e uma das maiores redes de supermercados da Espanha. Enquanto cooperativa de consumo, sua direção é partilhada por igual por representantes dos consumidores associados a ela e dos trabalhadores que nela atuam.

O tema central do estudo de Mondragon é o efeito das crises sobre o grupo cooperativo e de que modo este as enfrentou. Em 1986, a Espanha aderiu ao Mercado Comum Europeu, abrindo o seu mercado interno às importações dos outros integrantes do Mercado Comum. A entrada dessas mercadorias no país captou boa parte da clientela que antes comprava os produtos da indústria nacional, inclusive das cooperativas do grupo de Mondragon. A crise se manifestou na forma de aguda queda das vendas, obrigando as cooperativas atingidas a reduzir a produção, deixando parte dos seus sócios sem trabalho.

O grupo cooperativo enfrentou a crise priorizando a preservação dos empregos. O caso de cada cooperativa atingida pela crise era estudado pela Caja em conjunto com a Lagun Aro, a cujo cargo estava o pagamento de seguro-desemprego aos associados. O salvamento dessas cooperativas geralmente exigia mudanças da linha de produção ou da estrutura de marketing, corte dos salários e/ou reforço do capital da cooperativa mediante contribuições dos trabalhadores. Apenas em casos extremos exigia-se redução de postos de trabalho. As propostas de medidas para o enfrentamento da crise eram submetidas a extensas consultas aos membros das cooperativas ameaçadas e naturalmente surgiam contrapropostas, o que exigia votações sucessivas até a formação de um consenso.

O êxito econômico inegável de cooperativas de modestos ceramistas, como no caso da Ceralep, ou de não menos modestos pescadores e mergulhadores, como os da cooperativa de Natividad, combina perfeitamente com a pujança de extensos complexos ou corporações, como demonstram os casos de Desjardins e de Mondragon. Em pequena ou grande escala, as cooperativas são viáveis mesmo quando enfrentam circunstâncias inóspitas das crises provocadas pelo capital financeiro desregulado. Sua capacidade de resistir a quedas inesperadas da demanda é notável, resistência que é fruto sobretudo da solidariedade entre membros das cooperativas e das comunidades em que as cooperativas se localizam, como evidenciam os casos de Ceralep e Mondragon. É difícil exagerar a oportunidade e a importância desta obra. Ela merece a leitura atenta e o debate engajado de todos que se preocupam com os perigos e as oportunidades que a presente crise apresenta.

Notas

1 “Só em 1997 houve 599 fusões bancárias nos EUA, reduzindo o número total de bancos de cerca de 14000 para 9143.”
2 Um deles se suicidou na fábrica, deixando uma carta em que revelou que não suportava mais a pressão, muito provavelmente decorrente da espera inerte pelo fim de tudo que dava sentido a sua vida.
3 Esse fundo é indivisível, ou seja, jamais poderá ser dividido entre os sócios. Fundos indivisíveis são criados para garantir a sobrevivência da cooperativa, nos casos em que sócios resolvam se retirar dela. Estes têm direito a receber sua parte do patrimônio não indivisível. O dinheiro depositado no fundo indivisível continuará pertencendo aos sócios que permanecem na cooperativa. Os outros 55% dos excedentes são dos sócios, mas só lhes será entregue anos depois que deixar em a cooperativa.
4 Ainda em 1959, foi criada a Lagun Aro, a entidade de previdência do grupo. Na época as cooperativas estavam excluídas do sistema previdenciário oficial.

Paul Singer – Professor titular da fea-usp e titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES).

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Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês – KOSELLECK (RBH)

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. Resenha de: MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. Revista Brasileira História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

Obra de fundamental importância para o conhecimento da dinâmica interna do Iluminismo e da gênese do mundo burguês, Crítica e crise, publicada na Alemanha em 1953, é traduzida somente agora em língua portuguesa. Pretendendo desvendar a natureza do mundo contemporâneo, a obra pode ser lida também como importante contributo à Teoria da História.

Koselleck propõe-se a demonstrar como a Filosofia da História, produção intelectual elaborada no século XVIII, não apenas justificou a ascensão da burguesia, como também inaugurou uma nova percepção do mundo, do mundo em crise, algo que se estende desde a Revolução Francesa até a Guerra Fria. Esta percepção do mundo é elaborada através da Filosofia da História, que cria a prospectiva utópica.

Nesta tese, o autor procurará associar análises relevantes da produção intelectual do XVIII, sem fazer, contudo, uma História das Idéias (Geistgeschichte). O movimento das idéias lhe interessa apenas na medida em que desvele o incidente político. Interessam-lhe menos as genealogias ou as formas do pensamento organizado, e mais sua evidência política.

Seu tema versa sobre os filósofos das Luzes antes da revolução, seus atos e pensamentos, independentemente de serem eles pensadores eruditos ou meros autores de panfletos anônimos. Interessa-lhe destacar seus denominadores comuns: a abordagem heurística, que visa a elucidar a ligação entre a utópica filosofia da história e a revolução desencadeada em 1789, que reside na conexão pressuposta entre crítica e crise (p. 13).

Segundo ele, a conjuntura a partir da qual surgiram as Luzes não explica as mudanças ocorridas no século XVIII. O que mudou foram as circunstâncias: o Estado estava se enfraquecendo na França, e por isso, em que pese o monarca continuar a decidir soberanamente, ele pareceu submeter-se às Luzes. No entanto, o Estado Absolutista permanece intacto até a Revolução Francesa1.

A crítica dos iluministas provocou a crise na medida em que o senso político lhes escapava. O espírito burguês do século XVIII transformou a História em um processo. Ao soerguerem como que um tribunal da razão, as Luzes passam a chamar às falas a Teologia, a História, a Arte, o Direito, o Estado e a Política. E, interessante, os filósofos das Luzes aplicaram o método divino à história (condenação/salvação). Submete-se o plano da salvação divina às Luzes.

Neste processo de secularização, o plano da salvação se torna o plano do futuro, moralmente justo e conforme a razão. Mas a moral (ética cristã secularizada) é estrangeira à realidade dada, e vê na ordem política uma determinação heteronômica que embaraça sua autonomia. Por isso, a salvação secularizada (doravante concebida como progresso) só pode se concretizar no futuro, pois a crítica é impotente diante das instituições estabelecidas. Por isso a história se reveste de uma perspectiva utópica.

Dois fatos importantes marcaram o início e o fim do Absolutismo: as guerras religiosas e a Revolução Francesa.

Na França, onde o Estado consegue muito cedo subjugar as guerras religiosas por meio de uma ação racional (pela política, porquanto o Estado logra eliminar todas as demais instituições autônomas em seu favor), constrói-se, de forma mais evidente, a doutrina da razão de Estado.

A razão de Estado pressupõe que a política pode ser tratada fora das considerações morais. Esta se desenha pela percepção de que as guerras religiosas são fruto da intolerância e da liberdade do povo para escolher entre esta ou aquela verdade moral.

Para que a paz seja estabelecida faz-se necessário, pois, que o soberano suprima a liberdade do povo em nome da própria paz.

Barclay2, já em 1605, confrontou o monarca com a seguinte alternativa:

Ou restituis a liberdade ao povo, ou lhe assegureis a paz interior, pela qual o povo sacrificou sua liberdade (…) Se o monarca admitisse oposição, sem dívida se libertaria de responsabilidades, mas carregaria a culpa por todas as agitações que nascessem da intolerância (…) ou fazia que todos se curvassem ou ninguém se submeteria (p. 22).

Mas não há, nestes escritos, a idéia de perda total da liberdade. A liberdade deve ser vivenciada no mundo interior. Nesta esfera, é o indivíduo mesmo que se julga, no refúgio de seu eu. Já o seu eu exterior é julgado pelos que dominam. Quem quer externar o que sua consciência diz, morrerá. Logo, a consciência é algoz de si mesma, pois é ela quem provoca a guerra religiosa.

Esta distinção entre vida exterior e vida interior faz com que se rompa a relação responsabilidade/ culpabilidade, constitutiva da consciência. Os súditos não tinham mais responsabilidade, apenas culpabilidade. A responsabilidade passou a ser apanágio do soberano.

Entretanto, para que o soberano domine, necessário se faz agir com eficácia: não lograr manter a paz é o limite de seu próprio poder. Por isto, necessita acumular poder, elaborar regras e jogos que só ele conhece e que não podem ser conquistados pela moral.

As guerras religiosas influenciaram decisivamente a Teoria Política de Hobbes. Ele funda uma antropologia individualista, ao afirmar serem para o homem bem problemáticos os vínculos sociais, políticos e religiosos, pois ele tende, inexoravelmente, ao apetite e à fuga, ao desejo e ao medo. Trata-se, pois, de uma teoria da guerra civil, donde se justifica a importância do Estado: o Estado de guerra pertence à natureza humana; a paz só existe enquanto esperança e desejo… (p. 27). Já a razão não precisa da moral, pois substitui a moral na política, porque a moral é definida pela religião, e como há muitas religiões, os valores se conflitam. Afinal, quando os presbiterianos e independentes evocam a graça teológica, trata-se apenas da expressão de sua paixão (p. 29).

A pretensão das seitas, para Hobbes, de julgar entre o bem e o mal, não leva à paz, mas é fonte do próprio mal. Isto se deve não apenas à vontade de poder que atiça a guerra civil, mas também à referência a uma consciência que não tem apoio exterior. A consciência moral não é causa da paz, mas da guerra.

Ao separar consciência e ação, Hobbes introduz o Estado sob o aspecto de instância, que exclui a moral de suas repercussões políticas, pois o interesse público e o ato de legislar do soberano são a autoridade e não a verdade. E submete também o Direito ao Estado, porquanto o Direito, por sua vez, está ligado aos interesses sociais e esperanças religiosas. Por esta razão, também o Direito tem de se sujeitar à autoridade do rei.

O Estado torna-se então o Deus mortal. Mais do que isto: torna-se um automaton, a grande máquina (p. 33). Ele assegura, protege, prolonga a vida dos homens. Mas como mortal, ele pode se esfacelar e fazer a sociedade cair no estado da natureza — o que levaria a uma nova guerra civil. Portanto, o Estado tem de fazer de tudo para assegurar a obediência de todos.

É a partir desta clivagem que o homem se parte em dois, uma metade privada e a outra pública, e suas convicções passam a ser vivenciadas no secreto — in secret free.

A dicotomia entre homem simples e homem público é constitutiva da gênese do segredo. As Luzes dilatarão pouco a pouco o foro interior da convicção, mas toda a pretensão ao que revelava domínio do Estado ficava necessariamente envelopada com o véu do sagrado.

A neutralização da consciência pela política favorece a secularização da moral. Mas o arrefecer da religiosidade é fatal para o Estado, porque os temas tradicionais vão ser reeditados de forma secularizada. Quando se esquece as origens do Estado (guerra civil), a razão de Estado aparece como imoral por excelência. Com o fim das guerras de religião, o Estado será portanto encarado como uma pessoa moral que, independentemente da Constituição (católica ou protestante), Monarquia ou República, vê-se face a face com outros Estados. Neste território, a um só tempo existencial e político, os filósofos das Luzes debruçam-se sobre si mesmos. Seu ponto de partida é o foro interior, que vai se dilatando até que se crie como que um segundo espaço público. Gradativamente, esta dilatação atingirá o próprio Estado.

Para John Locke, que viveu num país em que o parlamento já exercia bastante influência sobre o Estado, há três sortes de leis:

A Lei divina, que regulamenta o que é pecado e o que é dever (The divine law the mesure of sin and duty); a Lei civil, que regulamenta o crime e a inocência (The civil law the mesure of crimes and innocence), ou seja, a lei do Estado, ligada à coerção cuja tarefa consiste em proteger o cidadão; em terceiro lugar, a lei especificamente moral, que arbitra sobre o vício ou a virtude, que é revelada pela opinião pública (p. 50).

Uma vez que não é autorizada pelo Estado, a opinião pública só existia secularmente nos clubes, cafés e salões, onde as pessoas transitavam e emitiam seus juízos — não legislavam diretamente, mas a força de seu julgamento autônomo residia na censura, donde a necessidade de publicizá-la.

É neste contexto que se compreende o movimento intelectual de Locke que, ao interpretar a lei filosófica como opinião pública, investe politicamente no foro interior da consciência humana — subordinada por Hobbes à política do Estado. Para Locke, as ações públicas não devem estar submetidas apenas ao Estado. Por isto, ele trespassa a restrição existente no Absolutismo, porquanto a moral não se limita ao eu interior, mas afronta o Estado.

Quem decide? Instância moral dos cidadãos ou a política do Estado? Ou os dois em conjunto? A lei moral não pode exercer poder, mas sim influência política indireta.

Neste círculo (da crítica) encontrar-se-ão os burgueses arrivistas, os protestantes perseguidos, os sábios, eclesiásticos progressistas, militares de alta patente, magistrados, atores que constroem um segundo domínio, compreendido por Koselleck como o reino da crítica.

A estratégia deste novo domínio público (que é ao mesmo tempo privado) é semelhante à dos maçons, que pretendiam traçar planos racionais para a felicidade da vida social. Afinal, os maçons mesclam poderes místicos da igreja e polícia secreta do Estado, ao que associam ainda um terceiro poder — a censura.

No reino da crítica, ainda não se pretende destruir o Estado; quer-se viver como iguais entre si, à parte do Estado, sem hierarquias. O segredo é a garantia de sua proteção: A liberdade secreta se torna o segredo da liberdade. A outra função do segredo é a de propiciar a coesão entre os irmãos. Nasce aí uma nova elite, denominada humanidade, que sente ser seu dever servir a este novo mundo.

A quem eles obedeciam? Ao desconhecido, pois o seu superior era invisível. Logo, quem detinha mais segredos sobre as organizações, detinha mais poder.

Os maçons, aos seus próprios olhos, queriam fazer o bem, mas encontravam obstáculos, quais fossem: a divisão do mundo entre homens e Estados divergentes, a hierarquia social e as religiões em conflito.

Por esses motivos, a crítica permanecia obediente ao Estado, devendo os progressistas limitarem-se ao espírito das ciências3.

No entanto, à medida que a crítica da razão torna todos iguais, inclusive o soberano, ela reduz todos os homens à condição de cidadãos. E se todo cidadão é igual, todo poder é abuso de poder, e o rei absolutista é um usurpador.

Por outro lado, tanto quanto o rei, os críticos transformam-se em tiranos de sua própria argumentação, ou seja, têm de ser igualmente criticados. Para Kant, no reino da crítica com seus segredos, a política pareceu retomar as funções do Estado com seus arcanos. Não é mais a crítica que se substrai do Estado; ela quer estender seu reino tão soberanamente, que são os Estados e as Igrejas que parecem fechar-se diante do julgamento da crítica, para se submeterem a ela. A crítica adquire tanta segurança que chega a tachar o Estado e a Igreja de hipócritas. Se o Estado não se submete à razão crítica, ele só tem direito a um respeito dissimulado. Em síntese, o politicum da crítica não se caracteriza pelo falado, mas por separar o Estado de seu reino.

O dualismo entre o reino da moral e o reino da política permitiu abrir um horizonte apolítico (ser a favor ou contra), primeiramente contra as religiões, e gradativamente contra o Estado. Graças a este pensamento dualista, a nova elite adquiriu uma consciência de si original, a saber, um grupo de pessoas que como representantes e como educadores de uma nova sociedade tomam posição dizendo não ao Estado Absolutista e à Igreja.

No momento em que as Luzes negam o Estado Absolutista, a história fica em aberto e, assim, se enuncia a crise4.

Na Alemanha, observa-se clara percepção da tensão entre moral e política, o que deveria provocar a cisão entre Estado e sociedade5. Todavia, nesta região, a burguesia é fraca e minoritária, logo, as sociedades secretas são ferrenhamente perseguidas e colocadas fora da lei. Diz-se delas que são um Estado dentro do Estado, que se trata de uma conspiração jesuítico-maçônica, acima dos Estados soberanos, para destruí-los, a eles e às igrejas. O que os incita a pensar nestes pequenos grupos como tão poderosos, com uma força catastrófica? A Filosofia da História, vista como grande ameaça, pois iria substituir a religião pela moral.

Os maçons, segundo Leibniz,

aparecem no lugar de Deus. Assim como Deus só age de maneira oculta, fornece ser, força, vida e razão sem deixar-se perceber, os irmãos das lojas também têm que encobrir seu segredo, pois na opacidade de seus planos reside a bondade, a sabedoria e o sucesso do grande projeto (p. 115).

Para Leibniz, os maçons queriam abolir o Estado, sem violência, simplesmente minando-o gradativamente.

Ainda, a Filosofia da História, para Leibniz, legitima a arte moral e produz o homem novo, deus na terra que quer dirigir a história (p. 116), mas não o fará pela violência, e sim pela vontade.

Göchhausen, um militar prussiano, maçon, mas lacaio do rei, assim denuncia os iluministas:

A razão, aparentemente, irá criar um território sem fronteiras e instaurar a era da frugalidade espiritual, física e política no país de fria abstração; mas, de fato, só haveria duas condições toleráveis: a classe que governa e a classe que é governada (p. 119).

Dadas estas perseguições, a revolução não se desenlaça na Alemanha, mas na França. Neste país, a crise se inicia com Turgot, Ministro de Estado oriundo das Luzes, censor moral que entra na cena pública. Para conter a revolução, defendia ser necessário criar-se um Estado cesarista, com um espaço para os liberais. Colocava-se contra os parlamentos e contra o rei.

Turgot, como Hobbes, defendia o Absolutismo esclarecido. Logo, o rei só tinha legitimidade quando suas leis se assentassem no direito moral, sem o que perderia sua autoridade. Ao operar uma divisão dualista entre a moral e a política, Turgot elide

a questão concreta de saber onde e como o direito moral e o poder coincidem, o que equivale a uma forma política de uma ordem moral de Estado… Se para os absolutistas a subordinação da moral à política era o princípio de ordem que colocou um fim à guerra civil e impediu que ela se reacendesse, para Turgot, esse princípio transformou-se no facho que a inocentava, pois, para Turgot, submeter a consciência à política não é evitar a guerra civil, mas fomentá-la. Opor-se à voz da consciência é ser sempre injusto, é justificar a revolta e dar lugar ao tumulto (p. 125).

Com este reconhecimento, Turgot prepara a cena para a revolta.

Rousseau, o primeiro dos democratas modernos, apresenta-se com a seguinte questão: A condição de liberdade é que cada um só obedeça a si mesmo. O monarca não representa a vontade da sociedade, esta é representada pela vontade geral. Mas esta vontade geral, que é agora soberana, é entretanto invisível. Se todos são soberanos, a sociedade é estatizada. Mas esta totalidade racional só o é em aparência, pois cada cidadão só adquire liberdade quando participa da vontade geral, mas como homem ele não sabe quando e como seu eu interior coincide com esta vontade geral, pois o homem individual se engana, enquanto a vontade geral nunca pode se enganar.

Para não permitir o engano, impõe-se a correção das vontades, que é concretizada com a ditadura. A ditadura se diferencia do Absolutismo porque nela se integra o eu interior, e não apenas o eu exterior (ou seja, há que se transformar as ações em convicções). Para tanto, como nem todos os cidadãos conhecem a vontade geral, precisam de guias que criem a identidade entre a moral e a política — com vistas a mostrar o bom caminho. O reino da opinião pública de Rousseau se torna ideológico. O censor público transforma-se em chefe ideológico. Entretanto, ele não pode demonstrar que está mandando, ele tem de dissumular, como nas sociedades secretas.

A ditadura ideológica da virtude desaparece atrás da máscara da vontade geral. Mas porque é instável, impõe-se, ao lado da ideologia, o terror. Daí resulta a desagregação da ordem. Logo, a autoridade não é só ela imoral, mas transforma toda a sociedade em imoral, porque mesmo o homem esclarecido tem de ser hipócrita.

A inocência moral leva à desobediência, que leva à revolta, que resulta na guerra civil. A crise significa então o tribunal da moral, onde vencerá o despotismo ou a justiça.

Este paradigma pode ser evidenciado em Raynal — que enxerga na independência dos Estados Unidos a oposição entre velho e novo mundo; o velho, déspota, o novo, da inocência moral6. Quem triunfa naquele país é a verdade moral dos oprimidos. Ou seja, é com a guerra e com seus meios violentos que se inicia o tempo em que a virtude e o vício se separam. Raynal conclama à revolução em nome da Filosofia da História; crise e Filosofia da História estarão doravante intimamente ligadas.

Com estas constatações, Koselleck conclui que a incerteza da crise se identifica com a certeza do planejamento da história utópica. Esta provoca aquela, e vice-versa; as duas juntas perpetuam o processo que os intelectuais burgueses abriram contra o Estado Absolutista. A burguesia usurpa o poder com a má consciência de um moralista que crê que o sentido da história é o de tornar dispensável o poder. A utopia como resposta ao Absolutismo abre assim o processo dos Tempos Modernos. Porque, de resto, com Tom Paine, a vitória da revolta norte-americana deu-se pela verdade moral, e na França revolucionária, pela política…

Notas

1 Com esta afirmativa, o autor se afasta das interpretações que entendem as idéias como responsáveis pela revolução. Se elas o foram, não foram seus atores que estiveram à frente do movimento (p. 19 e ss.).

2 Humanista e jurista, Barclay tinha em vista o Estado Absolutista; suas idéias foram acompanhadas de perto por Richelieu.

3 A institucionalização da crítica se dá, num primeiro momento, de forma dissimulada, pelo e no teatro ou pela e na literatura. O resgate do drama tem este sentido, de oposição de forças diametralmente opostas: razão/ revelação, liberdade/ despotismo, natureza/ civilização, comércio/ guerra, moral/ política, decadência/ progresso, luz/ trevas.

4 Koselleck toma de empréstimo o termo crise, tal qual ele é empregado por Rousseau, como uma doença do corpo.

5 À época do Sturm und Drang (Tempestade e ímpeto), primeira fase do Romantismo, também compreendido como Romantismo Ilustrado.

6 Segundo Koselleck, em Raynal, a inocência moral deixa de ser pensada como antecessora no tempo do Absolutismo, e é projetada no presente, geograficamente — o oprimido dos Estados Unidos contra a Europa despótica.

Marionilde Dias Brepohl de Magalhães – Universidade Federal do Paraná

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